1 GRUPO DE TRABALHO 4 CIDADANIA, CONTROLE SOCIAL E MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS “REPENSANDO O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO: EDUCAÇÃO, PUNIÇÃO OU EFEITOS PERVERSOS?” Ana Christina Brito Lopes 2 “REPENSANDO O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO: EDUCAÇÃO, PUNIÇÃO OU EFEITOS PERVERSOS?” Ana Christina Brito Lopes1 RESUMO A comunicação pretende apresentar e problematizar representações sociais sobre jovens, particularmente aqueles vistos como marginalizados, objetivando a imprescindível desconstrução sobre o potencial de periculosidade e ameaça de adolescentes a partir da análise das contradições que permeiam o universo do sistema sócio-educativo. As delegacias e penitenciárias superlotadas por uma legião de jovens nascidos sob a égide do Estatuto da Criança e do Adolescente, que os elevou à categoria de “sujeitos cujos direitos, devem ser protegidos integralmente, de forma prioritária”, por si só, já apontam para o grande fracasso da proposta pedagógica idealizada. Não bastasse isto, altos índices de letalidade de jovens vêm sendo observados. Para repensar os entraves sociais do histórico modelo repressor e punitivo vitorioso sobre os direitos conquistados, serão utilizadas fontes com origem em pesquisa própria, em uma abordagem interdisciplinar através de um diálogo entre a Sociologia e o Direito, buscando analisar a perpetuação das práticas punitivas culturalmente herdadas. Palavras-chave: Adolescentes Infratores. Sujeitos de Direitos. Punição Precoce. INTRODUÇÃO A militância em prol de direitos humanos de crianças e adolescentes, marcada por uma experiência inicial no grande “calcanhar de Aquiles” da Lei 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), representada pela aplicação e cumprimento da medida sócio-educativa de internação para adolescentes infratores, a experiência em políticas públicas para a infância e adolescência como Conselheira Estadual de Direitos de Crianças e Adolescentes e a experiência como pesquisadora, suscitaram a necessidade de procurar em outra área do saber (Sociologia) instrumentos para entender a lógica do sistema sócio-educativo e a interação entre os atores do referido sistema incluindo aqui o denominado, sistema de garantia de direitos. A necessidade de buscar uma interlocução com a Sociologia foi fruto da vontade de compreender as práticas sociais diante da percepção que muitas conquistas legais não foram efetivadas, apesar dos avanços enaltecidos, até internacionalmente, pela sua abrangência e comprometimento com a proteção aos Direitos Humanos de crianças e adolescentes, identificada 1 Doutoranda em Sociologia (UFPR). Mestre em Ciências Penais. Secretária da Comissão da Criança e do Adolescente da OABPR, Consultora do CEDCA-PR, representando a OABPR, Coordenadora e Professora do Curso de Especialização da PUCPR “Panorama Interdisciplinar do Direito da Criança e do Adolescente”, Professora do Curso de Direito da PUCPR, Membro do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da UFPR. [email protected] 3 como Doutrina da Proteção Integral ainda conservam, nas práticas institucionais, relação com as legislações ultrapassadas e revogadas, meramente punitivas e de controle social. Alguns questionamentos foram provocados: será que os movimentos sociais que uniram diversos segmentos da sociedade que se organizaram e lutaram por uma lei que previu ações voltadas para a participação popular na defesa e deliberação de políticas para a infância e juventude, não estão tendo força suficiente ou será fruto de uma desmobilização? Por que as mudanças anunciadas sucumbiram às forças da herança das práticas antes criticadas e que inspiraram toda a mobilização pró-mudanças? Tais questionamentos se originam de análises baseada em dados de pesquisa própria e de observações possíveis através do exercício profissional tanto academicamente quanto nos espaços destinados à defesa e garantia de direitos de crianças e adolescentes como a Comissão da Criança e do Adolescente da OABPR. No cotidiano da trajetória pró-efetivação de direitos infanto-juvenis tem sido comum o desalento em ver o acúmulo de aniversários da reforma legal sendo marcados pelas repetidas e majoritárias vozes de pedido de redução da maioridade penal, como forma de proteger a sociedade pelo aumento e antecipação da punição, ou em outras palavras, através de uma “precocidade punitiva” em detrimento dos direitos do sujeito de direitos que emergiu na figura do adolescente autor de ato infracional. Revisitando o passado, parece que algumas possibilidades de explicações já são possíveis: a matriz punitiva esteve sempre presente e apenas os discursos teóricos foram sendo trocados para novas metáforas de controle, como as atuais medidas sócio-educativas. A Sociologia surge como a ciência a possibilitar a compreensão dos fenômenos deste universo. 1 A Mudança De Paradigmas E A Busca Da Verdade À Luz Da Sociologia O curso de Doutorado em Sociologia na UFPR possibilitou o conhecimento de quatro referências bibliográficas apresentadas pelo Prof. Dimas Floriani que, desde logo, se destacaram dentre as demais pela proximidade das análises apresentadas com o objeto dos estudos sobre os temas de crianças e adolescentes que aqui serão sucintamente apresentadas para possibilitar a interseção com os direitos de crianças e adolescentes. Dentre as referências bibliográficas, destacou-se, em especial, a mudança de paradigma apresentada por Alain Touraine 2, pela abordagem sobre a importância da afirmação de direitos, 2 TOURAINE, Alain. Um novo paradigma: para compreender o mundo de hoje; tradução de Gentil Avelino Tilton. 