(RE)CONSTRUINDO ÁGUAS DE SÃO PEDRO,
1
uma cidade-jardim
Ricardo Trevisan
Professor de Arquitetura e Urbanismo da UEG e doutorando da FAU-UnB / École d'Architecture Paris-Malaquais.
Ricardo Siloto da Silva
Professor de Engenharia Civil da UFSCar e doutor em História pela UNESP.
Resumo
Este artigo apresenta um estudo histórico sobre o planejamento da
cidade nova de Águas de São Pedro (São Paulo) e sua relação com
os conceitos da garden-city inglesa, elaborados por Ebenezer
Howard em fins do século XIX. Historicamente, o início do processo
de urbanização do território de Águas de São Pedro situa-se na
década de 1930, quando, devido ao intuito de determinados
empresários de aproveitar inúmeros poços de águas medicinais
existentes na região, ocorreu a instalação do primeiro balneário
medicinal e a implantação, em 1939, do plano urbano – desenhado
pelo engenheiro civil Jorge de Macedo Vieira, defensor da
utilização dos conceitos howardianos no projeto da cidade. Assim,
esta pesquisa agrega-se a outras que estudam a utilização desta
tipologia urbana no Brasil, contribuindo para ampliar os
conhecimentos sobre uma escola que se fez presente na história do
urbanismo nacional.
Palavras-chave: história do urbanismo; cidade-jardim; estância
hidromineral de Águas de São Pedro.
Abstract
Keywords: urban history; garden-city concepts; Águas de São
Pedro; bathing-town.
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This paper presents a historical study about the urban planning of
Águas de São Pedro (a new town located in the state of São Paulo)
and its relation to the garden-city concepts, elaborated by Ebenezer
Howard at the end of XIX Century. Historically, the town planning
process begun in Águas de São Pedro´s territory during the 1930s,
when some lucid businessmen showed the interest to take
advantage of the high amount of mineral water sources in the area
which served for disease treatment. Later, the place turned into a
bathing-town. In 1939, the project about which it is possible to
identify major influences from the garden-city movement – designed
by the urban engineer Jorge de Macedo Vieira –, was implemented.
This research, therefore, intends to add to other studies related to
the use of the garden-city urban typology in Brazil, contributing,
thus, to enhance the knowledge about a school that performed an
active role in the history of Brazilian urbanism.
Introdução: um olhar histórico e suas especificidades
(Re)Construindo Águas de São Pedro, uma cidade-jardim é um estudo
histórico inserido num contexto de relações e interconexões socioculturais, no
qual, para uma abrangente leitura do projeto urbanístico de Águas de São Pedro
(ASP), procurou-se desvendar seus múltiplos significados. Para essa empreitada,
seguiu-se a orientação de Hall (1995), quando afirma que
“[…] penetrar no mundo cultural e social em que o mesmo
viveu, já desvanecido, e de onde tirou o material essencial às
suas percepções, com costumes diferentes e uma visão
diferente da condição humana, é investir na tentativa de
reconstrução do universo mental que povoava as aspirações
desses 'construtores de cidades' do princípio do século”.
A (re)construção de um objeto a partir de uma investigação histórica das
partes que o compõem consiste numa construção analítica provisória – nunca
definitiva –, permeada de riscos – dados não-verídicos – e realizada sobre um
percurso “labiríntico” – de incertezas –, segundo Tafuri (1984). Do mesmo modo,
deve-se ressaltar que o agente responsável por essa jornada, utilizando-se de um
conhecimento interpretativo dos fatos, terá influência direta sobre os resultados
obtidos, uma vez que seu repertório e seu universo temporal são únicos.
Ainda para Tafuri, o trabalho histórico dá-se num campo de tensões pela
busca de respostas para os acontecimentos (“projeto de uma crise”). Essas
tensões são geradas pela diversidade e especificidade dos instrumentos utilizados
para a desconstrução da realidade captada: disciplinas, técnicas, linguagens,
instrumentos analíticos e estruturas de largo período de tempo. A desconstrução,
passo a passo, da linearidade e dos dados, dos vestígios e dos sinais existentes a
partir desses instrumentos permite ter-se uma nova apreensão acerca do elemento
em estudo, entendendo-se que essa apreensão não será nunca a resposta
definitiva, pois novas e diferentes leituras poderão ser feitas.
Assim, o reconhecimento das incertezas, das lacunas, do distanciamento
temporal entre sujeito e objeto de análise, da incapacidade de se obter a verdade
universal e definitiva, da insegurança que o trabalho histórico revela possibilita ao
investigador não somente criar uma leitura aberta sobre o tema como também
incentivar outros agentes a reformular suas concepções, propor novos caminhos
de discussão, criticar as argüições elaboradas, enfim estimular a produção de
informações sobre o objeto em estudo.
Sabe-se que a reconstrução do universo que se fez presente numa
determinada época é necessariamente parcial, no entanto ela pode ser feita de
modo coerente e relevante, como Thompson (1981) certifica:
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“O conhecimento histórico é, pela sua natureza, (a) provisório
e incompleto (mas não, por isso, inverídico), (b) seletivo (mas
não, por isso, inverídico), (c) limitado e definido pelas
perguntas feitas à evidência (e os conceitos que informam
essas perguntas), e, portanto, só 'verdadeiro' dentro do campo
assim definido”.
Consciente dessa pluralidade de significados, das limitações e da
fragilidade das estruturas que compõem a pesquisa histórica, da transformação
que a história exerce sobre si mesma e da desconstrução que faz sobre o real
consolidado, esta pesquisa se debruçou sobre o universo histórico do período de
criação da estância hidromineral de ASP, buscando responder a questões que
pudessem aproximar-nos ao máximo de sua realidade. Dentre essas indagações,
algumas consideradas centrais, instigadoras e delimitadoras do problema de
pesquisa são apresentadas a seguir: 1) O que é cidade-jardim? Qual a sua origem,
suas características e suas dissonâncias?; 2) Como ocorreu, no Brasil, a
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incorporação dos princípios e das diretrizes que compuseram a proposta original
de cidade-jardim? Qual o contexto econômico, político, social, cultural e urbanístico
do período em que isso ocorreu (início do século XX)?; 3) Qual o papel
desempenhado pelo engenheiro Jorge de Macedo Vieira nesse processo e como
ele recebeu e articulou o conceito de cidade-jardim?; 4) Quais os agentes/sujeitos
envolvidos na criação da estância hidromineral de ASP?; e 5) Como foi a utilização
do modelo cidade-jardim na estância?
