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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
MÍDIA E GÊNERO: análise crítica da violência contra a mulher no telejornalismo
MARIA DE FÁTIMA JERÔNIMO MARQUES
NATAL - RN
2011
2
MARIA DE FÁTIMA JERÔNIMO MARQUES
MÍDIA E GÊNERO: análise crítica da violência contra a mulher no telejornalismo
Dissertação apresentada à Pós Graduação em Serviço
Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre
em Serviço Social.
Orientador (a): Profª. Drª. Eliana Costa Guerra
Área de concentração: Serviço Social, Cultura e
Relações sociais
NATAL - RN
2011
3
4
Á Flávia (in memoriam), eternamente em meu
coração.
À minha mãe pelo incentivo e apoio em todas as
etapas da minha vida.
5
AGRADECIMENTOS
Há tanto e tantos/as a agradecer...
À minha mãe Socorro que mesmo nos momentos mais difíceis e angustiantes me
recebeu sempre com um sorriso acolhedor e terno. Por me fazer compreender que a
distância e a saudade não são limites intransponíveis, que podemos superar as
dores e as angústias cotidianas, mantendo a simplicidade e a doçura em tempos tão
adversos e difíceis. Por transmitir em seus olhos o enorme orgulho me ver realizar
sonhos pelos quais lutamos juntas.
Ao meu irmão Fábio, pelo amor, compreensão e apoio dedicados a mim durante
toda minha vida, sempre preocupado e disponível a me ajudar. Por me proporcionar
momentos de afeto e conforto;
À minha querida e amada vó D. Ana, exemplo de coragem, delicadeza e afeto.
Agradeço por todas as orações a mim dedicadas.
Aos/as meus/minhas amigos/as do mestrado, em especial a Juliana, Maria
Francisca e Nuara com as quais compartilhei angústias e sorrisos durante a jornada
acadêmica, a vocês meu amor, carinho e amizade;
Ao João Paulo, companheiro sempre, e também aqui. Por entender as ausências
necessárias nesse difícil processo de elaboração de dissertação e, mostrar-se
sempre disposto a me ajudar no que fosse preciso. Para ti meu imenso amor.
Aos/as queridos/as amigos/as de Residência Universitária de Pós Graduação, que
com sorrisos e conflitos construímos relações de afeto e amizade, seguirão para
sempre guardados na memória e no coração;
À Leidiane (carinhosamente, Leidy), amiga-irmã que a vida me presenteou e com a
qual compartilhei sonhos, perspectivas, dores e momentos inesquecíveis. O orgulho
e admiração que sinto por você crescem a cada dia.
A Luciana, amiga de longas datas, pelas intermináveis horas de conversas, pelas
6
expressões de solidariedade e carinho.
À linda e doce Elizângela pelas conversas encorajadoras, pela paciência de ler e
contribuir com esse trabalho. Pela colaboração imprescindível à finalização dessa
dissertação.
Aos/as amigos/as de vida e luta, que mesmo distante, estiveram presentes em mais
essa jornada, todo o meu carinho;
À professora Eliana Guerra, orientadora e amiga, que ao longo da minha vida
acadêmica me incentiva a trilhar novos caminhos e buscar novas conquistas.
Agradeço pelas orientações e comprometimento nesse intenso processo de
investigação e elaboração teórica. Pela confiança e incentivos nos momentos de
dificuldades e desencorajamento, a você meu respeito, carinho e imensa admiração;
Às professoras Telma Gurgel, Mione Sales pelas valiosas e substanciais
contribuições na banca de qualificação, muito obrigada;
À professora Silvana Mara pela delicadeza e leveza com que sempre me acolheu,
tanto graduação como no mestrado. Pelas valiosas contribuições na banca da
qualificação e pela disponibilidade em participar dessa banca de defesa.
À professora Marlene Teixeira por haver se disponibilizado participar dessa banca
de defesa. Certa que as valiosas contribuições e reflexões serão substanciais no
aprimoramento da dissertação.
À professora Severina Garcia que tão prontamente aceitou compor a banca de
defesa apesar dos muitos compromissos já firmados.
As professoras do Programa de Pós Graduação em Serviço Social, pela
socialização contínua de conhecimentos imprescindíveis à concretização desse
estudo acadêmico.
A CAPES pelo incentivo financeiro que me possibilitou a permanência a
concretização do curso de mestrado.
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RESUMO
Este trabalho constitui-se de um estudo teórico e empírico sobre o tratamento dado
pela mídia, em particular, pelo telejornalismo à violência contra a mulher. Objetiva
analisar e refletir sobre o papel da mídia, em particular, da televisão, no processo de
reprodução do sistema patriarcal de gênero no âmbito da sociedade brasileira, a
partir de conteúdos e narrativas jornalísticas sobre os crimes cometidos contra
Andréia Rodrigues e Eliza Samúdio. Nesse sentido, a luz da perspectiva crítica,
buscamos apreender as particularidades do sistema patriarcal enquanto sistema de
dominação do homem sobre as mulheres e, ainda desvelar a participação dos
veículos de comunicação tradicionais como espaços de perpetuação e manutenção
da desigualdade entre homens e mulheres. Para apreender tal realidade, tivemos
como direcionamento a teoria social crítica, ancorada no materialismo históricodialético, que nos possibilitou aproximarmos e apreendermos o fenômeno
investigado inscrito numa realidade dinâmica e contraditória. A pesquisa teve
abordagem qualitativa. Recorremos à literatura especializada da área, a partir de
autores clássicos e contemporâneos. Realizou-se a análise de conteúdo das
matérias catalogadas, e entrevistas com sujeitos envolvidos nas temáticas de
gênero, e/ou comunicação. O exame crítico das matérias indicou que o
telejornalismo é perpassado pelas contradições inerentes a vida social, significa que,
afirma e reafirma a ideologia das classes dominantes, seus valores e concepções de
mundo, mas também, expressa os conflitos e demandas sociais. O estudo revelou
que, na televisão, prevalece a reprodução de estereótipos e de desigualdades de
gênero, que marcam sobremaneira a vida das mulheres. Pudemos verificar que a
violência contra a mulher obtém uma abordagem espetaculosa e sensacionalista
sem aprofundamentos sobre as relações sociais que a determinam e fundamentam.
Palavras chaves: telejornalismo; patriarcado; violência contra a mulher
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ABSTRACT
This thesis is consisted of a theoretical and empirical study about the treatment given
by media, particularly on telejournalism, to violence against women. It aims to
analyze and reflect about the role of media, particularly television, on the process of
reproduction of patriarchy system of gender on the context of Brazilian society, from
content and narrative news about crimes committed against Andreia Rodrigues and
Eliza Samudio. In light of the critical perspective, we seek to apprehend the
particularities of patriarchy as a system of domination and subjugation of women, and
also reveal the involvement of traditional means of media on reproduction and
maintenance of inequality between men and women. To apprehend that reality, we
had as guidance a critical social theory, grounded in historical-dialectical materialism
which enabled us to apprehend the phenomenon under investigation actually
enrolled in a dynamic and contradictory reality. The research had qualitative
approach. We appeal to the specialized literature of the area from classical and
contemporary authors. We conducted a content analysis of categorized matters, and
interviews with individuals involved in issues of gender and / or communication. The
critical examination of the matters indicated that television journalism is permeated
by the contradictions inherent in social life, means that states and restates the
ideology of ruling classes, their values and worldviews, but also express conflicts and
social demands. The study revealed that prevails on television playing stereotypes
and gender inequalities. We could also see that violence against women gets a
sensationalist overblown approach and with no insights on the social relations that
determine and base it.
Key words: telejournalism; patriarchy; violence against women.
9
LISTA DE SIGLAS
CODIMM – Coordenadoria de Defesa dos Direitos das Mulheres e das Minorias
CONNAR – Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária
CONFECOM – Conferência Nacional de Comunicação
CFEMEA – Centro Feminista de Estudo e Assessoria
CFESS – Conselho Federal de Serviço Social
CRESS – Conselho Regional de Serviço Social
CRIS - Communication Rights in the Information Society - Comunicação na
Sociedade da Informação
DEAM – Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher
EBC – Empresa Brasil de Comunicação
FNDC – Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
ONG – Organização Não-Governamental
PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PNDH – Plano Nacional de Direitos Humanos
SOF – Sempreviva Organização Feminista
SBT – Sistema Brasileiro de Televisão
TIC – Tecnologia da Informação e Comunicação
TV – Televisão
10
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 - Simulação de trabalho investigativo – TJ1 ..........................................100
FIGURA 2 – Reportagem sobre a investigação TJ1 ...............................................100
FIGURA 3 – Eliza é levada do Rio para Minas Gerais – TJ4 ..................................105
FIGURA 4 – Eliza sofre agressão durante a viagem, ficam marcas de sangue no
carro – TJ4 ..............................................................................................................105
FIGURA 5 – Bruno chega ao sitio – TJ4 .................................................................105
FIGURA 6 – Eliza é levada até seu algoz – TJ4 .....................................................105
FIGURA 7 – Momento em que Marcos Aparecido amarra os braços de Eliza e a
sufoca – TJ4...........................................................................................................105
FIGURA 8 – Corpo de Eliza é esquartejado, posto em um saco preto e jogado aos
cães – TJ4 ...............................................................................................................105
FIGURA 9 – Eliza: imagem exibida duas vezes na reportagem exibida no
TJ5............................................................................................................................122
FIGURA 10 – Eliza: Imagem exibida duas vezes na reportagem do TJ5 e três vezes
no TJ3 ......................................................................................................................122
FIGURA 11– Bruno: saindo de treino - Imagem exibida no TJ5 .............................123
11
LISTA DE TABELAS E GRÁFICOS
TABELA 1 – Emissoras de tv controladas por grupos religiosos) .............................49
TABELA 2 – Crimes de Ampla veiculação nos anos 1990.........................................77
TABELA 3 – Tempo das reportagens caso 1 ............................................................98
TABELA 4 - Tempo das reportagens caso 2 .............................................................98
GRÁFICO 1 – Distribuição veículos de comunicação por cargos políticos ...............48
12
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO ................................................................................................ 15
2
CONTRADIÇÕES E PARTICULARIDADES DA COMUNICAÇÃO NO
CONTEXTO DO CAPITAL CONTEMPORANEO ..................................................... 27
2.1 A apropriação, uso e controle dos meios de comunicação: particularidades da
realidade brasileira .................................................................................................... 28
2.1.1 L´enjeu: apropriação e produção da informação na reprodução da vida social ..
....................................................................................................................................28
2.1.2 As mulheres e a mídia tradicional: defesa da diversidade nos meios de
comunicação ............................................................................................................. 33
2.2 A informação nos tempos contemporâneos: mercantilização versus informação
crítica ..........................................................................................................................38
2.2.1 A informação mercadoria: a sociedade capitalista e a mercantilização das
dimensões da vida social .......................................................................................... 39
2.2.2 Privatização do público e a defesa da regulamentação e democratização da
comunicação no Brasil .............................................................................................. 43
2.3 A televisão brasileira: avanços tecnológicos e a espetacularização vida
social..........................................................................................................................52
2.3.1 “A TV é tão importante que de janela passou a paisagem”: centralidade da
televisão no cotidiano social ...................................................................................... 52
2.3.2 Violência e espetacularização: elementos centrais nas telas de TV ............... 57
3
A REPRODUÇÃO DA VIOLÊNCIA E DAS DESIGUALDADES DE GÊNERO
NA MIDIA .................................................................................................................. 63
3.1 Criminalização da questão social e expressões da violência: terreno
contraditório e multifacetado .................................................................................... .64
3.2
Exploração e ocultação das determinações da violência na mídia.................. 71
3.3 Violência contra a mulher: expressão da questão social forjada e mantida pelo
patriarcado e pelo capital .......................................................................................... 78
4
A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO ESPAÇO MIDIÁTICO: OS CASOS
DE ELIZA E ANDRÉIA ............................................................................................. 90
4.1
Ponto de partida: tecer os fios da história, desconstruir visões e “verdades”
13
forjadas na e pela mídia. ........................................................................................... 91
4.1.1 Casos emblemáticos da cobertura de situações de violência de gênero pelos
telejornais .................................................................................................................. 92
4.1.2 “A questão é que a realidade não pode ser escondida”: dramatização e
espetacularização da violência.................................................................................. 97
4.2 “A dor da gente não sai no jornal”: violência contra a mulher no noticiário
televisivo.................................................................................................................. 108
4.2.1 “Quem nunca saiu na tapa com uma mulher?”: expressões de naturalização e
banalização da violência. ........................................................................................ 109
4.3
Os Fios (in)visíveis do patriarcado nas narrativas televisivas e jornalísticas.117
4.3.1 Reprodução de desigualdades e estereótipos de gênero na/pela televisão..118
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... .127
6
REFERENCIAS ............................................................................................. 132
7 ANEXOS
14
Quimeras Latentes
No mapa secreto das palavras
Elas vão contando suas histórias
Silenciosamente vão forjando primaveras livres
Estão em todos os lugares,
São milhões, milhares
E também são seculares,
Sobrevivem no sertão árido dos homens,
Sonham com novos outubros,
Reproduzem-se na selva amazônica do capital
São femininas, elementares
E, ainda sim, são plácidas,
Nascem das desigualdades
E, por toda vida lutam
Contra a violência da carência fatigada
Fustigada por sinistras cantilenas
Têm corpos desertos e desejos obsoletos
Vontades subalternizadas, passivas de novas lutas
Onde arrefecer está no campo das impossibilidades
Invisíveis vão tecendo no orvalho da manhã
Quimeras de límpidos horizontes
E, silenciosamente, transformam-se em
labaredas entreabertas numa encruzilhada
sem fim contra todo tipo de exploração
Andam de peito aberto e olhar aguerrido
Trazem nos olhos páginas avulsas em branco
Quem sabe, sonhando um dia escrever
igualdades e liberdades num mundo emancipado.
Daniela Castilho Poetisa e Assistente Social
15
1. INTRODUÇÃO
Como afirma Freire (2009), a mídia se constitui um excelente campo a ser
analisado por nós pesquisadores e pesquisadoras. O registro diário das notícias nos
possibilita de forma contínua e sistemática uma série de informações sobre os
valores, ideologias, relações e práticas sociais que compõem a realidade. Com esse
entendimento, nos propomos percorrer os sinuosos caminhos da comunicação, seus
limites e possibilidades na função social que assume, articulando nesse debate a
discussão sobre gênero e violência contra a mulher.
É diante da chamada “midiatização” da vida social que nos dispomos a
analisar o papel da mídia no processo de reprodução e perpetuação do sistema
patriarcal. Buscamos desvelar os mecanismos mobilizados na produção e difusão da
informação pela mass media1 em particular, pelos telejornais que contribuem na
construção e reprodução da ideologia dominante, a qual reforça e sustenta as
desigualdades sociais e, em especial, as desigualdades de gênero.
Tomamos matérias veiculadas pelos telejornais sobre os crimes cometidos
contra Andréia Rodrigues (2007) e Eliza Samudio2 (2010) para, a partir das
coberturas destes casos, analisar em uma perspectiva crítica, a atuação da mídia
televisiva na sedimentação de relações desiguais de gênero, considerando que
existe um padrão de comunicação inscrito em cada tempo histórico, com
particularidades inerentes a cada formação social.
O interesse pela problemática inicia-se na graduação em Serviço Social com
a participação em disciplinas, oficinas e cursos sobre a temática de gênero. Ainda
influenciou o interesse pela discussão em foco, a inserção, por ocasião do estágio
curricular, na Coordenadoria de Defesa dos Direitos das Mulheres e Minorias –
1
Mass media corresponde a um conjunto de técnicas de difusão de mensagens (culturais,
informativas ou publicitárias) destinadas ao grande público, tais como a televisão, a rádio, a
imprensa; meios de comunicação social. O termo é sinônimo de Mídia, sendo este mais utilizado no
Brasil. Ao logo do trabalho utilizaremos as duas terminologias. Ver Sales (2009)
2
Eliza Silva Samudio, 25 anos, natural do Paraná desapareceu na provável data de 04 de junho de
2010. O principal acusado do seu desaparecimento é Bruno (mandante), ex-jogador de futebol e pai
do seu filho. Andréia Rosângela Rodrigues, 37 anos, natural do Rio Grande do Sul, morava no Rio
Grande do Norte com o marido Andrei e duas filhas. Foi morta no dia 22 de agosto de 2007 pelo
marido, com a participação dos familiares deste.
16
CODIMM. Posteriormente, estas experiências influenciaram a elaboração do
Trabalho de Conclusão de Curso/Monografia. Neste estudo, buscamos apreender as
relações
desiguais
de
gênero
expressas
nos
programas
televisivos,
problematizando-os enquanto mecanismo de reprodução das relações desiguais
entre os gêneros.
Analisar a dinâmica da violência que se objetiva nos processos de produção e
reprodução da sociedade contemporânea mostra-se um grande desafio, haja vista, a
diversidade e complexidade que a envolve. Estamos diante de um tema atual que
se “reproduz e sofre metamorfoses sob condições objetivas marcadas pela
sociedade burguesa, considerando as particularidades assentadas nos marcos da
sociedade brasileira” (SILVA, 2006, p. 32).
No Brasil, os índices de violência têm ganhado proporções alarmantes.
Segundo o Mapa da Violência 20113, entre 1998 e 2008, o número total de
homicídios registrados passou de 41.950 para 50.113, representando incremento de
17,8%. A pesquisa aponta, ainda, que os jovens são os mais atingidos pela violência
no país. As causas externas são responsáveis por 73,6% das mortes, dentre as
quais os homicídios correspondem a 39,7%, para cada 100 mil jovens.
Ainda, o estudo evidencia que a violência contra a mulher continua em
crescimento em todo o país. Entre 1998 e 2008, 42 mil mulheres foram
assassinadas. As taxas anuais do período giram sempre entre 4,25 homicídios para
cada 100 mil mulheres. No período, em vários estados, principalmente do Nordeste 4,
a exemplo da Bahia, Maranhão, Rio Grande do Norte e Sergipe, o crescimento dos
homicídios femininos foi significativo. No Rio Grande do Norte, as cidades com maior
incidência de violência contra a mulher são: Mossoró (10,4% 5), Parnamirim (5,4%),
Açu (3,4%) e Natal (3,5%). A pesquisa revela igualmente que, no Brasil, 40% dos
crimes perpetrados contra as mulheres ocorreram na residência ou habitação das
mesmas.
3
Waiselfisz, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2011. Os Jovens do Brasil. Brasília, Ministério da
Justiça, Instituto Sangari, 2011.
4
A Bahia, 173%; Maranhão, 137%; Rio Grande do Norte, 154% e Sergipe, 110% (dados relativos ao
aumento do índice assassinatos de mulheres em 10 anos). Caderno Complementar 2/Mapa da
Violência 2011.
5
Porcentagem para cada 100 mil mulheres.
17
Esses dados revelam a crescente degradação da vida humana na sociedade
capitalista, condicionada dentre outros fatores, pelo agravamento da questão social
e das desigualdades sociais. O agravamento e a complexidade que assume a
questão da violência nas cidades e no campo e, em particular, as expressões da
violência contra mulheres, nos instigam a questionar a naturalização destes
fenômenos, muitas vezes, tomados como ação isolada e pontual, circunscrito á
esfera individual.
Os elevados índices de violência fazem com que o fenômeno esteja sempre
presente nos meios de comunicação, especialmente nos noticiários televisivos. Os
episódios mais chocantes constituem motivo de variadas reportagens tendo em vista
a capacidade de atrair a atenção do telespectador. Outros, por sua vez, são
simplesmente invisibilizados. Todavia, de forma majoritária, a mídia tende a
naturalizar e banalizar o fenômeno, ora situando-o geograficamente (típico das
periferias, de determinados segmentos da classe trabalhadora), ora subjetivando-a
(atos insanos, loucos).
No âmbito da sociedade brasileira os meios de comunicação, em especial a
televisão, se destacam pela centralidade na vida cotidiana. Segundo dados do IBGE
em 2009, 95,7% dos lares tinham pelo menos um aparelho de televisão (IBGE,
PNAD, 2009). Em 2010 a pesquisa Hábitos de Informação e Formação da
População Brasileira, verificou que 94% da população costumam assistir televisão, e
a maioria assiste TV aberta (77%)°(BRASIL, 2010).
Assim, entendendo a centralidade e o poder de alcance da mídia na
sociedade, nos inquietamos com a prevalência de discursos psicologizantes ou de
culpabilização da vítima nas abordagens sobre a violência contra a mulher ainda. A
reprodução de discursos ancorados no prisma da ideologia patriarcal naturalizam
formas de opressão historicamente construídas. Contudo, assim como a realidade
social, os veículos de comunicação são contraditórios e, portanto, podem possibilitar
tanto avanços no enfrentamento da violência, como retrocessos.
A complexidade atual na qual se gesta a formação societária promove uma
pluralidade de fatores de manutenção e perpetuação das relações patriarcais. Ora, o
patriarcado engendra-se no tecido social, circunscrito nos meios de produção e de
reprodução. Embora, referencie a dimensão de gênero, expande-se por toda a
18
sociedade, no conjunto das relações sociais, espraiando suas hierarquias e relações
de poder em todos os espaços de sociabilidade.
Nesse sentido, o sistema ideológico patriarcal encontra nos veículos de
comunicação tradicionais, espaços propícios à sua perpetuação. Historicamente, o
sistema de comunicação brasileiro tem cumprido a função de reprodutor da ideologia
das classes dominantes. Assim, a mesma orientação é reiterada em seus produtos;
implícita e explicitamente, aparece nas relações de dominação, que afirmam o poder
dos homens sobre o corpo e a vida das mulheres.
Deste modo, as relações de gênero, construídas no decorrer do processo
histórico
e
social,
forjadas
nas
diferenças
observadas
nos
sexos
são
sistematicamente, naturalizadas pelos diversos espaços sociais, dentre eles, os
canais televisivos. Ademais, o conjunto das relações sociais é condicionado pelos
processos de produção e reprodução da vida social. Deste modo, as dimensões
culturais, políticas e ideológicas estão submetidas à lógica do modo de produção em
curso.
De acordo com Saffioti (1987), a desigualdade entre homens e mulheres é
construída e naturalizada pela sociedade em distintos momentos históricos através
de variados papeis designados para as categorias de sexo. A situação de
subordinação das mulheres resulta de um longo processo histórico permeado por
determinações econômicas,
religiosas,
culturais
e
políticas.
Ao
longo
do
desenvolvimento das sociedades, estes fatores possibilitaram a consolidação da
dominação masculina como um sistema que, embora passe por alterações, mantémse presente nas relações sociais (MOREIRA, et all, 2006).
Do ponto de vista teórico-metodológico as categorias gênero e patriarcado
são centrais na apreensão crítica do objeto de estudo. Com efeito, as categorias
gênero e patriarcado, inscritas em relações de classe são, pois, complementares na
compreensão das relações sociais entre homens e mulheres, como também nas
relações entre mulheres e mulheres, homens e homens. Elas nos ajudam a
apreender como são objetivadas as desigualdades e as diversas manifestações de
violência, que caracterizam as relações sociais, em particular, nas modernas
sociedades capitalistas, as quais marcam, sobremaneira, a vida das mulheres.
Neste sentido, Mirales (2009, p. 128), ressalta que essas categorias,
19
[...] constituem-se em possibilidades reflexivas sobre a condição das
mulheres e ao mesmo tempo, possibilidades para a construção de
uma história que seja capaz de enfrentas os preconceitos derivados
destas questões.
Assim, observando a complexidade da problemática, buscamos particularizar
nosso objeto de estudo em um dos mecanismos que entendemos ser na atualidade
um espaço de divulgação, disseminação e legitimação de valores e ideias que
sustentam a estrutura societária vigente e, em particular, contribuem para a
reprodução da condição de submissão das mulheres, das situações de opressão e,
a naturalização das variadas expressões de violência.
Analisamos especificamente dois casos, não somente pela amplitude e
comoção social, mas, sobretudo pela forma espetaculosa com que foram tratados
pelos veículos de comunicação. Entendemos estes casos como particularidade da
totalidade social na qual se encontram inseridos. Assim, as características e
elementos presentes e mobilizados nos mesmos revelam dimensões da dinâmica
mais geral de nossa sociedade, no tempo histórico em análise.
Durante dias e dias, em diversos programas e, principalmente no noticiário
jornalístico, reportagens sobre a violência sofrida por mulheres são difundidas sem
conter elementos que esclareçam e possibilitem aos telespectadores uma
compreensão mais ampla dos casos tratados. Em geral, repetem-se informações,
imagens e são articulados elementos que findam por levar a conclusões apressadas
ou enviesadas sobre as matérias em pauta. Nesse sentido, se por um lado, a
veiculação dos crimes dá visibilidade às expressões de violência e a situação de
opressão vivenciada por tantas Elizas e Andréias, por outro, constatamos que não
esta não permite uma reflexão aprofundada sobre determinantes das expressões de
violência abordadas.
De acordo com Queiroz (2008), no senso comum, a violência é entendida
como o uso agressivo da força física. Contudo, afirma a autora (op. cit. p. 20), “[...] a
violência não se limita ao uso da força física, mas a possibilidade ou ameaça de usála [...] constitui a dimensão de sua natureza”. Assim, associa-se intrinsecamente a
ideia de poder, ao ressaltar a “possibilidade de imposição de vontade, desejo ou
projeto de um ator sobre o outro”. Para a autora
Em seu significado mais freqüente, a violência quer dizer uso da
força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a
20
fazer algo que não está com vontade; é constranger, é tolher a
liberdade, é incomodar, é impedir a outra pessoa de manifestar seu
desejo e sua vontade, sob a pena de viver gravemente ameaçada ou
até mesmo ser espancada, lesionada ou morta, enfim, é uma
violação dos direitos essenciais do ser humano (QUEIROZ, 2008, p.
20).
Os estudos de violência contra as mulheres já somam mais de três décadas
no Brasil. Segundo Passinato (2006), o debate sobre violência contra a mulher
ganha relevância na década de 1970, momento em que ocorrem denúncias de
crimes passionais e da impunidade penal. Aos poucos, o tema ganha destaque e
passa “[...] a representar bandeira de luta do movimento de mulheres brasileiro”.
Nos anos 1980, amplia-se o debate político, e ao mesmo tempo, crescem as
mobilizações e denúncias de agressões e maus tratos nas relações conjugais.
Essas lutas são propulsoras da criação dos serviços de atendimento às mulheres
em situação de violência6 (PASSINATO, 2006; QUEIROZ, 2008). Passinato (2006,
p. 131) enfatiza, que “[...] o fenômeno da violência contra as mulheres foi sendo
construído [politicamente] ao mesmo tempo em que era denunciado pelo Movimento
Feminista”.
Entendemos a violência cometida contra a mulher enquanto expressão das
relações desiguais de gênero que, associadas às desigualdades de classe e etnia
estruturam as relações sociais entre homens e mulheres. É ainda apreendida como
uma relação de poder, de dominação do homem e de submissão da mulher.
Evidencia que os papeis impostos às mulheres e homens, consolidados e
reforçados, ao longo do processo histórico pela ideologia patriarcal, criam condições
para as relações violentas entre os gêneros, as quase se constituem relações
baseadas na dominação e na exploração. Nessa perspectiva, a violência perpetrada
contra as mulheres não se reproduz como um processo natural, mas enquanto parte
constitutiva da socialização dos sujeitos.
A partir desse entendimento, podemos afirmar, que a violência cometida
contra Eliza e Andréia, que vitimiza centenas de mulheres no Brasil, tem constituição
histórica, sofrendo modificações nas variadas conjunturas. A historicização da
violência nos possibilita apreendê-la enquanto complexo elaborado no processo de
6
Em 1895 é criada a primeira Delegacia Especializada no Atendimento a Mulher em situação de
violência, em São Paulo.
21
formação de sociabilidades e, portanto, passível de desconstrução. Trata-se de um
fenômeno que, embora não tenha sido gerado pela sociedade capitalista, encontra
no terreno da sociabilidade do capital condição concreta à reprodução e
perpetuação (SANTOS, 2010).
Pensar a relação entre as categorias, mídia, gênero e violência a partir da
perspectiva de totalidade requer desvendar suas contradições, antagonismos e
identificar a multiplicidade de significados que adquirem na realidade social. Fazê-lo,
significa evidenciar o conjunto das relações que os envolvem contrapondo-se a
análises particularistas e fragmentadas da realidade.
Nessa dissertação pretendemos analisar o desenvolvimento dos veículos de
comunicação, em especial da televisão, e a relação no processo de disseminação
da ideologia burguesa, mais precisamente, sua participação na reprodução das
relações desiguais entre homens e mulheres sob a lógica do sistema patriarcal.
Buscamos identificar os aspectos culturais, políticos e econômicos presentes
na produção jornalística, os quais, majoritariamente tendem a culpabilizar a mulher
pela situação de violência por ela vivenciada e/ou atribui ao agressor, distúrbios
psicológicos, contribuindo deste modo, para a ocultação dos aspectos históricos,
sociais, econômicos e culturais determinantes das diversas expressões de violência
vivenciada pelas mulheres.
No âmbito do Serviço Social o debate sobre comunicação vem se
aprofundando desde a década de 1990 culminando com a Política de Comunicação
do conjunto CFESS/CRESS elaborada em 2001. Nessa perspectiva acreditamos
que para o conjunto da categoria, o debate político sobre a temática abordada é
bastante profícuo. Ainda, enquanto expressão da questão social, a violência contra a
mulher se constitui objeto de análises e de constantes intervenções no exercício
profissional do Assistente Social. Dessa forma, aprofundar tais categorias significa:
imbuir à categoria profissional de conhecimentos para a apreensão da reprodução
das relações sociais e, portanto, a desnaturalização das desigualdades.
Nesse sentido, para que possamos percorrer tal caminho sem incorrer em
equívocos importa-nos desvelar as contradições constitutivas do nosso objeto de
estudo. Assim poderemos apreender o universal que incide nas particularidades da
mídia e da violência contra a mulher no momento histórico atual. A partir daí,
22
identificar os encadeamentos recíprocos no jogo das relações estabelecidas pelos
veículos de comunicação no enfrentamento ou, ao contrário, na reprodução acrítica
das desigualdades determinantes da violência vivenciada pelas mulheres.
Mediante a complexidade da realidade, investigar e analisar processos sociais
não se constitui uma tarefa fácil. No movimento do real a mídia contribui na
disseminação de valores, ideologias e práticas sociais que permitem “sustentar e
avalizar a lógica do grande capital”, fortalecendo o conformismo e a passividade
diante das “transformações societárias em curso” (SIMIONATO, 2003, p. 273), mas
numa lógica inversa também possibilita a veiculação de informações e a interação
de grupos e indivíduos em um contexto assolado pelo individualismo.
Como afirma Minayo (1993, p. 23), a pesquisa constitui uma “atividade básica
das ciências na sua indagação e descoberta da realidade. É uma atitude e uma
prática teórica de constante busca que define um processo intrinsecamente
inacabado e permanente”. Destaca-se ainda, como atividade que propõe uma
“aproximação sucessiva da realidade que nunca se esgota” (ibidem). Trata-se,
portanto de um processo de aproximações sucessivas mediante o qual nos
debruçamos sobre o fenômeno em análise para desvelarmos os determinantes e
suas particularidades materializadas.
Assim, por compreender não apenas a complexidade da temática proposta,
mas, sobretudo sua natureza histórica e as dimensões econômica, cultural e política
que a envolve, desenvolvemos nossa pesquisa a luz perspectiva crítica-dialética.
Consideramos que tal perspectiva nos possibilita analisar a realidade social
identificando como nela se estruturam as relações entre homens e mulheres;
permite-nos apreender contradições e antagonismos presentes na sociabilidade
capitalista, seus rebatimentos sobre a mídia e, em particular, sobre a televisão e,
como este tipo de mídia participa da construção ideológica que sedimenta e contribui
para a reprodução de tais contradições.
Os procedimentos metodológicos compreendem pesquisa bibliográfica,
entrevistas e análise das matérias arquivadas em meio digital e catalogadas. Como
fonte secundária, utilizamos matérias relacionados aos dois casos divulgadas por
jornais impressos, nas suas versões online, digitalizadas e armazenados em meio
digital. Utilizamos ainda falas, interpretações e opiniões sobre os episódios
23
divulgados em sítios da internet e armazenados em nossos arquivos. Porém, o
nosso foco de análise são as reportagens cujos conteúdos referem-se à morte de
Andréia Rodrigues e ao desaparecimento de Eliza Samudio – imagens e
depoimentos, análises, e interpretações dos episódios pelos sujeitos arrolados nas
notícias.
As matérias sobre a morte de Andréia foram cedidas por uma emissora local
(oito matérias) e, posteriormente, transcritas e analisadas. Obtivemos as notícias
que tratam do desparecimento de Eliza de seis telejornais distintos disponíveis em
sítios da internet (globo.com, youtube.com, R7.com). Algumas dificuldades se
interpuseram nesse processo, dentre elas, destacamos: a) disponibilização das
reportagens pelas emissoras locais, ocasionando atrasos em nosso processo de
pesquisa. Apenas uma emissora nos concedeu as reportagens; nas mesmas, foram
cortados os enunciados dos apresentadores, elemento a nosso ver importante nas
análises, b) obtenção de reportagens na integra disponíveis na internet, sem cortes
que comprometessem as análises. Estas dificuldades nos levaram a rever várias
vezes cada matéria, a confrontar cada uma com um conjunto de informações obtidas
em outras matérias ou em sítios. Os vídeos obtidos foram visualizados
sistematicamente para seleção daquele que nos pareceu mais completo, portanto,
sem cortes, passíveis de comprometer nossa investigação. No caso das reportagens
cedidas pela emissora local, procedemos à análise dos conteúdos, desconsiderando
os enunciados do apresentador.
