arquitextos ISSN 1809-6298 - 124.03 ano 11, set. 2010 A cidade e as serras: Eça de Queiroz e a construção do pensamento ambiental Maria Fernanda Nóbrega dos Santos, Osmar Cavassan e Rosane Aparecida Gomes Battistelle O planejamento urbano e a relação entre as cidades e o meio ambiente são assuntos a serem amplamente discutidos, principalmente com a crescente e atual preocupação ambiental que transpassa todas as atividades humanas. Segundo Arruda (1), temas como: desenvolvimento sustentável; plano de gestão ambiental; conservação de recursos naturais; ética ecológica; proteção dos recursos naturais; meio antrópico; ambiente natural; cenários ambientais; ecologia urbana; fontes renováveis; biomassa e licenciamento ambiental; fazem parte de uma nova linguagem que os arquitetos estão tendo que apreender para atuar no mais novo mercado de trabalho mundial, o do planejamento urbano ambiental. Nessa linha de trabalho, o planejamento urbanístico da cidade deve estar prioritariamente vinculado ao estudo do meio ambiente em que a mesma está inserida, preocupando-se com os possíveis impactos ambientais que sua implantação e gestão poderão causar. Fase 1: Cidade sobrepõe-se ao Campo Movimentos Urbanísticos Pode-se dizer que o início do planejamento urbano se dá por volta do ano 2000 a.C. na construção da cidade da Babilônia. Nesta cidade, idealizada pelo rei Hamurábi as ruas já são retas e têm largura constante e os muros se recortam em ângulos retos. É claro que o surgimento das cidades data de época muito anterior a este período, como a cidade de Ur (na Mesopotâmia) que é considerada a mais antiga cidade que se tem registro, porém a cidade de Babilônia é um marco por causa de seu planejamento prévio (2). Já se percebe neste período, a vontade do homem de regularizar o traçado urbano e organizar o espaço segundo suas necessidades. Porém, quando surge o movimento renascentista, o planejamento urbano toma traços cada vez mais ousados na tentativa de racionalizar o espaço, por meio dos diversos tratados que foram escritos na época. Muitos destes tratados ainda hoje são estudados pelos arquitetos, como os famosos escritos deixados por Vitruvius. Os padrões de proporções e os princípios preconizados por Vitruvius “utilitas, venustas e firmitas”(utilidade, beleza e solidez) inauguraram a base da arquitetura clássica renascentista. As formas geométricas e racionais das ruas, quarteirões e praças que as cidades renascentistas adotam, são extremamente coerentes com a estética da época e podem ser facilmente visualizados na cidade de Florença na Itália. Quando o período dos grandes descobrimentos se iniciou no século XVI, muitos destes princípios foram trazidos para as novas cidades que estavam sendo fundadas na América pelos colonizadores. Os espanhóis foram extremamente metódicos na fundação de seus assentamentos e desenvolveram uma série de regras de planejamento urbano, o que não ocorreu da mesma forma com os colonizadores portugueses no Brasil. Pode-se dizer então, que os colonizadores ignoraram o modo como as comunidades indígenas estavam estabelecidas no território, bem como as questões físicas, quando impuseram seus modelos predeterminados de cidade (3). Com o tempo, os aglomerados urbanos foram crescendo cada vez mais, e a partir da revolução industrial, percebe-se a crescente ascendência das cidades e de seu planejamento calcado na racionalização do espaço. A indústria, as máquinas a vapor, a ferrovia, tudo isso vai transformando a cidade de forma cada vez mais rígida. Assim, foi em função do estado precário em que se encontravam as cidades no final do século XIX que se colocaram uma série de críticas ao sistema vigente de urbanização. Os bairros insalubres onde os trabalhadores residiam, a falta de espaços públicos de lazer, a necessidade de saneamento e o afastamento dos ambientes naturais, eram alguns dos pontos citados pelos urbanistas da época (4). A necessidade de planos urbanos se torna cada vez mais urgente, não somente pelas questões estéticas, mas também pelas questões de higiene e saúde pública. Deste modo, inúmeras reformas e planos urbanos foram desenvolvidos e colocados em prática neste período, como pode ser visto em Londres, Viena, Barcelona, Washington, dentre outras. Partilhando dos mesmos conceitos, também pode ser citada a mais paradigmática dessas intervenções, as reformas