3ª edição – Petrópolis, RJ: Vozes, 2007 4 pela ênfase nos Direitos Humanos Fundamentais e, principalmente, pela análise apresentada de uma das noções que se encontra no centro do novo paradigma: os sujeitos de direitos. Isto se justifica pela conquista a partir da reforma legal que elevou crianças e adolescentes, antes objetos, à condição de sujeitos de direitos e priorizou a garantia aos Direitos Humanos especiais. Outro ponto da análise de Touraine que contribuiu para o tema aqui desenvolvido foi seu questionamento sobre a hipótese da escalada da violência e o recurso ao sujeito pessoal serem conseqüências do declínio social, evocando como temas3: 1) a decomposição social; 2) a escalada das forças situadas acima da sociedade: a guerra, os mercados, o comunitarismo, a violência pessoal e interpessoal; 3) o apelo ao individualismo como princípio de uma „moral‟. A leitura da construção histórica do relatório da Comissão Gulbenkian para Reestruturação das Ciências Sociais4, permitiu compreender a ligação do uso da história, como primeira disciplina das ciências sociais e que adquiriu existência institucional autônoma, para a “busca de verdades” que se pretenda descobrir em pesquisas sobre determinado tema dentro da sociedade. Na verdade, esta prática foi utilizada na pesquisa de Mestrado realizada5 como forma conhecer a trajetória do atendimento prestado à infância no passado. Ficou evidente a importância de resgatar as práticas passadas para a percepção e revelação que o círculo vicioso formado por discursos progressistas que terminam em palavras mortas, quando o assunto é políticas e ações para proteger infantes, vêm de longa data. O citado relatório chamou a atenção, ainda, por resgatar o fato de que o campo do Direito nunca havia chegado a atingir o estatuto de ciência social, sob a crítica de cientistas sociais de vocação nomotética para quem “as suas leis não eram leis científicas”6. Hoje, seria possível combater tais críticas com base na Lei 8069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente. Esta, a exemplo da internacional Convenção dos Direitos das Crianças da ONU (1989), teve seu texto baseado em pesquisas e conhecimentos interdisciplinares originados para reverter as péssimas condições em que eram tratadas crianças e adolescentes, em especial, os mais criminalizados, aqueles marginalizados. Daí, possivelmente, ser considerada uma das leis mais avançadas para o seu tempo (e ainda hoje), sendo copiada por outros países. 3 TOURAINE, Alain. Ob. Cit. Comissão Gulbenkian para Reestruturação das Ciências Sociais – (Immanuel Walterstein – Presidente da Comissão). São Paulo: Cortez Editora, 2005 5 “Ultrapassando Muros”: um olhar crítico sobre a criminalização e a vitimização do adolescente privado de liberdade 6 Comissão Gulbenkian para Reestruturação das Ciências Sociais – (Immanuel Walterstein – Presidente da Comissão). São Paulo: Cortez Editora, 2005 4 5 Parece que o valor científico que emana do texto do Estatuto não teve tempo suficiente ainda, nos seus poucos 19 anos de existência, de tão bem representar uma construção de cunho compatível com a forma de “conhecimento pós-moderno”. Os estudos científicos que vêm se desenvolvendo neste campo do saber, caracterizam-se por ter que construir seus trabalhos de forma a corresponder ao que Boaventura (2005)7 chamou de “composição transdisciplinar e individualizada”, sugerindo movimentos no sentido da maior personalização do trabalho científico. Boaventura Santos (2005), aborda a troca de paradigmas no âmbito das ciências: do dominante ao emergente, em discurso de 1985, no qual ele descreve a crise paradigmática e atribui às ciências sociais anti-positivistas, uma nova centralidade, defendendo que a ciência, em geral, primeiro rompe com o senso comum para posteriormente transformar-se em outro mais esclarecido8. No âmbito do ordenamento jurídico para a infância e juventude, por seu lado, é possível apontar para uma outra mudança de paradigmas que introduziu um novo olhar sobre os direitos da infância que teve como influência na construção de normas jurídicas a troca do olhar da criminologia tradicional (positivista) pela criminologia crítica (sociologia do direito penal) nos temas pertinentes ao envolvimento de crianças e adolescentes com condutas criminalizadas. Não bastava olhar o fato criminalizado objetivamente, mas perceber as circunstâncias paralelas na vida dos novos sujeitos de direito, tais como fatores psicológicos, familiares e sócioeconômicos, o que provocou e vem provocando uma formação muito específica por parte dos que pretendem fazer ciência ou que atuam com a infanto-adolescência. Não mais com disciplinas estanques, mas com diálogo entre elas. Tratar da complexa questão representada pelos temas da garantia dos direitos infanto-juvenis demanda a reunião de saberes de áreas de conhecimentos diversos. Mas se o tema escolhido é o relativo ao envolvimento de adolescentes com condutas criminalizadas e a reação da sociedade e das leis a esta ação do adolescente, a Sociologia ganha grande destaque como forma de compreender as tensões das práticas que empurram para uma possível “ilegalidade oficial”, no sentido de não serem observadas as leis em detrimento da herança cultural dominante na sociedade. A mudança de paradigma apresentada por Touraine (2007) 9com ênfase na relevância dos problemas culturais, passando pela globalização e sistemas de informação para uma análise sobre a realidade social, a priori, parece que poderá contribuir às desafiantes análises para a compreensão do envolvimento de adolescentes com as condutas criminalizadas, parcela mais vulnerável às mudanças do mundo globalizado e das conseqüências deste, em especial, pela análise a partir de um modelo com ênfase em ações a serem efetivadas pelos sujeitos que, para tanto, precisam estar 7 SANTOS. Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez Editora, 2005 Idem, ibidem. 9 TOURAINE, Alain. Ob. Cit. 8 6 conscientes de tal condição, para empreenderem ações em prol de direitos individuais e coletivos. 2 Os Movimentos Sociais E A Emergência De Sujeitos: O Sujeito Adolescente Autor De Ato Infracional O ingresso no doutorado de sociologia possibilitou o contato com Touraine (2007) 10e dentre os autores lidos, este chamou atenção por dedicar-se a falar sobre dois temas marcantes para o desenvolvimento das pesquisas e militância política: sujeitos e movimentos sociais. Neste particular, outro autor, Sosa (2005)11, que igualmente contribui para as reflexões sobre os movimentos sociais, reconhecendo a importância de Touraine para este tema pelo reconhecimento merecido que deu às lutas sociais. Ele ressalta, ainda, que o referido autor atribui como característica aos movimentos sociais o fato destes estarem ligados à democracia e à defesa dos direitos humanos. Sosa(2005) e Touraine(2007) pela abordagem que fazem sobre a mobilização social tornamse referenciais teóricos úteis diante da importância desta prática para as questões da infância, desenvolvidos na dissertação desenvolvida no Mestrado12 cujo objeto era o adolescente privado de liberdade. Nela, teve grande destaque a mobilização e a participação popular que estão intimamente ligadas com a luta pelas transformações vistas como necessárias para um atendimento a crianças e adolescentes com ênfase nos direitos humanos para esta parcela da sociedade, reconhecida como Doutrina da Proteção Integral. Os primeiros cinco anos da década de 80 foram marcados por um grande número de iniciativas em todo o território nacional, onde pastorais, associações de moradores e outras entidades promoveram trabalho com "menores" e criticaram duramente o modelo clássico de intervenção adotado pelo Estado... Os novos atores que surgem e se consolidam na primeira metade dos anos 80 são justamente aqueles que irão imprimir ao processo Constituinte (1987 e 1988) avanços que permitirão o texto da Carta Magna definir criança como prioridade absoluta... O resultado deste movimento se traduz num texto constitucional que, construído através de mecanismos de embate e negociação, contém expressivas transformações obtidas pelos setores populares. 13 A participação popular que moveu a luta pelos direitos foi privilegiada no próprio texto da nova lei com a instituição de dos Conselhos de Direitos e Tutelares, ambos marcados pela presença de representantes da sociedade civil. No primeiro, para deliberação de políticas públicas para a infância e adolescência e no segundo para que pessoas da própria comunidade em que reside o tutelado zelem para impedir violação dos direitos de que são titulares. 10 Idem, ibidem. SOSA, Armando Cisneros. Movimientos em la sociedad posindustrial. In Crítica dos Movimientos Sociales: debate sobre la modernidad, la democracia y la igualdad social. Mexico: UAM, 2001 12 “Ultrapassando Muros”: um olhar crítico sobre a criminalização e a vitimização do adolescente privado de liberdade 13 BAZÍLIO, Luiz Cavalieri. Crianças e Adolescentes no Centro da Cena: Trajetória e Consolidação de um Grupo de Pesquisa. Ravil Editora. Rio de Janeiro. 2001, pg. 84 e 85. 11 7 É observável que, mesmo depois de muitas lutas para imprimir a reforma legal dos direitos de crianças e adolescentes, muitas das conquistas não vêm sendo concretizadas. Ao contrário, parece que o compromisso maior seja com a manutenção da ordem anterior que os movimentos quiseram derrubar e transformar. A mais lembrada mudança instaurada a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente é a transformação de crianças e adolescentes de objetos em sujeitos de direitos. No entanto, os interesses e o poder que estão ameaçados são os dos adultos e parece que aí reside a resistência e o fator que faz com que as conquistas não tenham sido efetivadas em sua totalidade. Daí a importância da análise de Touraine (2005) com o destaque para o sujeito. Na análise dele a partir de um novo paradigma este tem destaque. Para exemplificar, ressalta o caso das mulheres. Aponta para a mobilização feita por elas explicando que as mulheres lutam para serem reconhecidas como sujeitos – e até se pensam a si mesmas como sujeitos mais que os homens... Já há muito tempo, a estas reivindicações de igualdade somou-se a afirmação dos direitos específicos da mulher, concretizada na fórmula militante.14 São notórios os avanços promovidos por movimentos de segmentos da sociedade, tais como os alcançados pelos denominados grupos vulneráveis. Negros, homossexuais, idosos e mulheres avançaram muito em seus direitos. No entanto, eles fizeram a própria mobilização para imprimir as mudanças que foram conquistadas legalmente ou que, na mão contrária, propiciaram novas normas em prol de seus interesses. A análise de Touraine (2007)15 sobre a dificuldade de defesa dos direitos do indivíduo contra os da comunidade que leva à desconfiança pelas instituições encarregadas de punir os desviantes e os criminosos é confirmada pela crítica e reflexão por parte de Morais da Rosa, (2007)16, legitimado pela experiência como Juiz da Infância e Juventude em Joinville, sobre a falta de respeito com a subjetividade do adolescente autor de ato infracional , reconhecendo que “em nome do bem” Ao movimento do adolescente de se rebelar, de deixar de ser o objeto de desejo de seus pais, surge, não raro, a Instituição para realinhar o adolescente, então, objetificado, ao desejo dos pais, ocasionando, muitas vezes, o agravamento subjetivo do adolescente e o desconsiderando como sujeito... Os adultos, especialistas em adolescente, mesmo imaginariamente, acreditam saber que é bom para este, especificamente no tocante à normatização de seu desejo, mesmo que ao preço da autonomia do sujeito. 