A pesquisa bibliográfica esteve presente em todo o percurso da pesquisa,
possibilitando o “desvelar do objeto”. A leitura sistemática de pesquisas e textos
teórico-metodológicos revelou-se imprescindível para esclarecer categorias e
conceitos, além de fornecer instrumental teórico-metodógico para processo de
investigação e nos guiar nas aproximações sucessivas com relação ao nosso objeto
de estudo. Permitiu-nos ainda o gradativo e processual distanciamento com relação
à dimensão fenomênica e identificar os diversos elementos que envolvem o objeto
estudado.
As entrevistas (semi-diretivas) foram utilizadas para ampliar e aprofundar o
conhecimento sobre o tema pesquisado, a partir de questões previamente
estabelecidas. O instrumental nos possibilitou esclarecer questões que não haviam
24
sido elucidadas através do material bibliográfico e das análises por nós realizadas.
Entrevistamos sujeitos efetivamente inseridos nos processos analisados, envolvidos
nas questões investigadas: um jornalista, um militante da área da comunicação e
duas feministas. As entrevistas semi-estruturadas foram, portanto conduzidas com
base em uma estrutura flexível a partir de questões abertas relacionadas à temática
pesquisada. Os sujeitos das entrevistas são identificados com pseudônimos
escolhidos dentre títulos de jornais de esquerda e de jornais feministas (Pasquim 7,
Versus8, Mulherio9 e Nosoutras10).
Os seguintes eixos de investigação conduziram as entrevistas realizadas: a
importância da comunicação e da televisão para a sociedade contemporânea; o
crescimento da quantidade de reportagens relacionadas à violência, apresentado
dimensões do sensacionalismo; as relações desiguais entre homens e mulheres na
sociedade e sua reprodução pela mídia; violência cometida contra as mulheres e a
repercussão do fenômeno nos telejornais.
A análise das matérias pautou-se em alguns aspectos previamente escolhidos
que, direcionaram nossa apreensão do conteúdo explicito e implícito das notícias
catalogadas: imagens veiculadas nas matérias, evidenciando a forma espetaculosa
com a qual foram tratados os episódios selecionados; termos recorrentes nas falas
dos sujeitos envolvidos; análises e interpretações que indicavam formas ideológicas
do sistema patriarcal, reprodução do machismo e sexismo; declarações sobre a
violência contra a mulher e a condição da mulher na sociedade.
Dentre os veículos de comunicação, escolhemos a televisão dada à
importância que adquire no cotidiano social 11. Particularizamos no gênero
telejornalístico, tendo em vista que não raras vezes, é caracterizado por sua
confiabilidade,
seriedade
e
neutralidade
no
tratamento
e
transmissão
de
7
Pasquim jornal semanal veiculado de1969 a 1991, reconhecido por seu papel de oposição
ao regime militar.
8
Versus jornal alternativo cultural em circulação entre 1975 e 1979 com tiragens de até 35 mil
exemplares.
9
Mulherio, um dos periódico feminista da época. Circulou de 1981 a 1987, com até 12 mil tiragens
por mês.
10
Nosotras, periódico Feminista editado de 1974 a 1976. A proposta era discutir a condição da
mulher e aprofundar a consciência de gênero de suas integrantes.
11
Segundo o Jornal da UFRJ (2005), o brasileiro passa em média 3,5 horas por dia em frente à
televisão.
25
informações.
Historicamente, os jornais têm tido a função social de veicular informação
sobre os acontecimentos sociais, culturais, políticos e econômicos de nossa
sociedade. Diversos segmentos sociais utilizam jornais, folhetins, rádios como
instrumentos estratégicos para propiciar, ao conjunto da sociedade, informações
relacionadas aos processos sociais que os envolvem. Nos últimos anos, as
mudanças ocorridas nos marcos dos processos de mundialização do capital, com
destaque para o crescimento dos fluxos de capitais, mercadorias e de pessoas,
concorreram para valorizar ainda mais as notícias e reforçar seu caráter mercantil.
Ademais, nas sociedades marcadas pela mercantilização de todas as dimensões da
vida social, a exemplo das modernas sociedades capitalistas, a informação constitui
matéria de consumo por excelência. Ora, para torná-la matéria de consumo é
preciso torná-la atrativa, envolvê-la em narrativas dramáticas com forte apelo
emocional (indignação, comoção, euforia, passividade).
Considerando nosso foco de interesse – as expressões de violência contra
mulheres tratadas pela mídia, em particular pelos telejornais -, tivemos que adentrar
o universo das comunicações para entender sua gênese e desenvolvimento no
contexto histórico brasileiro. Esse movimento foi necessário para apreendermos os
elementos universais que conformam os processos comunicacionais, e suas
incidências sobre a construção das agendas telejornalísticas.
Analisando a transmissão de notícias sobre violência contra a mulher nos
preocupamos em identificar os interesses implícitos e explícitos naquelas notícias,
os fundamentos e aportes ideológicos que permeiam sua veiculação. Preocupa-nos
especialmente, os elementos contidos nas narrativas e as imagens que reforçam e
banalizam a opressão-exploração vivenciada pelas mulheres.
O trabalho ora apresentado compreende uma introdução, três seções
intrinsecamente articuladas, considerações finais, referências e anexos. O projeto de
pesquisa obteve assentimento do Comitê de Ética da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (Protocolo n. 100)
Na primeira seção que constitui a introdução, situamos de forma sucinta
nosso objeto de estudo, assim como a vertente teórico-metodológica na qual a
pesquisa foi embasada. Apresentamos os elementos que nos motivaram a
26
aprofundar nossos estudos sobre o tema, sua relevância social e acadêmica
(Serviço Social) e o percurso metodológico que nos permitiu alcançar alguns
resultados expostos nas considerações finais.
Na segunda seção discorremos sobre a comunicação e a formação de
conglomerados de midiáticos a partir da fase monopólica do sistema capitalista.
Discutimos o papel da televisão, suas principais particularidades no contexto de
contradições e ampliações dos antagonismos e desigualdades na sociedade
brasileira. Em seguida, tratamos do debate sobre democratização da comunicação e
as formas alternativas de comunicação, dentre as quais a feminista na perspectiva
de apreender processos contraditórios que marcam os sistemas de comunicação no
nosso país.
Na
terceira
seção,
prosseguimos
o
debate
sobre
comunicação,
problematizando, a rotineira criminalização da questão social e das expressões da
violência no telejornalismo brasileiro. Abordamos, sucintamente, a discussão sobre a
questão social e suas manifestações na sociedade brasileira, dentre as quais,
enfatizamos a violência contra a mulher. Em seguida, realizamos uma explanação
conceitual sobre relações sociais de gênero e patriarcado na perspectiva apreender
os aspectos que sustentam e mantém as relações desiguais entre homens e
mulheres na sociedade contemporânea, na sua particularidade brasileira.
Na quarta seção problematizamos o tratamento dado pelos telejornais à
violência contra a mulher; sua participação na reprodução de estereótipos e
preconceitos sobre as mulheres e, para a manutenção e perpetuação do sistema
patriarcal.
Apresentamos as análises das
matérias catalogadas,
sobre
a
naturalização e banalização da violência nos veículos de comunicação e
identificamos das expressões patriarcais de gênero nos conteúdos e narrativas
jornalísticas ao se referirem à violência contra a mulher.
Nas considerações finais, retomamos as principais questões identificadas a
partir das análises das matérias selecionadas, enfocando o papel da mídia, em
particular da televisão, na construção de percepções e apreensões sobre as mais
variadas dimensões e processos sociais.
27
28
2.1 A APROPRIAÇÃO, USO E CONTROLE DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO:
PARTICULARIDADES DA REALIDADE BRASILEIRA
Tomando a sociedade capitalista como totalidade em seu movimento
contraditório de reprodução, entendemos que a mídia desempenha papel de
destaque. Enquanto particularidade desta totalidade, ela expressa as contradições
que marcam cada tempo histórico e, ao mesmo tempo, é perpassada por estas
contradições.
Analisar as formas de apropriação uso e controle dos meios de comunicação
no contexto da sociedade brasileira implica considerar a dimensão da luta de
classes, a disputa de projetos políticos e societários, seus determinantes e
implicações nos processos de construção e veiculação de notícias, na formação das
empresas de comunicação, assim como nas expressões de disputa de hegemonia
da classe trabalhadora.
Deteremo-nos na análise da conformação do sistema de mídia brasileira,
objetivando fornecer elementos subsidiários à apreensão de sua constituição,
desenvolvimento, e ainda, as contradições que perpassam os processos
comunicacionais no âmbito da sociedade brasileira, haja vista o destaque e
centralidade que têm no dia a dia de seus/suas espectadores/as, leitores/as.
Assim, ao longo do texto delinearemos mais precisamente nosso objeto,
inscrevendo-o em um contexto socioeconômico e político mais amplo do capitalismo,
considerando a particular inserção do Brasil neste contexto.
2.1.1 L´enjeu: apropriação e produção da informação na reprodução da vida social
Para discutir a temática em foco, pareceu-nos necessário problematizar a
comunicação a partir de sua constituição histórica, especificamente, sua expansão
no contexto de desenvolvimento do capitalista (era dos monopólios) e do
desenvolvimento
12
da
indústria
Cf. Adorno, Theodor W, 2007.
cultural12.
Esses dois elementos revelam-se
29
imprescindíveis para apreendermos o desenvolvimento do modelo midiático
brasileiro, sobretudo, suas configurações no momento histórico atual.
Em tempos de crise estrutural e de mundialização do capital, a mídia
expressa através de seus diferentes espaços/instrumentos de comunicação, a luta
de classe e as disputas por hegemonia no seio da sociedade. Como destaca Fontes
(2010, p.14), nesse terreno contraditório, as lutas de classes também “sofrem
inflexões”, contudo, permanece o fundamento primário do capitalismo que “opõe a
concentração da propriedade à socialização expandida e internacionalizada da
produção”.
Assim, a face “bárbara” do capitalismo é senão elemento necessário para sua
manutenção e continuidade. Contraditoriamente, o capitalismo mantém forças
produtivas arcaicas e ultrapassadas; as misérias herdadas, são incorporadas às
misérias modernas, promovem a desigualdade social, exploração, opressão e a
mercantilização em todas as esferas da vida social.
No sentido de frear e amenizar os processos reivindicativos dos grupos
subalternizados,
o
capitalismo
atualiza
e/ou
reedita
valores,
regras
de
comportamento, formas de ver e estar no mundo. Dimensões que atuam na
redefinição das correlações de forças entre as classes. Assim, segundo Simionatto
(2003, p. 276), as novas configurações das relações sociais, não se referem apenas
à criação de uma nova forma de organização do trabalho e do capital, mas também
à formação de novos pactos e consensos entre capitalistas e trabalhadores, já que o
controle do capital não incide somente na extração da mais-valia, mas implica,
ainda, no consentimento e a adesão das classes à nova ideologia.
Decerto, as formas de organização do capital e as estratégias de
fortalecimento de seu projeto hegemônico são múltiplas e multifacetadas. Assim, o
conjunto das transformações econômicas e sociais ocorridas do final no século XIX
e durante o século XX promoveram “novas formas de organização do capital, do
trabalho e do Estado” (SIMIONATTO, 2003, p. 277). Contribuem para isso, os
avanços tecnológicos nas áreas da microeletrônica e informática, que permitiram
tanto o aumento da exploração do trabalho, quanto à elaboração de meios de
comunicação altamente sofisticados.
Sob o comando do capital a comunicação adquire particularidades próprias à
30
sociabilidade capitalista. Os meios de comunicação, sob o comando das classes
dominantes, têm contribuído para a promoção do consenso e do controle da classe
trabalhadora. São responsáveis pela disseminação do arcabouço ideológico que
procura universalizar interesses particularistas, em nome de conceitos supostamente
universais. Dessa forma, os mass media exercem papel relevante na manutenção
de consensos e de controle voltado, notadamente, para pobres, negros, jovens e
ainda sobre as mulheres.
Como salienta Moraes (2010, p. 94), a manutenção de uma concepção
dominante implica em assegurar unidade ideológica para todo um grupo social.
Assim, “do ponto de vista das corporações midiáticas, trata-se de regular a opinião
através de critérios de agendamento de temas que merecem ênfase, esvaziamento
ou extinção”; temas que recebem igualmente determinados tipos de tratamento, de
abordagem. Assim, as mídias buscam veicular conteúdos que contribuam para
unificar e organizar uma consciência coletiva a partir de valores e princípios
estabelecidos pelas classes dominantes. Formar opinião é, sobretudo, uma
intervenção ideológica, diretamente ligada à hegemonia política. Tais aspectos nos
parecem centrais na problemática em tela.
Quando falamos em hegemonia13, estamos nos referindo à capacidade de
uma classe ou conjunto de classes articular dimensões (política, ideológica e
cultural) que permitam dirigir moral, cultural e economicamente a sociedade. Para
Moraes (2010), um grupo hegemônico não é aquele que detém o poder econômico,
mas aquele que além das bases econômicas congrega percepções e juízos de valor
“aceitos” por todos ou pela maioria. Segundo Gruppi (1978)
Para Gramsci uma classe é hegemônica, dirigente e dominante, até
o momento que consegue manter articulado um grupo de forças
heterogêneas, consegue impedir que o contraste existente entre tais
forças exploda, provocando assim uma crise na ideologia
dominante14.
Trata-se, portanto da capacidade de elaborar uma concepção de mundo que
guie o senso comum e estabeleça uma aparente harmonia entre as classes. Mas,
apenas na aparência, pois enquanto perdurarem contradições originadas no
13
Cf Gruppi, 1978; Gramsci, 2002
14
In: Gruppi, L., 1978.
31
antagonismo capital/trabalho sempre haverá rebeliões, movimentos reivindicatórios,
mesmo que estes sejam seguidos de momentos de passividade e retrocessos.
Tendo em vista a inserção dos meios de comunicação na vida cotidiana dos
sujeitos sociais, na condição de transmissores de informação e de formadores de
opinião, estimamos indispensável analisar o protagonismo que desempenham na
formação da consciência coletiva. Tal análise implica em desvelar as formas de
convencimento, visões de mundo, formas de ser coletivas e os valores implícitos no
processo de construção e de difusão da informação. Como ressalta Moraes,
[...] A referência de valores e modos de ser e pensar tem a ver com o
fato de que é no domínio da comunicação que se esculpem os
contornos da ordem hegemônica, seus tentáculos ideológicos, suas
hierarquias, suas expansões contínuas no bojo da mercantilização
generalizada dos bens simbólicos (2010, p. 94).
A lógica mercantil que perpassa a comunicação no nosso país limita a
capacidade da população ao acesso à informação crítica sobre a realidade. A forma
fragmentada, manipulatória e espetacular com que as notícias são tratadas,
minimizam os elementos de análise que permitam à população ver para além da
imagem reproduzida, ou da fala anunciada. Conforme Abramo (1988), a imprensa
tende a induzir a outra realidade, embora as notícias enunciadas tenham relação
com a realidade concreta e, por essa razão exponha mesmo que sutilmente, as
contradições da realidade social.
Vivenciamos um tempo histórico onde os meios de comunicação assumem
lugar de destaque na vida cotidiana. Está nos lares, trabalho, lazer... Inscrevem-se
como fonte de formação e de informação dos indivíduos; através destes, a maioria
das pessoas se informa dos acontecimentos do país. Conforme Salles (2008) é
preocupante a dimensão da televisão no cotidiano dos sujeitos sociais, constituindo
fonte quase exclusiva de informação em um país onde 20,3%15 da população, não
conseguem entender o que lê. Destaca o autor,
15
Segundo dados do PNAD, a taxa de analfabetismo funcional (percentual de pessoas de 15 anos ou
mais de idade com menos de quatro anos de estudo) vem diminuindo entre 2004 e 2009, mas ainda
mantém índices elevados. O Nordeste é a região com maior índice de analfabetos na população
maior de 15 anos, embora venha reduzindo os índices os percentuais de 2004 a 2009(IBGE, PNAD,
2009).
Disponível
em
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1708. Acesso em
21.09.2011.
32
[...] a televisão e o rádio ganham ainda mais poder, já que para
transmitir suas mensagens não dependem que o público seja
alfabetizado. Esta característica da mídia de massa poderia ser um
dado positivo, já que no Brasil os veículos de radiodifusão são
concessões públicas e, portanto, deveriam ser controlados pelo povo
brasileiro – e em seu benefício (SALLES, 2008, p. 53).
À medida que os media ditam costumes, criam novas necessidades de
consumo, influenciam nos rumos políticos das sociedades, enfim, afirmam-se como
necessários ao desenvolvimento da sociabilidade e não raras vezes, se constituem
instrumentos de negação de valores humanos genéricos como o respeito às
diversidades étnicas, sociais, sexuais e de gênero (RUIZ, 2009). Contraditoriamente,
em um movimento oposto, os veículos de comunicação independentes constituem
alternativas às grandes corporações e a suas pautas. As rádios comunitárias figuram
como bons exemplos de resistência à comunicação empresarial, mesmo sofrendo a
repressão
do
poder
público
e
a
falta
de
recursos
tecnológicos
e
financeiros (VELOSO, 2005).
Apesar das dificuldades encontradas pela comunicação alternativa, é inegável
a importância que tais veículos têm para a disputa de ideias no seio da sociedade.
No Manifesto Comunista, Marx e Engels (1998) já afirmavam o valor dos veículos de
comunicação para a socialização de informações entre grupos sociais. Segundo os
autores, em dado momento, a união crescente dos trabalhadores em torno de lutas
coletivas foi facilitada pelos meios de comunicação, permitindo o contato entre os
trabalhadores de localidades distintas. Panfletos, jornais, folhetins destacam-se
como exemplos de veículos comumente utilizados por se diversos segmentos para
veicular ideias, valores e projetos políticos.
Ressaltando a relevância da comunicação, Gramsci (2007, p. 67) afirma que,
o surgimento da imprensa escrita provocou uma revolução “[...] no mundo da cultura,
dando a memória um subsídio de valor inestimável”. A imprensa possibilitou a
socialização da produção intelectual e cultural até então transmitida através da
linguagem falada. Para a humanidade significou ganho inestimável.
Todavia na sociedade capitalista parte da imprensa escrita e dos meios
visuais de comunicação está sob o comando de poucos grupos empresariais. Como
estes detêm o poder econômico e ideocultural, se sobrepõem aos movimentos
contra-hegemônicos e as formas alternativas de mídia. Ainda assim, a dinâmica
33
histórica abre a possibilidade da construção de uma vontade coletiva, ou seja, de um
projeto transformador da sociedade, “apesar do instrumento organizativo oferecido
pelos excepcionais meios de comunicação postos em funcionamento pelo sistema
do capital, enfatizar a negação [...] de novas formas de luta política comum”
(SANTUCCI, 2003, p. 254-255).
Podemos aqui fazer duas observações: inicialmente, pensar os veículos de
comunicação sob as bases da sociabilidade do capital nos remete a própria
formação destes, ou seja, implica entender que não surgem do nada, não são
autônomos, são elaborados e desenvolvidos sob condições concretas segundo a
direção ideológica de uma classe (burguesa). No Brasil, diferentemente de outros
países, os meios de comunicação “já nasceram privatizados”, fortemente ligados às
elites políticas de cada região e, assim, seguem até os dias atuais (SALES, 2007,
p. 99). A segunda é que os meios de comunicação não são homogêneos. Mesmo
que as instituições midiáticas sejam comandadas por grupos empresarias, também
são compostas por profissionais com visões distintas e por vezes divergentes. Tais
instituições situam-se, portanto, em terreno contraditório, respondem à lógica
mercadológica e por vezes, demandas e anseios da sociedade. Diferentemente da
compreensão amplamente presente no senso comum não trazem a marca da
“neutralidade” ou da “objetividade” nem mesmo nos seus programas informativos
ou nos noticiários.
Essas análises preliminares nos permitiram refletir sobre a orientação
ideológica que perpassa a constituição dos grandes grupos de comunicação e,
comandam as empresas midiáticas numa totalidade dinâmica e contraditória
permeada por valores e concepções antagônicas. Passamos, então, a trilhar os
caminhos da crítica feminista à comunicação de massa, além de apontar alguns
exemplos da mídia alternativa feminista construída no seio do movimento para
pensar estratégias de inserção e interação com a mídia tradicional.
2.1.2 As mulheres e a mídia tradicional: defesa da diversidade nos meios de
comunicação
Feitas as primeiras aproximações sobre a mídia, adentramos nas reflexões do
34
movimento feminista sobre a comunicação buscando evidenciar o modo como o
movimento tem se apropriado desse mecanismo para socializar ao conjunto da
sociedade suas reivindicações, e ao mesmo tempo, visibilizar à opressão e à
exploração a que as mulheres estão submetidas.
Historicamente, através da ocupação do espaço público, o movimento
organizado de mulheres vem problematizando a condição feminina na sociedade.
Desde seu nascedouro, o movimento feminista reconhece o papel da mídia na
produção de estereótipos de gênero. Dessa forma, a crítica ao modo como as
mulheres eram representadas nos meios de comunicação, em especial na segunda
metade do século XX, acompanha o processo organizativo do movimento
(WOITOWICZ, 2011).
Segundo Veloso (2005), consciente da lógica que orienta a indústria cultural,
o Movimento Feminista16 reconhece os veículos de comunicação de massa como
espaços de reprodução dos valores patriarcais onde são perpetuadas as
desigualdades de gênero, raça, orientação sexual e onde a sexualidade feminina é
cotidianamente explorada nos programas dos mais variados gêneros (novela,
propaganda, programas de entretenimento). Assim, entende que desconstruir o
sexismo
presente
tanto
na
programação,
quanto
nas
redações
implica
necessariamente adentrar nesse universo e dialogar com os meios massivos e
comunitários.
Ademais, entende que os meios de comunicação contribuem na importância
dada aos temas sociais e políticos do momento. Estima que estes podem vir a
promover17 o debate sobre os direitos humanos, incluindo ou não os direitos e a
posição das mulheres na sociedade. Para a autora,
As feministas reconhecem que podem contestar não só a
concentração nas redes de comunicação, mas também o sistema
econômico, que as exclui, e o patriarcado, que agudiza as
desigualdades de gênero (VELOSO, 2005, p. 52).
16
A partir das leituras e entrevistas realizadas identificamos que a imagem da mulher na mídia, a
forma estereotipada e preconceituosa como as mulheres são abordadas nos meios de comunicação,
principalmente, nas propagandas é preocupação comum (com maior ou menor intensidade) às
diversas correntes do Movimento Feminista.
17
Obviamente, os mass media não o fazem espontaneamente, de forma geral são pressionados a
fazê-lo seja pela pressão de sujeitos organizados coletivamente, seja por interesses puramente do
mercado.
35
Ao abordar a importância da criação ou apropriação da mídia pelo movimento
feminista, Woitowicz (2011) observa que na década de 1970 foram sendo criados
novos espaços de publicização de propostas e demandas das mulheres, a partir de
variados meios: revistas, boletins, jornais alternativos, luta por espaço dentro da
grande imprensa, do rádio, da televisão e do cinema.
Nesse contexto, surgiram as primeiras publicações feministas. No primeiro
momento, as produções voltava-se para as questões de classe, trabalho, economia
entre outros assuntos mais gerais, que agitavam aquele momento histórico.
Posteriormente, os temas se tornam mais específicos, voltados ao debate de
gênero, trabalho feminino, orientação sexual.
Nesse período, as feministas
começam a se apropriar das leituras de gênero com repercussões em suas
publicações, que passam incorporar reflexões sobre a categoria.
Entre a década de 1970 e os dias atuais, inúmeras publicações feministas
foram lançadas. Nós Mulheres, Brasil Mulher e Fêmea, destacam-se como os
principais exemplares da imprensa feminista no Brasil (CARDOSO, 2004). Produzir
seus próprios meios de comunicação se tornava relevante para dar visibilidade às
demandas das mulheres, e ao mesmo tempo, contrapor-se ao machismo e ao
sexismo presentes nas grandes corporações midiáticas.
A impunidade diante dos crimes cometidos em “nome do amor”, a
participação das mulheres nas decisões políticas do país, as relações desiguais no
âmbito do trabalho e no espaço doméstico, foram problemáticas alvo de diversas
campanhas elaboradas pelo movimento feminista as quais conquistaram a opinião
pública. A campanha “Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher”
configurou uma ação que possibilitou articular e sistematizar as demandas das
mulheres e apresentá-las à sociedade e aos/as constituintes através da “Carta das
Mulheres à Assembléia Constituinte”. As campanhas “quem ama não mata”, “16 dias
de ativismo pelo fim da violência contra a mulher” e, mais recentemente, a
campanha “quem financia a baixaria é contra a cidadania”, compõem o leque de
exemplos dentre tantos outros de produções noticiosas do movimento feminista.
Estas campanhas foram amplamente divulgadas em revistas, jornais e folhetins
alternativos.
Além das campanhas e revistas elaboradas e publicadas, chamou à atenção
36
das feministas a forma estereotipada e depreciativa como as mulheres eram
expostas nos veículos de comunicação. Desde então, o Movimento Feminista vem
pautando e se apropriando do debate sobre comunicação.
Segundo Woitowicz (2011), uma das primeiras tentativas de discutir
comunicação ocorreu no Encontro do Movimento das Mulheres no Brasil, realizado
no Rio de Janeiro em agosto de 1981, que dentre as temáticas discutidas no evento
destaque à comunicação. O evento enfatizou o papel educativo dos media,
considerando que cumprem “não apenas o seu sentido conservador de reprodução
da ideologia dominante, mas também, o seu sentido de mudança enquanto focos de
resistência e propagadores das novas ideias e valores” (WOITOWICZ, 2011, p. 04)
A partir da IV Conferência da Mulher, em Pequim/China – 1995, o movimento
feminista intensifica a crítica à concentração de propriedade e poder nas grandes
redes de comunicação. Como ressalta Veloso (2005, p. 7), doravante, o movimento
passa a analisar a conformação de grandes conglomerados midiáticos como
engrenagens da formação social capitalista, que podem “agudiza(r) as opressões de
classe, gênero, raça e orientação sexual”.
As reflexões feministas apontam a necessidade de compromisso por parte
dos estados na adoção de políticas de comunicação que possibilitem ao conjunto
dos sujeitos coletivos, a participar das instituições midiáticas - sejam as grandes
redes, ou os meios comunitários. Ainda, tais reflexões permitem evidenciar a
urgência da criação de mecanismos democráticos de monitoração e controle de
conteúdos, atentando para aqueles de caráter discriminatório e vexatório que
agridem as mulheres e sua subjetividade (VELOSO, 2005).
Certamente, veículos de comunicação não determinam as condições e
subordinação das mulheres. As causas têm raízes profundas nas estruturas
econômicas, políticas, culturais socialmente determinadas e só poderão ser extintas
através de transformações sociais, cuja finalidade seja a construção de outra forma
de sociabilidade e de novas relações entre homens e mulheres. Contudo, os meios
de comunicação têm até certo ponto, o poder de estimular ou, ao contrário, atrasar
tais transformações, tendo em vista sua capacidade de formação de opinião e de
consciências.
Diversos sujeitos coletivos que compõem o movimento feminista contam com
37
veículos de comunicação, nos mais diversos formatos e suportes (impresso, sonoro,
audiovisual, on-line). Estes meios atuam numa perspectiva de alternativa frente ao
discurso hegemônico promovendo o debate e apresentando as reivindicações das
mulheres. Destacam-se ainda como instrumentos de articulação das lutas das
mulheres (WOITOWICZ, 2011 p. 6).
O jornal Fêmea 18 (CFEMEA), a Folha Feminista19 (SOF – Sempreviva
Organização Feminista) e o Jornal da Rede (Rede Feminista de Saúde) são
exemplos de produções feministas que, nas suas edições, trazem temáticas
relacionadas aos direitos das mulheres: direitos sexuais e reprodutivos (o aborto e
políticas públicas); enfrentamento à violência de gênero; diversidade sexual;
economia
feminista,
além
de
problematizarem
a
forma
estereotipada
e
preconceituosa como as mulheres são representadas nos veículos de comunicação
tradicionais.
Mesmo dispondo de alguns meios e instrumentos de articulação, politização e
enfrentamento as relações desiguais de gênero, o movimento de mulheres encontra
inúmeras barreiras para inserir-se nos meios tradicionais de comunicação. Como
Afirma a entrevistada “Mulherio” militante feminista Marcha Mundial de Mulheres,
A questão da mídia é um problema, porque o que temos de visão
dominante na sociedade, faz parte dos grupos dominantes
detentores dos meios de comunicação. A gente ainda não tem uma
democratização da mídia, isso faz com que os movimentos sociais
como um todo, e não só o movimento feminista sejam criminalizados.
Porém, apesar da prevalência dos interesses dominantes e patriarcais,
segmentos do Movimento Feminista, entendem que estar presente nesses espaços
revela-se importante para visibilizar a questões que lhe são caras. Nesse sentido,
salienta “Nosoutras”, militante feminista da Articulação de Mulheres Brasileira,
Não vale só dizer que a Rede Globo é uma grande massificação, que
são apenas interesses [burgueses], porque a gente já sabe de tudo
isso, mas como fazer essa contra hegemonia, de como agir de forma
contra cultural?. [...]Talvez seja criando pautas e metas contra
culturais mesmo que esteja na contra mão do que a gente tá
18
O Fêmea possui uma tiragem de 13.000 exemplares (além dos acessos on-line), abrangência
nacional e a periodicidade, que já foi trimestral, é atualmente mensal (desde 2008).
19
A Folha Feminista não tem uma periodicidade regular e possui uma tiragem de 1.500 exemplares,
que circulam entre grupos feministas, além da versão on-line, disponível no site da ONG (
WOITOWICZ, 2011).
38
acompanhando e que ganha à mídia”.
Continua,
No 8 de março [dia das mulheres] somos muito convidadas pelos
canais de comunicação. Aí a gente vai nas entrevistas e diz que a
questão da mulher não é apenas no mês de março, é nos 365 dias
do ano, se faz uma fala feminista naquele espaço. Então é uma
forma de estarmos utilizando esses meios, através de uma
entrevista. Não é falar o que eles querem, mas é mostrar exatamente
nosso lado.
Nesse sentido, os movimentos de mulheres articulados a outros sujeitos
coletivos (Fórum Nacional pela Democratização da Mídia, Intervozes, Consulta
Popular entre outros) vêm pautando e discutindo o direito à comunicação, a
democratização e o controle social dos meios de comunicação, com objetivo inibir a
concentração de propriedade e a formação de conglomerados midiáticos.
2.2 A INFORMAÇÃO NOS TEMPOS CONTEMPORÂNEOS: MERCANTILIZAÇÃO
VERSUS INFORMAÇÃO CRÍTICA
O desenvolvimento das forças produtivas permitido pelas engrenagens do
modo de produção capitalista propiciou a sofisticação e diversificação das formas de
comunicação entre os homens/mulheres. Nesse contexto, a televisão se destaca
como um dos mecanismos de comunicação que mais tem se desenvolvido com as
novas tecnologias. Enquanto os jornais impressos se tornam obsoletos ou perdem a
força, em um mundo marcado pela comunicação “digital”, pela presença
multifacetada da internet, a Televisão confirma sua posição no “centro da sala”,
conquista cada vez mais centralidade da vida das pessoas, além de ganhar “as
ruas” com o apoio da telefonia móvel.
Como observa Souza (2010, p. 2), vivemos imersos em uma sociedade em
que,
cada
vez
mais,
são
criados
aparatos
eletrônicos
conectados
às
telecomunicações que dinamizam os processos e provocam mudanças em todas as
áreas da vida social; nas relações pessoais e profissionais de homens e mulheres.
Conforme o autor, “tornou-se obsoleto, nos dias de hoje, falar e, principalmente usar,
cartas, máquinas de escrever, vinil e outras antiguidades que foram substituídas por
email ou scraps, computador, cd, ipod”.
39
Essas inovações importantes para o processo de acumulação capitalista ao
promoverem a mercantilização das esferas da vida social através do apelo ao
consumo pelas vias da publicidade, ao disponibilizarem, no mercado, produtos com
performances diversas e ampliadas.
Podemos dizer que as novas tecnologias da informação e da comunicação
desempenham papel importante, com efeitos sobre as relações sociais, passando a
inquirir e questionar o papel do Estado e das organizações sociais na regulação de
seu uso e apropriação. O incentivo do Estado ao desenvolvimento, expansão e
utilização das tecnologias da informação ao sabor dos imperativos do mercado tem
sido confrontado com questionamentos oriundos de organizações sociais que
militam pela democratização da mídia e pela ética no trato e difusão de informações,
imagens, etc.
2.2.1 A informação mercadoria: a sociedade capitalista e a mercantilização das
dimensões da vida social
A emergência e consolidação do capitalismo promoveram a mercantilização
das diversas dimensões da vida social, ao mesmo tempo em que se processaram
transformações nas relações sociais. Assim, à medida que o capitalismo avança e
se desenvolve são elaboradas novas formas de disseminação dos valores
ideológicos que o fundamentam. Nesse processo os mecanismos e as vias de
comunicação ganham valor. Estes integram o complexo e vasto universo da cultura
e se inter-relacionam com as distintas esferas da vida social atuando na reprodução
das relações sociais.
Inserida na totalidade da vida social e não isenta das determinações do real,
a produção cultural é gradativamente transformada em objeto de consumo,
plenamente convertida em mercadoria. Magalhães comentando as ideias de
Cevasco, (2001, p. 31) entende a cultura como,
[...] constitutiva de um processo social, é um modo de produção de
significados e valores mais básico[s] para o funcionamento da
sociedade do que a noção de uma esfera separada. São esses
significados e valores que organizam a vida comum (CEVASCO,
2003, 110-112 apud MAGALHAES, s/d, p. 03).