promovidas por Haussmann em Paris entre 1850 e 1870, que culminaram na construção da “cidade luz”, ícone da industrialização nascente, sendo a Torre Eiffel sendo seu símbolo máximo. Haussmann impõe um plano urbanístico grandioso à Paris, com amplas avenidas, praças e edifícios monumentais. Todos os cortiços do centro da cidade, onde os trabalhadores das indústrias moravam, foram derrubados para dar espaço à imponente Avenida Champs-Elysées. Fase 2: Campo sobrepõe-se à Cidade Movimentos Urbanísticos Após as grandes transformações provocadas pela Revolução Industrial, o aumento populacional, o crescimento desordenado das cidades e as maciças reformas urbanas implantadas para corrigir os problemas sanitários, surgem na Europa e nos Estados Unidos, uma nova filosofia urbanística, voltada essencialmente para a valorização do campo. Esse movimento, idealizado inicialmente por Ebenezer Howard e publicadas em seu livro Garden Cities of Tomorrow (5) em 1902, propõe a resolução dos grandes problemas que assolam as cidades – sociais e ambientais – por meio de um desenho urbano que estivesse mais associado à natureza. Para Howard, muitos destes problemas ocorrem justamente pela falta de vínculo entre as cidades e o campo. A cidade de Letchworth na Grã-Bretanha é considerada a primeira Cidade Jardim concebida nestes ideais. Fundada em 1903 pela Associação das Garden-Cities, serviu de modelo para inúmeros projetos urbanísticos. Como características comuns das Cidades Jardim, podem ser citados: o traçado informal e orgânico das ruas, os amplos recuos entre as edificações, os acessos secundários em cul de sac e a grande quantidade de jardins e passeios públicos, repletos de gramados e árvores. Assim, após a primeira guerra mundial, o conceito de Cidades Jardim foi cada vez mais difundido e gradualmente se tornou o movimento urbanístico mais utilizado no planejamento de novas cidades, principalmente para a reconstrução da Inglaterra (6). Posteriormente, o movimento foi se disseminado também nos Estados Unidos, onde foram produzidos diferentes planos urbanísticos baseados nestes princípios. Pode-se dizer que o projeto mais significativo, ou o mais conhecido, é o da cidade de Radburn, implantada em 1928, por Clarence Stein. A grande diferença que pode ser notada entre as Cidades Jardim inglesas e americanas é que, embora ambas tenham sido minuciosamente planejadas e projetadas, as segundas não possuem nem áreas para indústrias e nem para a agricultura. Por isso, nos Estados Unidos as Cidades Jardim se transformaram em “subúrbios jardins”, ou seja, são apenas bairros residenciais separados fisicamente do resto da cidade por áreas verdes. Assim, o que para Howard era uma qualidade das Cidades Jardim – a amplidão e grande quantidade de áreas verdes – torna-se uma crítica frequente à este modelo, em virtude do efeito de suburbanização que ele proporciona. As áreas residenciais, as zonas comerciais e os parques industriais se encontram tão distantes fisicamente que originam uma série de impactos ambientais: a dependência do automóvel para se locomover dentro da cidade; o aumento da poluição que o uso em grande escala do automóvel proporciona; a devastação da vegetação nativa e das terras agrícolas; a concentração da pobreza em algumas áreas da cidade e os altos custos de implantação deste modelo de urbanização (7). Fase 3: Conciliação entre Cidade e Campo Movimentos Urbanísticos O conceito de planejamento urbano das Cidades Jardim, separando cada função da cidade em uma zona diferente, tomou proporções cada vez maiores com o urbanismo moderno. Le Corbusier, importante arquiteto do movimento moderno, divide a cidade em quatro funções que devem estar prioritariamente separadas: habitação, trabalho, lazer e circulação. O planejamento da cidade de Brasília, por exemplo, foi diretamente influenciado por estes conceitos. Aos poucos, tanto o conceito romântico das Cidades Jardim de Howard, quanto os ideais utópicos do urbanismo moderno pregados por Le Corbusier, foram mostrando seus pontos fracos. Assim, em 1961 é lançado um dos livros mais importantes do urbanismo: The Death and Life of Great American Cities de Jane Jacobs (8). Este livro traz uma série de críticas ao urbanismo que foi implantado em larga escala no século XX nas cidades norte-americanas, no entanto, essa mesma crítica pode ser transposta para