14 Ob. citada Ob. Citada, pg. 127. “Sempre tememos que o que se chama de interesse da sociedade ignore o direito que tememos que o que se chama de interesse da sociedade ignore o direito que cada um tem de ser tratado como sujeito, respeitando o que chamamos de direitos humanos fundamentais”. 16 Morais da Rosa. Alexandre. Introdução Crítica ao Ato Infracional: princípios e garantias processuais. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2007 15 8 Morais da Rosa clama pela ética na intervenção, destacando como significante primeiro para tanto, o reconhecimento do adolescente como um sujeito independente e com autonomia para tomar suas decisões. ... a negativa da sociedade e suas agências em reconhecer o adolescente como sujeito tocaia as intervenções ditas pedagógicas e no fundo totalitárias. Muito porque os adultos preferem (in)conscientemente esquecer esta fase, cuja lembrança, ainda que muitas vezes angustiante, precisa ser resgatada para poder ensejar uma abordagem eticamente garantida...17 A questão reside no poder a que estão submetidos crianças e adolescentes que, durante o período de desenvolvimento de suas vidas, ficam subordinados aos desejos e ao lugar de objeto daqueles que estão na condição de cuidadores, mesmo que momentaneamente, circunstância na qual deterão a guarda (e poder) sobre os infantes. Se já é difícil a efetivação da transformação de crianças e adolescentes de objetos a “ser de direitos”, a dificuldade se agrava para os que praticam atos infracionais fazerem nascer esta condição, no viés da garantia de seus Direitos Humanos quando ingressam no sistema sócioeducativo. 3 Repensando O Sistema Sócio-Educativo Dezenove anos se passaram da comemoração pela promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), muito festejado pelos defensores dos direitos humanos de crianças e adolescentes após toda a mobilização social por segmentos diversos da sociedade comprometidos com a transformação de um melhor atendimento e respeito à infância para a conquista de direitos e garantias legais, consubstanciado na denominada “Doutrina da Proteção Integral”. Vale dizer que esta Proteção Integral, que se constitui em direitos fundamentais a serem operacionalizados por um conjunto de ações articuladas por organismos governamentais e nãogovernamentais, não se concretiza apenas com as previsões do Estatuto, mas com outras normas que a ele se somam para a efetivação do propósito protetivo, em especial, com os poucos conhecidos documentos internacionais18, com destaque para a Convenção dos Direitos da Criança da ONU, que completa 20 anos, em novembro deste ano (2009). Diante do contexto que se configura nestes anos, vale oportunizar e dar maior visibilidade ao que se costuma chamar “o calcanhar de Aquiles” do Estatuto da Criança e do Adolescente: seu sistema sócio-educativo representado pelas medidas sócio-educativas e sua aplicação, sempre 17 18 Morais da Rosa. Alexandre. Ob. Cit. Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude - Regras de Beijing, Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade e Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil - Diretrizes de Riad, dentre outras. 9 criticada pela maioria da sociedade, como sinônimo de ausência de punição. Ocorre que para o grande público, que não têm proximidade com a aplicação e cumprimento da medida sócio-educativa de internação, não fica evidenciada a tensão entre discurso oficial (e legal) e prática institucional, fruto de uma herança cultural de práticas passadas e enraizadas que emerge cristalina após um olhar no passado. Daí a proposta aqui de revisitar o passado para viabilizar um melhor panorama sobre a perpetuação do passado a partir do confronto com as transformações anunciadas na reforma legal. 3.1 A Trajetória Histórica de uma Tentativa de Transformação da Punição em Educação no Âmbito do Sistema Sócio-Educativo Para repensar o sistema sócio-educativo, não há como não revisitar a história, metodologia feita durante a pesquisa de Mestrado que possibilitou identificar que no tratamento dado à infância, várias críticas feitas no âmbito da internação de adolescentes no decorrer da história eram completamente atuais. Uma das situações era relativa às previsões de estabelecimentos dignos e educativos para a privação de liberdade em um viés “protetivo” contra os riscos e malefícios do confinamento, mas que na prática não correspondia aos modelos estabelecidos legalmente. Instituições como o SAM – Serviço de Assistência ao Menor e sua sucessora, FUNABEM Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, revelaram a distância entre o discurso oficial da criação de tais instituições e a realidade praticada. A primeira, destinada a atuar junto aos “menores desvalidos e delinqüentes”, marcou o início da fase assistencialista e veio a ser substituída pela outra identificada com a ideologia do início do regime militar em 1964, com o discurso de afastar as falhas e malefícios da sua antecessora, e representou a fase de elevação do “menor à categoria de problema de Segurança Nacional”(Bazílio, 2001). Ambas não lograram êxito e os discursos de "salvação", milagre, proteção e bem-estar, na verdade, apontaram para um criativo arsenal lingüístico para encobrir as metáforas de controle da juventude pobre e da criminalização a ela imposta nos períodos analisados. Uma e outra instituição tinham algo em comum: a prática constante e abusiva de internações e a forma como estas se davam nos diferentes diplomas sob discursos de caráter protetivos e pedagógicos. Na verdade, era como uma espécie de reprodução de uma “cultura de internamento” já bastante consolidada à época atingindo até alguns pais que buscavam as instituições como local para “educar” os filhos, como se fossem os famosos “colégios internos”. 