Certamente, para a obtenção das respostas às perguntas formuladas, a
pesquisa utilizou fontes e métodos, por vezes, não usuais na historiografia
clássica. A propósito disso, recorrendo às palavras de Burke (1992):
“Os maiores problemas para os novos historiadores são
certamente aqueles das fontes e dos métodos. Já foi sugerido
que quando os historiadores começam a fazer novos tipos de
perguntas sobre o passado, para escolher novos objetos de
pesquisa, tiveram de buscar novos tipos de fontes, para
suplementar os documentos oficiais. Alguns se voltaram para a
história oral; outros à evidência das imagens; outros à
estatística. Também se provou possível reler alguns tipos de
registros oficiais de novas maneiras. […] Há também a cultura
popular e a cultura material, instrumentos para a leitura da
história de uma nova forma”.
Diferentes objetos, tempos, métodos e fontes permitem a construção de
“várias histórias” – história social, história cultural, história material, história das
mentalidades, história econômica, história regional e história urbana. Nesse
sentido, Mumford (1982) salienta:
“[…] situaremos em bases falsas todo problema da natureza da
cidade, se procurarmos apenas estruturas permanentes,
amontoadas por trás de muralhas. […] Se quisermos identificar
a cidade, devemos seguir a trilha para trás, partindo das mais
completas estruturas e funções urbanas conhecidas, para os
seus componentes originários, por mais remotos que se
apresentem no tempo, no espaço e na cultura […]”.
Articulando essa multiplicidade histórica como método de desconstrução e
de leitura do objeto de estudo e de sua domada reconstrução, o olhar histórico deste
ensaio se focou, então, na escolha do recorte temporal. Lepetit (2001) trabalhou a
questão temporal para estudos urbanos através de métodos que sobrepunham
diferentes genealogias, pertencentes a uma mesma cidade e seu espaço. Essa
sobreposição de layers temporais, ancorados num espaço comum, produziria,
portanto, uma trama histórica mais próxima do processo de conformação exata
sobre a cidade focada. Neste trabalho, porém, esse artifício metodológico se deu de
forma diferenciada, pois o objeto empírico apresenta uma distinta particularidade: a
marca de um ponto temporal inicial – a inauguração da cidade.
Le Corbusier (1993), quando se referiu à historiografia, em A Carta de
Atenas, na década de 1930, ponderou:
“A história é inscrita nos traçados e nas arquiteturas das
cidades. Aquilo que dela subsiste forma o fio condutor que,
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ASP surgiu como uma cidade nova, em fins dos anos 1930, tendo sua
materialidade fixada sobre um espaço até então in natura (ocupado apenas por
matas ou fazendas), uma tábula rasa que ganhou forma num único golpe dado por
seus empreendedores. Sendo assim, a sobreposição genealógica prevista por
Lepetit (2001), nesta pesquisa, foi criteriosamente deslocada no espaço, lançando
âncoras a outras regiões de interesse, para que se pudesse alcançar, pela leitura
histórica dessas espacialidades, a origem e os motivos que proporcionaram a
criação da estância e suas características projetuais.
juntamente com os textos e os documentos gráficos, permite a
representação de imagens sucessivas do passado”.
Mas o que fazer quando uma cidade não apresenta traçado, quanto mais
arquitetura? Que recorte temporal se deve adotar, nesse caso, para uma leitura mais
adequada do objeto empírico?
Quanto à delimitação do período estudado, a pesquisa se diferencia dos
trabalhos históricos que focam cidades constituídas ao longo de décadas, séculos,
milênios. Embora uma cidade nova planejada tenha um marco temporal preciso,
isso não significa que sua história se inicie somente a partir desse ponto. A cidade
sem passado é utópica, mesmo tendo sido gerada num curto espaço de tempo.
Sabe-se que, para qualquer nascimento, existe um estágio fetal e os antecedentes
que levaram a sua concepção. Declarar que uma cidade não tem passado é
restringir-se apenas ao seu aspecto físico, aquilo que se coloca como humanamente
visível. Aqui a busca foi além da materialidade física, encontrando na sociedade da
virada do século XIX e nas três décadas subseqüentes uma trama de fenômenos
que permitiram a montagem de um quadro histórico para a devida análise de ASP.
A seguir, as atenções serão direcionadas para as estruturas que
conformaram os alicerces de sustentação dessa cidade nova, como também serão
pontuados, ao longo do artigo, aspectos que fizeram desse plano urbanístico um
exemplar da tipologia urbanística inglesa cidade-jardim, formulada por Ebenezer
Howard em 1898.
A origem de Águas de São Pedro
A estância hidromineral de Águas de São Pedro (Figura 1), projetada e
construída a partir do final da década de 1930 no interior do estado de São Paulo,
tornou-se referência nacional pela sua “excelente qualidade de vida” (Buchalla,
2000). Fruto capitalista de uma pequena elite, esse balneário atrai turistas de várias
partes do Brasil, principalmente provenientes da grande São Paulo,
quadruplicando sua população em finais de semana, feriados prolongados e férias
escolares. A qualidade terapêutica das águas minerais, que jorram de suas três
principais fontes – Gioconda, Juventude e Almeida Salles – (Figura 2), a paisagem
campestre (Figura 3) e a tranqüilidade oferecida no ambiente desse balneário
estabelecem os atrativos principais para pessoas que buscam fugir do cotidiano
estressante das grandes cidades, revitalizando suas energias.
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Figura 1. Planta elaborada por Jorge de Macedo Vieira para a estância de ASP na
década de 1930. Parque municipal com o Grande Hotel (esquerda); loteamento
residencial, comércio e serviços, com córrego Bebedouro (centro); e entrada da
cidade e parque (direita).
Fonte: Acervo família Moura Andrade, 2001.
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Figura 2. Logotipo promocional da Fonte Gioconda.
Fonte: SENAC, 1995.
Figura 3. Vista da estância com Grande Hotel São Pedro em 1º Plano.
Mas nem sempre foi assim. As terras onde esse núcleo urbano se situa
configuravam-se, em fins da década de 1920, como vastos campos de plantação
de café, a qual, nessa época, já apresentava sinais de enfraquecimento, tanto por
problemas na economia de exportação quanto pelo desgaste sofrido pelo solo com
esse tipo de produção (Figura 4). Impulsionada pela busca de petróleo, como um
dos produtos a substituir o café no contexto econômico nacional, a região do
município de São Pedro sofreu as primeiras inspeções, tendo, porém, como
resultado apenas a obtenção de águas minerais em grande quantidade
(Rodrigues, 1985).
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Fonte: SENAC, 1995.
Figura 4. Vista da área escolhida para implantação da futura cidade de ASP:
campo devastado pela plantação cafeeira.