40
Com efeito, a cultura produz mediante o trabalho criador, obras de
pensamento e obras de arte que capturam a experiência do mundo dando-lhe um
sentido, interpretando-o, criticando-o, transformando-o. Na sociedade de classes,
na qual a exploração, a dominação e a desigualdade constituem traço
característico, a cultura passa a refletir sua racionalidade, metamorfoseada em
passatempo, em entretenimento, veiculada por vezes, através de uma tela de
televisão (CHAUI, 2006).
A mercantilização da cultura e de suas expressões faz surgir à indústria
cultural. Como provoca Fadul (2002, p. 4), trata-se de uma indústria muito especial,
que produz “[...] não uma mercadoria qualquer, mas sim uma mercadoria que
possui um valor simbólico muito grande”. A produção da indústria cultural objetiva
homogeinizar os conflitos sociais, promover o consenso e controle dos sujeitos
sociais.
Enquanto produtos da indústria cultural, os meios de comunicação, em
especial a televisão, contribuem para a mercantilização da vida social. O apelo ao
consumo nas publicidades fomenta criação de novas necessidades no cotidiano. O
fetiche da mercadoria (Marx, 1996) se faz cada vez mais presente, assim como a
manipulação e a alienação produzidas pelo modo de produção capitalista e
reforçadas pelos meios de comunicação.
Com efeito, a necessidade lucrativa do capital, exige ampliação da esfera do
consumo. Assim, conforme Coutinho (2010), a possibilidade de consumir, carece de
mecanismos manipuladores dos desejos dos homens/mulheres. Estrategicamente, a
propaganda comercial é orientada para incentivar e criar necessidades de consumo
que, do ponto de vista racional, não se colocam como prementes ou incontornáveis
para os indivíduos. Segundo Chauí (2006), em tempos de imediatismo e
descartabilidade, a propaganda deixa de apresentar um produto propriamente dito e
passa a assegurar desejos. Para a autora (idem), a propaganda comercial passa a
vender imagens e signos ao invés de mercadorias. Assim, ao adquirir determinado
produto uma pessoa satisfaz um desejo (harmonia, tranqüilidade) ao invés de uma
necessidade.
Não queremos dizer com isso, que os indivíduos assimilem passivamente os
conteúdos publicitários. Por certo, existem resistências às formas hegemônicas de
41
pensamento. Obviamente, a luta de ideias e de projetos sociais travada no âmbito
da sociedade possibilitam condições objetivas e subjetivas para o exercício do
pensamento crítico, assim como, para criação de formas alternativas de
comunicação. Entretanto, não se pode negligenciar o peso da ideologia dominante
fincada nas estruturas sociais de reprodução.
Neste sentido, consideramos indispensável explicitar as contradições
existentes nos meios de comunicação de massa.
Sob esse prisma, podemos
pensar a mídia dialeticamente, estabelecendo relações entre as dimensões
estruturais e ideológicas que a conformam e fundamentam. Nessa lógica, negamos
as visões mecanicistas baseadas na aparência e no senso comum.
Conforme Silva (1982), os meios de comunicação também são perpassados
por contradições presentes na totalidade social.
Eles não estão isentos das
expressões das lutas de classe – são desenvolvidos, administrados e objetivados
por pessoas, com valores e concepções distintas –, nesse sentido, embora
prevaleçam o controle e o comando dos interesses e valores das classes
dominantes, podemos identificar em seus produtos, por exemplo, abordagens de
assuntos de interesse da sociedade.
Assim, a mídia tem incluído em suas produções, situações vivenciadas no
cotidiano social que, à medida que são expostas, podem representar avanços no
que se refere ao enfrentamento de preconceitos, discriminações e violências.
Essas raras brechas podem ser visualizadas em alguns conteúdos midiáticos que
possibilitam entendê-la não apenas como espaço de criação de consensos, mas
também como espaço contraditório.
Nessa lógica, a mídia se configura não somente como mecanismo de
construção de consensos e padrões, mas, também, como instrumento, pautado na
ótica do diálogo desigual que a fundamenta, o qual possibilita a reflexão sobre os
conflitos sociais, ainda com limites impostos na composição da produção midiática
(NOVA, 2000). Como explica a autora,
Este diálogo desigual é marcado pela unidirecionalidade da
comunicação praticada, mas consolidado na possibilidade de
variadas leituras, o que termina por relativizar o controle da mídia,
não permitindo o engessamento e a simples manipulação das
vontades e opiniões (NOVA, 2000, p. 24).
42
Partindo de tais premissas, podemos afirmar que a mídia constitui instrumento
tanto de construção da hegemonia (burguesa conservadora), criando modelos e
padrões que devem ser desejados e seguidos por todos/as, como, a partir da
construção de novos formatos e estruturas midiáticas, pode apontar alternativas
para a construção de uma contra-hegemonia, de uma nova forma de pensar e agir,
apesar dos limites impostos pela ordem societária vigente.
A tecnologia e a ampliação da internet, sem dúvida, inclusive em países como
o Brasil, possibilitam às camadas populares, maior acesso aos bens culturais. Por
exemplo, muitas vezes, discos, livros e filmes podem ser acessados completos em
sites na internet. O acesso possível não significa efetiva utilização destes meios,
dadas às condições materiais de milhares de famílias É evidente ainda que, a
disponibilização desses elementos culturais (por si só) não corresponde a uma
apropriação crítica e/ou a elevação da consciência das classes oprimidas. A
reelaboração dos processos culturais e a construção de alternativas à cultura
hegemônica constitui um percurso complexo e implica mudanças mais profundas
nas estruturas sociais.
No Brasil, as empresas de comunicação são predominantemente comerciais.
Deste modo, são regidas pela lógica mercantil, pelos interesses do capital.
As
emissoras de televisão, veículo de comunicação de massa surgido nos anos de
1950, figuram dentre os mais poderosos dispositivo de difusão de valores que
sustentam a sociedade do consumo. O crescimento e o aprimoramento da televisão
tornam-se recurso estratégico para a expansão do capitalismo em nosso país,
atuando como agente de reprodução de capital. A inovação (imagem e som)
proporcionada pela TV tem tido importância singular para a comercialização de
produtos, estimulando o consumismo através de espaços publicitários. Como
destaca Liedke (2007, p. 06), a “prova disto é que o crescimento das redes de
televisão esteve associado à formação dos grandes centros urbanos, criando-se
emissoras conforme a concentração populacional” oriunda dos processos de
industrialização e de desenvolvimento das forças produtivas.
Em sua gênese a televisão já apresenta a intenção de tornar-se produto de
consumo de massa. Podemos inclusive considerá-la como uma das mercadorias
típicas do padrão fordista de produção ao lado dos automóveis. Inicialmente, é
43
apresentada
ao
conjunto
da
classe
trabalhadora
nas
praças
públicas20.
Posteriormente, com incentivo do Estado, a produção em larga escala possibilita
reduzir o valor de comercialização e, progressivamente ampliar o consumo até sua
inserção em praticamente todos os lares brasileiros.
Ao longo das últimas décadas, a televisão se aprimora e se renova. Nessa
primeira década do século XXI, aglutina diversas tecnologias e assume centralidade
ainda maior no dia-a-dia dos/as brasileiros/as. Porém, a propriedade de
equipamentos e o direito de explorar este meio de comunicação estão concentrados
nas mãos de poucas famílias e grupos empresariais, constituindo um verdadeiro
império produtor e monopolizador de informações.
A concentração de propriedade, a propriedade cruzada dos veículos de
comunicação e a mercantilização da informação são características das indústrias
de mídia em diversos países do mundo. No Brasil, essa característica impõe sérios
limites à socialização de informações críticas, à democratização e ao controle social
da comunicação.
Portanto, se por um lado à mídia, em particular a televisão se reveste de uma
áurea democrática por possibilitar o contato com diferentes povos e culturas;
eliminar barreiras geográficas; permitir conexões regionais e globais, por outro lado,
ampliam o poder de grupos manipuladores da informação mediante a formação de
oligopólios (SIMIONATO, 2003).
No Brasil, em grande medida, o poder de manipulação dos meios de
comunicação dar-se pela concentração de propriedade, propriedade cruzada,
escassa legislação, e ainda pela omissão do Estado no estabelecimento de marcos
regulatórios para a comunicação do país.
2.2.2. Privatização do público e a defesa da regulamentação e democratização da
comunicação no Brasil
A Declaração dos Direitos Humanos21 anuncia que “todos [e todas] têm direito
a liberdade de expressão e de opinião. Esse direito inclui a liberdade [...] de receber
20
21
Apenas as famílias mais abastadas tinham aparelho de televisão em suas casas.
Declaração dos Direitos Humanos, 1948, art. 19.
44
e transmitir informações e ideias através de qualquer meio”. Porém, como afirma
Veloso (2005), esse direito tem sido historicamente negado pela formação de
grandes grupos empresariais. Assim, as corporações midiáticas impulsionam o
mercado (marketing comercial) e, consequentemente legitimam o atual modelo
hegemônico de sociedade. Enfatiza a autora (op. cit., p. 39),
A perpetuação das relações de poder por meio da lógica cultural e
econômica que move a imprensa desfavorece a apropriação dos
meios pela população, destituída de recursos para competir com o
poderio das grandes corporações. Nem mesmo as mídias
independentes e comunitárias dispõem de recursos capazes de fazer
frente ao conglomerado privado.
Como afirma Fonseca (2005, p. 01), nas últimas décadas, vem ocorrendo
uma acentuada transformação “nos sistemas de organização institucionais das
indústrias culturais, levando a uma onda de concentração de propriedade e capital”,
a exemplo do que ocorre em outros setores da economia, ou seja, a crescente
formação de oligopólios midiáticos, com fusões de grandes redes de comunicação
e a racionalização da administração das empresas.
Para Sales,
No Brasil, salta aos olhos a concentração dos meios de comunicação
nas mãos de empresários, dublê de políticos, e de algumas poucas
famílias poderosas, os quais fazem desse oficio um negócio
lucrativo, muitas vezes em detrimento do papel social e público que
deveria ser a sua marca maior (2007, p. 99).
No Brasil, a concentração de propriedade dos veículos de comunicação
contraria o artigo 220, parágrafo 5º da Constituição Federal de 1988, cujo conteúdo
estabelece que os veículos de comunicação do país não podem ser de forma direta
ou indireta, objeto de oligopólios22 (BRASIL, 2006). Todavia, o cenário observado
revela uma crescente monopolização dos mass media nas mãos de algumas
poucas famílias e grupos empresariais.
Segundo Lima (2004), no Brasil, oito grupos familiares do setor de rádio e
televisão dominam estes meios de comunicação, a saber: nacionais: famílias
Marinho (Globo); Saad (Bandeirantes) e Abravanel (SBT) regionais: famílias Sirostky
22
“Há 20 anos, 50 corporações dominavam o mercado de mídia nos EUA. Eram 23 no inicio da
década passada. Hoje são cinco”. Folha de São Paulo, 27 de julho de 2003, p. A2. In. VELOSO. Ana.
2006.
45
(RBS); Daou (TV Amazonas); Jereissati (TV Verdes Mares); Zahran (Mato Grosso e
Mato Grosso do Sul); Câmara (TV Anhanguera). Ainda conforme o autor, dessas
oito famílias apenas duas (Saad e Abravanel) não são afiliadas às organizações
Globo23.
Segundo Liedtke (2007, p. 434), as organizações midiáticas no país se
desenvolveram a partir de “intimidades com o poder”, com políticas públicas de
comunicação e distribuição de concessões de radiodifusão utilizadas com critérios
políticos, reduzindo a participação da sociedade civil. A isto se soma a crescente
desregulamentação do setor, a tendência internacional do neoliberalismo e da
mundialização
do
capital,
proporcionando
a
acentuada
concentração
de
propriedade sobre meios de comunicação.
Para Lima (2004, p. 53), o Estado brasileiro,
[...] patrocinou a desregulamentação que permitiu a privatização das
comunicações e a entrada de capital estrangeiro na telefonia, na TV
e na radiodifusão, "é também por ação ou omissão do Estado que a
legislação (ou a ausência dela) continua a permitir que boa parte da
nossa radiodifusão e de nossa imprensa seja controlada por grupos
familiares, esteja vinculada a elites políticas regionais e locais.
Como salienta o entrevistado, Pasquim, militante de organização social que
luta pelo direito a comunicação e integrante do Intervozes,
A gente vive um cenário de desregumentação praticamente plena,
porque tem umas leis que tratam da comunicação, mas elas não
tratam da questão como um todo e, muitas vezes elas são
contraditórias entre si. Isso impõe uma série de irregularidades que
cada vez mais contribui para a concentração dos meios de
comunicação na mão de poucas famílias.
Embora, haja divergências entre grupos familiares, estes pertencem à mesma
classe social, têm os mesmos interesses políticos e econômicos. E assim, com
poucas pessoas controlando os veículos de comunicação do país, ocorre a
monopolização e ampla veiculação dos valores e ideologias das elites dominantes.
23
A Rede de Globo de Comunicações dispõe de um verdadeiro império midiático. A família Marinho é
proprietária de sites na internet, canais abertos e fechados de televisão (Globo, Globo News,Viva,
Futura, SportTV, SportTV2, SportTV3), jornal impresso (O Globo), produtoras de filmes, novelas,
propaganda e musical (SIGLA – Sistema Globo de Gravações Audiovisuais Ltda.), emissoras de rádio
(Globo AM, CBM AM), editora (Editora Globo). Além de produção de figurinos e comercializar
produtos veiculados na programação (Globo Marcas).
46
De acordo com Salles (2008, p. 54),
Esse monopólio midiático atua em todos os setores da sociedade.
Desde política e economia, passando pela cultura e pelo
entretenimento, até chegar nas questões internacionais, ciência e
turismo, entre outros. Suas intervenções nunca são neutras ou
imparciais, como alguns sustentam. Como as corporações de mídia
estão organizadas enquanto empresas, elas também buscam o lucro
acima de tudo – para si e para as empresas associadas. Essa
característica, por si só, inviabiliza a busca do equilíbrio e, mais além,
torna-se determinante na elaboração das mensagens (objetivas e
subjetivas) que projeta.
O autor chama a atenção para o jogo de interesses que permeiam as
empresas de mídia. Tais interesses tanto orientam a programação, como os
conteúdos de suas pautas. Contudo, devemos salientar que a própria dinâmica do
real impõe elementos condicionantes à formulação dos conteúdos transmitidos.
Assim, nos veículos de comunicação, mesmo que predomine uma determinada
visão de mundo, podemos identificar narrativas, análises e questionamentos que
explicitam problemáticas importantes para o conjunto da sociedade.
Podemos citar, por exemplo, as tramas novelescas que tem abordado a
violência doméstica e contribuindo (observados os limites) na visibilidade e
publicização da problemática. Segundo matéria veiculada pelo site UOL, em 2008 o
número de denúncias de violência doméstica aumentou ao ser abordado pela novela
“A favorita”
24
.
A Central de Atendimento à Mulher registrou 269 mil denúncias,
relatos de violência e pedidos de informação em todo o país. A procura pelo serviço
aumentou 32% se comparada com 2007. Não podemos afirmar que o aumento das
denúncias deve-se unicamente a novela, certamente outros fatores influenciaram as
mulheres a procurar ajuda e informações. Porém, o poder de alcance da televisão
na sociedade pode potencializar a transmissão e socialização de informações
importantes para o conjunto da sociedade.
Podemos afirmar, no entanto, que os meios de comunicação de massa (rádio,
televisão, internet entre outros) tiveram/têm o papel significativo na formação da
identidade social e cultural brasileira. Ajudaram a construir um Brasil “verde e
amarelo”, de um “povo solidário”. O país do futebol e do carnaval, de mulheres e
24
A novela abordou a história das agressões de Léo (Jackson Antunes) a Catarina (Lilia Cabral). Foi
ao ar em 2008 no horário das 21h.
47
paisagens bonitas e exuberantes... A televisão, particularmente no período ditatorial,
contribuiu para a criação de uma imagem de um país nacionalista, relativamente
homogêneo, de belas paisagens e pouca desigualdade social.
Os meios de comunicação assumem, portanto, a função de unificar
ideologicamente uma identidade coletiva cada vez mais fragmentada, tentando
apagar, camuflar as diferenças étnico-raciais e de gênero e as desigualdades
sociais. De um lado, possibilitam a criação de elementos simbólicos que subsidiam a
construção de significados, valores e práticas de grupos ou classes sociais, do outro,
indicam e veiculam imagens, discursos e representações que buscam dar coesão
aos estratos que formam a totalidade social. Majoritariamente, as corporações de
mídia tentam reduzir ao máximo as contestações de segmentos organizados da
sociedade.
De fato, esses canais são elaborados a partir de necessidades efetivas de
conter as lutas e os movimentos das classes subalternas. São, portanto, necessários
para conservar uma identidade “ideológica de todo um bloco social, [...] que não é
homogêneo, mas marcado por profundas contradições de classe” (GRUPPI, 1978, p.
69-70). Nesse sentido, explicitamente, observamos a criminalização dos movimentos
sociais e da pobreza, à exploração da violência frequentemente relacionadas às
classes oprimidas, o apelo ao consumo como fonte de satisfação pessoal.
A estreita ligação das concessões de radiodifusão no Brasil com políticos e
partidos políticos, possibilita que sejam numerosos os parlamentares detentores
concessões ou, sejam sócios de veículos de comunicação. Segundo o site
“DonosdaMidia”25, 270 parlamentares, em todo país, são sócios de 324 veículos de
comunicação, veja o gráfico a seguir. No Rio Grande do Norte, grande parte dos
políticos são donos ou sócios de canais abertos de televisão e emissoras de rádio26.
25
Fonte: site “donos da mídia” – www.donosdamidia.com.br . O site resultado de um projeto que
mapeou os sistemas e mercados de comunicação no Brasil. Projeto iniciado em 1978, contou com a
participação de 350 pesquisadores. Em 2002 foi criado o sitio na internet denominado “donos da
mídia” onde estão disponibilizados dados atualizados sobre a comunicação no país.
26
TV Ponta Negra (Família Souza; Micarla de Souza, prefeita de Natal); InterTV Cabugi ( Família
Alves; Carlos Eduardo Alves, deputado Federal); TV Tropical Natal (Família Maia; Agripino Maia,
senador).
48
GRAFICO 1 - DISTRIBUIÇÃO VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO POR CARGOS
POLÍTICOS
Esses números indicam a relevância da análise sobre a ação dos veículos de
comunicação na conquista do eleitorado e na manutenção dos cargos políticos.
Obviamente, não são eles que determinam os pleitos eleitorais, mas certamente,
contribuem de forma emblemática para eleger candidatos/as. Ainda que a última
campanha eleitoral para presidente tenha revelado um peso contrastante da mídia
em nossa sociedade uma vez que as campanhas difamatórias contra a então
candidata, hoje presidente do país, não surtiram os efeitos desejados, ou seja, a
queda em sua popularidade, que conduzisse a outro resultado.
Não podemos
esquecer o efeito que obteve, por exemplo, na eleição de Fernando Collor de Melo.
No ultimo debate entre Collor e Lula, a Globo, promoveu uma verdadeira
manipulação com edições e cortes que privilegiaram Collor. Contraditoriamente,
pouco tempo depois a emissora transforma protestos estudantis pela meia-entrada e
carteirinhas nos “caras pintadas”, promovendo o “Fora Collor”. Por certo, a
“propaganda” orquestrada pela emissora não foi responsável pela derrota de Lula,
assim como, pelo impeachment de Collor, mas certamente, influenciou a opinião
pública.
Além da concentração de propriedade e, do elevado número de políticos que
detêm concessão e/ou são sócios de veículos de comunicação, um dado importante
49
a ser considerado na mídia nacional: o chamado "império da fé", ou seja, a
crescente proliferação de veículos de comunicação controlados por grupos religiosos
(LIEDTKE, 2007, p. 13). Fenômeno vinculado basicamente ao aumento das
“bancadas cristãs” no congresso, facilitando o processo de concessão de outorga de
radiodifusão aos grupos religiosos. Das trinta maiores emissoras de televisão, nove
são ligadas a grupos religiosos.
TABELA 1 – EMISSORAS DE TV CONTROLADAS POR GRUPOS RELIGIOSOS
Rede TV
Record
Família
Aparecida
Controle
Doutrina/
Religião
Nº de
veículos
Grupos
afiliados
Evangélica
Evangélica
Católica
142
27
17
30
1
3
Rede Vida
Universal do Reino de Deus
Universal do Reino de Deus
Congregação do Santíssimo
Redentor
Organização Monteiro de Barros
Católica
13
2
Canção Nova
Rede Gêneses
Gospel
Século 21
Nazaré
Fundação João Paulo II
Com. Evangélica Sara Nossa terra
Igreja Apostólica Renascer
Associação do Senhor Jesus
Arquidiocese de Belém do Pará
Católica
Evangélica
Evangélica
Católica
Católica
12
11
11
2
2
2
2
1
1
1
Assim, sob a influência das classes, instituições e elites políticas os meios de
comunicação, favorecem e impulsionam os interesses econômicos e políticos de
grupos sociais específicos, detentores das concessões de radiodifusão e de editoras
de jornais e revista. Convertem-se em legitimadores dos interesses ideológicos do
modelo econômico atual, nega dessa forma, a dimensão de direito27 dos/as sujeitos
sociais. As companhias midiáticas acompanham, assim, a forma capitalista de
organização social. Contudo, não significa dizer que inexistam contradições,
movimentando uma contra tendência na produção/veiculação de informações.
Conscientes dessa lógica, a partir da década de 1980, paralelamente à
mobilização
27
política
pela
redemocratização
do
país,
surge
as
primeiras
A comunicação enquanto direito humano vem sendo pautada por diversos ativistas. Expressa o
direito de participar de todos os processos da comunicação, ou seja, do acesso, produção e
veiculação de informações, ideias.
50
manifestações pela democratização da comunicação no Brasil. Congregando vários
movimentos e categorias sociais, posteriormente, integrados com o Fórum Nacional
pela Democratização da Comunicação (FNDC), passam a desenvolver correlações
de forças com o governo e os empresários da mídia.
Considerando a importância da comunicação e do controle social mídia para o
desenvolvimento das sociabilidades, o movimento passou atuar mundialmente e, a
partir do Fórum Social Mundial, ocorrido em 2005, os movimentos sociais
mobilizaram-se através da Campanha pelos Direitos à Comunicação na Sociedade
da Informação, conhecida como CRIS - Communication Rights in the Information
Society (LIEDTKE, 2007, p. 2).
As reivindicações do movimento pela democratização da mídia estabelecem
pelo menos três elementos que precisam ser regulamentados. O primeiro deles é a
divisão do espectro eletromagnético de forma que mais grupos e sujeitos coletivos
possam participar das concessões de radiodifusão (seria uma espécie de reforma
agrária no sistema de transmissão de TV e rádio) diminuindo a concentração de
propriedade; o segundo elemento compreende os aspectos técnicos, concernentes
as tecnologias utilizadas e o terceiro refere-se ao conteúdo. Este último elemento se
constitui ainda, tema de calorosas discussões tendo em vista, a linha tênue entre
controle e censura. Porém, para o movimento é essencial que se estabeleça critérios
para a transmissão de conteúdos, respeitando as diversidades, os regionalismos, as
expressões culturais das diversas sociabilidades.
A Constituição de 1988 é um marco na formalização das reivindicações dos
movimentos sociais organizados pela democratização da mídia. Porém, em terreno
capitalista, há um descompasso entre a formalização e a efetivação dos marcos
legais. Por essa razão, passadas duas décadas as diretrizes estabelecidas no texto
constitucional ainda permanecem desregulamentadas, possibilitando assim a
formação de oligopólios midiáticos.
O Estado detentor do poder de regular e construir marcos para a expansão
dos meios de comunicação favorece prioritariamente os interesses do grande
capital, abrindo as portas para o capital internacional em detrimento de concessões
a rádios e emissoras de TV alternativas.
Não podemos omitir que não houve
avanços pós Constituição de 1988. Dentre eles podemos considerar a EBC
51
(Empresa Brasil de Comunicação) constituída pela TV Brasil, canal público de
televisão sintonizado em canal aberto, TV Brasil Internacional e oito emissoras de
radio. Outro fator relevante foi à realização em 2009 da I Conferência de
Comunicação (CONFECOM).
Apesar das conquistas, frutos das pressões e mobilizações sociais, a luta pela
democratização da mídia, enfrenta muitos desafios, o principal deles, “os donos da
mídia” brasileira. Os grandes grupos de comunicação querem dominar todas as
esferas sócias, criminalizar os movimentos sociais e as ações do Estado que
provocariam mudanças nas relações entre sociedade e o sistema de comunicação
(LOPES, 2011). No sentido de impedir os avanços relativos à democratização, as
empresas comunicação realizam verdadeiros ataques terroristas,
Um dos exemplos ocorreu recentemente com a discussão do Plano
Nacional dos Direitos Humanos (PNDH). Entre as ações previstas
constava a regulamentação do o artigo 221 da Constituição Federal,
estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de
radiodifusão como critério para outorga ou renovação das
concessões (LOPES, 2011, p. 13).
Além das ações, o PNDH previa penalidades administrativas “como
advertência, multa e suspensão da programação ou cassação da concessão de
acordo com a gravidade da infração cometida” (LOPES, 2011). No sentido de
desqualificar o debate foi criada pela Rede Globo de Televisão 28 uma verdadeira
campanha para influenciar a opinião pública, como se o estabelecimento dessas
normas e critérios se constituíssem um retrocesso e retorno ao período ditatorial,
censura.
Podemos inferir, portanto, que a luta pela democratização e controle social
da mídia tem um longo e tortuoso caminho a percorrer. Salientamos que na nossa
28
Um exemplo é a propaganda publicitária “o monstro da censura” elaborado pelo CONNAR
(Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária) e seu braço acadêmico, a Escola Superior de
Marketing e Propaganda. A peça, inserida propositadamente em meio ao bombardeio de notícias
sobre o PNDH-3, envolve o telespectador numa de animação sombria, com a seguinte narrativa: “Ele
era conhecido como o Último Suspiro, o laboratório mais seguro do mundo, a última fronteira para o
mal. Ali, foram eliminadas as maiores aberrações existentes na face da terra, vírus, seres das
profundezas oceânicas, bactérias. Experiências secretas foram feitas ali e, em uma cela especial,
ainda habita a criatura mais terrível, o mostro da censura, que agora repousa fora de combate. A
temperatura da sua cela é cuidadosamente controlada, o frio tem que ser constante, assim ele já
mais despertará de novo. Nada pode distrair a tarefa da sentinela! Não deixe o mostro da censura
acordar!” (RIBEIRO & BARBOSA, 2010, p. 3).
52
perspectiva, pensar em veículos midiáticos efetivamente democráticos é pensar na
construção de outra forma de sociedade verdadeiramente livre e emancipada.
Contudo, apesar dos limites impostos pela dinâmica capitalista, afirmamos a
importância do enfrentamento e problematização da concentração de propriedade e
da necessidade do controle social sobre os veículos de comunicação.
2.3 A
TELEVISÃO
BRASILEIRA:
AVANÇOS
TECNOLÓGICOS
E
A
ESPETACULARIZAÇÃO DAS DIMENSÕES VIDA
Na busca por um público mais fiel, que gere elevados índices de audiência,
observa-se a cada dia a proliferação de programas com agendas apelativas, com
requintes de sensacionalistas, que banalizam e naturalizam os complexos
fenômenos sociais. Sabemos que sob bases capitalistas o lucro é o motor, o
sustentáculo, das empresas privadas. Enquanto empresa privada 29 as emissoras de
televisão – ou grande maioria delas – tem se apropriado das expressões da
violência, da exploração da miséria, das dores humanas, das catástrofes,
principalmente nos noticiários, como fonte de lucro. É evidente a banalização e
naturalização da questão social, a negação da dimensão humana e da ética na
maioria dos produtos televisivos.
2.3.1 “A TV é tão importante que de janela passou a paisagem”
30
: centralidade da
televisão no cotidiano social
Em meados do século XX, o mundo passava por mudanças profundas, que
(re) definiram a produção e reprodução social dos anos subsequentes. O
surgimento da televisão31 dá-se exatamente em meio a descobertas, avanços e
desafios postos às sociedades humanas. Entendida a princípio como mero objeto
tecnológico destinado à classe média, aos poucos se percebe o quanto esta
29
Apesar de se constituírem empresas privadas, as emissoras de radio e televisão precisam de
concessão pública (espectro eletromagnético) para irem ao ar. Como bem público tem (deveria ter) a
responsabilidade de transmitir informações de interesse do conjunto da população.
30
31
Frase de Daniel Piza.
A televisão foi criada em 1920, pelo Inglês John Logie Baird e, estreou oficialmente na França, em
1935. No Brasil a televisão chega por volta da década de 1950.
53
invenção se mostrava importante para o desenvolvimento das sociedades
capitalistas e para a perpetuação de seus valores.
A internet e a televisão foram os veículos de comunicação mais beneficiados
com criação de novos aparatos tecnológicos. Assim, a TV se introduz, de forma
definitiva, no cotidiano das pessoas, diminuindo a noção de tempo/espaço, com
uma vasta e variada gama de informações, com emissões ao vivo, com
modalidades de interação in direct com os telespectadores que são chamados a
intervir de modo mais efetivo nas programações, a participar do jogo de imagens e
conteúdos produzidos e difundidos pela TV. A participação em tempo real ganha
maior dimensão com a internet e a expansão do acesso ao telefone.
A introdução da televisão no cotidiano brasileiro se dará na década de 1950,
com a inauguração da PRF-3/TV Tupi, Canal 3 com pouco mais de 100 televisores
na cidade de São Paulo. A primeira transmissão ocorreu no dia 18 de setembro
daquele ano, contudo seu caráter ainda era regional e, poucos ainda tinham acesso
ao meio de comunicação naquele momento.
O reconhecimento da potencialidade da TV como meio de comunicação
ocorre no período de governo ditatorial, instaurado pelo golpe militar de 1964.
Nesse período, a televisão foi utilizada para auxiliar na criação da pretensa unidade
brasileira e legitimar o regime vigente. Nesse contexto foram realizados
investimentos na infra-estrutura comunicacional, com a criação de redes nacionais
de televisão. A Rede Globo de Comunicações foi uma das emissoras que mais
recebeu incentivos do governo militar.
No movimento contraditório de expansão do capitalismo via industrialização
por substituição de importações, através da industrialização no Brasil, a televisão
destaca-se como um dos itens. Inicialmente, as classes dominantes e camadas das
classes médias adquirem este bem. A partir da nacionalização da produção do
aparelho receptor, tornou-se possível um maior número de brasileiros o acesso à
televisão. Em 1960 em apenas 9,5% das residências brasileiras havia um aparelho
de televisão; depois de dez anos, o número aumentou para 40,2%; chegando a
73%, em 1980 (LOPES, 2011).
Nessa primeira década do século XXI, podemos afirmar que a televisão
brasileira
(grandes
emissoras)
encontra-se
entre
as
mais
desenvolvidas
54
tecnologicamente do mundo. Entretanto, os conteúdos de suas transmissões
parecem não acompanhar tais evoluções. A prevalência de conteúdos comerciais
em detrimento de educativos e culturais permanecem centrais em praticamente
todas as emissoras de televisão. A televisão (objeto) bem como as retransmissoras
de radiodifusão (emissoras) desenvolvem-se sob os moldes da sociabilidade que a
conformam. Enquanto reprodutora do sistema modifica-se e adapta-se ao contexto
histórico do qual faz parte. Assim, por exemplo, nos tempos mais recentes, em que
há proeminência do sistema financeiro, a TV dá suporte aos bancos, vende
empréstimos, ações das mais variadas áreas de produção, incentiva o consumo de
itens do mercado financeiro, não deixando de cumprir seu papel na difusão de
ideias, valores, na publicidade e produtos diversos.
Com efeito, a televisão encontra-se em praticamente todos os lares
brasileiros32. Obtém destaque, entre os veículos midiáticos, por ter a capacidade,
construir realidades fragmentadas como se fossem a totalidade a ser conhecida.
Majoritariamente,
os
produtos
televisivos
fazem
recortes
na
realidade,
desrespeitando as particularidades regionais, étnicas, geracionais, econômicas que
a compõem, simplificando-a, ocultando sua complexidade, supervalorizando
determinadas dimensões33 da sociedade camuflando outras tantas.
Ela adentra os lares das pessoas influenciando suas vidas, criando novas
formas de pensar e agir, novas expectativas e esperanças. Progressivamente,
assistimos à adesão aos eletroeletrônicos muito mais em função de um status do
que para suprir necessidades de uma população cada vez mais urbana. Grandes
parcelas das populações urbanas integram-se profundamente aos ritos do
consumo, deixando de comprar objetos por seu valor de uso e privilegiando,
sobremaneira, os seus signos distintos (marca, acessórios). Os veículos midiáticos
ocupam lugar privilegiado na afirmação dos novos comportamentos, estilos de vida
e consciência individuais (SODRÉ, 1994).
Podemos considerar a televisão como um dos mecanismos importantes do
32
33
Ver dados na introdução dessa dissertação.
Um exemplo são as novelas. Geralmente, se passam no centro sul do país, não existe
contradições de classe; as contradições são entre os bons (mocinhos e mocinhas) e os maus (vilões);
os regionalismos apresentam-se de forma estereotipada, com exageros nos sotaques e nas formas
de ser comportar.