10 Ficou evidente, também, o quanto a ausência de políticas públicas que afetava a cidadania de crianças e adolescentes era atribuída como uma falha da família e até da criança marginalizada, ao invés de ser entendida como problema de um modelo sócio-econômico excludente. Uma outra característica marcante deste período, que emerge cristalina, é o olhar seletivo dirigido aos marginalizados, que eram os que lotavam as instituições de privação de liberdade com as facilidades presentes em uma legislação frágil que possibilitava a internação face à ausência de garantias legais, tais como a presença de um defensor que evitasse apreensões arbitrárias por motivos questionáveis. Diante de tantas falhas, tanto no atendimento ao adolescente que viesse a se envolver com uma conduta criminalizada quanto na legislação especial, é que se ergueram os militantes pródireitos humanos de crianças e adolescentes que se mobilizaram para conquistar, em um primeiro momento na Assembléia Nacional Constituinte, o artigo 227 da Constituição Federal que garantiu a proteção aos direitos fundamentais da infância e juventude, prioritariamente, além de colocá-los a salvo de toda forma de violência, negligência, crueldade e opressão. A mobilização social não cessou com a conquista constitucional, continuou organizada na luta para as previsões constantes da regulamentação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Como a proposta aqui é a reflexão tão-somente no âmbito do sistema sócio-educativo, vale chamar a atenção para a importância dos estudos da Criminologia Crítica (Sociologia do Direito Penal) para os avanços em prol de um novo olhar sobre a prática das condutas criminalizadas. Isto fica evidente quando o cometimento do ato infracional é tratado de forma diferenciada e avançada, condizente aos estudos desenvolvidos com conhecimentos multidisciplinares para a construção das teses defendidas pelos criminólogos críticos e identificadas no texto do Estatuto tendo em vista três pontos centrais como a defesa dos Direitos Humanos, as críticas à privação de liberdade pela descrença nos discursos ressocializadores e a ênfase em soluções extrajudiciais identificáveis no corpo do texto legal, tais como os direitos fundamentais elencados e suas garantias, previsão de aplicação da medida de internação somente em último caso, excepcionalmente, indicando a preferência para a aplicação de medidas ditas em meio-aberto (advertência, prestação de serviços à comunidade, obrigação de reparar o dano e liberdade assistida) em detrimento das que acarretassem em restrição ou privação de liberdade (semi-liberdade e internação). Tais previsões legais visavam impedir a repetição das arbitrariedades antes evidenciadas à época do Código de Menores, como um alto número de internações e o encaminhamento e institucionalização também de crianças (menores de 12 anos) que a partir do Estatuto deixaram de ter suas condutas criminalizadas e deixaram de ser encaminhadas para o Judiciário para irem para os Conselhos Tutelares, responsáveis pela aplicação das medidas protetivas. A proposta foi afastar a 11 culpabilidade da criança com o entendimento que seu envolvimento ocorreu por circunstâncias presentes na sua vida. Esta descriminalização é uma das grandes identificações com as propostas construídas pelos cientistas que se debruçaram sobre uma nova forma de tratar e reagir diante da prática de condutas criminalizadas. Em especial, destaca-se a grande preocupação com a defesa e garantia dos Direitos Humanos durante a privação de liberdade que deveria atender às características específicas de pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, como consta do artigo 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente e cujos direitos específicos estão elencados, em especial, no artigo 124 do ECA, fortalecido pela normativa internacional pertinente. Na referida pesquisa de Mestrado, já citada, ficou evidenciado que, apesar das conquistas aqui apontadas a partir da reforma legal, fortemente amparada pelo respeito aos direitos humanos dos adolescentes autores de atos infracionais, estava presente um círculo vicioso de processos paralelos de vitimização e de criminalização compatíveis com um forte sistema de seletividade punitiva. Na dissertação foram investigadas as circunstâncias presentes antes, durante e após a aplicação e cumprimento da medida sócio-educativa de internação, através das falas dos próprios adolescentes paralelamente a de seus familiares. Isto possibilitou estabelecer e identificar três processos paralelos de vitimização e criminalização de graus diferentes, assim discriminados: de primeiro grau (relativo à ausência de políticas públicas e a seletividade desde a apreensão e julgamento da decisão judicial; de segundo grau (correspondente ao período em que o adolescente cumpria a medida sócio-educativa de internação e vivia o clímax do círculo vicioso) e a de terceiro grau (quando o adolescente retorna ao seio da sociedade por regressão da medida pelo Juiz ou pela evasão de altos índices, cujos efeitos perversos serão analisados mais adiante). O percurso histórico revelou a prevalência da força da cultura punitiva em detrimento de propostas de políticas de atendimento e previsões legais protetivas e educativas e a continuidade nas três fases investigadas não obstante o forte aparato legal atual com ênfase nos Direitos Humanos que evidenciou a face oculta do sistema que aqui serão denominadas na sequência como equívocos e efeitos perversos. 