Fonte: Acervo família Moura Andrade, 2001.
A idéia de transformar a área desses poços em balneários medicinais e,
posteriormente, numa cidade balneária coube a uma sociedade formada por
empresários e donos de terras locais, da capital paulista e da cidade de Santos,
liderados pelos irmãos Antônio Joaquim de Moura Andrade e Octávio de Moura
Andrade. A criação, em 1935, da empresa Águas Sulphídricas e Thermaes de São
Pedro S/A por esse restrito grupo representava uma forma de aplicar o “grande
excedente de capital”, gerado no auge da economia cafeeira, em novas
oportunidades seguramente rentáveis.
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Nesse sentido, além de fatores já explicitados (a produção cafeeira
desestimulada e a busca por novos produtos para substituí-lo no cenário
econômico), outros aspectos apontavam para a consolidação lucrativa do
empreendimento. De um lado, a existência de balneários como os de Poços de
Caldas e de Araxá, ambos no estado de Minas Gerais, erguidos com finalidades
terapêuticas, atraía inúmeros turistas de diversos estados, inclusive de São Paulo,
que para lá se dirigiam em busca de lazer e que por lá deixavam suas reservas
econômicas em hospedagem, banhos termais, jogos de azar, restaurantes etc. Por
outro lado, os incentivos fornecidos pelo governo federal, na época sob o comando
de Getúlio Vargas, promoviam a colonização e ocupação do interior brasileiro
através da implantação de novas cidades e instigavam a criação de atividades de
lazer, como a abertura de cassinos, em todo o território nacional (Neiva, 1942).
Portanto, traçado o perfil do empreendimento a partir de bases economicamente
viáveis e rentáveis, bastava à empresa colocá-lo em prática.
Para a elaboração do projeto urbanístico dessa nova cidade, com fins
terapêuticos e recreativos, foi contratado, em 1939, o engenheiro civil Jorge de
Macedo Vieira (Figura 5), responsável por planejar loteamentos residenciais nas
cidades de São Paulo, Campinas e Atibaia e desenhar cidades novas – Maringá e
Cianorte – no norte do estado do Paraná, todos permeados pelos conceitos do
ideário urbanístico inglês de cidade-jardim. Todavia, a criação do balneário
também contou com a participação de uma equipe multidisciplinar, a saber: o
Escritório Saturnino de Brito (Figura 6) – responsável pelo plano de saneamento –,
o engenheiro civil Luiz Camerlingo (Figura 7) – autor do programa projetual da
estância e do projeto arquitetônico do Grande Hotel São Pedro –, o médico Jorge
Aguiar Pupo – designado para avaliar as qualidades e potencialidades terapêuticas
das águas minerais –, e o botânico suíço Julius Borchard – autor do projeto
paisagístico. Assim, o planejamento urbano agregou, de forma pioneira no país,
uma mão-de-obra especializada em diversas áreas, trabalhando em conjunto na
construção de uma cidade.
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Figura 5. Eng. civil Jorge de Macedo Viera, autor do projeto urbano de ASP.
Fonte: Arquivo Prefeitura São Paulo.
Figura 6. Logotipo do Escritório Saturnino de Brito, responsável pela infra-estrutura de ASP.
Fonte: ESB, 1939.
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Figura 7. Eng. civil Luiz Camerlingo, projetista do Grande Hotel.
Fonte: Jornal CSP.
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A cidade-jardim de Ebenezer Howard
O ideário garden-city ou cidade-jardim, assim como propostas e modelos
urbanísticos datados de fins do século XIX e início do século XX, surgiu como
resposta à situação de crescimento “autoderrotador” na qual cidades dos países
industrializados estavam nesse período (Hall, 1995). Os conceitos da garden-city
tornaram-se públicos no ano de 1898, com a obra To-morrow: a peaceful path to
real reform, do inglês Ebenezer Howard.
Os pressupostos howardianos foram aceitos e prontamente colocados
em prática. No ano de 1903, ocorreu a primeira concretização do modelo proposto
por Howard, por meio da cidade de Letchworth (Inglaterra), elaborada pelos
arquitetos Richard Barry Parker e Raymond Unwin. O segundo exemplar foi
realizado anos mais tarde, em 1919, com o projeto para Welwyn Garden City
(Inglaterra), de Louis de Soissons. O conceito de “cidade-jardim” não ficou,
entretanto, restrito ao campo do urbanismo de cidades novas. Como exemplo, em
1907, Parker e Unwin derivaram a escala de cidade-jardim em subúrbio-jardim (um
loteamento residencial com elementos característicos da garden-city) no plano de
Hampstead, periferia de Londres (Choay, 1997).
Os conceitos inseridos nesse ideário foram amplamente difundidos ao
longo do século XX e aplicados em planos urbanos de diversos países, como
Bélgica, Alemanha, Rússia, França, Estados Unidos da América, Japão e Brasil.
Mas quais características delimitam essa tipologia urbanística, a qual
fincou marco na história do urbanismo do século XX, mostrando-se como corrente
paralela ao urbanismo racionalista e funcionalista do arquiteto Le Corbusier?
A origem do ideário cidade-jardim situa-se na publicação do livro Tomorrow: a peaceful path to real reform (Para o amanhã: um caminho tranqüilo para
a reforma autêntica), no ano de 1898, de autoria de Ebenezer Howard. Reeditado
em 1902, com o título Garden cities of tomorrow (Cidades-jardins de amanhã), esse
documento tornou-se ícone para o urbanismo moderno ao apresentar um novo
modelo urbano – uma cidade diferenciada em seus aspectos físicos e em sua
organização econômica, política e social.
Tanto para Hall (1995) como para Beevers (1988), a preocupação de
Howard em sua obra estava direcionada mais para os processos sociais do que
para os aspectos físicos de sua nova cidade. A falta de conhecimento técnico levou
Howard a criar diagramas e esquemas urbanísticos primários, que deveriam ser
adaptados conforme o local de implantação da cidade. A atenção maior foi
dedicada a temas econômicos e financeiros com os quais o autor argumentava em
prol da possível concretização de seu ideal.