55
processo de acumulação capitalista, visto que contribui tanto para a comercialização
de aparelhos, incentivando a indústria fabricante, como para promover a publicidade
de diferentes objetos de consumo e para a difusão de ideias e valores. Sob essa
lógica, uma das funções da televisão tem sido atender aos interesses do mercado,
mediante a transmissão de informações e o anúncio de diversos produtos. Porém, a
televisão tem sido importante mecanismo para a veiculação de fatos importantes:
notícias sobre o cenário político, acontecimentos pelo mundo, programas sobre
saúde e trabalho são exemplos de que mesmo sob a lógica dominante, o veículo é
importante difusor de informações para o conjunto da população.
O telejornal é o produto televisivo cuja finalidade é a transmissão de
informações para o conjunto da sociedade. O surgimento do telejornal se confunde
com o surgimento da televisão em terras tupiniquins. Logo, será aprimorado e ao
longo do tempo se tornará o programa televisivo mais assistido pelos brasileiros
(42% de preferência na audiência). O Jornal Nacional é o mais visto e a Globo a
emissora de televisão com mais credibilidade da população34.
No que se refere à disposição dos telejornais, explica Góis (2010).
[...] entre as principais redes de televisão abertas do Brasil, os
horários do almoço comercial e da noite são os prestigiados para
emitir sua cobertura jornalística. Isso se dá pela envergadura que o
jornalismo confere à emissora, em termos de status, prestígio e
receita publicitária - uma vez que os preços alcançam a cifra do
milhar por cerca de trinta segundos no intervalo entre os blocos.
A forma de organização da grade de programação televisiva não é construída
aleatoriamente. O telejornal, geralmente é veiculado em horários considerados
“nobres”, ou seja, períodos em que, comprovadamente, a audiência aumenta (GÓIS,
2010).
Um jornal televisionado tem, pretensamente, a tarefa de fornecer um
relato audiovisual dos principais acontecimentos do estado, do país,
do mundo; de forma imparcial e verídica. O pressuposto da cobertura
jornalística corresponde a alguns direitos constitucionalmente
garantidos: o direito à livre expressão e à informação. Se de um lado,
a imprensa é livre para transmitir suas grades de programação, ao
cidadão é assegurado o acesso ao informativo democrático (idem, p.
9-10).
34
Cf. Pesquisa Sobre os Hábitos de Informação dos Brasileiros. BRASIL, 2010.
56
Segundo Góis (op. cit.) a perspectiva jornalística, articulada ao tratamento e
valor comercial da imagem, fornece alguns caminhos para a verificação dos
significados éticos na televisão. O uso da imagem é essencial aos veículos
audiovisuais. Nos noticiários, os cenários, a padronização dos apresentadores, o
uso selecionado das cores e a diminuição da importância da voz são fatores que
atestam a força da imagem para a construção de interpretações da informação.
Porém mesmo que seja imprescindível o uso da imagem no telejornalismo,
com toda a capacidade de exprimir uma interpretação imediata de um determinado
fato noticioso, o uso de imagens não dispensa a palavra. Dessa forma, todas as
matérias vêm acompanhadas de narrativas descritivas e explicativas que amarra os
sentidos oferecidos.
A junção de imagem e som possibilitou a televisão obter centralidade no
cotidiano da vida social. Contudo, verifica-se cada vez mais a fragmentação e os
recortes da realidade, veiculados como sendo a totalidade. Ainda, e mais
comumente a exploração/dramatização das informações e imagens para fins
mercadológicos.
A violência tem se constituído elemento essencial na programação televisiva,
com certa evidência nos telejornais. De acordo com Rodrigues (2010), nos
telejornais a violência é retratada sob duas perspectivas, a primeira delas refere-se à
violência urbana rotineira, já a segunda volta-se aos casos excepcionais que
acabam gerando forte apelo social e, por isso, são exaustivamente divulgados pela
televisão.
No caso da violência cometida contra as mulheres, geralmente obtém
centralidade os casos de assassinatos de mulheres (femicídio), sobretudo quando
ocorrem nas classes medias e altas ou estão vinculados a alguma personalidade do
país.
Seguindo a regra, os jornais televisionados procuram explorar o máximo os
casos. Emocionados os telespectadores acompanham os relatos do crime, as
investigações, pela televisão, pelos jornais e revistas que chegam a editar números
especiais, capas com fotos das vítimas e relatos pormenorizados (BLAY, 2008).
É compartilhado com o público os sofrimentos dos envolvidos no caso.
Durante dias, semanas e até meses são veiculadas diligências da polícia, atuação
57
dos advogados (defesa e acusação), explora-se a vida íntima do acusado e da
vítima. Enfatiza-se detalhes, realiza-se simulações e muitas vezes falta a dimensão
ética que deveria perpassar a produção da informação.
Ressaltam-se as justificativas do crime, vinculadas basicamente, às paixões,
ao transtorno provocado pelo ciúme/uso de drogas, à insegurança dos amantes e a
perversidade dos criminosos e das criminosas. Contudo provoca Blay (2008), “nem
todos os crimes contra mulheres têm repercussão midiática; aqueles que ocorrem
nas camadas de baixa posição econômica ficam relegados a pequenas notas na
imprensa”, sendo veiculados apenas os crimes muito crueis (comoventes). Salvo,
alguns comentários e análises mais aprofundadas, a maioria dos casos de violência
são considerados normais, “confirmando a expectativa de que “ali”, entre os pobre e
favelados, eles são esperados mesmo”.
Tudo isso nos faz refletir sobre a participação da televisão na formação de
opinião dos brasileiros/as, haja vista, sua inserção no cotidiano dos indivíduos. A
centralidade de adquire na vida social nos impõe a refletir sobre influência das
emissoras na elaboração de apreensões acerca da questão social e, em particular,
da exploração e espetacularização a violência nos programas televisivos.
2.3.2 Violência e espetacularização: elementos centrais nas telas de TV
A sociedade brasileira contemporânea parece saturada de imagens e
“aparentemente conformada em expressar aspirações por meio do consumo”,
segundo a lógica da formação capitalista (MORAES, 2010, p. 93). Trata-se de uma
sociedade mercantilizada, regida pelo aparente, pela espetacularização, pelo
imediatismo. Vem sendo atravessada por fluxos hipervelozes, os quais levam aos
recônditos mais longínquos uma imensa gama de informações interferindo na
“cartografia do mundo coletivo”, à medida que formulam realidades aceitas por
segmentos sociais diversos. O novo convive com o mais atrasado – a mais elevada
tecnologia relaciona-se pacificamente com a mais gritante desigualdade.
As tecnologias da informação e comunicação (TICs) mudaram as noções de
tempo e espaço. Nos dias atuais podemos através da internet ou televisão
acompanhar, muitas vezes ao vivo, os protestos sociais na Líbia, as catástrofes
58
ambientais no Japão, invasões estadunidenses a países do Oriente Médio e etc.
Da mesma forma podemos acompanhar julgamentos e os desenrolar de
investigações de crimes, algumas vezes simulados pelos veículos de comunicação.
A televisão promove um verdadeiro consumo da violência. Observamos
diariamente, nos filmes, novelas, mas principalmente nos telejornais, um excessivo
do apelo ao sensacionalismo transvestido de informação. A violência bruta, mais
cruel é explorada e veiculada sem quaisquer constrangimentos e respeito aos
envolvidos.
Mediante a exploração destes tipos de problemáticas garante-se os lucros
das emissoras, haja vista, o caráter comercial dos meios de comunicação. Sob
essa
lógica,
a
programação
adapta-se
as
supostas
expectativas
dos
telespectadores. Há quem afirme que não existiria violência na mídia se não
houvesse publico consumidor. Porém, perguntamos se são realmente as pessoas
que “gostam” desses conteúdos, e se há na televisão aberta alternativas aos
conteúdos sensacionalistas.
Na nossa concepção a forma como se desenvolveram os meios de
comunicação, fortemente vinculados as elites burguesas no nosso país e aos
interesses do capital, promove a necessidade de formular produtos que, tenham
linguagem acessível, incite a curiosidade e, consequentemente atraiam a atenção
dos telespectadores.
Atrair audiência significa manter acordos publicitários. Quanto maior
audiência, maior são os interesses das empresas em relacionar seus produtos a
um programa. De acordo com Canavilhas (2001, p.7), os telejornais, dependendo
do horário e dia de transmissão, são responsáveis pelos maiores faturamentos em
receitas publicitárias, isto devido “à credibilidade associada ao produto e ao alto
número de espectadores, também têm os seus ícones sensacionalistas, como
alguns programas de entrevistas, talk-shows e noticiosos policiais”.
Continuando o pensamento, o autor salienta que uma boa programação
exige mais receitas publicitárias e estas advêm do aumento da audiência. “Para
que as audiências aumentem é necessário tornar a informação mais apelativa”
(CANAVILHAS, 2001, p.1), mais emotiva. O caminho mais fácil é a opção pelo
59
espetáculo35.
A
forma
espetacular
como
são
tratados
os
fatos
e
as
generalizações/fragmentação que são feitas destitui os fatos noticiados de suas
particularidades e determinantes. A violência, por exemplo, quando cometida nas
periferias das cidades é banalizada, naturalizada como pertencente aquele espaço
de sociabilidade.
Assim, os fatos mais chocantes são transmitidos à exaustão. Quem não
lembra os atentados de “11 de setembro”
36
transmitidos ao vivo e em tempo real
pela Globo? Do caso "Nardone" e do seqüestro seguido de morte da jovem Eloá e
da falta de limites de jornalistas, apresentadores e emissoras e televisão que
confundiam
notícia
com
escândalo,
sensacionalismo
em
sentido
estrito.
Poderíamos citar muitos outros exemplos. O fato é que mídia - jornalística apropria-se da violência para fazer o/a telespectador/a assistir (comprar) a notícia
transmitida apenas por atração, impacto ou mera curiosidade, “uma vez que a
exploração da matéria não acrescentará nada além daquilo que já foi anunciado”
(PATIAS, 2006, p. 01).
O fato é que grupos de comunicação são empresas, que visam ao lucro
comercial; e tratam a imagem e o tempo como mercadorias. Esse processo passa
pelo jornalismo, que deve adaptar-se aos manuais e regras do mercado de
comunicações. “Uma máxima do meio afirma que a imprensa é livre, mas os
jornalistas não. Em outras palavras, os jornais são estruturados segundo padrões
de tempo, ideologia, linha editorial, que acabam sendo as amarras invisíveis”
(GÓIS, 2010, p.10).
Ao analisarmos os telejornais diários constatamos a prevalência da
exploração de fatos violentos, a criminalização da juventude, da pobreza e dos
movimentos sociais. O caráter de alguns telejornais é visivelmente sensacionalista;
outros, embora melhor elaborados, não nos oferecem informações críticas nas
narrativas e conteúdos transmitidos nos noticiários, quotidiano ou a fazem
sutilmente.
35
Tomamos como espetáculo/espetacularização: aquilo que atrai a atenção, que impressiona e capta
a atenção dos sujeitos.
36
Atentados terroristas ocorridos em 11 de setembro de 2001, onde aviões colidiram com as torres
gêmeas do Word Trade Center, nos Estados Unidos, matando 3.000 pessoas. Atentados assumidos
pelo grupo Al Qaeda.
60
O jornalismo, em particular, nos chama atenção pelo discurso predominante
de imparcialidade, neutralidade e objetividade dado às notícias transmitidas.
Influenciado pelo jornalismo americano, as empresas jornalísticas prometem seguir
o lema do New York Times “dar notícia, com imparcialidade, sem medo ou favor”
(FONSECA, 2005, p. 206). Com essa lógica, as noticias devem de fato mostrar-se
objetivas, neutras e imparciais, realidade reproduzida nas linhas editoriais e nas
redações televisivas sem quaisquer constrangimentos, políticos, econômicos,
ideológicos, éticos... Contudo, mesmo que prevaleça às restrições impostas pela
lógica empresarial, o jornalismo implica segundo Fonseca (ano), que as notícias
sejam de interesse do público. As notícias, portanto, são acontecimentos reais que
devem ser relatados e compreendidos pelo maior número de pessoas possíveis.
Ainda que se constituam retalhos, fragmentos da realidade social devem produzir
informações para o conjunto da sociedade.
Nessa direção segue o jornalismo televisivo. Assistimos todos os dias “um
Brasil na TV” no qual o telespectador ver e é visto, ao menos, ilusoriamente. O
retrato da dinâmica social é transmitido pela televisão diariamente, como em um
show da vida, da violência, da miséria. A informação é mercantilizada com todos os
apelos estéticos, emocionais e sensacionais. O desaparecimento de Eliza Samudio
logo estampou as páginas dos jornais, se tornou pauta de telejornais, notícia em
programas matutinos e, atiçou a curiosidade da população brasileira. As notícias e
imagens “exclusivas” disputavam os tais índices de audiência. Uma tragédia onde a
ficção e a realidade se misturavam. Uma simbiose de mensagens e conteúdos que
dramatizados causavam interesse dos espectadores por semanas seguidas. Estes,
na comodidade da sua casa, em frente à TV assistiam estupefatos o drama de
Eliza.
No “jornalismo policial” a dramatização e a espetacularização dos fatos
violentos possibilita a ampliação da audiência das emissoras. Podemos visualizar
essa característica com mais nitidez nos programas jornalísticos regionais. As
emissoras tendem a produzir telejornais com conteúdos de baixa qualidade,
explorando os fatos mediante a excessiva dramatização da notícia, utilizando
imagens e depoimentos expondo o sofrimento e angústia dos sujeitos envolvidos.
Não raras vezes, essas notícias dramáticas são intercaladas com publicidades,
61
sendo o/a apresentador/a o/a “garoto/a propaganda”.
Conforme explicita Canavilhas (op. cit.) o processo informativo não está
isento das influências das tensões e contradições da dinâmica social. A política, a
economia, os valores que perpassam a sociedade condicionam o processo de
produção da notícia e a forma como a qual será transmitida. Nesse sentido,
podemos identificar a veiculação de determinadas temáticas, como da própria
violência contra a mulher que acaba reverberando e provocando debates no âmbito
da sociedade.
Ao analisar o cinema e o rádio (ainda pouco desenvolvidos), Gramsci já
compreendia a importância que poderiam assumir na sociedade contemporânea
para a socialização de informações e, contraditoriamente para o processo
molecular de acumulação do capital. Como afirma o autor,
[...] a comunicação falada é o meio de difusão ideológica que tem
uma rapidez, uma área de ação e uma simultaneidade emotiva
enormemente mais amplas do que a comunicação escrita [...], mas
superfície, não em profundidade (2007, p. 67).
É certo que, na época de Gramsci os meios audiovisuais se encontravam em
fase de desenvolvimento. Todavia, ele soube dimensionar a relevância dos
mesmos para a difusão dos interesses das classes sociais. Porém, assinala que
sob a ordem burguesa, o improviso e a superficialidade são marcas profundas nos
mecanismos de comunicação.
Nos canais de televisão (tempo é dinheiro) onde as notícias devem adequarse ao tempo do noticiário, as matérias produzidas são recortadas, editadas e,
muitas vezes sofrem alterações que limitam sua capacidade informativa. Os
dados/informações apresentadas são superficiais e pouco elucidativas.
Não podemos negar que telejornalismo também veicula informações
importantes para o conjunto da população: denúncias sobre violência policial,
demandas sociais e prestação de serviço a públicos diversos, ainda apresenta
conteúdos relacionados à saúde, educação e cultura. Podemos afirmar com isso,
que a esfera da comunicação não constitui espaço harmonioso destituído de
contradições e contrasensos. Como todas as dimensões da vida social, a mídia
ainda apresenta, dependendo da conjuntura histórica (e a bem da verdade por
razões do mercado), determinadas inquietações, contradições que permeiam a
62
sociedade. É também tensionada por segmentos organizados do trabalho
motivados por questões que emergem na realidade social ou por conteúdos
abordados na programação geral dos media.
Para Gramsci (apud Grupi, 1978) é preciso analisar as formas de
expressões da consciência das classes subalternas. Estudá-las cuidadosamente,
nos possibilita identificar episódios de expressões culturais, valores e movimentos
que, embora sob os limites burgueses, são importantes para a superação de visões
conservadoras. Assim também podemos pensar e analisar os processos
comunicativos, tencionados ora pelas demandas do capital, ora pelas expressões e
lutas das classes oprimidas.
A
partir
dessa
perspectiva
podemos
identificar
a
veiculação
de
temáticas/problemáticas que atingem direta ou indiretamente a vida cotidiana do
conjunto dos sujeitos sociais. Temos ciência de que a visibilidade desses temas –
embora sua veiculação seja orientada pela lógica dominante no veiculo – é
importante para a sociedade, por possibilitarem reflexões sobre os mesmos. Com
certa frequência, assistimos à veiculação através de novelas, programas de
entretenimento ou jornalísticos de temáticas como a diversidade sexual, violência
contra a mulher, drogradição, alcoolismo, racismo... Através destes conteúdos
exibidos, a mídia busca assegurar a maior fidelidade possível de um público cada
vez mais assíduo, mas também bastante heterogêneo. Há, portanto, um
empreendimento em explicitar situações nas quais as formas de violência,
principalmente aquelas mais cruéis ganham cada vez mais espaço.
Nesse momento, importa-nos problematizar o trato despendido pela mídia,
especialmente, a televisão, às desigualdades sociais, expressas entre outros: nos
conflitos pela terra, precarização das condições de vida da população, agudização
da pobreza e da violência. Tais, problemáticas são revisitadas, quase que
cotidianamente pelos veículos de comunicação, mas cuja interpretação e análise
voltam-se prioritariamente, para a culpabilização dos sujeitos historicamente
oprimidos e a criminalização dos processos organizativos da classe trabalhadora.
63
64
3.1 CRIMINALIZAÇÃO DA QUESTÃO SOCIAL E EXPRESSÕES DA VIOLÊNCIA:
TERRENO CONTRADITÓRIO E MULTIFACETADO
Como destacamos anteriormente, a mídia contribui para a criação de
consensos sobre a vida social. Colabora na construção de formas de ver, pensar e
estar no mundo, atribui significados e sentidos aos diversos processos sociais,
dentre os quais se encontra a violência. Contudo, a maneira fragmentada e
desconectada da realidade como a violência tem sido historicamente veiculada pelo
noticiário (impresso ou televisionado) não permite a apreensão das relações
contraditórias que permeiam a categoria mascarando as determinações sociais,
culturais e econômicas que a fundamenta e legitima.
Como afirma Koroll (2008), na sociabilidade capitalista, os grandes meios de
comunicação cumprem função central na construção de uma subjetividade cada vez
mais alienada e individualista. A criminalização da classe trabalhadora, sempre
presente no noticiário televisivo, constitui aspecto orgânico da política de controle do
capitalismo para garantir sua reprodução ampliada. Estamos em uma época em que
o “Estado Social cede lugar para o Estado Penal e a burguesia, em vez de como
antes, administrar as contradições sociais mediante concessões pontuais, mas
reais” (TRINDADE, 2008, p. 5037), “[...] passa a fazê-lo mediante a combinação de
um duplo movimento: anestesiamento da miséria (assistencialismo) e repressão ao
que restar de manifestações daquelas contradições” (op. cit., 52).
A mídia burguesa assume papel de cúmplice, sendo bem consciente disso.
Por essa razão, as tensões, contradições e antagonismos que conformam a
realidade social são invisibilizados nas produções, ou como salienta Sales (2007),
são mostrados ocultando suas determinações mais profundas.
No contexto de crescente criminalização e punição dos movimentos sociais e
da questão social, discutimos a participação da mídia, em particular das
transmissões telejornalísticas, na elaboração de narrativas repressivas e na
formação de dimensões do senso comum, que contraditoriamente, naturaliza e
37
Entrevista com José Damião de Lima Trindade, ex-presidente da Associação dos Procuradores do
Estado de São Paulo. In: Revista Classe, 2008.
65
criminaliza as expressões mais gritantes da questão social: desigualdade,
pauperismo e violência. Com relação às questões particulares da reflexão sobre
gênero, ou à condição da mulher e às relações desiguais de gênero em nossa
sociedade, com destaque para uma de seus componentes mais atroz – a violência
contra mulheres – a mídia e em especial a televisão e os telejornais assumem a
linha de frente na reprodução de visões estereotipadas, culpabilizantes, que findam
por reforçar padrões machistas, sexistas e preconceituosos.
Nesses tempos de mundialização do capital, “[...] mas do que nunca o poder
se concentra em pequenos grupos econômicos”; os países periféricos continuam
seguindo as regras estabelecidas pelos países de capitalismo central (BOSCHETTI,
2010, p. 64-65). Os impactos destrutivos orquestrados pelo capitalismo nos tempos
contemporâneos se refletem na desproteção social, destruição de postos de
emprego, exploração do trabalho e redução dos salários, e na concentração de
renda. Segundo Iamamoto (2008, p. 118), “[...] a mundialização do capital tem
profundas repercussões na órbita das políticas públicas, com suas conhecidas
diretrizes de focalização, descentralização, desfinanciamento e regressão do legado
dos direitos do trabalho”.
Esse processo tem provocado consequências perversas nas condições de
vida de trabalhadores e trabalhadoras por todo o mundo, mais particularmente, nas
periferias do capitalismo, ou seja, nos países “pobres”. Consequentemente, em face
do crescente aprofundamento de desigualdades e injustiças, reproduzem-se as
expressões da violência em todos os espaços de sociabilidade.
O suporte oferecido pela mídia à burguesia favorece a disseminação de uma
“cultura do medo”. Nunca se viu tanto crime, tanta violência na televisão. No Brasil,
afirma Malagutti (2003) apud Oliveira (2003), a difusão do medo e da desordem tem
historicamente servido para deflagrar estratégias de controle e disciplinamento das
classes subalternas. O medo se constitui porta de entrada para políticas de
segurança cada vez mais punitivas e segregadoras.
A mídia (impressa e televisiva) contribui para o processo de criminalização da
população pobre e ainda influencia a criação de “redutos” da violência. Como
consequência
reivindicam-se
melhorias
generalizadas
que
incluem
o
reaparelhamento policial, maiores níveis de repressão e de controle sobre os
66
espaços da cidade.
Nesse novo/velho quadro se reeditam políticas cada vez mais focalizadas na
extrema pobreza. Segundo Soares (2010, p. 271),
[...] O acesso às políticas sociais passa a ser precarizado,
mercantilizado e reatualizado na mediação do favor, via voluntariado.
Consequentemente a questão social é levada ao entendimento
externo à ordem social e, além disso, há uma grande ofensiva para
eliminar a condição de direito das políticas sociais.
O desmonte das conquistas dos/as trabalhadores/as, aliado ao viés ideológico
do autoemprego e da autonomia consistem em estratégias político-ideológicas que
mistificam a realidade e objetivam “[...] exacerbar a extração do excedente e
desmobilizar a organização da classe trabalhadora” (SOARES, op. cit., p. 272)
Os ajustes do capitalismo aprofundam as desigualdades e obscurecem o “[...]
universo dos trabalhadores que produzem a riqueza e vivenciam a alienação como
destituição, sofrimento e rebeldia” (IAMAMOTO, 2008, p. 118). Mas, ao mesmo
tempo, essa mesma sociedade apresenta um terreno de lutas e enfrentamentos
cotidianos numa conjuntura adversa às demandas das classes oprimidas.
Ainda, as lutas organizadas pelas classes trabalhadoras têm sofrido golpes
severos da mídia burguesa. A criminalização dos movimentos sociais pelos grandes
veículos de comunicação do nosso país não constitui nenhuma novidade. Não raras
vezes, representantes do Movimento dos Sem Terra têm sido tratados e colocados
no mesmo nível de traficantes de drogas. Categorias profissionais em greve são
tratadas como arruaceiros e desordeiros. Em outras ocasiões, quando as
reivindicações são legitimadas pela mídia (manifestações nos países africanos e
árabes, por exemplo), não identificamos nas reportagens argumentos ou exposição
dos determinantes desses conflitos, tampouco o sentido político dos mesmos no
contexto em que ocorrem38.
38
As manifestações que se alastraram por diversos países árabes e africanos – denominado
Primavera Árabe – têm sido constantemente veiculadas pela mídia como manifestações de
populações insatisfeitas com longos anos de regimes ditatoriais. Embora verdadeira a informação, as
manifestações também expressam as desigualdades sociais aprofundadas pela crise estrutural do
capitalismo do capital: a juventude sem emprego e sem expectativas, populações inteiras sem acesso
a bens e serviços socialmente produzidos, agudização da pobreza e violência, elementos raramente
contemplados nos discursos televisivos.
67
Assim, os grandes meios de comunicação procuram sedimentar consensos
no sentido de minimizar as contradições e antagonismos, em uma espécie de
tentativa de ocultamento das contradições inerentes às sociedades de classes.
Espetaculariza as expressões da questão social e ocultam seus reais determinantes.
Segundo Volanin (2008), no Brasil, a criminalização dos movimentos de
enfrentamento a questão social é histórica. Manchetes como “Pernambuco e Rio
Grande do Norte agitados por um movimento subversivo de caráter extremista”
(Folha da Manhã, 1935); “Férias ameaçadas – a supergreve nas escolas altera
calendário” (Veja, 1985); A Tática da Baderna – MST usa o pretexto da reforma
agrária para pregar a revolução socialista (Veja39, 17.05.2000); Bombeiros invadem
Quartel Central da corporação no Rio (Veja online, 2011). Essas matérias indicam os
conflitos políticos e ideológicos travados entre os grupos sociais oprimidos e os
sistemas dominantes detentores dos meios de comunicação.
Certamente, os meios de comunicação no formato em que são estruturados
dificilmente, oferecerão espaço para a expressão ou a constituição de interesses
que questionem as estruturas básicas das relações capitalistas de produção. Com
isso, a situação tem se mostrado delicada para os segmentos oprimidos cada vez
mais silenciados e criminalizados pelo pensamento único das grandes empresas
midiáticas.
Contudo,
como
salienta
Sales
(2007),
as
manifestações
das
desigualdades sociais são tão gritantes que tem sido impossível ocultá-las
completamente. Por essa razão, podemos identificar nos noticiários denúncias que
dão visibilidade às problemáticas cotidianas de homens e mulheres.
Ainda assim, prevalece o discurso da manutenção da ordem social e a
ideologia dominante. Com seu aparato ideológico, estes veículos tendem a
escamotear as injustiças sociais, a concentração de renda, as desigualdades de
classe, raça/etnia, gênero e orientação sexual, as formas e os mecanismos de
manutenção do poder, os antagonismos do modo capitalista de produção.
Não é nossa intenção discutir e analisar as controvérsias e os conflitos entre a
mídia e a interpretação dada aos movimentos sociais em nosso país. Entretanto,
entendemos que tais reflexões ainda que preliminares, revestem-se de importância
39
Arquivos podem ser acessados em: veja.abril.com.br/acervodigital
68
para a apreensão da dimensão dos meios de comunicação na formação de
consensos sobre os diversos complexos sociais.
Historicamente, as organizações de trabalhadores e os movimentos sociais
têm constituído estratégias importantes das classes oprimidas na perspectiva de dar
visibilidade às desigualdades sociais e às expressões da questão social, de
enfrentar as precárias condições de vida e de sobrevivência das classes
trabalhadoras. Assim, entendemos que ao penalizar os movimentos sociais ou as
manifestações das classes populares, a mídia também o faz com as demais
expressões da questão social.
A questão social é aqui entendida como resultado do conjunto de
desigualdades
sociais
engendradas
pela
sociedade
capitalista
madura,
indissociáveis das configurações assumidas pelo trabalho. Expressa uma “[...] arena
de disputas entre projetos societários, informados por distintos interesses de classe,
acerca de concepções e propostas para a condução das políticas econômicas e
sociais” (IAMAMOTO, 2001, p. 10, grifo da autora). É, portanto, expressão das
desigualdades sociais produzidas e reproduzidas na dinâmica contraditória das
relações sociais, no conflito capital/trabalho.
Trata-se, portanto, de um complexo social que tem origem arraigada na
natureza das relações sociais capitalistas, cujos determinantes traduzem-se pela
coletivização da produção, contraposta à apropriação privada dos frutos da atividade
humana e das condições para sua realização. Conforme afirma Marx (1996, p. 237,
grifo do autor) é próprio da natureza do modo de produção capitalista, à medida que
desenvolve as forças produtivas, multiplicar a massa de “pobres laboriosos”; ou seja,
à acumulação capitalista corresponde a acumulação da miséria das classes
trabalhadoras. Nesse sentido, cotidianamente, a própria sociabilidade produz e
aumenta o fosso entre as classes sociais.
Conforme Oliveira (2010), a questão social emerge na segunda metade do
século XIX, mediante a aparição da classe operária no cenário político da Europa
Ocidental. De acordo com Netto (2001, p. 42), a expressão questão social surge,
[...] para dar conta do fenômeno mais evidente da história da Europa
Ocidental que experimentava os impactos da primeira onda
industrializante, iniciada na Inglaterra no último quartel do século
XVIII: trata-se do fenômeno do pauperismo.
69
Nesse sentido, a pauperização constitui uma das expressões da questão
social que acompanha concomitantemente o desenvolvimento e a consolidação da
sociedade capitalista. Com efeito, afirma Netto (op. cit., grifo do autor), “[...] a
pobreza crescia na razão direta em que acumulava a capacidade social de produzir
riquezas”. Que dizer, a consolidação da formação capitalista cria progressivamente
bens e serviços, mas contraditoriamente, produz um contingente populacional
despossuído das condições materiais de sobrevivência e sem acesso a tais bens e
serviços (idem).
É nesse terreno tensionado pelo conjunto da classe trabalhadora que, pela
primeira vez, a naturalização da miséria é politicamente contestada e o processo de
urbanização, somado com a industrialização, resultará na combinação de três
elementos indissociáveis, sendo estes: o empobrecimento extremo da classe
trabalhadora; a consciência desta classe de sua condição de exploração e, as lutas
desencadeadas por esta classe contra os seus opressores.
Segundo Heidrich
(2006, p. 2) podemos, assim,
[...] vincular o surgimento da questão social com o surgimento da
classe trabalhadora e identificá-la no momento em que a contradição
fundamental do capitalismo, como modo de produção social, se
desenvolve e se revela, ou seja, quando se evidencia que, no
capitalismo, quem produz a riqueza não a possui e ainda, que não há
espaço para todos no mercado.
Nesses termos, o metabolismo da sociedade capitalista propicia terreno fértil
à reprodução contínua e ampliada da questão social. Seus determinantes
encontram-se na base estrutural da relação capital/trabalho, em que o fortalecimento
da economia e do aparato Estatal aparece em descompasso com o desenvolvimento
social (IANNI, 1989). Conforme Kameyama (1997), a gênese e as transformações
das sequelas da questão social constituem manifestações concretas, mediante as
quais se reproduzem as relações sociais. Tais manifestações, por conseguinte, se
expressam nas práticas políticas e ideológicas cuja tendência é configurar políticas
de Estado.
Assim,
configuram-se
em
questão
social,
sobretudo,
os
processos
relacionados à formação e a reprodução da força de trabalho para o capital. O
Estado assume papel de organismo regulador, na medida em que, intervém nas
70
mazelas próprias do capital através de políticas implementadas pelas suas
instituições representativas (op. cit.).
No caso brasileiro, a questão social passa a ser tomada como questão
política e não mais de polícia, a partir das décadas de 1920 e 193040, quando o
Estado passa a atuar frente às demandas sociais. Esta atuação reflete e decorre dos
avanços da divisão social do trabalho e da emergência do trabalho assalariado em
nossa sociedade (KAMEYAMA, 1997).
Segundo Iamamoto (2001, p. 17), as manifestações da questão social que
atingem diversos grupos sociais – principalmente os mais pauperizados - têm se
tornando alvo de políticas assistencialistas focalizadas no “combate à pobreza” ou
em expressão da violência dos pobres, reeditando políticas de cunho punitivo,
policialesco e segregacionista. Nesse cenário, assumem novas configurações
atingindo de forma diferenciadas os diversos segmentos sociais, ao mesmo tempo
em que evidenciam o imenso fosso entre “o desenvolvimento das forças produtivas
do trabalho social e as relações sociais que o sustentam”.
Estes apontamentos sobre a questão social não têm por objetivo fragmentar
ou isolar nossas análises sobre a violência e suas expressões. A compreensão
crítica é necessária para reconstruir a categoria no âmbito da dinâmica contraditória
da realidade e no movimento das relações sociais. As manifestações da questão
social são múltiplas e multifacetadas e a violência contra a mulher constitui uma de
suas faces, talvez uma das mais crueis.
O percurso realizado nos fornece subsídios para nossas análises sobre as
interpretações da violência contra a mulher pela mídia. Ao destacar a reprodução da
ideologia patriarcal e sexista que se apresenta nas matérias escolhidas no processo
de pesquisa, assim como, o caráter espetacular como foram tratados casos de
violência contra mulheres pelos veículos de comunicação, tomamos por base o
entendimento crítico da violência e de seu tratamento, enquanto expressão da
questão social, violência que compõe a totalidade social e que, em sua
particularidade, revela sua lógica e sua dinâmica. E ainda as desigualdades
observadas nas próprias emissoras e redações de telejornais no trato de matérias
40
Até então predominavam as práticas repressivas, a violência do poder estatal e privado (IANNI,
1898, p. 46).
71
especificas sobre violência e particularmente sobre violência contra mulheres
constituem particularidade da forma como a sociedade e a ideologia dominante que
impregna o senso comum lidam com expressões da questão social.
Com efeito, a mídia (televisiva), contribui na divulgação e na criação de
consensos e variadas representações sociais sobre a condição de ser mulher. Nos
telejornais, novelas e programas de entretenimento são veiculados símbolos
ideológicos em uma perspectiva desigual de gênero, os quais ultrapassam os limites
das telas de TV e estabelecem relações concretas nas vidas cotidianas das
mulheres. Esses aspectos serão aprofundados na próxima sessão, após
abordarmos nossas aproximações sobre violência, suas expressões na mídia e na
vida cotidiana.