a maioria das grandes cidades mundo afora. Em função do distanciamento crítico de Jacobs, que não era nem arquiteta nem urbanista, a autora teve liberdade suficiente para escrever um dos mais importantes libelos contra o urbanismo moderno. Ou mais exatamente, das práticas urbanísticas originadas das propostas de Howard e suas Cidades Jardim, assim como das ideias de Le Corbusier (9). Segundo a autora, os problemas sociais e ambientais de que padecem as grandes cidades, são em boa parte, decorrentes de seu planejamento equivocado. A segregação da cidade em áreas destinadas a apenas um tipo de uso, como comercial, residencial ou industrial, criam zonas muito distantes entre si, além disso, estas regiões ficam ocupadas somente durante um período do dia (por exemplo, a área comercial fica movimentada de dia, enquanto as pessoas trabalham, mas fica vazia a noite, quando as pessoas vão para suas casas, como acontece nos centros) criando insegurança e violência. Dessa forma, todos os questionamentos a respeito do processo de planejamento das cidades, apresentados por Jacobs em 1961, ainda nos parecem muito familiares e atuais e, neste contexto, o urbanismo vai aos poucos perdendo a sua legitimidade e o sonho utópico de “refazer o mundo”. Ao mesmo tempo, diversos encontros, como as Habitats (Conferência Mundial sobre Assentamentos Humanos), são realizados ao redor do mundo, vinculados com a problemática da habitação social e do planejamento das cidades, porém com uma nova e cada vez mais presente abordagem: a questão do desenvolvimento sustentável das cidades (10). Aqui no Brasil, no ano de 1992, a ONU promove no Rio de Janeiro a conferencia sobre meio ambiente Rio-92, que discute além das questões ambientais, assuntos relacionados à gestão democrática das cidades, o direito de seus moradores à cidadania e a função social da cidade e da propriedade. E desse modo, novas preocupações vão sendo inseridas ao planejamento das cidades, transformando a ideia original de urbanismo em um processo muito mais amplo e complexo: questões sociais, ambientais, econômicas, físicas, climáticas, históricas, democráticas, legislativas, estéticas... Enfim, tudo isto faz parte do que hoje se pode chamar de “planejamento urbano sustentável”. Como parte deste novo ferramental para o planejamento das cidades, também pode ser citado o Estatuto das Cidades, lei que entrou em vigor em julho de 2001 e a criação dos diversos Planos Diretores Participativos nas cidades brasileiras, que buscam democratizar as decisões acerca do planejamento urbano. Pode-se dizer então que, assim como Jacinto em sua busca por equilibrar a cidade e o campo, o urbanismo também passou por diversos questionamentos nas últimas décadas, na busca de contrabalancear todos estes aspectos. 1 ARRUDA, Ângelo Marcos. O arquiteto e o planejamento ambiental e os riscos da falta de discussão. Arquitextos, São Paulo, 02.015, Vitruvius, ago 2001 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.015/860>. 2 MORENO, Julio. O futuro das cidades. São Paulo, Editora Senac, 2002. 3 Idem. 4 PILOTTO, Jane. Rede verde urbana: um instrumento de gestão ecológica. Tese (Doutorado em Engenharia de Produção). Florianópolis, UFSC, 2003. 5 HOWARD, Ebenezer. Garden cities of tomorrow. Cambridge Mass, MIT Press, 1965. 6 ANDRADE, Liza Maria Souza de. O conceito de Cidades-Jardins: uma adaptação para as cidades sustentáveis. Arquitextos, São Paulo, 04.042, Vitruvius, nov 2003 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.042/637>. 7 Idem. 8 JACOBS, Jane. The death and life of great American cities. New York, Random House, 1961. 9 SEGAWA, Hugo. Uma crítica ao modernismo urbanístico. Jornal da Tarde, São Paulo, 26 ago, 2000, p. 4. 10 MORENO, Julio. Op. cit. Sobre os autores Maria Fernanda N. Santos, arquiteta urbanista, mestranda em Eng. de Produção na área de Gestão Ambiental, UNESP/Bauru. Bolsista do CNPq, atua em pesquisas relacionadas a técnicas construtivas mais sustentáveis Osmar Cavassan, biólogo, mestre em Biologia Vegetal pelo IB/Rio Claro/UNESP e doutor em Ecologia pelo IB/UNICAMP. Docente no Departamento de Ciências Biológicas, UNESP/Bauru Rosane Battistelle, engenheira civil, mestrado em Eng. de Estruturas e doutorado em Ciências da Eng. Ambiental, USP/São Carlos. Docente do Departamento de Eng. Civil e da Pós-Graduação em Eng. de Produção, UNESP/Bauru.