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Em termos gerais, a proposta de Howard surgiu como resposta às
exigências peculiares do final do século XIX e foi fundamentada na junção das
qualidades existentes no campo com as qualidades existentes na cidade
(representada por diagramas [Figura 8]), reaproximando o homem da natureza por
meio de reformas (social e da terra), como o próprio autor expõe em sua obra
(Howard, 1996):
“A questão é universalmente considerada como se agora fosse
(e assim devesse permanecer para sempre) completamente
impossível para os trabalhadores viver no campo e apesar disto
dedicar-se a atividades outras que não a agricultura; como se
cidades superpovoadas e malsãs fossem a última palavra em
ciência econômica e como se fosse necessariamente
permanente nossa atual forma de produção, na qual linhas
cortantes separam as atividades agrícolas das industriais. Essa
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falácia é aquela muito comum de ignorar por completo a
possibilidade de outras alternativas além daquelas apresentadas
à mente. Na verdade, não há somente duas alternativas, como
se crê – vida urbana ou vida rural. Existe também uma terceira,
que assegura a combinação perfeita de todas as vantagens da
mais intensa e ativa vida urbana com toda a beleza e os prazeres
do campo, na mais perfeita harmonia”.
Figura 8. Diagrama dos três ímãs de Howard. A possibilidade de unir em um só
ímã o que atrai as pessoas para o campo e para a cidade.
Fonte: Beevers, 1988.
A solução dos problemas socioculturais da cidade industrial estaria no
retorno do homem ao campo, onde o contato com a natureza seria capaz de manter
seu bem-estar físico e moral. Para Ward (1992), Howard acreditava
Condensando esse ideal, a concepção howardiana apresentou-se como
o mais adequado plano de construção do espaço “eutópico” de Geddes (1994).
Longe da cidade “gigante” vitoriana e de seus problemas – poluição, cortiços e
especulação imobiliária –, Howard propunha cidades de pequena e controlada
dimensão, no interior da Inglaterra, habitadas por pessoas vindas da capital ou de
outras cidades com as mesmas dificuldades.
Para as estruturas do modelo da cidade ideal, o taquígrafo inglês2 traçou
um minucioso plano englobando questões econômicas, políticas e sociais. Nesse
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“[...] na superioridade da vida rural e encorajava o interesse em
preservar o campo inglês das conseqüências do crescimento
urbano e industrial descontrolados. […] O proletariado das
cidades congestionadas, argumentava, precisa urgentemente
do contato com a natureza para seu bem-estar moral e físico”
(tradução livre).
sentido, tratou de temas como a compra e o financiamento das terras e a forma de
gerenciamento delas. Para isso, propunha a gestão pelo governo municipal,
retirando de cena os proprietários privados e especuladores imobiliários. Tratavase de uma resposta à cidade comercial do século XIX, quando o espaço urbano não
era visto como uma instituição pública, e sim como uma aventura comercial
privada. A efetiva representatividade da autoridade pública era essencial para o
sucesso da forma unificadora e autônoma proposta na sua estrutura urbana
(Mumford, 1982). A auto-suficiência da cidade foi outro ponto trabalhado pelo
inglês, devendo “fundar-se num equilíbrio harmônico entre indústria e agricultura”
(Benevolo, 1976).
Quanto à estrutura física da cidade, a concepção howardiana foi
esquematizada também sob a forma de diagramas. O contato mais intenso de
Howard com cidades como Londres, Paris, Chicago e Nova Iorque certamente
contribuiu para a formulação de seu referencial urbanístico, principalmente quanto
à disposição e à dimensão dos espaços. O autor estipulou uma comunidade para
32 mil habitantes – “unidade experimental” –, sendo 30 mil, na cidade, e dois mil, no
campo, distribuída em uma área total de 2.400 hectares, cuja parte urbanizada
ocuparia uma área central de 400 hectares, pertencendo o restante à zona rural.
Entre as funções da zona rural, estaria a de conter a expansão urbana por
meio de um cinturão verde formado por parques, bosques e pequenas e médias
propriedades agrícolas. Segundo Mumford (1982),
“Howard reintroduziu no urbanismo o antigo conceito grego de
limite natural de crescimento de qualquer organismo ou
organização, restabelecendo, ao mesmo tempo, a medida
humana da nova imagem da cidade”.
Além de propriedades voltadas à produção agrícola, que abasteceria os
mercados da cidade, a área rural também seria base de instituições relacionadas
às doenças, como cegueira, epilepsia, além de internatos, prisões etc.
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Figura 9. Diagrama n.3 – detalhe de 1/6 da cidade-jardim. Do centro para a periferia: os
edifícios públicos, o Central Park com a arcada, duas quadras residenciais, avenida central
com escola e igreja, duas quadras residenciais, faixa com indústrias e comércio e a ferrovia.
Fonte: Beevers, 1988.
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Na área urbana (desenhada em uma circunferência de 1.130 metros de
raio) (Figura 9), todos os espaços foram pensados e alocados para que todos os
cidadãos da cidade pudessem deles usufruir sem dificuldade de acesso. Seriam
dispostos, do centro para a periferia: o centro público, com os principais edifícios
públicos e o parque central; o Palácio de Cristal, uma espécie de mercado coberto
para lazer e compra de produtos artesanais; as habitações, construções
implantadas em lotes espaçosos e ajardinados; a avenida central com 125 metros
de largura, na qual estariam localizadas as escolas e igrejas dos mais variados
credos; e, por fim, as instalações industriais e os mercados estariam alocados no
anel periférico da cidade, por onde passaria a ferrovia. O transporte ferroviário
(uma nova tecnologia da época) foi adotado para facilitar o deslocamento de
mercadorias excedentes e a comunicação com as outras cidades. Toda a infraestrutura urbana (abastecimento de água, esgoto, telefone e energia elétrica) foi
pensada segundo as tecnologias mais modernas do período, sendo dispostas sob
os bulevares que cortariam a cidade.
A liberdade do cidadão e sua conduta perante o restante da comunidade
configuram-se como outra parte de sua obra. A liberdade de cada habitante da
cidade-jardim deveria ser garantida, mas com certa disciplina e coerência (Creese,
1992). Benevolo (1976) resumiu os deveres dos moradores da seguinte maneira:
“[...] cada um será livre para regular sua própria vida e seus
negócios como achar melhor, submetendo-se somente ao
regulamento da cidade e recebendo, em troca, os benefícios
de uma convivência regulada”.
Howard também discutiu o futuro das cidades-jardins. A expansão de seu
modelo dar-se-ia pela construção de outro exemplar. Os esquemas por ele
apresentados configuram uma rede de sete cidades interligadas pela ferrovia,
sendo seis cidades menores periféricas (com 32 mil habitantes) e uma central
chamada de “cidade social” (com 58 mil habitantes). Esta centralizaria um número
de atividades maior do que as demais, demonstrando, assim, uma hierarquia
funcional e de importância entre elas.