3.2 EXPLORAÇÃO E OCULTAÇÃO DAS DETERMINAÇÕES DA VIOLÊNCIA NA
MÍDIA
A “questão da violência na mídia no primeiro momento pode parecer um tema
senão já muito esgotado pelo debate das controvérsias entre produção e recepção
no Brasil” (SALES, 2007, p. 268). Todavia, continua a autora, “[...] é fato que a
violência
se
intensificou
nas
ultimas
décadas,
carecendo
de
estudos
interdisciplinares sistemáticos” que a problematizem nas suas especificidades
históricas (idem).
É notório que vivemos um momento de profunda agudização das expressões
da questão social. O desemprego estrutural, a desregulamentação das legislações
trabalhistas, as políticas cada vez mais seletivas, e a informalização/exploração da
classe trabalhadora são alguns elementos que condicionam a intensificação das
expressões da violência no mundo contemporâneo.
Tudo isso, se reflete nas agendas dos veículos de comunicação. O que mais
incomoda, comove e convoca ações reativas ou consensos é reiterado
exaustivamente pela mídia tradicional. A implícita vinculação entre pobreza e
criminalidade culpabiliza as populações subalternizadas, convocando a mobilização
social em torno da elaboração de aparatos institucionais repressores mais
endurecidos. Os condicionantes sociais, econômicos e históricos que fundamentam
72
a elevação dos índices de violência na sociedade não são lembrados, “quando muito
se diluem na forma sensacionalista em que são relatadas como notícias” (FREIRE,
2009, p. 188).
A hegemonia cultural elabora “zonas de pobreza” como territórios de
criminalidade. Nos jornais, é bastante comum a ideia de periculosidade e
“irreversibilidade” da situação “caótica” causada por “vândalos” que reclamam
melhores condições de vida. Algumas vezes, entram em cena sujeitos cujas “falas”
destoam das narrativas hegemônicas... Esses indivíduos41 dão outro tom e
demonstram que a mídia pode vir a ser um instrumento de informação crítica da
realidade.
Porém, mesmo como essas brechas prevalecem os discursos marginalizantes
e criminalizadores nas narrativas midiáticas. Essas, por sua vez, “ativam
deliberadamente os mecanismos de terror para exigências de segurança, que
significa em última estância, garantia dos direitos do capital” (KOROLL, 2008, p. 11).
Como afirma Queiroz (2008), nos últimos anos, a problemática da violência
passou a ser entendida como uma das maiores ameaças a humanidade. A
variedade de manifestações conduz a reflexões diversas, sobretudo, no âmbito da
sociedade brasileira e das relações que a permeiam. Conforme salienta Arrazola
(1999, p. 4), são diversas as abordagens e perspectivas teóricas que buscam
apreender as manifestações da violência na sociedade contemporânea. Ainda
segundo a autora, ela tem sido constantemente tratada como “condição estruturante
das sociedades”, como um elemento constituinte da lógica reprodutiva do capital.
Nessa perspectiva as sociedades se organizam e se estruturam a partir de relações
de exploração, desigualdade e discriminação sejam de classe, raça/etnia ou gênero.
Este é o caso das sociedades capitalistas e patriarcais organizadas com base na
“violência estrutural” 42.
41
Podemos exemplificar com a entrevista exibida pela Rede Globo News com o sociólogo Silvio
Caccia Bava. Contrariando as opiniões dos entrevistadores, o sociólogo mostrou que a revolta dos
jovens britânicos tem determinantes profundos, engendrados nos processos sociais estabelecidos
naquele país, e que não são marginais ou jovens ociosos que sem o que fazer apela para a violência,
como dizia os/as apresentadores do telejornal. A entrevista pode ser visualizada em:
http://www.viomundo.com.br/humor/darcus-howe-o-homem-que-detonou-a-bbc-ao-vivo.html. Acesso
em 16.08.2011.
42
Cf. ARENDT, Hannah (1970); COSTA, Jurandir Freire (1986).
73
Ainda,
é
comum
associar
a
violência
às
classes
pauperizadas.
Historicamente, as classes mais pobres têm sido consideradas como as mais
violentas, causadoras das desordens e distúrbios que acometem nossas
sociedades. Não raras vezes, os meios de comunicação tendem a perpetuar esse
preconceito. O discurso discriminador da mídia “parece concluir que não há o que
fazer para solucionar a questão a não ser controlar a situação” (FREIRE, 2009, p.
187). Assim, a idéia de “classes perigosas”, é apropriada não só pelo Estado, mas
também pelos canais de comunicação que associam o pobre e o negro a bandido, a
violência. Para solução do problema, reforça a defesa de um Estado Penal como
solução das expressões da desigualdade social. Como ressalta Minayo (1994, p. 04),
Esta tendência de culpar as classes mais baixas pela violência
prevalecente obedece a uma ideologia que justifica o "status
quo". Ele idealiza a paz de privilégio social e absolve os
perpetuadores de extrema exploração. Ele atribui o sucesso da
sociedade ao esforço individual e explica a pobreza do resto como
"preguiça", "indolência", "falta de aspirações", ou "doença social".
Esta ideologia dominante vê os pobres, sobretudo negros, como a
origem da violência, isto é, como "criminosos preferenciais."
Silva (op. cit.), por sua vez, chama-nos a atenção para a necessidade de se
esclarecer que as diferentes formas de apreensão da realidade não eliminam,
integralmente, a existência de uma verdade sobre o real – sua lógica concreta.
Embora a dimanicidade do real não nos possibilite apreender de uma vez por todas,
as configurações, os mecanismos e os determinantes dos processos sociais
podemos a partir de uma visão crítica de totalidade apreender os processos
estruturais que os determinam, e em um processo de aproximações sucessivas sair
da aparência fenomênica presente no senso comum.
Assim, não é única a apreensão acerca da categoria violência na sociedade
burguesa – em particular na sociedade brasileira – marcada por ideologias que
tomam as partes dos processos como se fosse sua totalidade. Como assevera Silva,
com determinada frequência, […] são endossadas apreensões da violência “[...]
como atos pontuais causados exclusivamente por indivíduos que carecem de um
tratamento pontual” (SILVA, op. cit, p. 05). Tais construções se fundamentam em
perspectivas teóricas positivistas que consideram tais atos como disfunções ou
anomias que devem ser “tratadas”.
74
Concordamos com a assertiva de Minayo (1994), ao negar as teorias que
explicam a violência como atributo biológico do ser humano 43 ou que a relacionam
se as camadas pauperizadas da sociedade. Ao contrário, ao longo da nossa
pesquisa buscamos nos aproximar de aportes teóricos, que abordem o fenômeno a
partir dos aspectos econômicos, culturais e políticos que conformam historicamente
a sociabilidade buscando apreender a violência em suas múltiplas determinações
em suas particularidades no contexto contemporâneo.
Partimos do pressuposto de que não é possível apreender a realidade alheia
a totalidade social, assim também não podemos analisar as expressões da violência
sem identificarmos as condições concretas nas quais são produzidas e
reproduzidas. Não tentaremos explicar a violência como um fenômeno isolado,
explicado por si próprio. Nesse sentido, apesar de um ato violento parecer pontual, o
apreendemos em suas conexões com as condições concretas, historicamente
determinadas. Certamente, não poderia ficar restrito à esfera individual subjetiva,
embora, saibamos que o ser social é ao mesmo tempo subjetividade e objetividade
(SILVA, 2008). Buscamos empreender uma abordagem histórica à violência e
apreendê-la a partir da constituição das relações sociais estabelecidas no âmbito da
sociabilidade capitalista.
Entendemos que os eventos são partes constituintes de uma realidade
dinâmica e complexa permeada por contradições. São construídos socialmente no
meio material e cultural no qual se inserem e se desenvolvem (CARVALHO &
FREIRE, 2008). Nesse sentido, apreender a violência na perspectiva de totalidade
requer abordagem teórico-metodológica que
não
fragmente
ou
generalize
mecanicamente sua explicação, suas diversas expressões. Dentre as manifestações
da questão social, o fenômeno da violência destaca-se por adquirir novos contornos
se espraiando por toda a sociedade, muito embora, as condições concretas para seu
exercício sejam distintas no interior das classes sociais.
Assim, em suas variadas manifestações, em sua existência real, concreta, a
violência impacta de diferentes maneiras a vida dos sujeitos em dada historicidade.
43
Segundo Freud, “existe no ser humano uma disposição instintiva agressiva que deve ser reprimida
para permitir a vida em sociedade” (ARRAZOLA, 1999, P. 5). Em nossa concepção, essa análise
acaba negando a historicidade dos processos sociais, culpabiliza os sujeitos que a praticam,
julgando-o enquanto bom ou mal, e, portanto biologizando um constructo social.
75
Como argumenta Silva (op. cit. p. o4), sua objetivação não é uma abstração, e
“supõe necessariamente, que para que se torne violência, uma realização prática, mais ou menos visível – reconhecida ou não socialmente capaz de violar, oprimir,
negar, impor interesses e vontades de seres sociais” impressos numa dada
realidade “que impõe parâmetros” mediantes os quais são formadas e desenvolvidas
subjetividades.
Enquanto complexo social, a violência não é nenhuma novidade, contudo é
reatualizada e complexificada mediante as desigualdades engendradas pelo
capitalismo em sua configuração contemporânea, considerando aqui os mecanismos
de reprodução em marcha a partir de meados dos anos 1970, como modo de
enfrentamento das manifestações de sua crise. Trata-se de um complexo social
forjado no desenvolvimento histórico das sociedades, adquirindo diferentes
expressões e intensidade a cada conjuntura histórica. No contexto capitalista, a
violência constitui fenômeno social complexo, intensificando-se nos contextos de
crises (mas não somente), quando se aprofundam a questão social, deterioram-se
as condições de existência dos segmentos oprimidos e agrava-se a violação de
direitos.
Nos últimos tempos, no Brasil, a violência tem tido destaque alarmante 44, fato
claramente observado nos noticiários, na imprensa e, mesmo nas falas cotidianas.
Segundo Oliveira (2010, p. 17), essa onda de notícias apresenta uma realidade
marcada por diversas “formas de violência o que faz com que a sociedade seja
permeada pelo medo e insegurança”.
A cultura do medo em nossa sociedade promove a defesa de um Estado
Penal cada vez mais rigoroso; leis mais duras e opressivas como a prisão perpétua,
diminuição da maioridade penal ou até mesmo a pena de morte. Pouco se fala das
condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora, da exploração de crianças e
adolescentes,
das desigualdades sociais aprofundadas a cada dia
pelos
antagonismos presentes na sociedade capitalista.
A partir do final dos anos 1980, no Brasil “o noticiário sobre a violência
começou a migrar dos redutos sensacionalistas populares, proliferando-se em todos
os meios de comunicação” (SALES, 2007, p. 268). O aumento da veiculação,
44
Ver dados na introdução dessa dissertação.
76
particularmente, dos homicídios os quais obtêm direta cobertura de seus episódios.
Os argumentos para o fenômeno pode ser ilustrada na fala a seguir,
É fato. Há um aumento do jornalismo policial em todas as emissoras.
[...] tem o compromisso com a sua audiência, a empresa é comercial
ela precisa dar ibope para poder ter retorno de anunciantes, para
poder se sustentar. Aumenta o conteúdo policial (Entrevistado
Versus, editor do TJ1)
O compromisso com os índices de audiência provocam a migração, ou
elevação de notícias pitorescas e policialescas. Os lucros imediatos das empresas/
emissoras se sobrepõem a qualidade dos conteúdos transmitidos. “Reserva-se ao
público a liberdade de mudar de canal ou desligar a televisão diante das cenas
mostradas” (SALES, 2007, p. 290-291).
Nos anos de 1990, alguns episódios marcaram a sociedade brasileira e se
tornaram eventos de proporção / comoção nacional amplamente divulgadas pela
mídia: as chacinas do “Carandiru45”, “Acari”
46
, “Candelária”
47
, “Vigário Geral”
48
, o
massacre de Eldorado dos Carajás49. Sobre violência cometida contra mulher, o
45
A chacina ou massacre do Carandiru vitimizou, no dia 2 de outubro de 1992, 111 detentos que
cumpriam privação de liberdade no pavilhão 9 da antiga Casa de Detenção do Carandiru. Um
levantamento das vítimas mostrou que 80% ainda esperavam por uma sentença definitiva da Justiça,
ou seja, ainda não haviam sido condenados. Quase a metade dos mortos – 51 presos – tinha menos
de 25 anos e 35 presos tinha entre 29 e 30 anos. E a maioria estava presa por roubo ou tráfico de
drogas.
Fonte: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cavallaro/carandiru.html
46
“A chacina de Acari consistiu no assassinato, em julho de 1990, de 11 jovens da Baixada
Fluminense, sendo oito menores, mas cujos corpos até hoje estão desaparecidos. Policiais militares
seriam responsáveis pelo crime. Daí se originou o movimento “mães de Acari”, as quais lutam para
encontrar os corpos de seus filhos e parentes, e para obter a punição dos culpados” (SALES, 2007, p.
268).
47
“Chacina cometida por policiais à paisana, em julho de 1993, a qual vitimizou 8 adolescentes e feriu
gravemente outros dois grupos de 72 crianças e adolescentes que moravam e dormiam nas
proximidades da Igreja da Candelária no centro do Rio de janeiro. Pela quantidade de vítimas, pelo
caráter de extermínio da ação, pelo fato de serem “meninos de rua” e pela localização do crime –
coração da cidade -, a Chacina da Candelária se tornou um marco da violência no Rio de Janeiro e
de afronta aos direitos humanos no Brasil” (idem)
48
Massacre, em agosto de 1993, que vitimizou 21 pessoas na favela de Vigário Geral/RJ. Em
resposta ao assassinato de 4 PM, quarenta homens encapuzados abriram fogo contra moradores da
comunidade (Ibdem)
49
O Massacre de Eldorado do Carajás, ocorrido em abriu de 1996, resultou na morte de 19
trabalhadores rurais sem terra, deixou centenas de feridos e 69 mutilados. Passados 14 anos, os
envolvidos no caso continuam em liberdade.
77
assassinato da atriz Daniella Perez50 destacou-se como um dos episódios mais
revisitados pelos veículos de comunicação, disputando, espaços na programação
diária das emissoras, com o processo de impeachment do então presidente do país
Fernando Collor de Mello.
TABELA 2 – CRIMES DE AMPLA VEICULAÇÃO NOS ANOS 1990
CRIMES
Ano
Chacina do Acarí – 11 mortos
1990
Massacre do Carandiru – 111 mortos
1992
Chacina da Candelária – 8 mortos e 72 feridos
1993
Massacre de Vigário Geral – 21 mortos
1993
O Massacre de Eldorado do Carajás – 19 mortos e 69 1996
feridos
Assassinato de Daniella Perez
1992
Esses tipos de episódios são constantes nas pautas da programação
jornalística, escrita e televisionada. Nas emissoras regionais, particularmente nas
emissoras locais51, é marcante a presença do telejornalismo policial. A violência
mais brutal, as mazelas sociais, a vida das pessoas são exploradas exibidas nos
noticiários sob a justificativa de que “a realidade não pode ser escondida” como
afirma o entrevistado Versus, editor do TJ1. Contudo, a realidade é mostrada a partir
da orientação dos grupos (elites políticas) detentores desses canais. Ainda, as
notícias recebem tratamento diferenciado segundo as características dos indivíduos
que compõem a matéria, recorte de classe, raça/ gênero.
Os mecanismos mais amplamente utilizados pela mídia e suas características
centrais indicam como esta age e contribui para transformar tudo em mercadoria,
tudo mercantilizar, inclusive dimensões da barbárie presentes em nossa sociedade,
a exemplo das diferentes expressões da violência e, em particular, daquela que
50
Atriz assassinada em 2002 pelo “colega” de trabalho Guilherme de Pádua e sua esposa Paula
Thomaz. Os autores do crime, Guilherme e Paula, foram presos e condenados a 19 e 18 anos e
meio respectivamente. Atualmente, encontram-se em liberdade após cumprir um terço da pena, como
disposto.
51
Digo: emissoras do Rio Grande do Norte.
78
afeta diretamente as mulheres. O tratamento dos meios de comunicação, as
concepções de violência e de suas expressões elaboradas ou reiteradas pela mídia
revelam especificidades do aparato ideológico dominante que atua na construção da
sociabilidade, constituindo objeto a ser apreendido, desvelado na perspectiva de
reforçar o entendimento crítico da violência enquanto expressão especifica da
questão social.
3.3 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: EXPRESSÃO DA QUESTÃO SOCIAL
FORJADA E MANTIDA PELO PATRIARCADO
De acordo com Silva (1992) o modo de produção capitalista elabora um
sistema de valores que mistifica as contradições e desigualdades inerentes às
relações sociais. Esses valores justificam e garantem a manutenção da hegemonia e
ampliação da acumulação capitalista. E ainda objetivam garantir os interesses da
classe dominante. Para a autora, “[...] tal sistema ideológico-político é mais eficaz na
medida em que [consegue] mascarar as contradições das relações sociais e fazer
com que as camadas subalternas incorporem e reproduzam a mesma visão de
mundo dominante” (op. cit., p. 52). A ideologia, portanto, desempenha o papel de
unificar e homogeneizar os diversos estratos sociais.
A vida das mulheres é permeada por estas relações contraditórias. Relações,
majoritariamente, antagônicas que as coloca em situação de exploração e opressão.
As dimensões de poder são exercidas e objetivadas no cotidiano das mulheres; não
significa dizer que, não encontrem resistência e enfrentamento na reprodução
destas relações.
Como esclarece Safiotti (2009, p. 07), na sociedade de classes (mas não
apenas), uma estrutura hierárquica atribui aos homens o direito de dominar as
mulheres. Esse sistema pode ser também acionado pelas próprias mulheres conscientes disso ou não -, que, imbuídas do sentido de oferecer cobertura ao
patriarcado exercem, “[...] com maior ou menor freqüência e com mais ou menos
rudeza, as funções do patriarca, disciplinando filhos e outras crianças ou
adolescentes, segundo a lei do pai”. Nesse sentido, ainda que não sejam cúmplices
deste regime, colaboram para alimentá-lo.
79
Para Safiotti (2009), é imprescindível destacar a materialidade que assume o
patriarcado para não se incorrer no risco de reduzir a categoria a um adjetivo de
ideologia. As condições materiais, ou seja, a unidade humana que age, pensa e
sente é indispensável para a materialização, corporificação da ideologia. Os
sistemas de exploração e opressão existem porque também permanecem as
condições materiais para seu exercício. As sociedades divididas em classes
constituem terreno fértil para as desigualdades e antagonismos, tendo em vista a
apropriação privada do trabalho coletivo.
Assim, as relações de dominação e exploração encontram-se presentes na
realidade materializando-se nas desigualdades identificadas na vida cotidiana dos
sujeitos sociais. Ou seja, objetivam-se nas relações de trabalho, no exercício da
sexualidade, nas relações de poder, na violência que assola o cotidiano social e,
particularmente, a vida das mulheres.
Alvo de opressão específica, as mulheres constituem uma unidade formada
pelo recorte de gênero. A vida das mulheres é construída socialmente, como se
fosse determinada pelo destino de ser mulher. As variações residem nos aspectos
econômicos e culturais. Deste modo, não importa a classe social da qual faz parte,
as mulheres, em maior ou menor grau vivenciam situações de opressão. Ademais, a
condição da mulher assume particularidades conforme se moldam as sociabilidades.
Nesse sentido, a posição e o lugar da mulher não são os mesmos em sociedades
capitalistas ou socialistas, mulçumana ou católica (SILVA, 1992).
A violência exercida sobre a mulher atravessa as referências de classe.
Obviamente, as formas de enfretamento utilizadas pelas mulheres burguesas ao se
encontrarem em situação de violência são distintas daquelas orquestradas pelas
mulheres de camadas pauperizadas da classe trabalhadora.
Para adentrar no complexo universo da violência contra a mulher, realizamos
algumas aproximações a partir de categorias que na nossa concepção, são centrais
para o debate. No nosso entendimento, a violência contra a mulher é condicionada
pelas relações desiguais estabelecidas entre homens e mulheres, permeadas pelas
relações de classe e etnia, orientação sexual, geração e etc. Esses elementos não
podem ser dissociados de suas macrodeterminações, movimento necessário à
apreensão das desigualdades históricas entre os gêneros na sociedade, em sua
80
face burguesa.
O debate sobre gênero52 e patriarcado parece-nos central, por destacar
dimensões essenciais ao entendimento das relações desiguais entre homens e
mulheres na sociedade. A partir desse entendimento, podemos afirmar que as
relações entre os gêneros são constitutivas das relações sociais determinadas
historicamente, construídas no decorrer do desenvolvimento das sociabilidades;
porém marcadas pelas particularidades que compõem cada estrutura social.
Para Scott, o gênero53 se destaca como construção social do sexo, ou seja, a
partir das diferenças biológicas, a sociedade estabelece formas individualizadas de
ser homem e ser mulher na sociedade. Essa distinção foi sendo estabelecida à
medida que a participação de ambos os sexos na reprodução (biológica) e na
apropriação do excedente (propriedade privada) foi se instituindo. Assim, foram
estabelecidos e difundidos modelos específicos de homem e mulher, aceitos e
internalizados pelo coletivo, passando assim, a compor o processo de formatação do
feminino e do masculino. Contudo, essas diferenças foram se assumindo
características de relações hierárquicas aprofundadas conforme as determinações
materiais e subjetivas dos sujeitos e da sociabilidade da qual fazem parte.
Para a autora, em todas as sociedades, os seres humanos nascem iguais:
macho ou fêmea. Através de processos ideológicos, econômicos e culturais
aprendem a ser homens e mulheres, “[...] incorporando estereótipos necessários aos
interesses de preservação da ordem vigente numa dada sociedade” (SILVA, 1992,
p. 62).
Na construção das relações de gênero a sociedade disponibiliza símbolos,
representações e conceitos normativos que ganham sentidos quando veiculados
pelas instituições – escola, família, mercado, meios de comunicação, dentre outras
(SCOOT, 1990). Tais instituições “[...] contribuem para a construção de uma
identidade subjetiva, uma vez que homens e mulheres reais nem sempre preenchem
52
Diante dos limites impostos a esse trabalho, não iremos explorar as diversas abordagens sobre os
termos utilizados para evidenciar as desigualdades entre as categorias de sexo na sociedade. Para
maiores aprofundamentos Safiotti, 2009; Kergoat, 2009; Delphy, 2009.
53
A categoria gênero foi apropriada pelas teóricas do feminismo contemporâneo na perspectiva de
compreender e responder, dentro de parâmetros científicos, a situação de desigualdade entre os
sexos e como esta situação opera na realidade e interfere no conjunto das relações sociais. No
Brasil, o conceito se populariza no final da década de1980 e início dos anos 1990, com a publicação
do artigo de Joan Scott, “Gênero, uma categoria útil de análise histórica” (1995) (VELOSO, 2005).
81
todos os requisitos das prescrições sociais” (PASINATO, 2006, p. 142). Estes
mecanismos, inscritos em relações de classe fundamentam as relações entre
homens e mulheres na sociedade capitalista, naturalizando as diversas formas de
exploração que fazem parte da vida cotidiana das mulheres.
Os meios de comunicação de massa reforçam estereótipos presentes no
senso comum emanados da ideologia dominante à medida que expõem tipos
idealizados de mulher em sua grade de programação. As mulheres precisam ser,
sobretudo, magras, altas e ter cabelos lisos. Além disso, nas telas de televisão e nos
filmes, há predominância de mulheres brancas. Quando aparecem, as mulheres
negras sobressaem-se na condição de escrava e/ou empregada doméstica.
Evidente: vez ou outra uma mulher negra obtêm destaque na mídia. Contudo, esta
constitui muito mais a exceção que a regra.
Como a sociabilidade capitalista cria constantemente desigualdades,
complexifica ainda mais as relações entre homens e mulheres. Em dado momento,
ao sair do espaço doméstico54 e passam a compor o espaço público55,
contraditoriamente a mulher é alvo das mais variadas discriminações, precariedade
nas condições de trabalho, menores salários e expressões de violência.
O patriarcado tem se destacado como categoria utilizada para explicar e
apreender as relações desiguais entre homens e mulheres. Esta categoria se
diferencia do gênero, por integrar, em suas análises, as contradições de classe que
condicionam as desigualdades entre os grupos de gênero. Safiotti (2009, p. 10)
explicita que,
Neste regime, as mulheres são objetos da satisfação sexual dos
homens, reprodutoras de herdeiros, de força de trabalho e de novas
reprodutoras. Diferentemente dos homens como categoria social, a
sujeição das mulheres, também como grupo, envolve prestação de
serviços sexuais a seus dominadores. Esta soma/mescla de
dominação e exploração é aqui entendida como opressão. Ou
melhor, como não se trata de fenômeno quantitativo, mas qualitativo,
ser explorada e dominada significa uma só realidade.
54
Lugar historicamente vinculado ao feminino.
55
Através, por exemplo, da inserção no mercado de trabalho.
82
Assim, o regime patriarcal56 traz implícitas relações hierarquizadas entre
seres com poderes [sobretudo econômicos] desiguais. Neste sentido, tem-se uma
relação dialética entre as diferenças de gênero e as desigualdades de classe.
As desigualdades sociais criadas e recriadas cotidianamente constituem
elemento determinante da situação de violência a qual mulheres estão submetidas.
Como ressaltado, a violência atinge todos os níveis sociais, em maior ou menor
intensidade. Todavia, as expressões, materialização e o enfrentamento são
certamente, “tão distintos quanto desiguais”.
Entendemos a violência contra a mulher no movimento dinâmico do tecido
social, ou seja, a partir de suas relações antagônicas e contraditórias. Esta análise a
nosso ver, evita incorrer no erro de tomá-la como uma aberração, um sintoma
patológico causado por individuo/os com tendências violentas, cujo enfrentamento,
dar-se-ia a partir de tratamentos e ações “cirúrgicas”. Muitas vezes, esse
entendimento é utilizado pelos veículos de comunicação para explicar os casos de
assassinatos de mulheres. Nos episódios de violência que catalogamos,
identificamos em algumas narrativas associações (implícitas/explicitas) da situação
violência a distúrbios psicológicos dos seus perpetradores.
Partimos do pressuposto que a violência cometida contra as mulheres é
determinada pelas desigualdades engendradas na sociedade capitalista, arraigada
as relações desiguais de gênero e no sistema patriarcal. Trata-se de um fenômeno
complexo, contraditório e multifacetado, perpassando o cotidiano da maioria das
mulheres de todas as classes sociais, raças/etnias.
Nesse sentido, as relações sociais estabelecidas sob condições objetivas nas
diversas sociabilidades, têm posto a mulher numa histórica situação de
desigualdade. Segundo Saffioti (1987), essa desigualdade pode ser melhor
apreendida se analisada a luz do tripé formado pelo capitalismo, racismo e
patriarcado. Essas três categorias são, portanto, parte de um mesmo processo e se
relacionam dialeticamente.
Dessa maneira, a autora afirma: a luta pela emancipação das mulheres
requer e implica na luta pela erradicação de toda desigualdade social (classe,
56
Estima-se que o sistema patriarcal vem ocorrendo há cerca de 6500-7000 anos, quando os
homens começaram a implantar seu esquema de dominação-exploração sobre as mulheres. Cf.
ENGELS, 2002; SAFFIOTTI, 2000.
83
gênero e etnia); significa dizer, que lutar pela efetivação da igualdade e da liberdade
de homens e mulheres nos marcos da sociabilidade capitalista revela-se como uma
batalha fadada ao fracasso, tendo em vista que a criação e reprodução de relações
coisificadas, desiguais e violentas lhes são inerentes. Todavia, ressaltamos a luz do
pensamento de Saffioti, que nos marcos da sociabilidade capitalista, as lutas
vigentes têm valor e sentido político inegável e são indispensáveis.
Como assevera Richartz (2004), as lutas sociais não podem ser encaradas
como específicas de uma única categoria, não podem ser conduzidas por um grupo
específico e reduzidas a interesses particulares. Os problemas raciais dizem respeito
a negros e brancos; o combate ao patriarcado, a homens e mulheres embora, cada
segmento tenha suas particularidades. Contudo, no momento atual em que a
negação dos direitos básicos de subsistência atinge incisivamente a classe
trabalhadora, encaminhamentos práticos voltados a determinados contingentes
populacionais têm inegavelmente seu grau de importância.
Evidente: sob a lógica capitalista não há possibilidade da efetiva liberdade das
mulheres. Isto não implica em negar a importância das lutas travadas ao longo dos
anos pelo movimento feminista, as quais possibilitaram indiscutíveis avanços, por
exemplo, no âmbito das políticas de enfrentamento à violência de gênero. Assim, é
importante destacar a importância das lutas específicas dos sujeitos coletivos,
embora reiteremos que a luta precisa necessariamente ter natureza anticapitalista,
vislumbrar a emancipação humana de homens e mulheres.
O patriarcado, cuja origem é anterior à formação capitalista, se movimenta
entre os planos político, biológico, econômico e cultural, modificando suas
expressões nos diversos contextos sociais. Significa dizer que se objetiva de formas
distintas, conforme a dinâmica social. Se em dado momento (condicionado por
possibilidades próprias do ordenamento social daquele contexto histórico), é
possível observar melhores condições de vida das mulheres, em outro, se agudiza
seu processo de opressão e de exploração. Por isso, “a dominação não se faz do
mesmo jeito sobre todas as mulheres, [ela] varia por classe e, nas sociedades
racistas, varia por identidade étnico-racial” (CAMURÇA, 2007, p. 04). A dominação
sobre as mulheres também varia em decorrência das conjunturas históricas.
Historicamente, o lugar destinado à mulher tem sido o espaço doméstico, sob
84
a justificativa de sua capacidade biológica de ser mãe. Cabe-lhe à esfera da
reprodução, “[...] não só biológica, mas também dos aspectos culturais e sociais, a
serem perpetuados pelas gerações” (LOURENÇO, 2004, p. 68). Aos homens cabe o
campo da produção, ou seja, a esfera pública. Esta postura estabelece dicotomia
entre produção e reprodução, dimensões que de fato, constituem uma totalidade no
mundo das relações sociais.
Analisando como são estabelecidas as relações entre homens e mulheres, é
possível identificar como as desigualdades são construídas numa relação de
dominação-exploração e sobreposição dos homens sobre as mulheres. Significa que
os valores e ideias dão suporte a hierarquias de poder entre os sexos e fazem com
que a relação de dominação/submissão entre homem e mulher esteja presentes nos
mais diversos espaços sociais: na família, nas empresas, nas igrejas, nos sindicatos,
nos partidos políticos e na mídia. A identidade social, tanto da mulher, como do
homem, é, portanto, construída por meio de distintos papéis exercidos “[...] pelas
diferentes categorias de sexo” (RICHARTZ, 2004, p. 03). As atribuições sociais
determinadas para homens e mulheres acabam sendo naturalizadas pela sociedade,
como ressalta Richartz (idem),
Por ser naturalmente destinada à maternidade, com um corpo
perfeito, carinho e paciência na medida certa, o espaço doméstico
fica destinado à mulher. Cabe a ela socializar os filhos, mesmo
quando trabalha fora do lar para ganhar seu próprio sustento e o dos
filhos, ou ainda, para “complementar” o salário do marido. [...] Todas
as funções naturais como a maternidade, alimentação e sono sofrem
intervenção social. É a sociedade que determina como serão os
partos, o que comer, como e quando dormir.
A naturalização de processos socioculturais legitima a discriminação da
mulher, e de outros segmentos sociais (negro, pobre, homossexual), se constitui o
caminho mais fácil para confirmar a “dominação” dos homens, assim como se
confirma a superioridade dos brancos, dos ricos e dos heterossexuais. Da mesma
forma são naturalizados outros processos sócio-culturiais que dão suporte à
discriminação do negro, do índio, dos pobres, das categorias LGBTs (SILVA, 1992).
Segundo Moreira (2003), não é possível estabelecer com precisão a origem
da opressão exercida sobre as mulheres, tendo em vista ser um processo que
sofreu mutações ao longo do desenvolvimento histórico. Sabemos que a
85
subordinação da mulher não data dos tempos atuais, trata-se de um processo
milenar, “[...] uma constituição que se move entre os planos, biológicos, políticos,
econômicos e culturais” (ibidem, p. 39).
Ao longo dos tempos, a opressão das mulheres se perpetua modificando-se
em intensidade, conteúdo e formas de materialização nas diversas conjunturas.
Assim, também podemos apreender a violência. Produto das relações sociais,
movendo-se e particularizando-se nas especificidades dos contextos sociais.
Fundamentados nesses pressupostos, podemos afirmar que a violência,
particularmente as expressões vivenciadas pelas mulheres, tem sua origem anterior
à constituição da sociabilidade burguesa. Contudo, podemos afirmar que o
capitalismo não se sustenta sem reproduzir as “[...] relações de poder antagônicas,
em que o poder de controle está inteiramente separado dos produtores e cruelmente
imposto sobre eles” (MÉSZÁROS, 2009, p. 228-229). Significa dizer que a
subsunção57 do trabalho ao capital reforça as desigualdades entre homens e
mulheres (homens/homens; mulheres/mulheres); intensifica a exploração do
trabalho58, a pauperização da classe trabalhadora e a violência nas suas diversas e
cruéis expressões.
Embora reconheçamos limites impostos pelo capitalismo no reconhecimento
dos direitos, avanços significativos foram alcançados pelas mulheres na direção da
conquista de direitos e da equidade de gênero. Podemos citar como exemplo a
criação das Delegacias Especializadas no Atendimento às Mulheres - DEAMs59; a
implantação de casas abrigos no país, (FERNANDES; MOTA, 2008), dos núcleos e
centros de apoio que prestam atendimento e orientação às mulheres, fazendo um
trabalho de denúncia, prevenção e enfrentamento da violência contra a mulher.