3.2 Equívocos Perversos Não obstante os resultados negativos no âmbito do sistema sócio-educativo, em especial quando aplicada a privação de liberdade e dos baixos índices de envolvimento dos adolescentes com condutas de alto índice de violência, como homicídio, a cada vez que um adolescente pratica 12 um ato violento de grande destaque na mídia, tem início todo um processo de combate à atual legislação, clamando pelo rebaixamento da maioridade penal sob o discurso de que os adolescentes ficam impunes, gerando nova mobilização social tanto pró quanto contra a mudança que procurar ressuscitar o velho discurso baseado no critério do discernimento. O que poucos sabem é que isto significa um retorno a um passado bem distante, desprezando toda a produção de conhecimento moderno e pós-moderno. O Código Criminal de 1830, já trazia tal critério, bem como o primeiro Código Penal Republicano, no qual vigorava a inimputabilidade para os menores de 9 anos e o encaminhamento para um estabelecimento correcional daqueles que estivessem entre a idade de 9 e 14 anos. O grande risco deste tipo de critério, já historicamente ultrapassado, é a subjetividade presente na decisão que indicará se houve ou não discernimento. O texto legal do Estatuto teve a contribuição de estudiosos de diferentes áreas do conhecimento e apontou para um avanço legislativo pelo texto comprometido com novas conquistas científicas. Seria um retrocesso científico, bem como social. Daí configurar o que J.J. Gomes Canotilho chama de “Proibição de Retrocesso Social19, impossibilitando qualquer tipo de alteração constitucional. Seria uma espécie de “fracasso anunciado”, representado por um caso emblemático de um passado não tão distante. Trata-se do famoso “caso Aída Cury”, de grande clamor público em conseqüência de um forte trabalho vitorioso de produção de subjetividade. Por conta da participação de um jovem menor de 18 anos na morte de uma estudante, houve um retrocesso e um agravamento na responsabilidade penal. A Lei 5258/67 substituiu a chamada Lei de Emergência (Decreto-Lei 6026 de 24.11.1943) que adequou o Código de Menores (1927) ao Código Penal de 1940, rebaixando para 16 anos a idade da responsabilidade penal. Certos conceitos que estão introjetados na subjetividade da maioria das pessoas, com a contribuição dos meios de comunicação de massa, como o adolescente oferecer maior periculosidade que os adultos, voltam à tona a cada episódio. A mídia é invadida por notícias não tão informativas com o viés do interesse público, como eticamente deveriam ser. Bodê (2005) 20 , assim abordou a questão. O adolescente foi apresentado como sendo o principal mentor e o mais perigoso entre os criminosos. Aliás, os adultos que faziam parte do grupo ficaram eclipsados pela suposta periculosidade do menor, que teria confessado „ter matado apenas porque sentiu vontade de matar‟.” 19 LOPES, Ana Christina Brito & ROSA, Alexandre Morais da. Redução da Idade Penal: Vale a Pena Ver de Novo? In VALLE, Juliano Keller do & MARCELINO JR., Julio César. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008 20 BODÊ DE MORAES. Pedro Rodolfo. Juventude, Medo e Violência. In Ciclo de Debates Direito e Psicanálise. Paraná. digit. 2005 13 Dentre conceitos que precisam ser desconstruídos, além da periculosidade excessiva, destaca-se o da impunidade que, na maioria das vezes, é atribuída aos adolescentes. Na verdade, confunde-se esta com inimputabilidade. No ordenamento jurídico nacional, aqueles que têm idade inferior a 18 anos são inimputáveis de acordo com a Constituição Federal, o Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente. No entanto, são imputáveis à legislação especial, que é justamente o Estatuto, o qual regula a responsabilidade dos adolescentes quando estes praticarem um ato previsto como crime ou contravenção penal. Portanto, não há que se falar em impunidade que seria o caso daqueles que não serão responsabilizados e sobre si não terão a aplicação de qualquer tipo de sanção. Adolescentes infratores não deveriam ser punidos e sim educados e protegidos, não mais por uma questão de filantropia ou assistencialismo, objetos da caridade e assistência. Deveriam ser responsabilizados sob o ordenamento jurídico que regula seus direitos. No entanto, mesmo com os avanços legais, parece que a práxis vem saindo vitoriosa e perpetuando uma incrível punição que vem transformando as medidas sócio-educativas em meras metáforas de controle cujos equívocos vem apresentando conseqüências mais uma vez vitimizadoras. 3.3 Efeitos Perversos Como efeitos perversos são entendidos os resultados da seletividade punitiva representada pelos processos paralelos e inseparáveis de criminalização e vitimização ao qual são submetidos os adolescentes, sujeitos de direito responsabilizados pelo Estatuto à privação de liberdade. Resumidamente, as etapas do processo foram assim categorizadas na dissertação de Mestrado: a) primeiro grau (antes da aplicação da medida sócio-educativa de internação) – os adolescentes unanimemente afirmaram ter se envolvido com as práticas criminalizadas por vontade de terem acesso a bens de consumo que não teriam condições de adquirir com os recursos das famílias; b) segundo grau (durante a internação) - o processo de criminalização se desenvolvia pelos relacionamentos com os demais adolescentes, muitas vezes em estágios mais avançados de condutas criminalizadas e já reincidentes e, paralelamente, sustentavam diferentes tipos de violação de seus direitos humanos e também previstos no Estatuto; c) terceiro grau (pós-internação) – retorno à “liberdade” através da progressão da medida. Momento que alimenta o círculo vicioso pela forma marginalizada que se dá o regresso, por evasão do sistema sócio-educativo, cujos efeitos serão mais detalhados na sequência. 