Em relação à natureza, o plano de Howard solucionaria os males da
sociedade capitalista industrial. Esse ponto fez elevar a aceitação de seus valores
pelas pessoas na virada do século XIX, dando à natureza o mesmo valor de beleza
atribuído às artes (Geddes, 1994). Na proposta de Howard, ¼ da cidade seria
ocupado por parques e jardins residenciais, sem contar as vias arborizadas. Os
controles paisagísticos adotados nos modelos de cidade-jardim foram amplos: “[...]
regulamento de cercas, culturas, arvoredo, manutenção de espaços públicos,
variações admitidas e não admitidas de construção, ruídos a serem evitados”
(Benevolo, 1976). Desse modo, Benevolo (1976) elegeu outra maneira de
interpretar a cidade howardiana,
Apesar das críticas, embasadas ou displicentes, o ideário de Ebenezer
Howard criou raízes na urbanística moderna e tornou-se uma forma de habitar a
cidade do homem contemporâneo. Sob a perspectiva histórica, a cidade-jardim
revelou-se mais realista e frutífera que os demais modelos de sua época (exceto o
sucessor modelo de urbanismo funcionalista de Le Corbusier). O modelo de cidade
ideal de Howard tomou forma seis anos após a primeira publicação, no projeto da
cidade de Letchworth, Inglaterra. Os conceitos de “cidade-jardim”, portanto, não
ficariam somente no campo ideológico. Como previu seu autor, talvez além de sua
imaginação, refletiram-se em planos urbanísticos, em diversos países europeus e
em países de outros continentes, como Ásia, Oceania e Américas.
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“mais simples e talvez mais justo, deixando de lado a teoria da
auto-suficiência e considerando somente o desejo ruskiniano
de viver em um ambiente físico mais agradável e repousante,
com muito verde e o campo a poucos passos de distância”.
A ressonância dos conceitos de cidade-jardim no Brasil
O Brasil, na passagem para o século XX e nas décadas posteriores,
estava em plena mudança, assim como a Europa e os Estados Unidos após a
Revolução Industrial. Ao buscar assemelhar-se economicamente às
transformações que ocorriam nos países industrializados, ou pelas necessidades
que a produção cafeeira impunha, o país iniciou um processo mais intenso de
urbanização do território. A falta de uma escola própria de urbanismo, decorrente
de uma deficiência do período colonial, fez de nossa urbanística uma colagem de
modelos externos, porventura adaptados ao contexto local, quando o profissional
tinha tal preocupação. Esses modelos alteraram as cidades existentes ou foram
aplicados na criação de novas cidades, feitos decorrentes de ações governistas ou
de iniciativa do capital privado. Distantes dos pólos de origem – portanto sem uma
necessidade de seguir à risca os mandamentos estipulados –, esses modelos
abraçaram o vasto campo de experimentação que o país se tornou, mostrando, em
certos momentos, soluções híbridas que resultaram em planos urbanísticos
ímpares. Assim, construiu-se o urbanismo moderno brasileiro.
Cidades existentes foram reformadas, cidades novas foram construídas
sob os olhos de Estados paternalistas ou pela ação especulativa de agentes
imobiliários. A segregação social do espaço se fez presente, dando às classes mais
abastadas melhores condições de vida, enquanto a massa proletária era
empurrada para regiões desqualificadas. O urbanismo moderno brasileiro nascia
trazendo consigo as inovações urbanísticas trabalhadas no estrangeiro somadas
às mazelas decorrentes da evolução social do país.
Leme (1999) expôs que as referências urbanísticas estrangeiras
adentraram por nossas fronteiras, repercutindo no desenho e no planejamento
urbano nacional, mediante a “circulação de idéias” que compunham as principais
tipologias da época. A maneira como tais transferências e traduções ocorreram
nesta parte do hemisfério sul foi justificada pela autora como proveniente: da
contratação de técnicos, arquitetos e urbanistas estrangeiros feita por empresas
privadas ou pelo próprio governo; dos estudos expostos em congressos; da
formação de nossos profissionais em academias além-mar; de viagens realizadas
para estudos ou para enriquecimento do repertório profissional; e da divulgação em
periódicos e jornais.
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A assimilação de conceitos importados, dos quais nossos profissionais se
apropriaram para criar seu repertório de trabalho, possibilitaram que diversas
vertentes urbanísticas (higienismo, city beautiful, company towns, cidade-jardim,
cidade funcionalista etc.) ressoassem em planos e intervenções elaborados para
nossas cidades na primeira metade do século XX. Dependendo do profissional,
essas tipologias recebiam uma contextualização ao serem implementadas,
respeitando os princípios originais, contrastando-se com o mero rebatimento das
idéias ou apenas do nome para qualificar o espaço urbano.
Ao focar este estudo sobre a apreensão do ideário da cidade-jardim pela
urbanística nacional (tendo como referências obras como Andrade, 1998; Kawai,
2000; Steinke, 2002; e Wolff, 2001), verifica-se que o modo como esse ideário foi
introduzido e o modo como ele se difundiu pela ação de profissionais e empresas
privadas, que queriam fazer dele um novo modo de habitar a cidade, ocorreu de
forma semelhante às possibilidades descritas acima. Salienta-se que a maneira
como tal incorporação ocorreu nem sempre foi condizente com os conceitos
elaborados por Ebenezer Howard na sua concepção de cidade ideal. Muitas vezes,
sendo aplicados de forma parcial, esses conceitos foram meramente refletidos,
deturpando o sentido real pensado em sua criação, dando origem à polissemia do
termo cidade-jardim.
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A variação proposta por Unwin (subúrbio-jardim), juntamente com os
interesses de agentes imobiliários urbanos, produziu a descaracterização do modelo
original não apenas em relação a seu dimensionamento e funcionalidade como
também pela forma de controle social da terra. O arrendamento do solo onde iria ser
construído o empreendimento não era mais gerenciado por uma cooperativa de
futuros moradores, mas por empresas imobiliárias. A sociabilização do solo da cidade
cedeu espaço à comercialização deste. A atratividade que o nome possibilitava a uma
obra desse tipo – havia por parte dos empreendedores o interesse comum em
apropriar-se do nome “cidade” ou “subúrbio-jardim” para qualificar positivamente sua
obra – levava os especuladores da terra urbana a supervalorizarem seus lotes,
destinando-os, assim, às classes mais abastadas da população.
Porém, alguns profissionais, como o engenheiro civil Jorge de Macedo
Vieira, levaram o modelo howardiano às áreas intersticiais das cidades existentes
(fundos de vales, encostas íngremes, terrenos alagadiços etc.), dando a essas
regiões desvalorizadas o espaço para que classes mais baixas da sociedade
pudessem ter acesso a um modo de vida mais digno.
Assim, a transição desse ideal ou de suas adaptações (mutações) para a
urbanística nacional sofreu influências tanto do contexto como dos atores envolvidos.