Mudanças ocorreram no Código Penal, a exemplo da retirada do termo
"mulher honesta". A lei 11.106/2005 promove a supressão de tal expressão dos
57
Cf. Marx, Karl Capítulo VI, Inédito de O Capital: resultados do processo de produção imediata. São
Paulo: Moraes, 1985
58
59
O trabalho das tende a ser menos valorizado: baixos salários, longas jornadas de trabalho.
A primeira Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher foi criada em 1985 em São Paulo
(BLAY, 2003). “... Em 2004, havia 345 municípios com Delegacia de Mulheres. Apesar de todas as
Unidades da Federação contarem com, pelo menos, uma Delegacia Especializada no Atendimento à
Mulher, quando se observa o tamanho das populações dos municípios constata-se que nenhum dos
1.359 municípios com até 5 000 habitantes tem esse equipamento.” (IBGE, 2005)
86
artigos 215 e 216 do Código Penal60. A adjetivação “honesta” restringia a proteção
de determinadas mulheres em relação aos crimes de caráter sexual. Prostitutas e
mulheres consideradas de “vida promíscua” não eram abarcadas pela tutela do
direito (TASQUELO; SANCHES, 2005). Assim, o que se julgava não era a violação
de um direito, mas a conduta moral da mulher. Trata-se, portanto, de uma
qualificação preconceituosa e discriminadora que nega o direito de proteção à sua
integridade física e psicológica.
No tocante ao enfrentamento da violência contra a mulher, em agosto de
2006, foi promulgada a Lei 11.340, denominada “Lei Maria da Penha”
61
. A lei
representa marco importante do ponto de vista das conquistas políticas e do ponto
de vista legal. A lei propõe a adoção da pena de prisão para agressores, em
substituição à doação de cestas básicas, medidas de assistência e proteção à
mulher em situação de violência. Mesmo representado uma importante vitória dos
Movimentos de Mulheres, a lei Maria de Penha vem sendo combatida
contundentemente por setores conservadores da nossa sociedade. Isso nos
confirma a dificuldade da materialização efetiva de direitos. O depoimento abaixo é
bastante revelador dos limites da materialização das conquistas legais:
O que a gente vê cada vez mais forte é que conquistamos, mas
precisamos lutar cotidianamente para garantir direitos. Um caso
emblemático é o enfrentamento a violência contra a mulher. Uma
bandeira de luta do movimento antiga de 30, 40 anos atrás. Nós
lutamos, conquistamos, mas é uma luta diária, porque estamos numa
sociedade machista e, o capitalismo aflora o patriarcado. Além disso,
nossas leis, ou melhor, nosso poder representativo é marcadamente
masculino, assim facilmente, uma conquista como esta que se tornou
uma política pública, é desconstruída (Entrevistada Nosotras,
militante AMB).
60
O Código Penal data de 1940, de lá até os dias atuais algumas modificações foram realizadas. No
que tange aos direitos das mulheres, é significativa a mudança no artigo 218 da lei 12.015/09 que
tipifica o estupro, no rol dos crimes hediondos, definindo o tempo de reclusão (de 8 a 30 anos). A Lei
11.340/06, estabelece-se nova redação ao Art. 129 (Código Penal), estabelecendo pena de 3 meses
a 3 anos as agressões cometidas contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro,
ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações
domésticas, de coabitação ou de hospitalidade. Ainda, acrescenta-se ao artigo 313 do Código de
Processo Penal, o inciso IV estabelecendo as medidas protetivas de urgência no caso de violência
doméstica.
61
A lei recebeu essa nomenclatura em homenagem a Maria da Penha uma mulher que foi
protagonista de uma corrida pela punição de seu ex-companheiro, que por duas vezes tentou
assassiná-la. Quase 20 anos após os crimes, o agressor foi preso e o Estado brasileiro obrigado a
adotar políticas públicas voltadas à prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher.
87
Soma-se a isso, as limites materiais a realização e efetivação dos serviços de
proteção à mulher, que particularmente, no Rio Grande do Norte, tem se constituído
entraves concretos a materialização no enfrentamento a violência. No Estado,
existem apenas 562 (cinco) Delegacias Especializadas no Atendimento a Mulher –
DEAM, em condições estruturais que não dão condição da efetivação das ações
previstas na Lei. Como Afirma Nosoutras (militante AMB):
O problema está na política pública, que por falta de orçamento, a
rede de atendimento a violência contra a mulher que precisaria está
estruturada, não está [...]. Aí sim teríamos resultados mais rápidos e
concretos. Mas como se pode ter uma lei arrojada, se a coisa mais
simples que a gente tem na lei, que são as medidas protetivas, que
deveriam ser realizadas em até 24h, tem que ser realizada onde não
existe uma única viatura?
Ainda sobre as dificuldades e limites na efetivação das Leis, exemplifica,
Uma perda grande pra gente foi que uma única DEAM que
conquistou plantões no fim de semana, foi retirado, em Paranamirim.
Ou seja, as mulheres têm hora marcada para sofrer violência, e não
pode ser no final de semana. A única que tínhamos. Por falta de
estrutura e falta de estrutura pra gente é falta de recurso, falta de
prioridade (Nosotras, militante AMB).
Verificamos, portanto, o “descompasso entre o mundo legal e os processos
sociais (SANTOS, 2010, p. 199)”. Ou seja, os direitos legalmente conquistados nem
sempre são materializados na vida cotidiana. Como afirma a autora, “[...] isto porque
em muitas situações há dificuldades na aplicação da lei, no acesso à justiça e na
disseminação de conquistas para as novas gerações” (ibidem).
Como explicam Oliveira e Santos (2010), na sociedade capitalista, as
condições materiais impõem dificuldades à consolidação dos direitos dos grupos
subalternizados, ou seja, o enfrentamento da violência, bem como das variadas
expressões da questão social não se resolve com a instituição de marcos legais ou
de um arcabouço jurídico63. Requer condições objetivas que possibilitem a efetiva
participação dos sujeitos no acesso e usufruto de direitos. O enfrentamento das
condições de opressão não pode se concretizar no terreno da legalidade jurídica,
62
Duas situadas em Natal (zona norte e oeste); uma (1) em Mossoró; uma (1) em Parnamirim e uma
(1) em Caicó.
63
Para maior apreensão, ver SANTOS, 2010.
88
mas requer, sobretudo, a construção de uma sociedade humanamente emancipada,
forjada a partir da luta anticapitalista. A erradicação completa das diversas
expressões da violência implica rupturas profundas com a sociabilidade dominante
na perspectiva da emancipação humana. Como destaca Santos, (2010, p. 189)
[...] é preciso considerar que a sociabilidade capitalista, por se
constituir numa forma de organização da vida social que se
caracteriza pela subordinação de todos os valores humanos aos
ditames da acumulação do capital e sua exigência de lucro, torna-se
flexível, ora aprofundando a opressão, ao dissimular suas
manifestações, ao mesmo tempo que no cotidiano desrespeita os
indivíduos com discriminação e preconceitos e ignora, na lei, os
sujeitos oprimidos, ora regulamentando-a.
Articular capitalismo (suas contradições e particularidades) e patriarcado
possibilita-nos apreender as manifestações de opressão, às quais a mulher está
subordinada, tendo em vista que o sistema do capital apropria-se da opressão tanto
do ponto de vista ideológico, como na produção da vida social. Permite-nos ainda
apreender as dimensões de universalidade e particularidade que conformam o
nosso objeto.
No decorrer do processo histórico, as mulheres têm conquistado uma série de
direitos.
Contudo,
não
podemos
afirmar
que
houve
na
mesma
medida
transformações substantivas em suas vidas. Para Mészáros (2009, p. 54), apesar de
todo o desenvolvimento ocorrido nos últimos tempos que, de certo modo, provoca
alterações na dinâmica da sociedade burguesa, “os ganhos obtidos não
ultrapassaram o nível da igualdade formal”. Como explica o autor, faz parte da
racionalidade capitalista aprofundar as desigualdades e antagonismos. É próprio
desse sistema, manter e reproduzir as relações de poder “historicamente
específicas” através das quais assegura o controle sobre a classe trabalhadora.
Ressalta o autor,
[...] enquanto o relacionamento vital entre homens e mulheres não
estiver livre e espontaneamente regulado pelos próprios indivíduos
[...], com base numa igualdade significativa entre as pessoas
envolvidas – ou seja, sem a imposição dos ditames socioeconômicos
da ordem sociometabólica sobre eles – não se pode sequer pensar
na emancipação da sociedade da influência paralisante que evita a
auto-realização dos indivíduos como seres sociais particulares (2009,
p. 54).
89
Assim, dadas as condições estabelecidas pelo movimento da vida social sob
a autoridade do capital, a emancipação das mulheres não será efetivada, sem que
se questione em profundidade e com radicalidade a ordem social burguesa e suas
implicações na vida de homens e mulheres.
A sociabilidade do capital é incompatível com a afirmação da igualdade real e
substantiva.
Nesse
sentido,
ainda
que avanços sejam significativos,
são
inquestionáveis os processos de dominação e opressão, não apenas no âmbito
político-ideológico,
mas
também
no
econômico
(MOREIRA,
2003).
Ainda,
permanece a repressão da sexualidade feminina (tratada como objeto de desejo dos
homens64); a desqualificação profissional (divisão hierárquica das atividades
destinadas às mulheres e, consequentemente, a desvalorização salarial); a violência
vivenciada no seio familiar, no ambiente de trabalho e nos espaços públicos.
Em vez de sujeitos livres e autônomos, as mulheres continuam submetidas a
situações de opressão, legitimadas dentre outras, pela família (papel conservador
perpetuador de valores aceitos como normais); pela sociabilidade (mediante valores
incontestáveis que devem ser seguidos pelos indivíduos); pelos meios de
comunicação em massa (sob a forma de reprodução ideológica dos papéis
destinados a mulheres e homens).
Por certo, relações de gênero são construções históricas e, como tal,
passíveis de transformação. O estabelecimento de um uma nova sociabilidade e de
novas relações entre homens e mulheres implica, portanto, em descortinar suas
determinações e formas de materialização para pôr a nu as contradições que as
permeiam e orientar as lutas emancipatorias.
64
A exarcebação da sexualidade feminina é facilmente observada nos produtos publicitários. Sobre
esse debate ver CRUZ, 2007
90
91
4.1
PONTO DE PARTIDA: TECER OS FIOS DA HISTÓRIA, DESCONSTRUIR
VISÕES E “VERDADES” FORJADAS NA E PELA MÍDIA.
Digo não a violência, falo sim para a coragem,
condeno a tirania desse machismo doente,
Verme, filho do patriarcalismo
que cresce no moralismo covarde.
Cores do Invisível
Andréa Lima
Como destacamos na seção, dentro da lógica do mercado, a mídia burguesa
procura estar em sintonia com o “gosto popular”, com propósito de atrair para si uma
clientela continua e permanente (MORAES, 2010). Par tal é preciso uma
programação atraente, que cause empatia nos telespectadores, mas, sobretudo que
desperte a curiosidade e atenção mantendo-os atentos também ao tempo
publicitário. Nessa lógica, conteúdos são distribuídos e ordenados, ideias e
informações são mobilizadas ocupando posição distintiva no âmbito das relações
sociais. Enfim, os contornos “ideológicos da ordem hegemônica” são fixados
(ibidem. p. 84), através da premissa do consumo, do individualismo, da
mercantilização das variadas dimensões vida.
Não podemos deixar de considerar o papel preponderante dos meios de
comunicação na elaboração de concepções e interpretações sobre os processos e
fenômenos sociais em determinados tempos históricos. Com efeito, nos tempos
atuais os veículos midiáticos, em especial, a televisão e o telejornalismo destacamse como mecanismos privilegiados na construção de formas de interpretar os fatos e
acontecimentos da vida cotidiana, angulados sistematicamente sob a direção das
elites hegemônicas.
Partindo dessas indicações, o objetivo dessa seção é refletir sobre o
tratamento dado pelos telejornais à violência contra as mulheres buscando explicitar
as particularidades do noticiário televisivo quando se remete a assassinatos de
mulheres, mas, sobretudo, identificar os mecanismos sobre os quais se apóiam as
emissoras de televisão na construção da notícia, explicitar a lógica de construção e
articulação de elementos ideológicos objetivados nos discursos e narrativas
92
jornalísticas que contribuem de maneira explícita ou velada para a manutenção e
perpetuação da ideologia patriarcal de gênero.
Para percorrer o caminho desejado, partimos de dois casos (um com
divulgação em nível nacional outro local65), os quais são caracterizados inicialmente
e depois perscrutados. Tomamos os casos da morte da dona de casa Andréia
Rosângela Rodrigues e do desaparecimento da jovem Eliza Silva Samúdio. Estes
casos ocorreram em 2007 e 2010 respectivamente e tiveram ampla cobertura
midiática, permanecendo nas pautas dos telejornais por tempo relativamente longo.
A descrição dos casos nos parece pertinente por nos permitir adentrar nas
particularidades da veiculação pelas emissoras, o tratamento dado a cada um dos
casos pelos telejornais, a centralidade que obtiveram no cotidiano e, a dimensão
espetacular que os envolve.
4.1.1 Casos emblemáticos da cobertura de situações de violência de gênero pelos
telejornais
Caso 1 – Assassinato de Andréia Rodrigues (Rio Grande do Norte)
Andréia Rosângela Rodrigues, 37 anos, foi assassinada pelo marido Andrei
Thies, em 22 de agosto de 2007. Natural do Rio Grande do Sul morava em Natal
/RN com o marido e suas duas filhas (uma com 12 anos e a outra com 11 meses).
Seu corpo só foi encontrado dois meses depois do crime.
O TJ1 (local) cobriu de forma expressiva as investigações concentrado as
reportagens no mês de outubro66 daquele ano, principalmente após a prisão do
suspeito, o sargento Andrei Thies, marido da vítima. Progressivamente, os detalhes
da investigação são socializados com os telespectadores.
O delegado especial Raimundo Rolim que está apurando o caso do
desaparecimento da dona de casa Andréia Rosangela Rodrigues de
37 anos está em Porto Alegre há três dias. Ontem ele conversou com
familiares de Andréia no Palácio da policia gaúcha. Foi o encontro
65
66
Rio Grande do Norte
As reportagens disponibilizadas pelo TJ1 se concentram todas no mês de outubro, indo do dia 01
ao dia 30.10.07
93
com a filha dela de treze anos [...] uma das peças chaves da
investigação. O encontro foi no Centro Integrado de Atendimento à
Criança e Adolescente. O delegado foi colher informação e material
genético que pode ajudar na investigação de Andréia (18.10.2007).
Os pais e o irmão de Andrei também estão sendo investigados. Eles
prestaram depoimento ao delegado que preside o inquérito
(18.10.2007).
O corpo de Andréia foi localizado no quintal da casa dos pais de Andrei. Com
a descoberta do corpo, ele assume a responsabilidade no assassinato, mas tenta
inocentar os pais. O TJ1, datado de 30 de outubro, veicula os detalhes,
[...] as buscas na casa localizada na Rua São Mateus em Ponta
Negra, começaram por volta das 16h30 da tarde. Depois de
escavarem vários locais, policiais civis encontraram o corpo em uma
cova de aproximadamente 1m de profundidade o cadáver que
apresenta avançado estado de decomposição estava dentro de uma
capa de acampamento da aeronáutica. Nossa reportagem
acompanhou com exclusividade o momento em que funcionários do
ITEP fizeram as perícias no corpo.
[...] falei com Andrei ele já informou que realmente os pais não
sabiam de nada. (então ele confessou?) confessou e disse que os
pais não sabem de nada (entrevista com advogado de Andrei,
30.10.2007).
Conforme a matéria, no dia da morte de Andréia, o acusado havia discutido
com a esposa porque ela queria sair de casa para falar com familiares, ameaçando
ir embora. Matéria veiculada em jornal impresso da capital potiguar revela detalhes
do crime:
[...] Ao ouvir os gritos, o pai de Andrei (Hamilton) vai até a casa do
filho e os encontra discutindo. Nesse momento, Andrei pega filha
mais nova e leva para a mãe (dele) cuidar. Ao voltar encontra
Andréia desmaiada, segundo Hamilton (pai), eles haviam entrado em
luta corporal e ela acabou caindo e desmaiando. Andréia volta a
acordar e tenta fugir. Andrei segura-a com um golpe mata leão e
Hamilton desfere um golpe de faca a altura do pulmão. Colocam o
corpo no saco de dormir e depois na geladeira. Dia seguinte colocam
num freezer no local de trabalho de Hamilton. Quatro dias depois
enterram no quintal da casa onde reside Hamilton, Mariana (pais) e
Rodrigo (irmão).
A partir dos depoimentos e investigações, o delegado responsável pela
investigação (Sr. Rolim) conclui que Andrei assassinou Andréia com a ajuda da
família. Para a acusação, Andrei matou a esposa, tendo pais e irmão ajudado a
94
ocultar o corpo. Até o final da pesquisa o crime ainda não havia sido julgado67.
Após quatro anos, a história de Andréia se confunde com a de tantas
mulheres potiguares, rotineiramente humilhadas, espancadas e assassinadas por
seus maridos, namorados e companheiros. Reflete a desigualdade que perpassam
as relações afetivas/conjugais e espraiam-se por todas as esferas da vida social.
Exprime a dominação masculina sobre a vida e o corpo das mulheres, não
raramente, mutiladas e executadas por expressar seus desejos, sonhos e projetos.
Caso 2 – Desaparecimento de Eliza Samúdio (Minas Gerais)
A paranaense Eliza da Silva Samudio, 25 anos, desapareceu na data
provável de 04 de junho de 2010, após viajar para Minas Gerais onde de acordo
com as investigações, resolveria a questão da paternidade de seu filho. Desde
então, a jovem não foi mais vista. Indícios “apontam” para sua morte. Todavia, as
diversas buscas não obtêm êxito na localização do corpo da jovem. Seu filho foi
encontrado com uma amiga da ex-mulher de Bruno (suposto pai e mandante do
crime). Matéria divulgada no site R7.com (07.07.2010) relata o suposto assassinato da
jovem,
Após ouvir depoimento de dois suspeitos, a polícia diz que Eliza teria
sido sequestrada com seu filho no Rio de Janeiro no dia 4 de junho e
levada para Minas Gerais. Segundo a polícia, a jovem teria sido
mantida com o filho no sítio de Bruno e, dias depois, teria sido morta
na casa do ex-policial Marcos Aparecido dos Santos, em
Vespasiano, na região metropolitana de Belo Horizonte – MG.
O crime pareceu ser elucidado quando um menor, primo do acusado, revela à
polícia que Eliza teria sido assassinada, esquartejada e jogada aos cães. O crime
teria sido cometido pelo ex-policial Marcos. Macarrão (amigo de Bruno), o próprio
Bruno e o menor teriam presenciado parte do crime.
A história de Eliza tornara-se notícia jornalística quando, em 2009, a vítima
denuncia Bruno, por seqüestro, agressão e tentativa de aborto forçado (grávida de
67
O crime foi julgado no dia 22 de março de 2012. Andrei foi condenado a 18 anos de prisão e seus
pais condenados a 19 anos, tempo acrescido por ocultação e negação da participação. Fonte Tribuna
do Norte 22 de março de 2012, acesso em 12.06.12
95
cinco meses). O pai da criança seria o jogador. Na época, poucos telejornais
transmitiram a notícia. Em alguns sítios na internet, encontram-se registros sobre o
fato dentre os quais destacamos: “Bruno: “Ela quer 15 minutos de fama””68 (Extra,
25.08.2009); “Paranaense fala dos encontros com o jogador” (Extra, 25.08.2009);
“Bruno nega ter engravidado paranaense: “Vai ter de provar”” (G1, 26.08.2009);
“Goleiro do Flamengo acusado de ter sequestrado e ameaçado ex-namorada”
(Extra, 20.10.2009).
Em julho de 2010, Eliza volta a ser protagonista da agenda jornalística em
decorrência do seu desaparecimento e suposto envolvimento de Bruno no crime.
Nesse momento, o caso é objeto de notícia em diversos canais de televisão, nos
mais
variados
programas
televisivos.
Investigações,
prisões,
depoimentos,
acareações, tudo passa a ser noticiado.
No dia 07 de julho de 2010, o TJ2 veicula a prisão de Bruno e Luis Henrique
(Macarrão) como notícia de abertura do telejornal, explicitando toda a trajetória de
busca e apreensão dos acusados. Afirma à apresentadora:
O goleiro Bruno e o amigo Luiz Henrique Romão, conhecido como
Macarrão, estão nesse momento aqui na delegacia de Homicídios na
Barra da Tijuca, onde chegaram agora há pouco por volta de 7h15 da
noite. Bruno foi indiciado pela polícia do Rio como mandante do
seqüestro de Eliza Samudio, o amigo macarrão, o adolescente que
está apreendido em Minas Gerais são considerados pela polícia os
executores desse crime.
Em 09 de julho de 2010, o TJ3 faz uma retrospectiva da vida de Eliza. A
reportagem relata que a jovem queria ser “goleira” de futebol e, sonhava em ser
famosa (nas passarelas); logo, envolve-se com jogadores de futebol e conhece
Bruno. Destaca o telejornal:
68
Nota lançada à imprensa por Bruno veiculada na página do Jornal ExtraOnline em 25.08.2010:
"Esta será a primeira e última vez que vou falar sobre minha vida pessoal, mas faço questão de me
defender dos ataques absurdos que recebi desta moça que diz estar grávida de mim. Quem tem de
provar alguma coisa é ela e não eu. Se ela tem tanta certeza de que eu sou o pai do suposto filho
dela, por que ao invés de procurar os instrumentos legais que a justiça proporciona para pessoas
nesta situação, ela me ameaçou e depois concretizou essa ameaça procurando a imprensa? Não
reconheço essa paternidade e muito menos qualquer evento que possa tê-la gerado. Ela vai ter que
provar tudo o que está dizendo.na Justiça. Está claro que ela quer apenas seus 15 minutos de fama
às minhas custas. Como ela pode ter tanta certeza da paternidade se confessou à imprensa que
mantém relacionamento com vários jogadores de futebol? Estou tranqüilo, mas vou buscar uma
reparação".
96
A juventude foi marcada por dois grandes sonhos: as passarelas da
moda e os gramados. No histórico escolar no colégio público onde
estudou as notas mais altas eram as de educação física. Ela
começou a treinar futsal a posição escolhida foi a de goleira.
[...] seguindo a carreira de modelo, logo surgiram trabalhos no Rio de
Janeiro e foi numa festa ano passado que Eliza teria visto o goleiro
do [...] pela primeira vez.
A vida de Eliza continua sendo narrada nas telas de televisão em todo o país.
Em 11 de julho de 2010, o TJ4 veicula passagens de conversas mantidas por Eliza
com amigos/as em páginas da internet. Depoimentos sobre o crime são repetidos.
Referências à relação de cumplicidade entre Bruno e os amigos são realizadas.
Especialistas são entrevistados e, no último ato, a partir dos depoimentos e
investigações, são recriadas cenas e cenário do crime.
Segundo investigações, Bruno mandou matar a ex-amante, mãe de
um bebe de quatro meses, que seria filho do próprio jogador. Eliza
Samudio foi torturada, morta por asfixia e ainda esquartejada, de
acordo com as investigações.
O desaparecimento de Eliza mantém-se nas pautas dos telejornais,
concentrando-se nos dias que precederam a prisão dos envolvidos (entre 07 e 11 de
julho de 2010). Contudo, gradativamente, perde espaço para outros crimes, notícias
de corrupção e jogos de futebol até cair quase no esquecimento.
Podemos observar na exposição dos dois casos a crueldade que os
envolveram, a dimensão que tiveram nos telejornais, a exploração dimensões da
vida dos envolvidos. A mídia deteve-se em veicular: os detalhes dos crimes, prisões,
investigações. Deteve-se em elementos que pudessem atrair e captar a atenção
dos/as telespectadores/as, manter os índices de audiência e a confiabilidade de
seus patrocinadores.
A dimensão política da violência sofrida por Andreia e Eliza raramente é
identificada
nas
matérias
telejornalísticas.
Ao
contrário,
prevalecem
as
interpretações forjadas na moral conservadora que tendem a responsabilizar as
mulheres pela situação de violência vivenciada. Tratamento esse, revelado no nas
narrativas, interpretações e explicações dos casos, nas sanções jurídicas e no apelo
incisivo em encontrar justificativas para os crimes.
A dimensão espetacular é visível nas diversas emissoras de TV e nos mais
97
variados gêneros televisivos. As emissoras pesquisadas não fogem a regra, embora,
com especificidades próprias, em seus telejornais a violência adquire uma dimensão
dramática e comovente, envolvendo os/as espectadores/as nas narrativas e
cenários produzidos.
Partimos do pressuposto que a violência contra a mulher é um fenômeno
recorrente na sociedade vivenciado não apenas por Andréia e Eliza, mas por muitas
mulheres, e a televisão um veículo de comunicação com ampla centralidade na vida
cotidiana. Nesse sentido, faz-se imprescindível discutir o papel contraditório dos
telejornais no tratamento das expressões da violência contra a mulher, ao se colocar
como veículo de informação, mas contraditoriamente, agir na reprodução de
relações hierarquizadas e desiguais entre homens e mulheres, transmitindo visões
do senso comum e da ideologia dominante em nossa sociedade.
4.1.2 “A questão é que a realidade não pode ser escondida 69”: dramatização e
espetacularização da violência
A forma exagerada e melodramática como a mídia trata a violência tem
constituído conteúdo de muitos estudos e elaborações teóricas. De fato,
percebemos a exploração da violência nos diversos gêneros televisivos nas novelas,
nos filmes e, de forma mais acentuada, no telejornalismo. Como as emissoras
brasileiras são majoritariamente comerciais, a elaboração das notícias passa “[...]
pelo crivo de manuais de redação específicos e por políticas de andamento
empresarial” (GÓIS, 2010, p. 3). O processo de captação de fatos, produção e
edição das notícias até sua transmissão para o público leva o tempo mínimo
necessário para seguir a premissa “tempo é dinheiro”. Como ressalta a autora, “O
ritmo comercial exige rapidez, instantaneidade [...]. Quanto menos tempo, melhor”
(idem, p. 3).
A rapidez na veiculação da mensagem fragmenta e oculta dimensões da
realidade que poderiam explicar o fato noticiado nas suas dimensões gerais e
particulares. Vejamos o tempo de transmissão das reportagens nas tabelas
seguintes:
69
Expressão contida na fala de Versus, um dos nossos entrevistados.
98
TABELA 3 – TEMPO DAS REPORTAGENS CASO 1
Telejornal
Data
Tempo da Matéria
TJ1
11.10.07
2min40s
TJ1
18.10.07
2min30s
TJ1
18.10.07
2min28s
TJ1
22.10.07
1min15s
TJ1
26.10.07
2min48s
TJ1
30.10.07
3min
TJ1
30.10.07
1min
TJ1
30.10.07
1min
TABELA 4 – TEMPO DAS REPORTAGENS CASO 2
Telejornal
Data
Tempo da Matéria
TJ2
07.07.10
2min15s
TJ2
09.07.10
2min24s
TJ3
09.07.10
2min50s
TJ4
11.07.10
22min20
TJ5
15.10.09
2min
TJ5
08.07.10
9min
TJ6
09.07.10
16min
TJ7
05.07.10
5min21s
70
Como podemos observar as reportagens referentes ao caso 1 são mais
rápidas variando de 1min a 3min. No caso 2, o tempo de transmissão é mais longo,
chegando há 22 minutos (divididos em 04 partes). Contraditoriamente, a premissa
do tempo/dinheiro adquire outra dimensão: utiliza-se o tempo necessário para
manter o telespectador em frente à TV. Ao invés de variadas reportagens com
assuntos diversos, dedica-se mais tempo àquela notícia que capta a atenção do
público, nesse caso, o acompanhamento de um crime cruelmente arquitetado por
um “famoso” jogador de futebol. Porém, ainda que algumas reportagens tenham
70
É importante esclarecer que o TJ4 tem aproximadamente 2h de transmissão.
99
obtido mais tempo na grade dos telejornais, isto não resultou em maior qualificação
e aprofundamento da informação transmitida. Ao contrário, prevalece o caráter
sensacionalista e apelativo. O trecho seguinte é ilustrativo:
O TJ4 começa agora com uma investigação especial sobre o caso do
goleiro Bruno um ídolo do futebol, preso essa semana acusado de
cometer um dos crimes mais bárbaros da historia do Brasil. Segundo
investigações Bruno mandou matar a ex-amante mãe de um bebe de
quatro meses que seria filho do próprio jogador. Eliza Samudio foi
torturada, morta por asfixia e ainda esquartejada de acordo com as
investigações (11.07.10).
Como destaca Negrine (2011), a televisão tem passado por constantes
mudanças na programação, nas técnicas e na forma de enfocar os conteúdos
transmitidos. O meio foi modificado tecnicamente, tendo aumentado sua capacidade
e possibilidades de alcance: melhorias em equipamentos portáteis tornaram
possíveis transmissões instantâneas em situações dramáticas (como guerras, ou
conflitos); novos aparelhos com tecnologia avançada (HDTV 71, 3D) aumentam a
qualidade de recepção da imagem; implantação de sistemas de verificação
simultânea de audiência72; informatização dos processos possibilitam o aumento da
velocidade na captura dos fatos. Como podemos conferir na fala de Versus, redator
do TJ1:
Hoje, por exemplo, através do celular, a televisão está presente nos
mais variados espaços [...]. Houve esse aumento de alcance, essa
facilidade de tecnologias. Uma matéria de Mossoró, por exemplo,
que a gente faz de manhã, já entra no ar de manhã mesmo. A
tecnologia favorece a gente mostrar a realidade de imediato. Muito
volume também que além do material [...] chegar por telefone ou por
outro recurso, vídeo conferencia, skype.
O depoimento de nosso entrevistado mostra a centralidade que a televisão
71
HDTV ou TV em Alta Definição é um sistema de transmissão televisiva com uma resolução de tela
superior à dos formatos tradicionais (NTSC, SECAM, PAL) que permite maior resolução nas imagens
e nas cores. Outros aprimoramentos podem ser listados: imagens em 3D (três dimensões), TVs que
possibilitam acesso a internet e com as redes sociais.
72
A audiência dos programas de televisão é realizada através de um aparelho colocado em alguns
domicílios. Em São Paulo a averiguação é realizada em tempo real. Minuto a minuto os programas
que estão sendo assistidos em cada casa são transmitidos e codificados em sinais de rádio. Os sinais
seguem para uma central que recebe os dados enviados pelos domicílios e reúne esse "pacote" de
informações. Por sinais de rádio, internet ou linha telefônica, os números de audiência saem da
central e chegam às emissoras que pagam pelo serviço. Dessa forma as emissoras sabem como está
a audiência de um determinado programa no momento em que está sendo transmitido (fonte:
mundoestranho.abril.com.br).
100
obtém na vida cotidiana, “está no celular”, ou seja, ocupa variados espaços de
sociabilidade, (in)formando as pessoas. Trata-se de uma mercadoria que se
diferencia pela dupla funcionalidade no processo de acumulação capitalista: torna-se
objeto
de
consumo,
desenvolvendo-se
com
novos
atrativos
(modelos
multifuncionais, sistemas de sons e imagens, três dimensões) e, impulsiona o
consumismo, através do marketing e da publicidade.
Conforme Negrine (2011, p. 1), o poder de alcance e o uso de novas
tecnologias implicaram no aumento da espetacularização, “[...] inclusive, na grade de
jornalismo de muitas emissoras, as quais, mesmo de forma sutil, apresentam
programas de shows como forma de sedução do público”.
No primeiro caso, o principal conteúdo das matérias analisadas refere-se ao
processo investigativo Chega-se a simular a condução da investigação. Trecho da
reportagem explora aspectos do processo de investigação “[...] até mesmo uma
retroescavadeira está sendo utilizada” para encontrar o corpo de Andréia. O
equipamento deveria está “escavando” um local onde possivelmente o corpo da
dona de casa teria sido enterrado, uma zona de mata de aproximadamente 18 km
de propriedade das forças armadas. Contudo, as imagens transmitidas pela
reportagem mostram máquinas no meio de uma rua, de uma área urbana, como
indicam as fotos a seguir,
Figura 1. Simulação da investigação caso Andreia
Fonte TJ1
Figura 2. Reportagem sobre o caso Andreia
Fonte: TJ1
A reserva militar localiza-se nas proximidades do local onde a reportagem é
transmitida. Através das imagens e narrativas o telespectador pode se convencer
da veracidade da fala enunciada. Assim, apreendemos como os telejornais nos
101
transmitem recortes e/ou cenários construídos para melhor enquadrar na tela da TV
o fato enunciado (VIZEU, 2010). Não retratam a realidade, com a “objetividade” e
“neutralidade” que tentam fazer crer; apresentam uma versão dos acontecimentos e
de seus desdobramentos. Constroem e interferem nos cenários e fazem recortes de
falas segundo a visão que desejam passar aos telespectadores.
No segundo caso, as reportagens se detêm na prisão de Bruno e nos
detalhes do crime. O detalhamento e a explicitação de minúcias do crime constituem
elementos que captam a atenção do telespectador, mesmo que as mesmas
informações tenham sido repetidas diversas vezes em telejornais distintos. Como
podemos observar nos trechos a seguir.