14 A militância na área de direitos de crianças e adolescentes e o exercício profissional em dois Estados e Municípios diferentes – Rio de Janeiro e Curitiba - contribuíram para a observação de momentos diferenciados de risco para a ocorrência de letalidade de adolescentes sujeitos ao sistema sócio-educativo que levam ao mesmo resultado: punição precoce por extermínio real (letalidade) ou simbólico (ingresso no sistema penitenciário). No Estado do Rio de Janeiro, de acordo com a pesquisa realizada para o Mestrado, o risco maior é durante a fase correspondente a medida sócio-educativa de semi-liberdade, enquanto em Curitiba e região Metropolitana, este se observa durante o período de cumprimento das medidas ditas em meio-aberto (liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade). A primeira hipótese para os diferentes índices de aplicação em um e outro Estado, pode ser conseqüência da diferença de oferta de programas e unidades executoras nos dois Estados o que acaba propiciando a aplicação pelo Judiciário de uma ou outra dependendo da possibilidade do adolescente ter como cumprir a medida.21 No caso do Rio de Janeiro, a atuação como advogada 22possibilitou o acompanhamento após o momento intramuros. Somente cumpriram a medida de semi-liberdade aplicada, de um a dois por cento dos adolescentes atendidos. Imediatamente após o ingresso nas unidades onde deveriam cumprir a medida, evadiam-se por motivos que não caberão ser aqui abordados. Daí a medida configurar o que os próprios familiares passaram a chamar de “armadilha”. Iniciava-se o momento de maior risco para o controle efetivo desta parcela da sociedade representada pela juventude maciçamente da periferia: a punição maior pelo extermínio de duas vias.23 Não obstante o final das atividades profissionais com os adolescentes e da pesquisa de Mestrado, um acompanhamento informal das trajetórias dos adolescentes foi feito e os efeitos perversos começaram a surgir: quatro mortes em circunstâncias não esclarecidas e dois ingressaram imediatamente no sistema penitenciário. Após seis anos de concluída a pesquisa de Mestrado aqui apresentada, a militância na área de garantia e defesa de direitos infanto-juvenis possibilitou, em outro Estado, o contato com novas fontes que permitiram o confronto e percepção da continuidade dos processos de vitimização já detectados no terceiro momento investigado (pós-cumprimento da medida sócio-educativa de internação e retorno à sociedade). 21 Esta questão não será fruto de análise neste momento, mas vale destacar a contrariedade ao direito do adolescente autor de ato infracional, uma vez que o que deveria orientar a aplicação da medida seria a melhor adequação à conduta praticada e às características e necessidades do adolescente. 22 Paralelamente a pesquisa de campo do Mestrado, havia a atuação no Projeto Quebrantar na Fundação Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião na cidade do Rio de Janeiro voltado para o atendimento sócio-jurídico de adolescentes infratores e suas famílias. 23 Como já explicitado acima, o extermínio aqui destacado pode se configurar na morte do adolescente ou no ingresso no sistema penitenciário. 15 Isto ficou mais evidente com os dados revelados por um relatório produzido pela Comissão de Direitos Humanos da OABPR relativo às diligências realizadas em Delegacias do Município de Curitiba encaminhado para a Comissão da Criança e do Adolescente em março de 2009 no qual o parecer realizado destacou a presença em Delegacias Públicas de um grande percentual de jovens entre 19 e 23 anos, o que chamou a atenção e apontou para um aparente fracasso no que tange ao que antes parecia ser um progresso apresentado pela reforma legislativa, ou seja, o sistema sócioeducativo que na letra da lei, introduzia uma política de atendimento que anunciava uma proposta de vanguarda para adolescentes que teriam a chance de mudar de trajetória em suas vidas. Diante da leitura dos dados apresentados pela Diligência, os jovens presentes nas Delegacias tinham a mesma idade ou pouco mais que o tempo de promulgação do Estatuto da Criança e da Convenção dos Direitos da ONU24, indicando que a festejada Proteção Integral não atingira seus propósitos diante da quantidade majoritária de jovens “depositados nas celas” prestes a ingressarem em exclusão mais definitiva e cruel. Esta percepção foi fortalecida pela observação de outras fontes: dados da Vara da Infância e Juventude de Curitiba e do Programa Liberdade Solidária (executado pela Fundação de Ação Social da Prefeitura de Curitiba)25, nas quais foram observados os números consideráveis de letalidade de adolescentes durante o cumprimento das medidas sócio-educativas em meio-aberto (liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade). De acordo com as fontes analisadas, é possível perceber que os efeitos perversos sobre a juventude, majoritariamente das periferias, vêm se manifestando de duas formas distintas: pela letalidade, geralmente de formas violentas, ou pelo ingresso no sistema penitenciário, que pode representar uma forma metafórica de extermínio, tendo em vista que muitos sairão de lá completamente “exterminados”, por terem consumido suas vidas intramuros e sem qualquer possibilidade de convívio e inserção social enquanto outros sucumbirão por lá mesmo pelos inúmeros riscos de conflito interno no ambiente carcerário. Daí a necessidade de se repensar como buscar todos os argumentos usados e perdidos para um sistema realmente sócio-educativo, compatibilizando discurso oficial e práticas institucionais. Mas já é possível vislumbrar que o desafio seja o difícil reconhecimento da condição de sujeitos e a afirmação dos direitos conquistados para os adolescentes. 