UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ESCOLA DE COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA ECO/UFRJ MESTRADO EM SISTEMAS SOCIAIS PATRÍCIA REIS DE ALMEIDA Narrativas e mitos na criação de marcas publicitárias Trabalho de conclusão do curso: “A fabulação da atualidade e veracidade jornalística” Professora: Raquel Paiva 1º SEMESTRE DE 2003 RIO DE JANEIRO / RJ Narrativas e mitos na criação de marcas publicitárias 1 - Fundamentos e definição de narrativa “Narrativa é todo e qualquer discurso que suscite como real um universo imaginário, material ou espiritual, apoiado em personagens ou na figura do próprio narrador” (Rabacca, 2001, p. 505). O texto narrativo, formado através da trama, do enredo e da intriga, é caracterizado pela sucessão de eventos. É uma seqüência de acontecimentos que deve sua lógica às repetições das ações, desencadeamento dos dos personagens personagens ou através dos dos detalhes fatos. da São descrição, no seqüências de acontecimentos que geram blocos semânticos coesos e organizados em ciclos. Outra característica dos textos narrativos é a repetição que se dá através de diversas figuras retóricas como a antítese – contraste que pressupõe uma parte idêntica em cada um dos dois termos; a gradação – evita a monotonia; e o paralelismo – constituído de duas seqüências que comportam elementos diferentes e semelhantes. Os acontecimentos narrados são apresentados de forma encadeada, sem direcionar à dedução das conclusões. O objetivo é estimular a curiosidade. A narrativa, segundo Ugo Volli, pode ser considerada, em geral, como um aparato que pretende retardar uma conclusão previsível dentro das convenções dadas. O tempo de retardamento, essencial para o prazer, deve ser analisado junto com as estruturas de tempo disponíveis socialmente. Da exigência de retardamento e de coerência derivam as estruturas das narrações: gradação – progressão lenta de vivência que retoma e complica a anterior; a caixa chinesa ou o anel – uma história que contém outra história que, por sua vez, contém outra, e assim por diante; ao espeto ou preparando o churrasco – vários episódios são ligados em seqüência, unidos pelo protagonista; e a estrutura paralela – organizada segundo diversos filões narrativos, colocados em equivalência, em paralelismo ou contrapostos. Já segundo Todorov (1973), as narrativas são compostas por situação inicial – informação sobre o cenário, ações de cada personagem e preparativos para ações futuras; desequilíbrio – fatos que desestabilizam o cenário; transformação – mudança total do cenário inicial com o clímax; resolução – processo de transformação cujas conseqüências são irreversíveis; e situação final – quando a aparente estabilidade é retomada, porém com cenário diferente do inicial. A audiência perceberá o sentido que existe numa narrativa no momento em que fizer a correlação dos elementos contidos na própria narrativa com os elementos de outras narrativas. Além dessa correspondência, a composição do campo cognitivo da audiência possibilitará a montagem do sentido. A interpretação dos elementos vai se construir a partir da personalidade, das posições ideológicas e da época em que esta vive. A narrativa não tem uma existência independente, pois está em um universo povoado por imagens e referências. Segundo Abril (1997, p.239), “o resultado do enunciado é uma propriedade discursiva”, ou seja, dentro da estrutura narrativa, o sentido está localizado no contexto, enquanto o significado, a capacidade interpretativa, estará no receptor ou no mediador. Quanto mais a narrativa está vinculada ao cotidiano maior será o seu sentido e seu grau de significação. A natureza da narrativa possui uma dimensão utilitária que pode estar num ensinamento moral, numa sugestão prática, num provérbio ou numa norma de vida. O narrador é um homem que sabe dar conselhos. Embora dar conselhos pareça algo antiquado, uma vez que as experiências deixaram de ser comunicáveis. A relação entre ouvinte e narrador é denominada pelo interesse comum de conservar o que está sendo narrado. A necessidade de preservação dos grupos sociais vem alimentando a criação e a perpetuação das narrativas. É através delas que a sociedade ocidental vem transmitindo de geração a geração seus princípios morais, comportamentais e éticos. Algumas narrativas são consideradas fundadoras da sociedade. Entre elas pode-se citar: - a Bíblia com seus ensinamentos morais os quais fundamentam o cristianismo, seja católico, protestante