Ah! Porque ela foi desossada... Meu Deus do Céu! Meus amigos, ela
foi desossada, a carne jogada para os animais... Inclusive tem uma
coisa que eu gostaria de confirmar com o senhor, porque, segundo o
seu sobrinho, foi o Neném que desossou essa jovem; ele sai com um
saco de aproximadamente vinte quilos e oferece aos cães e seu
sobrinho vê a mão de Eliza sendo dada a um cão, é verdade isso?
(Fala de apresentador do TJ5, 08.07.2010).
[...] Segundo Sergio no dia 9, Eliza e o Filho foram levados do sítio
por Macarrão, o adolescente e Bruno. O Adolescente contou que
eles teriam ido para um local parecido com um sítio, onde Neném
teria matado Eliza (narração, TJ2, 09.07.2010)
[segue-se a narração de trechos de entrevista coletiva] - Segundo
narrativas, pegou as mãos da Eliza cheirou as mãos da Eliza, depois
amarrou para trás. Aí ela falou assim: - eu não agüento mais
apanhar. Ele falou assim: você não vai mais apanhar, você vai
morrer (Delegado responsável pelo caso, TJ2, 09.07.2010)
É expressivo, no segundo trecho o apelo à comoção do telespectador. Este
aspecto parece ser explorado para assegurar melhor “venda” ao programa, na
linguagem e no formato apresentado e também, corresponde ao suposto desejo do
público que almeja atingir.
Esta dimensão é retomada um de nossos entrevistados, veja o fragmento,
As informações são veiculadas conforme o lucro que possam
promover. Como as empresas privadas estão sempre buscando o
lucro, elas tem que correr mais, fazer barulho, fazer o espetáculo
acontecer. Aí vão mostrar sangue, violência [...] para aumentar a
audiência (Pasquim, militante do Movimento Pela Democratização da
Comunicação)
A linguagem utilizada é simples e coloquial, aproximando-se o máximo
102
possível de um tom de conversa íntima, um papo entre amigos. Nos dois casos, as
transmissões das matérias são marcadas pelo caráter repetitivo, com foco no
desenrolar do processo investigativo. Cada nova reportagem reitera informações
anteriores, com poucas novidades.
Assim como Eliza, Bruno também teve sua vida exposta nas emissoras de
televisão. Contudo, as reportagens sobre o jogador enfatizam sua ascensão da
pobreza e abandono vivenciados na infância ao estrelato nos campos de futebol.
Trechos de reportagem do TJ6 (11.07.10) são reveladores:
[...] É surpreendente na história do goleiro bruno como ele saiu da
pobreza e do abandono dos pais atingiu o estrelato e agora fez tudo
desmoronar. Atrás da bola, o menino pobre foi longe. Bruno
Fernandes nasceu na periferia de Belo Horizonte e foi em Ribeirão
das Neves que cresceu criado pelo os avos, os pais o abandonaram
três dias depois do nascimento (TJ6 09.07.2010).
[...] Só aos 18 anos Bruno reencontrou o pai Maurílio que morreu
logo em seguida. A mãe também o procurou vinte anos depois de
deixá-lo.
[...] em 2006, foi emprestado ao flamengo e a história de sucesso
começou um ano depois. Pegou dois penalts da decisão do Estadual
contra o Botafogo e no ano passado como capitão do time foi um dos
responsáveis pela conquista do hexa-campeonato brasileiro com
defesas espetaculares, nascia um ídolo.
[...] Agora o menino que venceu a pobreza e vivia nesse casarão de
luxo [imagens da casa de Bruno], zona oeste do Rio vai passar a
noite numa cela, no estado onde nasceu.
Apesar da reportagem veicular que Bruno cometeu o crime, tenta enfatizar
dimensões de sua história de vida que tende a atenuar a gravidade do ato
cometido, justificado como uma excepcionalidade na vida de um “jovem” “sério”,
“batalhador”.
Diferentemente de Bruno, que conseguiu fama e dinheiro mediante seu
trabalho como jogador de futebol, a jovem paranaense “desde criança” queria ser
famosa. As narrativas sobre a vida de Eliza não buscam qualificá-la como uma
pessoa batalhadora e esforçada, mas uma “oportunista” que não mede esforços
para conseguir seus objetivos, nem que para isso se aproxime de um homem
casado e dele engravide.
A moral conservadora expressa nos veículos de comunicação reforça o poder
103
e domínio dos homens na sociedade patriarcal. Aos homens é dada a liberdade, a
vida pública. Às mulheres a castração dos desejos e a privação da liberdade. E,
aquelas mulheres que procuram romper com o domínio e a exploração execradas
pela sociedade. São as “Marias Chuteiras”, “aproveitadoras”, “vagabundas”.
Dando continuidade à investigação sem qualquer esforço para aprofundar a
problemática, no dia 08 de julho 2010, o TJ5, entrevista continua a investigação
sobre o desaparecimento de Eliza. No programa, é entrevistado o tio do
adolescente que denunciou o crime. A entrevista narra detalhes da investigação
sendo interrompida para mostrar a transferência de Bruno e Luis Henrique
(Macarrão) do Rio de Janeiro para Minas Gerais.
[...] A pergunta que eu faço ao senhor: a polícia já, nesse carro aí, a
polícia encontrou sangue e a polícia acredita que foi justamente
nesse carro que ocorreu o transporte do corpo?
[...] atenção tio! Eu queria pedir um pouco de atenção do senhor:
amplia a imagem do lado direito, você já está vendo, atenção: Bruno
e Macarrão, o Luiz Henrique, acabam de sair da Leopoldina do Rio
de Janeiro e estão seguindo agora nesse exato momento pela pista
seletiva da Av. Brasil na altura do bairro da Penha [...].
Na reportagem analisada, a prisão do goleiro parece obter mais interesse
para a emissora do que as informações prestadas pelo entrevistado. O fato de Bruno
ser uma “personalidade” do país contribui para aumentar os holofotes da mídia
sobre o caso.
O tratamento, uso (e abuso) de imagens destaca-se como mecanismo, que
nos conduz a questionar a dimensão ética no telejornalismo. De acordo com Vizeu
(2010), a união da imagem e do som possibilita à televisão descrever com mais
detalhes o fato noticiado. Na televisão “[...] não adianta querer mostrar o que a
imagem não diz, a gente tem que ter imagem, a imagem fala também”, aponta
Versus editor do TJ1. Assim, são exibidos corpos, sangue, dor e sofrimento sem
quaisquer constrangimentos éticos.
De acordo com Góis (2010, p. 07), “[...] a representação dos objetos e
pessoas data dos tempos pré-históricos, quando o homem gravou inscrições
rupestres”. A partir dessas assinaturas, “[...] foi possível estudar, analisar e especular
sobre a evolução, já que foram desenhados o cotidiano e o subjetivo da época: de
caçadas a astros, começava a relação com os símbolos visuais”.
104
Ainda conforme o autor (idem, p. 08) a digitalização, propiciada pelo
desenvolvimento tecnológico, transformou os símbolos visuais numa espécie de “[...]
conglomerados de dígitos ou pontos (pixels). A imagem do ponto de vista material
“não existe mais” (grifo do autor), podendo ser armazenada em arquivos digitais,
editadas, melhoradas”. Cabe indagar, do ponto de vista ético, em que medida se
pode intervir nas imagens, recompor cenas, etc; qual o limite do uso da tecnologia
nos processos investigativos, entre artifício técnico e manipulação para se forjar uma
“visão” acerca da realidade?
No telejornalismo, as novas tecnologias podem possibilitar, por exemplo, a
(re)criação e simulações dos casos noticiados a depender dos instrumentos
tecnológicos que a emissora disponha. Em maior ou menor grau, as imagens reais
ou produzidas a partir de fatos ou evidências são utilizadas na veiculação de
notícias.
O TJ1, por exemplo, utiliza imagens para informar sobre o momento em que o
corpo de Andréia foi encontrado pela polícia. O jornal exibe imagens do possível
local e do cadáver da vítima. A imagem (do corpo), apesar de captada de longe e
através das folhagens, produz a ideia daquilo enfatizado pela linguagem falada
expressa na matéria veiculada, como podemos observar nas imagens e no trecho a
seguir,
Depois de escavarem vários locais, policiais civis encontraram o
corpo em uma cova de aproximadamente 1m de profundidade o
cadáver que apresenta avançado estado de decomposição estava
dentro de uma capa de acampamento da aeronáutica. Nossa
reportagem acompanhou com exclusividade o momento em que
funcionário do ITEP fizeram as perícias no corpo (TJ1, 30.10.07)
O estado do corpo não permite inicialmente uma identificação, mas
com os indícios que já coletamos 99,9% [ de probabilidade] é de que
seja o corpo de Andréia (Delegado, TJ1, 30.10.07).
Segundo perito do Itep, Marcos Guimarães, apesar do corpo já se
encontrar em avançado estado de decomposição apresentava sinais
de estrangulamento e uma fratura no tórax. Além disso, também foi
constatado que as costelas da vítima estavam fraturadas (Repórter,
TJ1, 30.10.07).
No caso de Eliza Samúdio, a informática possibilitou a reprodução, ou
melhor, a reconstrução “fiel” do episódio envolvendo o seqüestro e a morte da
105
jovem. Como podemos visualizar nas figuras abaixo, através computação gráfica e
das informações do depoimento do adolescente envolvido no crime, o TJ6 produziu
uma “ilustração” dos últimos momentos de vida de Eliza.
Figura 3 – Eliza é levada do Rio para Minas Gerais.
Fonte: TJ4, disponível youtube.com
Figura 5 – Bruno chega ao sitio e manda que Luiz
Henrique e Sergio “resolvam o problema”.
Fonte: TJ4, disponível youtube.com
Figura 7 – Momento em que Marcos Aparecido amarra os
braços de Eliza e a sufoca.
Fonte: TJ4, disponível youtube.com
Figura 4 – Eliza sofre agressão do adolescente que
acompanhava a viajem, ficam marcas de sangue no
carro.
Fonte: TJ4, disponível youtube.com
Figura 6– Eliza é levada para um sítio alugado por
Marcos Aparecido (executor) em Vespasiano, região
metropolitana de Belo Horizonte.
Fonte: TJ4, disponível youtube.com
Figura 8 – Segundo depoimento do adolescente, Marcos
Aparecido esquarteja o corpo e dá aos cães. .
Fonte: TJ4, disponível youtube.com
106
Como podemos observar, as imagens buscam retratar desde o momento em
que Eliza foi levada para Minas Gerais até sua execução. Entre uma imagem e
outra, são exibidas no programa partes do depoimento, fotos dos acusados, e o
espaço geográfico, o cenário onde o crime ocorreu. No final da matéria, aspectos do
episódio são reafirmados pelo delegado, em seu depoimento: “[...] ele (Marcos)
cheira, pega suas mãos e coloca para trás” e afirma “você vai morrer”. Em outro
momento, TJ4 (11.07.2010) reconstitui o episódio usando atores contratados. O
crime se transforma em “entretenimento”: uma novela, com enredo, personagens e
um final (infeliz). Dentro do quadro jornalístico, misturam-se elementos da
dramaturgia, ingredientes que atraem o público e elevam a audiência (NEGRINE,
s/d).
De acordo Bucci (2005, p. 49), o “[...] telejornalismo é mais dramático que
factual. Organiza-se como ficção, e uma ficção primária: tem suspense, tem lição de
moral, tem mocinhos e bandidos”. Em se tratando de violência contra a mulher, aos
poucos os telejornais foram passando de “[...] defensores dos agressores (onde
mocinho e bandido se confundem) e passam a se constituir mais investigativos,
mesmo tratando-os como excepcionalidades” (BLAY, 2008).
Como salienta Blay (2008), no final da década de 1960, quando o
Movimento Feminista denunciava a invisibilidade da violência contra a mulher, a
mídia justificava e reiterava o fenômeno a partir de concepções conservadoras e
patriarcais. A “vítima” era sempre culpada; os assassinos, apresentados como
homens de bem, trabalhadores que agem por força da paixão, ou do “nervosismo”,
como afirma Andrei ao justificar a morte de Andréia. Tratam-se de crimes passionais
“[...] o único crime respeitável [...] que qualquer um (homem) comete” 73.
Como a mídia, não está isenta do movimento da realidade, aos poucos, em
seus conteúdos, passa a explicitar, ainda de forma sutil, as reações da sociedade.
Ainda que prevaleçam expressões conservadoras e culpabilizantes da mulher como
verão nos itens subsequentes, algumas iniciativas se propõem a discutir e
problematizar a violência contra a mulher.
Em julho de 2010, TJ4 (18.07.2010) produz matéria sobre a Lei Maria da
Penha. A efetividade da lei constitui foco central da reportagem, sendo tratada a
73
Depoimento de um delegado sobre o assassinato de Ângela Diniz. Cf. Blay, 2008.
107
partir do caso de Eliza Samúdio74. A matéria inicia-se como o questionamento:
“Porque a lei criada para proteger (mulheres) não consegue evitar tragédias como a
de Eliza Samudio?”. Ana Paula de Freitas, juíza; Carolina Bega, defensora pública;
Márcia Salgado, coordenadora das Delegacias da Mulher/SP e Rebecca
Reichmann, representante do Brasil no Fundo das Nações Unidas, são
entrevistadas.
Vídeos produzidos pelo programa denunciam as falhas no atendimento em
delegacias da mulher e equívocos de interpretação da lei. As entrevistadas
esclarecem a amplitude da lei (relacionamentos estáveis e eventuais); explicam o
que é “representação” e medidas de proteção (retirada do agressor do lar). No
entanto, identificamos alguns limites na reportagem, dentre eles: não se
problematiza a condição de trabalho dos/as profissionais nas DEAMs (estruturas
físicas,
material
de
trabalho,
salários, jornadas de
trabalhos e
etc.),
a
responsabilização do Estado na efetivação da Lei; as concepções e valores que
perpassam a decisão de juízes; os determinantes da violência.
Na perspectiva de discutir a violência vivenciada pelas mulheres, o
Programa Em Questão, da TV Gazeta produz um debate bastante profícuo sobre a
questão. Foram convidados/as Valderez Abbud, procuradora de Justiça; Rachel
Moreno, feminista, ONG Observatório da Mulher e, Diego Bragant, psicólogo.
Subsidiaram o debate reflexões sobre a sociedade patriarcal, perpassada pelas
relações desiguais de gênero e classe. Foram ainda discutidos os índices de
violência, a efetividade e os limites da legislação em vigor.
Os dois programas têm formatos diferentes: no primeiro, as reportagens são
construídas para enquadrar-se a um determinado tempo. Assim as falas são
reduzidas, são realizados cortes nos depoimentos que esvaziam mensagens;
mesclam-se entrevistas com imagens e dados, produzindo uma confusão de
sentidos. O segundo constitui um programa de entrevista-debate, não tem edição
das falas, as exposições dos entrevistados possibilitam a apreensão das
informações transmitidas. Este programa é qualitativamente melhor, transmite uma
quantidade maior de informações do que o primeiro, contudo, obtém menores
74
Eliza tem pedido de proteção negado pela juíza da Vara da Família de Jacarepaguá. Ver item
4.3.1.
108
índices de audiência, tendo em vista o poder de alcance das emissoras.
Por certo, nos meios de comunicação tradicionais no noticiário, em
particular, prevalecem os valores e concepções ideológicas das classes dominantes,
preponderam à dramatização e o melodrama. Todavia, não podemos negar as
possibilidades de discussão e abertura de pautas para um debate atento às
demandas da sociedade. Na mídia, especificamente, no telejornalismo, a violência
contra a mulher ainda é (in)visibilizada e tratada como excepcionalidade. Como
veremos nos itens subsequentes, mesmo predominam concepções estereotipadas e
preconceituosas, sutilmente dispostas nas imagens exibidas, nos discursos dos
repórteres, apresentadores e entrevistados.
4.2
“A DOR DA GENTE NÃO SAI NO JORNAL”: VIOLÊNCIA CONTRA A
MULHER NO NOTICIÁRIO TELEVISIVO
[...] Errou na dose
Errou no amor
Joana errou de João
Ninguém notou
Ninguém morou na dor que era o seu mal
A dor da gente não sai no jornal.
(Chico Buarque)
Esses dois crimes nos contam mais do que nos informaram a televisão e os
telejornais. Eles são emblemáticos porque ilustram a vida de muitas Marias,
Andréias, Penhas... Mulheres que ao tentar romper com a opressão e violência
acabam sofrendo as consequências e, muitas vezes, perdem a própria vida. E, não
raras vezes, são culpabilizadas, acusadas de infringir as regras da “sagrada família”,
responsabilizadas pelo crime do qual foram vitimas.
Embora os crimes analisados tenham ocorrido em situações e lugares
distintos, com diferentes sujeitos envolvidos, eles têm algo em comum: Eliza e
Andréia foram mortas por homens com quem mantinham e/ou haviam mantido
relacionamentos afetivos. Esses dois crimes ilustram a realidade de muitas mulheres
brasileiras, que foram assassinadas ao tentar realizar seus próprios desejos, romper
109
com a subordinação-opressão masculina, ou apenas exigir os direitos dos seus
filhos.
Nesse sentido, a discussão acerca do tratamento dado pelo telejornalismo à
violência contra a mulher ganha relevo por constituir fenômeno complexo
materializado na vida das mulheres, sob uma multiplicidade de formas e expressões.
4.2.1 “Quem nunca saiu na tapa com uma mulher?” 75: expressões de naturalização
e banalização da violência
Como afirma Camurça (2007), a prática da violência constitui um dos mais
antigos e usuais instrumentos da dominação patriarcal sobre as mulheres. Figura
como ameaça presente no cotidiano de milhares de mulheres que ousam desafiar o
padrão de comportamento feminino delas esperado. Por isto, tem sido uma prática
recorrente e contínua, tanto nos espaços privados (violência doméstica e sexual)
como nos espaços públicos. Como alerta Camurça,
De igual maneira, é instrumento de dominação o[e] controle sobre o
corpo das mulheres. Este controle é expresso na negação de sua
liberdade sexual, na limitação a sua autodeterminação reprodutiva,
na criminalização da prática do aborto (causa de milhares de mortes
de mulheres, todos os anos), na expropriação mercantil do corpo e
imagem das mulheres pela indústria da propaganda, da beleza, da
moda e do sexo. (CAMURÇA, 2007, p. 05)
Para Mirales (2009), a violência evidencia o controle sobre as mulheres,
mediante a utilização da força física ou coerção psicológica, demonstrando a
coisificação do gênero feminino. Como explica a autora (idem, p.128), no “[...] corpo
feminino encontram-se formas de objetivação da dominação-exploração através do
sexo e da reprodução. A dominação sexual e a reprodução decorrente de sua
prática sobrecaiu historicamente sobre as mulheres”.
Tecida no seio das relações sociais, a violência não tem distinção de cor,
classe social ou idade. Atinge não somente as mulheres, mas também seus filhos,
famílias. Não queremos dizer com isso que não apresente particularidades distintas
75
Comentário de Bruno em entrevista coletiva exibida pelo Jornal da Globo dia 09.07.2010
110
nas diversas esferas da vida cotidiana. Porém, se afirmamos que se constitui uma
das mais crueis e veladas expressão de violação dos direitos humanos das
mulheres uma vez que usurpa o direito de usufruir das liberdades fundamentais,
atingindo a sua dignidade e autoestima (FNED, 2006). Evidencia relações de
opressão elaboradas pelo patriarcado, mantidas e recriadas na sociedade
capitalista.
Para Queiroz (et all, 2006, p. 03), as formas de violência exercidas contra as
mulheres em razão de seu sexo são multiformes, ou seja,
Elas englobam todas as ações que pela ameaça, força ou
discriminação, as atingem, na vida privada ou pública, expressos por
intermédio de violências físicas, sexuais, psicológicos e
discriminações com a intenção de intimidar, punir e humilhar, ferindo
a integridade física e subjetiva das mulheres agredidas. Tais práticas
de violência ocorrem devido às relações de desigualdades existentes
entre homens e mulheres, pois por acreditarem que possuem
supremacia sobre as suas companheiras, os homens acabam
sentindo-se no direito de humilhá-las, espancá-las ou assassiná-las.
Identificamos no material analisado que antes de serem assassinadas
Andréia e Eliza também vivenciaram diversas formas de violência. Como apresenta
o Jornal Tribuna do Norte, em sua versão online:
O delegado Raimundo Rolim apurou que Andréia disse a uma amiga
que o militar costumava trancá-la em casa, até sem comida, num ato
de total controle sobre a mulher. Consta também em depoimento que
Andrei costumava sair com os pais e a bebê para passear, deixando
Andréia e a filha de 12 anos - fruto de um relacionamento anterior trancadas em casa (Tribuna do Norte online, 21.11.2007).
Em entrevista concedida ao TJ1(18.10.2007), a mãe adotiva revela que
Andréia tinha sofrido ameaças do marido, de acordo com os extratos seguintes:
Um dos depoimentos coletados até agora um chamou a atenção da
policia. Foi o depoimento Maria Lidia, mãe adotiva de Andréia. Ela
disse ao delegado Raimundo Rolim que a sua filha teria recebido
ameaça de morte do marido Andrei Thies, pouco antes do
desaparecimento (repórter).
- Andressa disse que presenciou essa discussão onde ela disse que
iria à na base aérea falar com o comandante e ele teria dito que se
ela fosse ele a mataria. E ele deu três socos na cabeça dela por
causa disso... Aí a Andressa foi dormir preocupada. Ai quando ela foi
à escola, ela ligou para outra minha filha dizendo que estava
111
preocupada que acontecesse alguma coisa com a mãe dela. No dia
seguinte, após a briga... No dia que ela desapareceu (mãe adotiva de
Andréia).
A situação de violência tambem é narrada em reportagem posterior (TJ1, 26.
10.07).
O diário de Andresa, filha mais velha de Andréia, desaparecida há 66
dias traz relatos surpreendentes de uma menina de 12 anos que pelo
que escreveu passava com a mãe momentos de dificuldades. E cita
varias Andrei Thies, o padrasto, que é citado pela policia como o
principal suspeito do desaparecimento da esposa como sendo
responsável por todo sofrimento, inclusive da mãe. Em trecho ela diz
que a mãe é agredida na cabeça por Andrei. Na manhã seguinte a
mãe diz que todo aquele sofrimento ia acabar, pois quando ela
voltasse do colégio, elas irão para Porto Alegre. Antes de Andressa
sair para o colégio, sua mãe se tranca no banheiro. Quando volta,
Andressa percebe que a luz do banheiro está acesa e ouvi gemidos,
pensa que é a mãe, mas é impedida de entrar em casa pelo sargento
Andrei. Em outro trecho do diário, a adolescente diz que tem
dificuldade de comer. De manhã não tinha nada, no almoço um
frango congelado. Isso um dia antes de Andréia fazer aniversário
(narração).
- Há relatos inclusive que a mãe do Andrei teria espancado Andréia
há cerca de 15 dias antes de eles virem morar nessa casa. Andréia
teria sido expulsa da casa da mãe exatamente por causa dessas
agressões da dona Mariana a mãe do sargento Andrei. Que teria não
só espancado Andréia como estaria mantendo ela em cárcere
privado (Delegado responsável pelas investigações).
Meses antes de “desaparecer”, Eliza sofrera ameaças do goleiro Bruno: “ele me deu dois bofetões na cara e falou assim”: não sei se te mato [...] se eu te
matar e te jogar em qualquer lugar não vão descobrir que fui eu” (TJ3, 09.07.2010).
Em agosto de 2009 Eliza anuncia publicamente que está grávida, o
pai seria bruno que não queria assumir a criança, nesta época que
começaram as brigas. Grávida de cinco meses ela foi à delegacia de
atendimento a mulher em Jacarepaguá e denunciou bruno por
agressão, segundo depoimento ela teria sido obrigada a tomar uma
substancia abortiva (Repórter).
Os fragmentos retratados revelam que as formas de violência não ocorrem
isoladamente, ou seja, evidenciam que os assassinatos de mulheres sucedem
agressões físicas, ameaças, privação de liberdade, dentre outros 76. Revelam da
76
Segundo a Lei Maria da Penha (11.340/2006) são formas de violência doméstica e familiar contra a
mulher: a) Violência física; b) Violência psicológica; c) Violência sexual; d) Violência patrimonial e, e)
112
mesma forma, o exercício do controle sobre as vidas das mulheres nas relações
afetivo-sexuais, mesmo que estas não estejam circunscritas à esfera conjugal, como
enuncia o caso 2. O fato da violência ocorrer freqüentemente nas relações
interpessoais (no âmbito privado) e ser praticada por pessoas com as quais as
vítimas mantêm/mantiveram relações afetivas não lhe retira o caráter político e,
portanto, público, devendo ser enfrentada mediante a elaboração de políticas
públicas, bem como ser repudiada por todos (as) que lutam pela emancipação
(QUEIROZ et al, 2006).
Nas décadas de 1960 e 1970, mediante denúncias de crimes “passionais” e
da impunidade que beneficiava os criminosos77, o debate sobre a violência contra a
mulher se intensifica no contexto político brasileiro. Os assassinatos, cujos motivos
apresentados eram relacionados a tentativas da mulher de romper com a relação
afetiva, quase sempre tinham a mesma justificativa: “matou por amor” (BLAY,
2003, grifos nossos). Como observa Blay (idem), a mídia (jornalística) era
complacente com o homem que cometia tais crimes. Não raras vezes, reproduzia os
valores morais e preconceitos que contribuíam para desqualificar a vítima, ou culpála pela própria morte78.
Nas primeiras décadas do século XXI, a violência contra a mulher tem obtido
destaque na grade de programação televisão: compõe um enredo de novela 79, tem
sido tema de debates de programas diversos e agenda nos noticiários. Algumas
mudanças podem ser observadas no tratamento da temática, pela TV, ao longo das
últimas décadas. Isto reflete a dinâmica social, as novas posturas e apreensões do
fenômeno.
No noticiário televisivo, entretanto, a busca pela audiência conduz a
Violência moral.
77
O assassinato de Ângela Diniz, em 1976, por Doca Street, seu noivo, se constitui um dos tantos
exemplos que poderíamos citar de impunidade. Inconformado com o rompimento do relacionamento,
Doca a mata, grávida de cinco meses. Em um primeiro julgamento, o assassino recebeu a pena
mínima de dois anos. Nos argumentos da defesa, Ângela Diniz passou a ser acusada de “denegrir os
bons costumes”, “ter vida desregrada”. Em um segundo julgamento, foi condenado a 15 anos de
detenção, com a participação intensa do Movimento Feminista.
78
“Ela sabia, sabia, por exemplo, que um de seus amantes seria mais homem do que os outros e lhe
daria o castigo – ou a vingança – que ela buscava, inconscientemente, ao longo de sua estranha
aventura feita de amor, delírio e vazio” [grifo da autora]. Trecho de reportagem publicada antes do
julgamento de Doca (BLAY, 2003).
79
Mulheres Apaixonadas (2003); A Favorita (2008); Fina Estampa (2011)
113
exposições e interpretações superficiais e pouco informativas sobre a temática da
violência, em especial, aquela perpetrada sobre as mulheres. O telejornalismo, não
raras vezes, psicologiza a violência. A relação crime/psicopatia é expressamente
utilizada pelos veículos de comunicação para explicar os casos de assassinatos de
mulheres.
Nos episódios de violência que catalogamos, identificamos algumas
narrativas com associações (implícitas/explicitas) a distúrbios psicológicos dos
agressores. Nos casos de Eliza e Andréia, logo surgiram especialistas para explicar
ao público o comportamento dos seus algozes.
O TJ6 (11.07.2010) convidou um psiquiatra, para explicar o comportamento
de Bruno, ao ser preso. Segundo o profissional, o acusado é uma pessoa fria
“altamente centrada”, “muito contido e com características muito próprias de pensar
em si mesmo”.
O jornal também, entrevistou um ex-técnico, para o qual Bruno já
demonstrava ser uma pessoa com indícios de problemas psicológicos. Conforme
explicita a fala seguir,
Ele (Bruno) sempre foi um atleta de potencial enorme, um potencial
desportivo enorme, mas sempre com muitas dificuldades
psicológicas, sempre com uma instabilidade muito grande. (extécnico, TJ6, em 09.07.2010).
Um indivíduo que não expressa desequilíbrio emocional. Isso mostra
que está pensando nele, não estar preocupado com quem morreu
com quem desapareceu [...]. (psiquiatra, TJ4, 11.10.2010)
No TJ1 os repórteres questionam a saúde mental de Andrei. Os trechos que
seguem são reveladores:
- Andrei é uma pessoa normal? Pergunta repórter.
- Ele é uma pessoa normal, só que há muitas contradições no
depoimento.
Não satisfeita com a resposta, pergunta (afirmando) outra repórter:
- O senhor vai inclusive pedir um exame psicológico, é isso?
- Vou pedir o exame psicológico dele, mas também do irmão que
114
aparenta alguns problemas mentais.
Nos dois programas jornalísticos, a intenção parece ser encontrar indícios de
distúrbios psicológicos nos agressores. Esse elemento é utilizado por diversos
programas televisivos e não contribui para desmistificar e dimensionar o problema.
Não é nossa intenção, negar a dimensão subjetiva que envolve a violência.
Contudo, explicá-la e justificá-la numa perspectiva subjetivista acaba por esvaziar a
dimensão objetiva que a envolve e determina. Tomar como verdade as explicações
veiculadas de muitas matérias com este viés poderia conduzir-nos a uma apreensão
do mundo, como mundo de psicopatas, haja vista, a incidência de violência contra a
mulher no país. Como afirma Silva, (2008, p. 268),
É preciso reconhecer que a violência apresenta-se heterogênea e
multifacetada e particulariza-se atingindo diferentes grupos sociais
(jovens, mulheres, idosos, famílias, grupos, movimentos sociais entre
outros), classes sociais diversas (dos miseráveis aos milionários –
ainda que, evidentemente, objetive-se com intensidades variadas e
conte com instrumentos de defesa igualmente diferentes e desiguais)
e imediatamente se manifesta por meio de marcas físicas ou
psicológicas, sentidas pelos indivíduos.
A repetição e a comparação com outros episódios já enunciados constitui
outro mecanismo de busca de convencimento preponderante no telejornalismo.
Assim, para enfatizar a “psicopatia” o TJ4 compara o caso de Bruno aos casos
Suzane Von Richthofen, e da menina Isabela Nardone. Como podemos visualizar
nos trechos a seguir:
Narração: Segundo o psiquiatra a frieza de Bruno é semelhante a de
Suzane Von Richthofen, condenada por tramar a morte dos próprios
pais e mais recentemente o caso de Isabela Nardone (11.10.2010).
Narração: o advogado criminalista e ex-policial Milton Dedinasque,
colecionador de crimes bárbaros, resume em uma frase o perfil
desses assassinos: eles são dissimulados, né? (11.10.2010).
Com essas afirmações, o telejornal transmite ao público uma explicação
óbvia e rápida para o caso veiculado. As falas dos/as entrevistados/as dão suporte
às afirmações dos/as repórteres e apresentadores/as e tentam assegurar
“credibilidade” à informação. Tendo em vista a necessidade da imediaticidade e
rapidez, a televisão em grande medida, não aprofunda as problemáticas por ela
suscitadas. Com isso, o/a telespectador/a é “bombardeado/a” por informações que
115
simplesmente não informam, mas dão-lhes a impressão de “saber tudo” que se
passa a sua volta.
Relatar o fato descrevendo seus detalhes não possibilita ao telespectador
apreender o real significado da informação transmitida. Como explica Vizeu (2010, p.
06), apesar de apresentar um discurso pormenorizado do fato noticioso, o telejornal
oculta “aspectos da realidade” impedindo que “os [as] telespectadores [as]
apreendam a totalidade do que lhes foi apresentado”.
Além de não possibilitar a apreensão das dimensões da violência contra a
mulher, o telejornalismo, contribui para naturalizar e, tratá-la como excepcionalidade,
tendo em vista que são veiculados apenas os casos mais bárbaros. O fenômeno
deixa, portanto, de ser algo corriqueiro nas relações entre homens e mulheres,
passando a ser um evento extraordinário, raro na sociedade. Com isso, o jornalismo
invisibiliza a violência contra a mulher, destituindo-a de sua dimensão política e
social.
A promoção da violência contra a mulher não parte somente das instâncias
midiáticas, tampouco é reproduzidas unicamente por estas. Está presente nas
músicas, como forró, pagode, funk dentre outros gêneros musicas, nas instituições e
organizações sociais, nas falas cotidianas dos sujeitos sociais.
- No dia anterior teve uma discussão, mas nada que eu fosse... Fazer
alguma coisa com ela (Andrei, entrevista, 18.10.2007)
- Eles não brigavam, briga de casal. De se agredir, não fisicamente,
ela às vezes dava nele sim, mas era briga e casal. Né?! Eu acho que
todo mundo passa por isso – Mariana, mãe de Andrei (30.07.2007).
- Qual de vocês aí que é casado que nunca brigou com mulher? Que
nunca discutiu, que nunca até saiu na mão com uma mulher, né
cara? Não tem jeito, em briga de marido e mulher ninguém mete a
colher, xará! (Bruno, jornal da globo 09.07.2010).
Nos trechos enunciados, identifica-se expressamente a naturalização de
situações de violência em relações afetivas conjugais. Revelam ainda, que os
avanços na sociedade, não significaram mudanças nas estruturas ideológicas que
tornam justificáveis e banais atitudes e condutas agressivas.
Essas falas reforçam aspectos do senso comum. No TJ1 não foram exibidos
outros comentários ou falas que se contrapusessem à afirmação de Mariana ou a de
116
Andrei. As narrativas e exposições da matéria não foram qualificadas e
aprofundadas, apenas enunciadas. O telejornal, portanto, não contribuiu para
desmistificar as concepções estereotipadas e naturalizantes do senso comum ou
mesmo gerar um possível debate em torno dos casos tratados.