Dessas interferências, surgiram algumas propostas projetuais que mantinham as
premissas defendidas por Howard; outras que criavam uma nova linguagem; e as
que desconfiguravam o ideal por completo.
Embora os meios disponíveis na época não permitissem uma interação
mais rápida entre profissionais e novas propostas conceituais, dados revelam que a
aplicação dos conceitos de cidade-jardim em planos urbanos nacionais data de 1915,
doze anos após a construção da primeira cidade-jardim – Letchworth – e quatro anos
antes da construção da segunda cidade – Welwyn Garden City, na Inglaterra.
Ao direcionarem-se as atenções para as cidades novas, estas se
transformaram num campo propício para inserção dos mais variados modelos.
Mais do que uma forma de expansão urbana (visto que as cidades no Brasil ainda
não apresentavam as mesmas dimensões que as capitais européias), esse
processo se configurou como meio de transferir ou conduzir mão-de-obra de áreas
econômica ou politicamente desestabilizadas (Nordeste, Minas Gerais ou países
europeus e asiáticos em crise) para regiões onde esta se fazia necessária, como as
lavouras cafeeiras do interior de São Paulo e Paraná. A criação de cidades novas
como controle da expansão da cidade industrial – conforme proposto por Howard
em seus diagramas – ou como subsídio ao desenvolvimento econômico e proteção
das divisas fronteiriças – no caso brasileiro – julgou-se serem formas semelhantes
de urbanização do território. Dessas intenções ou execuções, tidas por alguns
teóricos como ações anti-urbanísticas, o resultado final apresentava-se como o
surgimento de uma rede urbana densa e compacta composta de cidades de médio
e pequeno porte (e.g., o noroeste do estado de São Paulo e o norte do Paraná).
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89
Com as informações obtidas ao longo da pesquisa, foi possível
encontrarem-se dois pontos marcantes que possibilitaram aos nossos
profissionais tomarem conhecimento dos conceitos howardianos. Em ordem
cronológica, o primeiro momento data do ano de 1915, quando a City of São Paulo
Improvements and Freehold Land Company Limited contratou o escritório dos
arquitetos ingleses Raymond Unwin e Richard Barry Parker para elaborarem o
projeto do bairro Jardim América na capital paulista. O segundo momento está
relacionado à vinda do urbanista francês Donat Alfred Agache ao Rio de Janeiro,
em 1927, o qual, em palestras conferidas nessa cidade, expôs os conceitos
elaborados por Howard para diversos profissionais e meios de comunicação
impressa, acarretando uma proliferação desse ideal por diversos estados do país.
Sendo as cidades novas criadas para atender funções diferentes
(administrativa, de colonização, recreativa, relocação etc.) e incentivadas pelos
interesses do poder público, cada uma delas destacou a aproximação com um dos
ideários urbanísticos em voga. Essa aproximação se dava pela interação entre as
necessidades funcionais pré-estabelecidas e os conceitos ditados em cada tipologia.
Em alguns exemplares se pode verificar o urbanismo culturalista característico do
modelo cidade-jardim: na reformulação do plano de Attílio Corrêa Lima para Goiânia,
elaborado por Armando Augusto de Godoy (1941); nos planos de Maringá (1945) e
Cianorte (1955), de Jorge de Macedo Vieira; ou mesmo no projeto de Lúcio Costa
para Brasília (1957). No caso da cidade nova de ASP, sua função direcionada ao
recreio e à reabilitação da saúde dotou o balneário de um plano singular e pioneiro,
realizado pelo engenheiro Vieira em 19393, como se verá a seguir.
A cidade-jardim no projeto de Águas de São Pedro
ASP caracterizou-se como pertencente à rede de cidades novas voltadas
para o turismo, direcionadas a uma função específica. Geradas no entorno de
atrativos naturais, esses núcleos eram destinados à reabilitação física e mental do
homem moderno, oferecendo-lhe condições e atrativos para recreação e tratamento
médico, bem como uma fuga temporária dos males da cidade grande (Figura 10).
Figura 10. Área de lazer (piscina) do Grande Hotel São Pedro.
Fonte: Acervo família Moura Andrade, 2001.
90
Assim, essas estâncias em muito se aproximaram dos conceitos
howardianos ao tentar unir as qualidades da cidade com as qualidades do campo.
Prover a cidade nova com elementos trazidos da cidade industrial (os avanços
tecnológicos, o conforto, os meios de transporte, as formas de entretenimento etc.)
além dos recursos naturais presentes nessas áreas (a tranqüilidade, o sossego, a
liberdade, a natureza etc.) foi a fórmula encontrada pelos empreendedores da estância
para garantir seu sucesso, e, com isso, o retorno dos investimentos aplicados.
ASP, no entanto, não apresentou apenas essa conexão com o ideário da
garden-city. Tanto na biografia de Howard como na dos irmãos Moura Andrade, o
desejo de conquistar um mundo novo se fez presente. Howard, ao mudar-se para
os Estados Unidos, adquirindo terras nas pradarias americanas, tomou contato
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com os incentivos dados pelo Estado norte-americano para ocupação do território.
O mesmo ocorreu com os bandeirantes modernos (os irmãos Moura Andrade),
que, após lucrativos anos trabalhando no comércio cafeeiro, decidiram aplicar
capital na compra de terras virgens no oeste do estado de São Paulo. Esse espírito
aventureiro e desbravador, em ambos os casos, possibilitou a aquisição de um
repertório significativo de idéias e planos, aplicado, posteriormente, na elaboração
de projetos urbanos: a cidade-jardim, para Howard, e as cidades novas de
Andradina e Águas de São Pedro, para os irmãos Moura Andrade.
Figura 11. Implantação do traçado urbano. Fábrica e balneário em construção às
margens do bulevar central.
Fonte: Acervo família Moura Andrade, 2001.
91
Figura 12. Implantação do traçado urbano. Vias residenciais se adaptam à
topografia irregular.
Fonte: Acervo família Moura Andrade, 2001.
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Figura 13. Traçado urbano da cidade nova de Andradina (SP). Quadricula
adotada por sua facilidade e rapidez de implantação.
Fonte: Arquivo pessoal de Ricardo Trevisan.
Figura 14. Traçado urbano da cidade nova de ASP. Malha sinuosa adotada segundo
a geomorfologia local e atendimento às necessidades de lazer e ócio.
92
Fonte: Arquivo pessoal de Ricardo Trevisan.