ou espírita, pois cada uma dessas religiões possuem a sua interpretação dos textos sagrados; - as fábulas infantis, e tem-se como exemplo a estória de Pinóquio que vive suas aventuras moralizantes, com seus fundamentos de convívio social, e que permite a leitura por públicos de diferentes idades.; - as narrativas das mil e uma noites com as histórias de Sherazade que nunca tinham fim; - as tragédias como Édipo Rei que ilustra a impotência humana diante do destino, retratando o sistema de crença da antiguidade clássica de forma forte e determinante para a civilização grega, e conseqüentemente, para a formação da sociedade ocidental; - Shakespare e a peça Hamelet que demonstra a fraqueza das estruturas familiares frente a busca do poder, colocando em cheque as relações familiares por uma ambição nociva e agressiva; - crime e castigo de Dostoievski, cuja narrativa é usada até hoje como fonte de inspiração filosófica para a montagem de processos judiciais, onde seus personagens são atormentados constantemente pelo inferno da dúvida, pelo flagelo do desafio à Deus e às leis; - Tchekhov e O jardim das cerejeiras com o painel da sociedade russa antes da revolução e o medo que os personagens tem da mudança e da incerteza. Algumas das qualidades da velha aristocracia como a delicadeza, a sensibilidade e o culto as tradições são realçadas como uma conquista do espírito, ao mesmo tempo que a lucidez de perceber a transformação que está ocorrendo na forma de vida daquela classe; - A montanha mágica de Thomas Mann que trata da desestruturação da civilização européia no final do séc XIX, trazendo um questionamento permanente, humano e profundo sobre os valores éticos, filosóficos, culturais e sociais; - Nelson Rodrigues com Vestido de noiva que denuncia as relações hipócritas e a falsidade que se esconde atrás da beleza da classe média, junto aos conflitos psicológicos do homem moderno, vítima de suas próprias ações, leis e preconceitos morais. Essas narrativas fundamentam a construção da sociedade ocidental. É através da reminiscência que a cadeia da tradição se funde, transmitindo os acontecimentos pelas gerações. “Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros narradores.” (Benjamin, 1994, p.211), O entrelaçado de elementos irá formar a memória narrativa. A difusão de princípios morais, éticos e comportamentais proporcionado pelas narrativas fundadoras fertilizaram o campo da criação dos mitos. Nesse momento já não é mais possível determinar o que se sobrepõe. As narrativas alimentam a criação e a manutenção dos mitos que por sua vez são peças fundamentais para a memória da narrativa. 2 - Definições de mitos “O mito está presente em toda a parte em que se constroem frases, em que se contam histórias, em todos os sentidos de suas expressões, da linguagem interior à conversão, do artigo de imprensa ao sermão político, do romance à imagem publicitária. Tudo pode ser abrangida pelo conceito lacaniano de imaginário”. (Barthes, 1984, p. 65) O sentido mitológico está presente em todas as formas de comunicação pois são eles que norteiam a formação da psique inconsciente com as imagens arquetípicas que dela surgem. Barthes em Mitologias (1957) 1 postula que o mito é uma forma de discurso, um sistema semiológico com sua modalidade de significação. Com base nos estudos de Joseph Campbell (Randazzo, 1996, p.59) os mitos atuam em quatro níveis: função mística – percebe a maravilha do universo e de nós mesmos levando à fascinação diante do mistério; função cosmológica – ajuda a entender o universo e o lugar que ocupamos nele; função sociológica – apóia e defende uma certa ordem social; e função pedagógica – leva a viver a vida sob qualquer circunstância. A base formadora da cultura ocidental está guardada na psique inconsciente. E é aqui que os mitos e os sonhos habitam. Nesse campo, os sonhos são constituídos pelas mitologias que rodearam a formação das pessoas, enquanto os mitos serão as projeções psíquicas que revelam a natureza da alma. Jung com seus estudos com pacientes psiquiátricos desenvolveu a idéia do inconsciente coletivo, onde imagens arquetípicas universais podem levar à origem da espécie humana. Para ele, as imagens arquetípicas estão profundamente arraigadas na espécie humana e funcionam como instintos que 1 Citado em A criação de mitos na publicidade de Ral Randazzo, pg. 57 controlam o comportamento. A idéia de inconsciente coletivo é o conceito necessário para se entender a influência dos mitos na psique humana. As