Como
salienta
Pasquim,
jornalista
militante
do
movimento
de
democratização da mídia,
As informações que circulam nos meios de comunicação do nosso
país, majoritariamente, não falam para pessoas. Vários grandes
temas que não se passam na televisão brasileira. Ou se passam,
passam de forma enviesada. Uma mulher, por exemplo, que sofre
violência não recebe informações de forma adequada da sociedade
na televisão brasileira.
Entender a violência contra a mulher no movimento dinâmico do tecido
social, ou seja, a partir de suas relações antagônicas e contraditórias constitui
desafio premente. A violência contra a mulher tem uma dimensão política que não
se pode negar. É constitutiva das relações sociais e não produto da natureza
humana. Como já citamos anteriormente, constitui-se um complexo social expresso
de múltiplas formas, tem dimensões objetivas e subjetivas na vida de homens e
mulheres.
Com este entendimento nos propomos a desmistificar as interpretações que
explicam a violência a partir de observações superficiais e isoladas, como se esta
fosse uma manifestação puramente psicológica, um sintoma patológico resultado da
ação de individuo/os com tendências violentas, cujo enfrentamento, dar-se-ia a partir
de tratamentos e ações “cirúrgicas”, medicamentosas; ou como atos próprios da
condição humana.
Além de não possibilitar a apreensão das dimensões da violência contra a
mulher, o telejornalismo, contribui para naturalizar e, ainda, tratá-la como
excepcionalidade, tendo em vista que são veiculados apenas os casos mais
bárbaros. O fenômeno é, portanto, difundida nos telejornais sem a preocupação de
identificar as condições objetivas e subjetivas que a determinam e provocam. Tem
sido recriada e explorada muito mais com a finalidade de manter os índices da
audiência e consequentemente, garantir acordos publicitários.
117
4.3 OS FIOS (IN)VISÍVEIS80 DO PATRIARCADO NAS NARRATIVAS TELEVISIVAS
E JORNALÍSTICAS
No tempo em que a maçã foi inventada
antes da pólvora, da roda e do jornal
a mulher passou a ser culpada
pelos deslizes do pecado original
guardiã de todas as virtudes
santas e megeras, pecadoras e donzelas
filhas de Maria ou deusas lá de Hollywood
[...].
Joyce Moreno
Como mencionamos nas seções anteriores, a mídia e seus veículos
movimentam-se na dinâmica e na lógica da sociedade capitalista, respondendo
prioritariamente a interesses das classes dominantes. Nesse sentido, são
instrumentos por excelência de reprodução da racionalidade burguesa, cujo
horizonte atravessa todas as dimensões da vida social (SANTOS, 2010).
No Brasil, os meios de comunicação são concentrados e monopolizados por
um pequeno número de pessoas. Deste modo, as concepções, valores e interesses
desse grupo são disseminados para o conjunto da sociedade, apresentando-se
como necessários e inerentes à dinâmica da vida social.
A televisão tem se mostrado veículo de comunicação com grande
participação na vida das pessoas. É responsável pelo entretenimento e lazer de
parte significativa da população. Instrumento mediante o qual a população se
“informa” dos acontecimentos do país. Assim, com um grande poder de alcance, o
veículo participa da disseminação de valores que orientam a vida cotidiana dos
indivíduos. Reproduz estilos de vida a serem consumidos, sonhos almejados, cria e
recria necessidades de consumo cada vez mais supérfluas. Interfere na vida das
mulheres, reproduzindo estereótipos que, ancorados no senso comum materializamse na mercantilização e na exploração dos corpos e da subjetividade destas, seja na
publicidade, na moda, nos programas de entretenimento.
80
Paráfrase do livro “Os fios (in) visíveis da produção capitalista”: Maria Augusta Tavares, São
Paulo: Editora Cortez, 2004.
118
A participação da televisão e, sobretudo, dos telejornais na conformação de
estereótipos de gênero destaca-se como aspecto central de nossas reflexões para
apreendermos o fenômeno estudado em sua complexidade. Refletir e analisar os
fios (in) visíveis do sistema patriarcal contidos nas falas, expressões e imagens
veiculadas nas matérias catalogadas para buscar apreender seus condicionantes
coloca-se como desafio central para nossa pesquisa. Como veremos na sequência
deste texto, embora o caráter sensacionalista e espetacular no tratamento aos
episódios sobressaia, sutis aportes ideológicos e concepções moralistas que
compõem e sustentam a opressão das mulheres estão presentes no noticiário,
principalmente, no caso do desaparecimento de Eliza Samúdio.
4.3.1 Reprodução de desigualdades e estereótipos de gênero na/pela televisão
Nas últimas décadas, a forma estereotipada como as mulheres são tratadas
pelos veículos de comunicação tem constituído objeto de debate no Movimento
Feminista. Corpos coisificados na publicidade de cervejas, a exploração da
sexualidade no marketing televisivo, a criação de um “tipo de ideal” de mulher pela
indústria da moda e da estética, o tratamento dado a violência contra a mulher no
noticiário televisivo são modalidades de exploração e de disseminação de
estereótipos de mulheres questionadas em diversos eventos promovidos por
segmentos do movimento de mulheres, a exemplo o Seminário Mulher e Mídia, o
qual irá realizar sua 8ª edição e o Seminário sobre Controle Social da Imagem da
Mulher na Mídia81.
Majoritariamente,
as
reflexões
direcionam-se
para
a
questão
da
disseminação de estereótipos e mercantilização dos corpos das mulheres na
publicidade. Contudo, são pouco comuns análises interpretativas e pesquisas sobre
a cobertura dos casos de violência contra a mulher no âmbito do jornalismo (ou
81
O 8º Seminário Mulher e Mídia será realizado nos dias 29, 30/11 e 1º de dezembro de 2011 no Rio
de Janeiro. O tema do evento é Mídia, sexismo e racismo: uma pauta ainda em questão. Será
realizado pelo Instituto Patrícia Galvão em parceria com a Secretaria de Políticas para as Mulheres
(SPM), Secretaria de Política de Promoção a Igualdade Racial (SEPPIR), Fundação Ford e ONU
Mulheres.
O Seminário O controle Social na Mídia, ocorreu em 2008. Não encontramos registros das próximas
edições.
119
telejornalismo) (AZEVÊDO, 2010).
Já ponderamos nos itens anteriores, que violência contra mulher finca raízes
no sistema patriarcal e, nas desigualdades produzidas pelo processo de
(re)produção do capital, nas quais prevalecem o domínio do masculino e a
exploração das mulheres. No contexto da sociedade brasileira, as expressões do
patriarcado são veiculadas nos noticiário ao exibir crimes praticados contra
mulheres, mas também são reproduzidas nas narrativas e discursos jornalísticos.
São ainda disseminadas nas novelas, na publicidade, no entretenimento.
Conforme Scoot (1999), as identidades de gênero são constituídas a partir
de elaborações sociais sobre os sexos. Dessa forma, são fundamentadas
historicamente, com particularidades dos tempos históricos. Com o surgimento da
sociedade de classes (em sua fase burguesa) e patriarcal, tais relações são
perpassadas por relações de poder assimétricas e hierarquizadas, em que o
masculino se sobrepõe ao feminino numa relação de domínio-submissão-opressão.
De acordo com Toledo (2008), as relações econômicas produziram uma
superestrutura ideológica que sustenta a opressão e as relações de poder
antagônicas entre homens e mulheres. As crenças, os valores, os costumes, a
cultura contribuem para moldar e definir papeis diferenciados para cada categoria de
gênero.
O processo de subordinação, ao qual as mulheres estão submetidas, vem se
desenvolvendo ao longo de séculos. No Brasil colônia, por exemplo, a mulher
branca e rica desempenhava funções relacionadas à procriação e a supervisão das
atividades desenvolvidas pelas escravas e escravos no ambiente doméstico,
consideradas funções inerentes a sua condição e natureza (SILVA, 1992).
As mulheres negras, além de trabalhadoras escravas nos campos e casas
de senhores, serviam de reprodutoras de mão-de-obra escrava. Constituíam
mercadoria para os seus senhores, tinham “seus corpos violados pelos homens
livres e brancos” (idem, p. 64). Passado mais de um século da abolição da
escravatura, a condição da mulher negra no Brasil ainda apresenta marcas do
período servil. A televisão tem contribuído para a reprodução dos estereótipos da
mulher negra, assim como de brancas, ruivas. Porém podemos observar
particularidades. Enquanto as mulheres brancas geralmente assumem posição
120
“superior” (são donas de casa, casadas, empreendedoras), as negras, por sua vez,
permanecem na subalternidade do trabalho doméstico, sendo raras as vezes que
não desempenham esse papel. Contudo, independentemente da classe ou
raça/etnia a qual pertença à mulher, se exerce sobre ela uma opressão específica,
assumindo feições distintas a partir de sua inserção social.
No âmbito dos processos macroestruturais que conformam a totalidade da
vida social, a televisão reproduz em seus diversos programas o sistema de valores
ideo-políticos patriarcais e capitalistas. Prevalece a coisificação e a mercantilização
do corpo feminino, com a apropriação e a exploração da sexualidade e
sensualidade, observadas nos variados gêneros televisivos.
Partícipe da vida social, as TVs comerciais exploram preconceitos
construídos historicamente na sociedade brasileira, sobre mulheres, homossexuais,
negros e pobres. Nos programas de entretenimento como o Pânico na TV (Rede
TV), Legendários (Record) e Zorra Total (Globo), não faltam piadas que
desqualificam as mulheres (loira burra), caricaturam homossexuais (boiolas, viado,
bicha louca). Nesses programas são perceptíveis a apropriação dos corpos
femininos, marcados pela erotização e, dirigidos aos olhares masculinos.
As novelas estabelecem um perfil de mulher a ser desejado. Afirmam e
reafirmam um “padrão” único de mulher: alta, branca, magra... Um modelo
inalcançável e impositivo de beleza, haja vista a diversidade e a pluralidade que
compõem o país. E isto tem uma lógica. Não por acaso, o Brasil é o terceiro país
em números de cirurgias plásticas. As mulheres brasileiras correspondem a 82% 82
da demanda desses procedimentos estéticos. Neste sentido, a televisão colabora
para movimentar o mercado da beleza, em tempos de mercantilização exacerbada
das dimensões da vida humana, de individualismo e alienação e supervalorização
de padrão determinado de beleza física em um contexto de crise de valores.
Ademais, reforça a subalternidade e opressões entendidas como natural, e a
maternidade e o casamento como única fonte possível de realização pessoal.
Por um lado, a mídia se apropria da sensualidade e sexualidade das mulheres
atendendo aos interesses do mercado, por outro, a reprime e discrimina. Nos casos
82
“Uma pesquisa inédita feita pelo Ibope em todo o país estima que, no ano passado, foram
realizadas mais de 640 mil cirurgias plásticas no Brasil, 82%, em mulheres”. (“Brasil é o segundo país
em número de cirurgias plásticas” - G1.com. 30.04.2010)
121
investigados, identificamos que o livre exercício da sexualidade permanece sendo é
alvo de julgamentos morais. O tratamento dado ao caso de Eliza é revelador. Dentre
as nove matérias analisadas, oito utilizavam a expressão “ex-amante” para
identificar à jovem. A repetição da expressão foi definindo o lugar da jovem no
relacionamento com Bruno. Para o senso comum, ela era a “outra”, a “destruidora de
lares”, formulações conservadoras e moralistas que compõem o imaginário social,
legitimadas nas falas cotidianas83.
Como salienta Silva (1992), alguns comportamentos da mulher são
considerados provocações, utilizados muitas vezes como justificativas dos atos
violentos: não fazer tarefas domésticas; não dispensar a atenção e cuidados
considerados
desejáveis
aos
filhos;
contrapor-se
a
atitudes
do
marido/companheiro/namorado; negar-se a manter relações sexuais; mostrar-se
disposta a romper com o relacionamento; ter condutas consideradas “erradas” como
o livre exercício da sexualidade. Estas dimensões são destacadas e excetuadas de
seus contextos objetivos e subjetivos.
As construções relativas às práticas sexuais estão inscritas nas relações
patriarcais e de gênero que, por sua vez, demarcam lugares, influência atitudes e
práticas sociais determinadas. Dessa forma, nas sociedades patriarcais, foram
sendo construídas e, mantidas uma divisão em relação ao exercício da sexualidade
entre o masculino e feminino, uma vez que aos homens foi atribuído o direito de
separar afeto/amor e sexo. E, inversamente, para mulher destinado o papel da
reprodução e da negação do prazer (FEITOSA, 2011).
O controle sobre o corpo é instrumento histórico de dominação sobre as
mulheres. De acordo com Camurça (2007, p. 05),
Este controle é expresso na negação de sua liberdade sexual, na
limitação a sua autodeterminação reprodutiva, na criminalização da
prática do aborto (causa de milhares de mortes de mulheres, todos
os anos), na expropriação mercantil do corpo e imagem das
mulheres pela indústria da propaganda, da beleza, da moda e do
sexo.
83
Durante o processo investigativo nos deparamos com as mais variadas analises e comentários
sobre o caso, destacamos os que mais nos chamaram a atenção: “queria dar o golpe da barriga” “era
uma Maria chuteira” “tudo por causa de uma ordinária, se ela gosta de dinheiro que vá trabalhar
golpista chamada Eliza”, “foi dar o golpe da barriga... tai, se [...]! Espero que fique como exemplo as
milhares de mulheres que tentar fazer o mesmo” (comentários sobre as reportagens postadas no site
do youtube.com.br).
122
Para Silva (1992, p. 73), de forma implícita ou explicita, o desejo e o prazer
feminino são capturados. A autora destaca que: “Efetuam-se verdadeiros rituais de
castração do exercício da sexualidade feminina na dimensão do prazer”, reafirmadose o padrão “[...] de mulher-esposa-mãe colocado como num invólucro de santidade
a atender os interesses da preservação da ordem vigente”. A autora chama a
atenção para tais práticas, haja vista, que as mesmas contribuem para a reprodução
de concepções ideológicas em que a maternidade é um instinto inerente à natureza
feminina. Quando a mulher assume a sexualidade de forma livre, provoca as mais
diversas reações da sociedade. São-lhe atribuídos estereótipos, como “puta”,
“vagabunda”, “safada”. Eliza sofreu as conseqüências de transgredir as “regras”,
julgada e condenada nas diversas instâncias sociais.
Como relatamos no item 4.1, o envolvimento da jovem com o jogador é
publicizado, quando ela o denuncia por agressão, aproximadamente um ano antes
do seu desaparecimento. O fato é noticiado pelo TJ5 (15.10.09) que trata de divulgar
nota à imprensa na qual “Bruno nega as acusações e diz que não é a primeira vez
que Eliza tenta prejudicá-lo”.
A jovem não foi entrevistada pelo telejornal, não teve espaço para se
defender e refutar as acusações do goleiro. A palavra foi dada apenas ao jogador
que, por sua vez tratou de desqualificá-la. Na mesma reportagem, são exibidas
imagens posteriormente veiculadas por diversos telejornais da emissora.
Figura 09 - Imagem exibida duas vezes na
reportagem exibida no TJ5
Fonte:www.youtube.com
Figura 10 - Imagem exibida duas vezes na
reportagem do TJ5 e três vezes no TJ3
Fonte: www.youtube.com
123
Nas imagens veiculadas de Bruno pelo telejornal, o jogador está no centro
de treinamento do time no qual jogava, onde segundo a reportagem, estaria
treinando (em outras matérias o jogador também aparece em treinos e jogos). O
jornal expressa sua parcialidade no caso, expõe a vitima e explora as qualidades do
agressor, afinal, “é um excelente goleiro” afirma apresentador.
Figura 11. Bruno saindo de treino exibida no TJ5
Fonte: www.youtube.com
O TJ5 deixa dúvidas quanto à veracidade da denúncia apresentada por Eliza,
“[...] a delegacia então, da mulher, vai estar apurando este caso. Vai investigar, vai
ouvir testemunhas e saber na realidade o que está acontecendo”. Isto deveria ter
acontecido, no entanto, a investigação não foi realizada, ou melhor, tendo sido
concluída somente após o desaparecimento de Eliza. Agora, ou seja, tarde demais,
Inês é morta!
O “envolvimento com jogadores de futebol 84” também foi explorado pela
mídia (impressa e televisiva). Dentre os noticiários televisivos, O TJ3 anuncia a
relação entre Eliza e jogadores de futebol. Os trechos da notícia abaixo exploram
estas relações:
[...] Eliza começou a se envolver com jogadores de futebol, alguns
conhecidos internacionalmente, como o craque português Cristiano
Ronaldo (narração, TJ3, 07.09.2010) 85.
Nesta entrevista ela falou como chegava até eles [narração]. - Tem
jogador que pega e liga dos EUA... Pega seu telefone, sabe que você
84
“Caso Bruno: Eliza se orgulhava de ter beijado até Cristiano Ronaldo” - Extra Online. Publicado em
30.06.2010
85
Entrevista com Eliza veiculada Jornal Extra Online, exibida pelo TJ3.
124
já saiu com vários [depoimento de Eliza].
Sobre o contexto no qual conhecera Bruno, Eliza afirmar ter sido em uma
festa,
[...] aí minha amiga chegou e me falou que ele queria ficar comigo aí
eu falei: Ah deixa acontecer.
O enunciado da matéria não corresponde às afirmações de Eliza. Na versão
da jovem, eles (os jogadores) a procuravam e não o oposto. Porém, a ênfase dada
ao enunciado conduz a outra interpretação das informações contidas na matéria.
Embora a notícia esteja denunciando o crime do qual foi vítima, prevalecem posturas
machistas a respeito desta. Assim, o telejornal expressa os valores e concepções
patriarcais que se espraiam por toda a sociedade, reforçando-os e legitimando-os.
Em matéria publicada pela revista Veja 86, mais uma vez, Bruno tenta
promover uma imagem negativa de Eliza, alegando que a conheceu em uma “orgia”.
No entanto, não há constrangimentos por parte de Bruno em assumir que esse tipo
de evento, é comum em seu meio (entre jogadores de futebol). Trecho da
reportagem:
“Foi uma orgia só. Tinha homem, mulher, amigas dela, outros
jogadores, uma p... Essas festas são comuns no nosso meio. Depois
que ela disse que estava grávida, fui saber que todo o time do São
Paulo a conhecia, que ela já tinha feito filme pornô... Fiquei até
preocupado com a minha saúde, tanto que logo depois fiz exame de
HIV, mas estava tudo tranqüilo” (VEJA, julho 2010, p. 80).
O advogado de Bruno procura transformar a vítima em acusada, apontando
alguns “desvios” de caráter de Eliza: “Essa moça” afirma advogado, “é atriz pornô 87”.
Qualquer camelô de Belo Horizonte sabe que essa menina fazia
filme pornô. Que crédito tem o depoimento de uma pessoa dessas?
O comportamento dessa Eliza foge a qualquer padrão médio de ética
e moral da sociedade, disse Quaresma (O ESTADÃO online,
26.08.2010)
Para os padrões sociais conservadores, a conduta de Eliza era “imoral”,
como afirma o advogado, contudo, os jogadores que a procuravam não receberam o
86
Segundo a Pesquisa Hábitos de Informação da População Brasileira, 2010, a Veja (editora Abril) é
a revista mais lidas no país (50,4%).
87
O ESTADÃO, versão online, 26.08.2010.
125
mesmo julgamento. No terreno da cultura machista, os homens vivem sua
sexualidade livremente, enquanto as mulheres são castradas, alijadas de desfrutar o
prazer sexual. Nesse sentido, embora, o movimento do tempo histórico aliado às
lutas das mulheres tenha possibilitado mudanças efetivas no campo da sexualidade
das mulheres, prevalece o controle, o conservadorismo e o preconceito. Até mesmo
nos espaços onde procuram proteção.
Como inúmeras mulheres nesse país que procuram as DEAMs para
denunciar a situação de violência a qual estão submetidas, Eliza também procurou
proteção do Estado. Nove meses antes de “desaparecer”, denunciou Bruno por
seqüestro, cárcere privado e tentativa de aborto forçado. Contudo, não encontrou
proteção. Apesar da delegada ter solicitado as medidas protetivas, a juíza da Vara
de Família de Jacarepaguá/RJ negou à vítima o direito de proteção, justificando que
ela não poderia se beneficiar das medidas nem (sic) “[...] tentar punir o agressor sob
pena de banalizar a finalidade da Lei Maria da Penha”.
Para a Juíza, “ter ficado” com o jogador não significava um relacionamento
afetivo. Em reportagem exibida pelos telejornais, TJ4 e TJ7, a Juíza se justifica,
- No mesmo dia em que recebi a denuncia eu verifiquei que não era
da minha competência, porque a lei Maria da penha exige que a
mulher tenha uma relação intima de afeto duradoura. A declaração
dela na delegacia foi que ela “apenas ficou com ele”. Então, o que eu
fiz foi aplicar a lei e encaminhar para o juiz competente que era a
vara criminal. (depoimento da Juíza, TJ4 13.07.2010; G1)
A autoridade jurídica, no entanto, não anexou aos fatos que a jovem estava
grávida de cinco meses do jogador, que mantinha contato (mesmo que telefônico)
com acusado, com quem vinha “negociando” o reconhecimento da paternidade de
seu filho. O TJ7 não aprofundou a questão, ao contrário, reafirmou a posição da
juíza; segundo o apresentador do telejornal o “[...] presidente do tribunal de justiça
do rio, Luis Zveiter apoiou a decisão da Juíza Ana Paula de Freitas. Ressaltando
que ela agiu de acordo com a lei88”. Na reportagem89 não foram ouvidos outros
88
Conforme estabelece a Lei Maria da Penha se “configura violência doméstica e familiar contra a
mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico,
sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (art 5º). No texto, a violência doméstica/familiar
não exige que o agressor venha a morar junto da agredida ou que exista uma “relação estável”
(BRASIL, Lei 11.430/2006).
126
sujeitos.
A denúncia foi investigada e julgada meses após o desaparecimento de
Eliza. E, mesmo considerando Bruno culpado pelo seqüestro e agressão a jovem, o
juiz enfatizou a conduta moral da vítima. Como expressa parte da sentença,
publicada pelo site UOL em 07.12.2010.
[...] Seria hipocrisia fingir que os autos não revelam que a vítima
também tinha comportamento desajustado. Há registro nos autos
de que a vítima procurava envolvimento com muitos jogadores de
futebol. Neste ponto, não se define bem quem é vítima de quem. Se
os jogadores de futebol, embriagados pelo dinheiro e pela fama, são
vítimas de mulheres que os procuram com toda a sorte de
interesses. Se as mulheres que procuram os jogadores de futebol,
embriagadas pelo dinheiro e pela fama são vítimas deles. Nessa
relação, ninguém é muito inocente. Todos têm culpa (trecho da
sentença do Juiz). (grifos nossos)
A sentença sugere que a vítima também compartilhe da punição já que
“todos têm culpa”. Mais uma vez a vítima se torna ré. Eliza então teria provocado
sua própria morte? Ora, se a defesa da honra já não é mais justificativa para os
crimes contra mulheres, permanece presente a culpabilização da mulher pela
violência sofrida. Trata-se, deste modo, da influência das desigualdades de gênero e
de classe que buscam assegurar a superioridade masculina e, desconsiderar a luta
histórica das mulheres por igualdade e emancipação.
Podemos apreender que a violência contra a mulher se constitui um
fenômeno expressivo na nossa sociedade, constituindo, não raras vezes, pautas em
telejornais e outros programas televisivos. Todavia, além de prevalecer o tratamento
espetaculoso e novelesco dos crimes, não raras vezes as análises e interpretações
realizadas expressam valores e concepções machistas e preconceituosas. Desta
forma, apesar de, “visibilizar” o fenômeno não possibilita a apreensão de seus
determinantes.
89
Mas essa não foi à única matéria sobre caso. Lembremos que O Fantástico produziu reportagem,
ver item 4.2.
127
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa investigação buscou apreender as expressões patriarcais contidas nas
narrativas e discursos televisivos, em particular dos telejornais, no sentido de
desvelar as determinações que perpassam os noticiários, a elaboração e veiculação
das notícias sobre a violência contra a mulher. Longe de propormos conclusões
estanques, elencaremos algumas questões identificadas no processo de análise das
matérias catalogadas e nas entrevistas realizadas. A partir dos casos estudados,
confrontados à análise de resultados de pesquisa da mesma natureza, podemos
destacar três aspectos/questões centrais: a) a abordagem e o tratamento dados aos
casos de violência nos telejornais, particularmente, a violência contra a mulher; b) as
concepções ideológicas patriarcais que perpassam as narrativas veiculadas nos
telejornais e, c) as contradições que reverberam e provocam debates, sobre
demandas sociais demonstrando o caráter contraditório dos meios comunicação
Vimos que o sistema de mídia no Brasil concentra-se majoritariamente, nas
mãos de poucas famílias, constituindo um verdadeiro oligopólio midiático que,
embora disputem entre si, monopolizam a grande maioria dos processos de
produção e veiculação da informação. Embora, dependam de concessão pública, a
apropriação privada e a concentração de capitais prevalecem nas empresas de
comunicação. Nesse sentido, os media, são mecanismos de difusão da dominação
ideo-cultural capitalista, contribuindo para a reprodução das concepções de mundo,
ideologias e a ética que sustentam os interesses das classes dominantes.
Assim,
pudemos
apreender
que
a
televisão
brasileira
tem
sido
historicamente, comandada pelo capital; surge privatizada e assim permanece até
os dias atuais. O caráter comercial das emissoras de televisão concorre para a
crescente multiplicação de programas apelativos e sensacionalistas. Destarte, a
violência uma de suas principais mercadorias, encontra-se presente nos mais
variados gêneros e, de forma mais acentuada, nos telejornais.
Apesar de importantes mecanismos socializadores (muitos indispensáveis
nos dias atuais), os meios de comunicação de massa desempenham papel
importante para a manutenção da racionalidade das classes dominantes e, assim,
para o processo de acumulação capitalista.
As notícias constantes sobre eventos envolvendo violência destacam-se
128
como estratégia do telejornalismo para captar a atenção dos/as telespectadores e
manter os índices de audiência. É também, reflexo das disparidades sociais criadas
e recriadas no âmbito da sociedade capitalista. Cabe destacar que, nas redações, os
fatos são editados e adaptados ao tempo de agendamento disposto nos telejornais;
isso serve para recortar determinadas dimensões da realidade, dar ênfase ou
minimizar aspectos e elementos de processos por demais complexos e veiculá-la
como sendo a totalidade. O formato da produção noticiosa, tendo por base a
mercantilização da informação, não possibilita ao telespectador dados e informações
críticos sobre a realidade. A partir das frações do real que lhes são apresentadas
constrói conceitos, ideias e concepções sobre determinados aspectos da realidade,
muitas vezes preconceituosos e conservadores. Essa condição impõe limite à
apreensão critica das informações pelos/as telespectadores/as ou mesmo à
construção de um entendimento mais coerente e completo das notícias divulgadas.
Da mesma forma, observamos o tratamento dado à violência contra a
mulher nos noticiários televisivos. Identificamos a frequência de análises pontuais e
simplistas do fenômeno. Os casos analisados são repetidos em alguns telejornais,
revelando detalhes minuciosos do crime, sujeitos envolvidos, sentenças previstas de
modo fragmentado, por vezes capcioso.
Embora reconheçamos a publicização da violência vivenciada pelas vítimas,
mantêm-se invisíveis as relações sociais que condicionam e fundamentam. Como
nos casos investigados por Sales (2007) poderíamos indagar se não estamos diante
de uma (in)visibilidade perversa, com exposição de detalhes da vida privada,
supervalorizando aspectos que, na maioria das vezes, não são centrais, tornando
visíveis apenas marcas da violência e da barbárie na qual vivem sobretudo mulheres
do meio popular, objeto de interesse sobretudo de programas de âmbito local
Em geral, o fenômeno tem sido tratado como um episódio excepcional,
realizado por indivíduos particulares, circunscrito à esfera individual-subjetiva.
Todavia, salientamos que a violência atinge diretamente as mulheres independente
de classe, raça/etnia, orientação sexual ou geração, é um problema rotineiro na vida
cotidiana destas. Por certo, ocorre nos bairros “nobres” e nas periferias, embora a
materialização e as formas de enfrentamento sejam distintas nos diversos espaços.
Os trechos de reportagem que trouxemos no decorrer da quarta seção
129
demonstram a naturalização e banalização da violência através dos discursos
(entrevistados e dos próprios repórteres), culpabilizantes e subjetivistas na sua
interpretação/análise. Nos dois casos tratados observamos a associação dos crimes
praticados a distúrbios psicológicos dos envolvidos: frieza, dificuldades psicológicas
e instabilidade são com freqüência “justificativas” à prática da violência.
O segundo aspecto diz respeito à participação da televisão e do telejornal na
reprodução e afirmação de estereótipos e preconceitos sobre as mulheres. Reforça
a ideia de beleza que de longe compreende a diversidade que compõe a sociedade
brasileira. À condição feminina imposta pela sociedade burguesa soma-se a
supervalorização de um padrão estético. A mídia apropria-se de demandas das
mulheres (liberdade sexual, autonomia) explorando a sexualidade e sensualidade
destas
nas
novelas,
propagandas
e
programas
de
entretenimento.
Contraditoriamente, reforça preconceitos e recrimina, a depender dos interesses,
aquelas que exercem “livremente” sua sexualidade rompendo com os padrões e
normas sociais.
É importante observar o sistema de dominação-exploração é construído
historicamente, a partir de condições objetivas e subjetivas determinadas. Nesse
sentido, a cultura e os valores ideológicos que alicerçam a violência, ou seja, a
cultura machista e patriarcal, afloram em diversas circunstâncias, nos mais variados
espaços de sociabilidade, inclusive naqueles em que as mulheres procuram ajuda e
proteção.
Devemos salientar que as contradições que marcam nossa sociabilidade
também perpassam os meios de comunicação. Movimento importante torna-se
necessário para apreendê-los inseridos na dinâmica da vida cotidiana e, portanto,
atravessado pelas lutas e disputas de hegemonia. Nesse sentido, os mass media,
em alguma medida expõem também demandas sociais caras ao conjunto da
população reverberando em debates e discussões importantes ao processo de
apreensão crítica da realidade. Entretanto, há que se perceber que a forma como se
estruturam os sistemas de comunicação no Brasil é funcional ao processo de
acumulação do capital. Desse modo, prevalece a coisificação e a mercantilização
das relações sociais, espraiando-se o domínio do capital para todas as dimensões
subjetivas e objetivas da vida social.
130
Nesse sentido, a luta pela democratização da comunicação, assim como as
lutas feministas contra exploração e opressão das mulheres, não podem estar
desvinculada das lutas emancipatórias, com vista à construção de outra
sociabilidade, em que seja possível vivenciar a emancipação humana, a plena
realização das potencialidades de cada um e de cada uma e em que as formas de
violência não tenham mais lugar, porque sucumbiram desigualdades de classe, de
gênero, raça/etnia, orientação sexual, geração.
Questões éticas importantes subjazem o debate sobre a comunicação: a
difusão de interesses particulares e privados em detrimento de temas e fatos de
interesse coletivo; a exposição da vida privada de categorias sociais oprimidas; a
espetacularização do fato noticioso, com exploração de imagens degradantes e
“chocantes90” e, a criminalização dos movimentos e organizações sociais são
algumas das questões que permeiam a dimensão das implicações éticas da prática
jornalística “[...] em razão do fato de que os media detêm, em grande parte, o poder
de determinar o que é [ou não] noticia (SALES, 2009, p. 56). Nesse sentido, o
controle e regulação democráticos dos meios de comunicação figura como defesa
necessária no contexto atual, embora saibamos os limites impostos pelas
intransigências do modo vigente de produção da vida social
Como explicitamos no decorrer desse estudo, a violência contra a mulher é
resultado da legitimação social da opressão dos homens sobre as mulheres e dos
processos de exploração tecidos na dinâmica da produção e reprodução
sociometábolica do capital. É produto das hierarquias e opressões patriarcais
intensificadas e perpetuadas na sociedade capitalista. A apreensão crítica desta
realidade coloca-nos, ao mesmo tempo, diante de desafios importantes: combater as
desigualdades e preconceitos, e lutar por novas relações entre homens e mulheres,
entre homens e homens, mulheres e mulheres, sem desvincular das lutas pela
emancipação humana, por uma sociedade radicalmente livre e democrática. E
ainda, não abrir mão da luta por ampliação de direitos e por políticas sociais no
âmbito da sociedade capitalista como espaço de constituição de sujeitos críticos e
90
Não raras vezes são mostrados nos telejornais corpos amorfos, ensangüentados e sem vida, como
se tais imagens constituíssem a noticia em si, fossem toda a notícia. Promove-se um espetáculo
mistificador em detrimento do esclarecimento da população sobre o real significado daquelas
imagens.
131
conscientes, como mediação importante na construção de outra sociabilidade.
Esperamos com esse estudo instigar análises mais profundas das relações
patriarcais de gênero que tecidas no âmbito da sociedade capitalista condicionam as
diversas formas de violência perpetradas contra as mulheres. Ainda oferecer
elementos para a apreensão crítica dos processos comunicação entendidos como
imprescindíveis a vida coletiva, que apropriados e mercantilizados constituem-se
estratégicos aos interesses do capital.
No entanto, para que nossas propostas sejam desencadeadoras de um
processo de transformação radical da sociedade, é necessário romper com todas as
formas de internalização que dão suporte à lógica capitalista e patriarcal; significa
dizer que, necessariamente, temos que superar com o processo de produção
metabólica no qual a sociedade está submersa (MÉSZÁROS, 2009)
Por fim, é importante salientar que chegamos ao termino desse estudo com
a certeza de que todo final traz consigo novas indagações, novas possibilidades e
novos começos.
132
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