Na estância, o projeto urbano idealizado por Vieira em muito se
assemelhou aos princípios howardianos ou com os primeiros exemplares de
cidade-jardim. A fase de reconhecimento da área demonstrou isso. Por meio de
tomada das curvas de nível sobre o terreno irregular e do levantamento dos
principais aspectos locais (visuais, elementos naturais, formas de chegar à cidade,
condições climáticas etc.), o engenheiro teve em mãos informações necessárias
para projetar um plano coerente com o espírito do lugar (genius loci), como bem
defendia Camillo Sitte (1992) em sua cidade artística (uma das referências de
Ebenezer Howard).
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A adequação do plano à topografia local, colocada em prática por Barry
Parker tanto na Inglaterra (Letchworth) como no Brasil (bairro do Pacaembu, e.g.),
foi similarmente trabalhada pelo engenheiro brasileiro em ASP. Esse projeto,
podendo ser, comparativamente, considerado um referencial dentre os existentes,
regulou-se à geomorfologia da área escolhida, que possibilitou ao autor tirar partido
de ruas curvas e sinuosas e, consecutivamente, do caráter bucólico e pitoresco que
essa tipologia viária proporcionava (Figura 15).
Figura 15. Caráter bucólico e pitoresco dos espaços públicos.
Fonte: Arquivo pessoal de Ricardo Trevisan.
Fisicamente, outras características apresentaram-se como condizentes
com os preceitos howardianos defendidos para a cidade-jardim. A inserção da
estância numa gleba rural destacada do município de São Pedro, por um lado,
impediu que houvesse uma expansão desmesurada de seus limites, por outro
resultou na formação de um cinturão verde, cercando a cidade e dotando-a de um
horizonte campestre. Metaforicamente, a linha de contorno (linha férrea) proposta
por Howard, circundando sua cidade, fez-se espelhar no partido para Águas, pela
inclusão de uma via expressa para veículos (o meio de transporte em voga na
época), implantada sobre o espigão que envolvia a bacia do córrego Bebedouro e o
loteamento construído (Figura 16). Área rural e área urbana definidamente
separadas, porém contínuas em virtude da vegetação presente em ambas.
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Figura 16. Linha em cinza claro: delimitação do município de ASP, marcado
por uma via de contorno.
Fonte: Arquivo pessoal de Ricardo Trevisan.
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Figura 17. Linha escura: parques de ASP, que, somados a praças e park-way,
proporcionam 70% de área verde à cidade.
Fonte: Arquivo pessoal de Ricardo Trevisan.
Enquanto a porcentagem prevista no programa inglês delineava ¼ da
área total destinada a áreas verdes, no projeto nacional esse número saltou para
quase 70% (Figura 17). Mais que um jardim dentro da cidade, o plano de Vieira se
caracterizou como uma cidade dentro de um imenso jardim. Parques, praças,
esquinas e calçadas ajardinados, áreas de proteção de mananciais, matas ciliares,
jardins particulares etc. assumiram o compromisso de dar à cidade do lazer e da
saúde o verde de que ela necessitaria. Além de um ambiente direcionado a práticas
sociais, interagindo, de certa forma, com as pessoas da comunidade, esses locais
permitiram a constituição de um microclima especial para a região.
Ocupando uma área urbana de 282 hectares (cidade-jardim de Howard:
prevista para 400 hectares), a estância teria uma população de 10 mil habitantes
(cidade-jardim de Howard: prevista para 32 mil habitantes) e um adensamento
baixo, com 282 m² de área para cada habitante (cidade-jardim de Howard: 114 m²
para cada habitante). Tendo aproximadamente 3,5 km de extensão ao longo do
córrego Bebedouro (cidade-jardim de Howard: sua circunferência teria 2,26 km de
diâmetro), o centro dessa cidade (zona comercial e local de acesso aos principais
equipamentos) poderia ser alcançado por qualquer habitante numa simples
caminhada a pé.
92
Tanto Howard como Vieira dispuseram de nomes de projetos norteamericanos, em especial daqueles realizados pelo paisagista Frederick Law
Olmsted, para denominar certos locais de suas cidades como: Central Park
(projeto de Olmsted para Nova Iorque) ou park-way (projeto do norte-americano
para Chicago). A park-way, com seus 100 metros de largura (cidade-jardim de
Howard: Avenida Central com 125 metros de largura), juntamente com o bulevar,
formariam a linha divisória e o espelhamento da cidade em duas partes, uma em
cada margem do córrego Bebedouro (Figura 18).
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Figura 18. Park-way: via de entrada da cidade de ASP, centralizada por uma área
verde e pelo córrego Bebedouro.
Fonte: Arquivo pessoal de Ricardo Trevisan.
Figura 19. Bulevar central: agrega edifícios comerciais, de serviços e institucionais.
Fonte: Arquivo pessoal de Ricardo Trevisan.
No bulevar, delimitado por duas rotatórias e caracterizando-se como
centro geográfico da estância, foi alocada a pequena zona comercial e a única
indústria da cidade (Figura 19) (cidade-jardim de Howard: o centro de sua cidade
disposta de forma circular abrigaria os principais edifícios públicos, o parque
central e o Palácio de Cristal, uma espécie de mercado coberto para lazer e compra
de produtos artesanais). O restante do terreno foi destinado a áreas verdes ou aos
amplos lotes residenciais de 600 m², abrigando, no máximo, duas casas
geminadas (tanto em Letchworth como em Welwyn Garden City foram encontradas
até cinco moradias numa única construção, cercada por amplos jardins).
Esse zoneamento funcional e o modo de ocupação do solo urbano foram
meios encontrados tanto pelo taquígrafo inglês como pelo engenheiro civil de
disciplinar a organização da cidade e ter controle sobre essa organização. Incluise, ainda, no caso de ASP, a produção de habitações para operários como um
instrumento regulador de suas vidas (Figuras 20 e 21).
95
Figura 20. Vila Bela em ASP. Casas para os trabalhadores do Grande Hotel e do
Balneário, construídas pela empresa Águas Sulphídricas e Thermaes de São Pedro S/A.
Fonte: Jornal CSP.
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Figura 21. Vila Operária em ASP. Casas fornecidas aos
trabalhadores – instrumento de controle social.
Fonte: Jornal CSP.
As novidades tecnológicas da época também estavam presentes nas duas
propostas. As inovações ocorridas nos setores de infra-estrutura (comunicação,
saneamento, energia elétrica etc.) foram adotadas de modo a oferecer uma cidade
moderna – independente de esta situar-se fora do centro ativo da economia. Do
mesmo modo, os meios de transporte mais avançados de cada época estavam
devidamente inseridos, como o trem para a cidade de fins do século XIX ou o veículo
automotivo e o avião para a cidade da década de 1930 (Figuras 22 e 23).