pessoas precisam de mitologias para encontrarem um sentido de identidade, para que possam entender o que é importante e como devem se comportar na vida. Em outro nível, os mitos ajudam a proporcionar a ética e a manter o conjunto de normas relacionadas com determinado grupo social. O mito e as imagens arquetípicas rompem a intelectualidade humana a fim de despertar um contato com a alma. As mitologias podem atuar em diversos níveis, desde as simples histórias duradouras que divertem até a representatividade das imagens e temas universais que são encontrados em todas as culturas. Podem tratar de questões eternas, existenciais, ou ajudar a entender o universo e o lugar que se ocupa nele, como também sevem de guia por retratarem experiências anteriores. Segundo Barthes (1984), o mito contemporâneo vem sendo retratado pela imprensa e a publicidade como um determinante social, ou seja, um reflexo do comportamento social. Esse reflexo inverte a cultura em natureza, ou o social, cultural, ideológico e histórico em natural. “O mito contemporâneo é descontínuo: já não se enuncia em grandes narrativas constituídas, mas apenas em discursos. É, quando muito, uma fraseologia” (Barthes, 1984, p. 63). Com o crescimento dos meios de comunicação de massa, a responsabilidade da manutenção e da criação dos mitos foi transferida aquelas pessoas que conseguem tornar visíveis as fantasias simbólicas presentes na mente de cada membro da sociedade. Essa função foi assumida pelos artistas. A sociedade de consumo vai reconhecer a arte também nas criações publicitárias. 3 - Aplicação de mitos na criação de marcas A publicidade cria mundos mito-simbólicos nos quais as pessoas projetam seus sonhos, medos e fantasias. Para isso, recorre-se à psique inconsciente, aos sentimentos intuitivos na busca da inspiração. Assim como qualquer mitologia, o mito publicitário pode atuar em diversos níveis. Em alguns casos suas ações estão no nível da diversão, do entretenimento, enfeitando a realidade, em outros o mito pode estar na esfera sociológica que busca refletir e defender os valores culturais, e em casos mais específicos, a mitologia da publicidade pode atuar nível espiritual ou cosmológico a fim de alimentar a alma. Com a atual competitividade dos mercados retratada na grande quantidade de produtos similares, a mitologia das marcas busca os benefícios emocionais, sendo ao mesmo tempo informativas e transformativas. Elas trabalham em vários níveis comunicando atributos e benefícios e proporcionando resultados psicológicos e emocionais. A mitologia das marcas pode ser analisada sob os aspectos da categoria dos personagens, dos lugares e dos momentos míticos. Encontram-se exemplos de personagens míticos em diversas marcas publicitárias bem sucedidas que acabaram tornando-se ícones publicitários. Essa figuras retratam e transmitem os benefícios e atributos dos produtos, além de suas características psicológicas e emocionais. A publicidade pode não usar um personagem específico, mas arquétipos que o signifiquem. Temos a utilização de arquétipos como a “grande mãe” cuidadosa e amorosa; “a grande tia preta”, subproduto da grande mãe mas que incorpora também a segurança da qualidade; o arquétipo da donzela, da ninfa e da prostituta com suas imagens de beleza, ternura, sedução e pecado; a imagem da “nova mulher” independente, bem-sucedida e com estilo de vida excitante; da “super-mulher” que pode e faz tudo como profissional, mãe e amante. No campo das imagens masculinas tem-se arquétipos como o “grande pai” ou “Senex” e sua figura religiosa, de Deus, que representa tudo aquilo que é ordenado e estabelecido; o “guerreiro” e seu espírito pioneiro e de pistoleiro do velho oeste; o arquétipo do “mágico” que está relacionado ao do “palhaço/bobo”, enquanto o bobo faz rir, o mágico mistifica e renova o sentido das maravilhas das pessoas. Na categoria dos lugares, a publicidade pode usar desse recursos como amiúdes arquetípicos decorrentes das imagens universais. Nessa categoria tem-se a imagem dos “velhos e bons tempos” e sua referência com uma vida mais tranqüila sem correria; da “fazenda” e sua relação agreste, simples e honesta, onde trabalhar duro e se esforçar são coisas importantes; o arquétipo do “vale perdido” que é um recanto luxuriante, fértil e verde; e do “paraíso exótico” que gera a sensação de fuga para um mundo exótico. A categoria das ocasiões e temas míticos pode ser encontrada nas campanhas publicitárias com as imagens que refletem as emoções, por