Figura 22. Estrada de acesso à ASP, com pavimentação.
Fonte: Jornal CSP.
96
Figura 23. Inauguração do aeroporto de ASP.
Fonte: Jornal CSP.
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Se o estressado habitante da cidade industrial inglesa poderia pegar um
trem e mudar-se para Letchworth ou Welwyn Garden City, um burguês brasileiro
poderia desfrutar de seu tempo livre ou buscar a recuperação de sua saúde
debilitada viajando de carro ou de avião para Águas de São Pedro. Colocava-se a
natureza, em ambos os casos, como forma de resgate das necessidades físicas e
mentais, corrompidas pelo modo alienante que a máquina havia introduzido na vida
das pessoas (Figuras 24 e 25).
Figura 24. Vista do bulevar central de ASP. Espaço para footing diário.
Fonte: Jornal CSP.
Figura 25. Vista do Balneário e do Parque Municipal. Equipamentos para o
lazer e o ócio.
Além do diferenciado modo de arrendamento da terra urbana, a estância
se distanciou do conceito howardiano de auto-sustentabilidade. Para Howard, toda
cidade-jardim deveria ser auto-sustentável e, somente em casos de excedentes na
produção, estes poderiam ser trocados ou vendidos para outros núcleos. No caso
de ASP, tal procedimento seria inviável, uma vez que suas funções restringiram-se
às atividades de lazer e de saúde. Por não apresentar área rural suficiente (as
antigas produções agrícolas destinavam-se ao abastecimento exclusivo do
Grande Hotel), a economia da estância ficou baseada somente na exploração dos
serviços de lazer ou de tratamento de enfermidades. Tudo que era necessário para
o consumo da comunidade era importado de outros municípios ou regiões.
Sendo assim, esta pesquisa revelou que, mesmo apresentando lacunas
em relação ao ideário da garden-city inglesa, a estância hidromineral de ASP se
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97
Fonte: Jornal CSP.
constitui em um exemplar singular e pioneiro desse movimento na urbanística
moderna brasileira. A incorporação de conceitos dessa tipologia, de modo direto ou
indireto, no planejamento urbano do balneário foi devidamente contextualizada,
revelando um modelo de cidade por vezes melhor solucionado do que seus
exemplares originais. A ação de profissionais especializados, a possibilidade
fornecida por seus empreendedores (questionando-se suas reais intenções) e os
resultados obtidos mostram-nos como uma cidade pôde cristalizar-se num
ambiente receptivo e qualificado para seus habitantes e seus visitantes dele
usufruírem, naquele ou em períodos posteriores.
Considerações Finais
O jogo puzzle pode ser considerado como um processo de ordenamento
dos fragmentos de uma única imagem, dispersos aleatoriamente no espaço. Para
construir essa imagem, o jogador deverá passar por uma longa fase de tentativas
(erros e acertos), em que a perplexidade, a multiplicidade e a similaridade entre as
peças dificultarão seu objetivo. Conforme passa o tempo, o jogador estabelece um
entendimento maior sobre sua figura, tornando-se suas ações cada vez mais
rápidas e certeiras. Ao final, a imagem se faz presente integralmente, revelando,
além de sua totalidade, os detalhes camuflados pela desintegração inicial.
Pensando-se a historiografia como o ato de construir a imagem ou o
significado de determinado objeto a partir de fragmentos soltos no tempo e no
espaço, é possível aproximá-la da fórmula do puzzle. As peças desse “jogo”
assumem o caráter de fatos, dados e relatos que são disponibilizados através de
pesquisas, análises e levantamentos. O jogador se transforma em historiador,
pesquisador ou estudioso. Diferente da racionalidade colocada no quebra-cabeça,
com número exato de peças e local específico para cada uma delas, a
historiografia, entretanto, se depara com as incertezas, as variações, as
imprecisões impostas pelo tempo.
Nos estudos históricos, um mesmo objeto pode ser construído através de
várias versões, como Tafuri (1984) pontuou na introdução de seu livro. A
multiplicidade de fatos acolhidos por um intérprete pode ser agrupada conforme o
repertório individual e o contexto (espacial e temporal) onde este se situa. Cada
intérprete será responsável pela criação de um objeto único, porém efêmero, pois
será reformulado pelas variações temporais, pelo acréscimo de peças recémdescobertas e pelas diferentes manipulações realizadas por outros agentes.
Sendo assim, a diversidade de resultados proporcionará uma construção
historiográfica, que, com sobreposições e contraposições, tende a enriquecer a
apreensão e construção de um mesmo objeto.
98
Desse modo, esta pesquisa procurou contribuir para a historiografia do
urbanismo brasileiro, ao se somar a outras pesquisas que focam os temas aqui
apresentados. Com o objetivo central de analisar a incorporação do ideário da
garden-city inglesa na urbanística moderna brasileira pelo estudo do planejamento
urbano para a estância hidromineral de ASP, este trabalho foi buscar, num campo
mais amplo, elementos sobre o contexto desse empreendimento, juntando as
peças necessárias para a construção dessa versão de um quebra-cabeça
“provisório”. A manipulação da documentação levantada, embora tenha
sistematizado determinado número de peças, pode ter deixado outras de fora, as
quais, num novo desdobramento, poderão ser encaixadas dando ao objeto
analisado uma nova configuração.
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NOTAS
1
Artigo resultante de dissertação de mestrado intitulada “Incorporação do ideário da garden-city inglesa na
urbanística moderna brasileira: Águas de São Pedro”, defendida pelo autor Ricardo Trevisan e orientada pelo
autor Ricardo Siloto da Silva, em outubro de 2003, no Curso de Pós-Graduação em Engenharia Urbana da
Universidade Federal de São Carlos.
2
Filho de pai pastor, autodidata e com personalidade inventiva, Howard trabalhou como taquígrafo no
Parlamento inglês, onde começou a ter uma educação política e se aproximou dos ideais do movimento
socialista.
3
No último ano de faculdade, na Escola Politécnica de São Paulo, Vieira iniciou seus trabalhos profissionais
como estagiário na City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited. Estagiando de
junho de 1917 a janeiro de 1919 na Companhia City, teve a oportunidade de vivenciar de perto as idéias e
produções urbanísticas de Barry Parker (Jardim América, Parque do Trianon, Pacaembu, Alto da Lapa etc.) e,
principalmente, de se aproximar dos princípios howardianos da “cidade-jardim”. Posto que se desconheça o
grau de contato de Vieira com os pressupostos defendidos por Howard, sua produção urbanística revelou
fortes indícios dessa influência, demonstrados nos traçados e nos partidos adotados.
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