exemplo, do primeiro dia de aula e a entrada da criança no mundo. Também pode ser encontrada a categoria de temas nas associações de sentimentos e emoções muito comuns na publicidade. As peças publicitárias, quando criadas com o embasamento dos arquetípicos mitológicos, podem trazer uma das categorias descritas, como também, a composição de várias imagens de categorias diferentes na mesma criação O início do processo de criação publicitária deve ter como fundamento o planejamento de comunicação e a definição das estratégias de publicidade. Erroneamente alguns profissionais definem ações publicitárias baseadas em estratégias e objetivos de marketing. Embora a publicidade seja um dos elementos do processo de planejamento de marketing, ela deve ser elaborada com objetivos e estratégias próprios da sua natureza. A fonte de informação que irá direcionar o posicionamento da marca e a mensagem publicitária deve partir sempre do consumidor. É ele que vai definir o que espera ou deseja do produto. Suas idéias e percepções serão captadas através de pesquisas, nas quais os resultados direcionarão o local na mente do consumidor onde o produto vai se situar. É através da publicidade que o produto se fixa na mente do consumidor e estabelece um espaço perceptual, um espaço da marca. Cria-se personagens, lugares, momentos e mundos míticos inseridos na mitologia individual que comunicam os atributos e as vantagens dos produtos, posicionando a marca. As pesquisas realizadas junto aos consumidores somada a todo o conhecimento que a instituição possui a respeito do produto atualmente gera uma quantidade muito grande de informações. Quando se pensa na criação publicitária através das mitologias do consumidor deve-se ir além da fronteira da informação e transladar para o campo da percepção e das idéias, que pode acontecer em qualquer momento da coleta de dados. Segundo Randazzo (1996), as etapas do processo de criação podem ser definidas através: da especificação dos objetivos publicitários; da definição dos públicos pela sua demografia, geografia, psicografia e comportamento de uso; das revelações básicas acerca do consumidor; do posicionamento da marca no mercado e na mente do cliente; da definição da mensagem principal com os atributos e benefícios do produto, benefícios psicológicos e emocionais e a imagem do usuário; dos elementos que transcendem a mensagem como a imagem da marca, a personalidade, a alma e a mitologia da marca; e da realização de pesquisas que avaliem a marca e a concorrência. O processo criativo depende, além da percepção da equipe envolvida, do cumprimento das etapas aqui descritas. Uma publicidade que crie e sustente mitologias de marcas depende da coerência e da repetição. A publicidade cria e sustenta suas mensagens através do aprendizado associativo de idéias, imagens, símbolos e sentimentos. Ao associar coerentemente e repetidamente uma idéia a uma marca, o consumidor acaba associando a marca a sua rotina. Todas as ações de comunicação referentes ao produto, sejam publicitárias ou institucionais, sejam para o público direto, principal, ou para o secundário devem possuir a mesma diretriz, a mesma linha mestre. As escolhas feitas no momento de definição da marca e de seu posicionamento devem permanecer ativas em todas as ações de comunicação. Falta de coerência comunicacional, como também a dispersão de linguagens, criam confusões na mente do consumidor o qual já é bombardeado por infinitas mensagens no seu dia-a-dia. “As mitologias individuais que ajudam a moldar a mitologia da marca são basicamente uma forma de comunicação apresentada como história, uma ficção narrativa que usa personagens, situações e lugares fictícios para envolver e divertir o consumidor, comunicar atributos e benefícios do produto e posicionar perceptualmete a marca na mente do consumidor.” (Randazzo, 1996, p. 310 e 311) Referências bibliográficas: ABRIL, Gonzalo. Teoría general de la información. Datos, relatos y ritos. Ed. Cátedra, Madrid. 1997 BARTHES, Roland. O rumor da língua. Ed. 70. 1984 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política – ensaio sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas – vol1. Ed. Brasiliense, São Paulo. 1994 RABACA e BARBOSA, Carlos Alberto e Gustavo Guimarães. Dicionário de comunicação. Ed. Campus, Rio de Janeiro. 2001 RANDAZZO, Sal. A criação de mitos na publicidade. Como os publicitários usam o poder do mito e do simbolismo para criar marcas de sucesso. Ed. Rocco, Rio de Janeiro. 1996