24 Em 2009, o Estatuto completou 19 anos em julho e a Convenção completará 20 anos em novembro. Trata-se de dados registrados por funcionários das duas instituições. O Programa da FAS desenvolve as ações pertinentes ao cumprimento da medida sócio-educativa de liberdade assistida. 25 16 4 NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS: “O DESPERTAR DOS NOVOS SUJEITOS” Touraine (2007) coloca como exemplo do despertar de novos sujeitos, o caso das mulheres, como já mencionado acima. No entanto, ele atribui tal feito como conseqüência da militância praticada por elas que, segundo ele passaram a unir reivindicações a igualdade de direitos com os homens à afirmação de direitos específicos femininos. Ele continua, dizendo é ao mesmo tempo a consciência da dominação sofrida e a de uma existência particular, e portanto de direitos particulares, que fazem da mulher um sujeito, que dirige sua ação principal para si mesma, para a afirmação de sua especificidade e ao mesmo tempo de sua humanidade. O autor citado fortalece o que já vem sendo o foco de lutas atuais de adultos próconcretização de direitos infanto-juvenis que não tenham interesses colidindo com a concretização do avanço legal... Neste sentido, palestras, produções acadêmicas e várias outras ações vêm sendo feitas para promover um direito também conquistado e ainda não efetivado que é o protagonismo da infância e juventude no qual se oportuniza a participação do adolescente dando voz a ele para que opine sobre sua própria vida como sujeito de direito que é. Tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente, quanto a Convenção dos Direitos de Crianças e Adolescentes priorizam e normatizam a participação e escuta de crianças e adolescentes sobre seus direitos. Uma das abordagens de Touraine (2007) que mais provocou reflexão por confirmar projetos já idealizados para serem colocados em prática, como uma maior participação de adolescentes na deliberação de políticas públicas nos Conselhos de Direitos, foi sobre iniciativas para a conscientização deles como sujeitos É impossível descrever a priori, ..., e em termos gerais, as condições que favorecem o surgimento, num indivíduo ou num grupo, da consciência de ser um sujeito. Os modelos propostos pela educação, ou seja, as expectativas manifestadas por aqueles que estimulam ou não um jovem a se tornar a si mesmo como finalidade de sua ação, a procurar-se a si mesmo, têm grande importância. Muitas vezes é um adulto amigo ou um parente que exerce a influência decisiva sobre alguém mais jovem...26 Ainda segundo Touraine (2007), para que se forme tal consciência é preciso o surgimento e combinação de três componentes: 1) uma relação a si mesmo, ao ser individual, como portador de direitos fundamentais; 2) o sujeito não se forma a não ser entrando conscientemente em conflito com as forças dominantes que lhe negam o direito e a possibilidade de agir como sujeito; 3) cada um, enquanto sujeito, propõe uma certa concepção geral do indivíduo. O grande desafio é transportar o modelo sugerido por Touraine para a conscientização de 26 Ob.cit., pg. 131 17 adolescentes infratores, sujeitos de direitos fundamentais muito específicos pela grande dificuldade de se colocarem em posição de conflito com as forças dominantes, tendo em vista que estarão na base de uma cadeia de interesses e, principalmente por se encontrarem em situação de muita vulnerabilidade intramuros. CONSIDERAÇÕES FINAIS Sistema sócio-educativo: educação, punição ou efeitos perversos? Pelas considerações a partir da breve trajetória aqui apresentada, fica evidente um maior compromisso com a punição do que com a educação, bem como os efeitos perversos que estão advindo de práticas ultrapassadas, mas vitoriosas por estarem culturalmente disseminadas e até em consonância com os ideais do “senso comum”. No que diz respeito aos adolescentes na cidade do Rio de Janeiro, a vulnerabilidade aos efeitos perversos estará presente durante a semi-liberdade, enquanto em Curitiba o risco de incidência dos mesmos efeitos corresponderá ao período de cumprimento da medida de liberdade assistida. Não obstante, as observações terem sido feitas em apenas dois Municípios, o contato com dados de outras regiões territoriais aponta para um fenômeno observável nacionalmente, guardadas as especificidades como as aqui verificadas cujos resultados sempre caminharão para um repensar do sistema sócio-educativo para além do equivocado rebaixamento da maioridade penal por uma questão de observância aos princípios constitucionais e legais. A análise das fontes aponta para um tratamento de crianças e adolescentes de difícil dissociação entre educação/disciplina e métodos punitivos, apesar de uma legislação fortemente marcada pela garantia dos Direitos Humanos fruto de grande mobilização social e de profissionais multidisciplinares para a construção e conquista da reforma legal que teve como um dos pilares a transformação de crianças e adolescentes de objetos em sujeitos de direitos. Dentre os grupos ditos vulneráveis, o grupo representado por crianças e adolescentes ainda tem muitos direitos que não foram afirmados. No entanto, os demais mobilizaram-se e investiram nas lutas em prol de seus próprios interesses e alcançaram êxito. O que pode se destacar como obstáculo a ser transposto é a dominação exercida sobre eles pelo mundo adulto que os subordina e os mantêm reféns como objetos, pela condição peculiar de pessoas em desenvolvimento que os deixa submissos pela dependência total daqueles que detêm o poder sobre eles (pais, avós, professores, educadores, técnicos...). No âmbito da infância e juventude, parece que as análises de Boaventura Santos (2005) e Touraine (2007) se somam e se adequam, em especial, ao conhecimento que se precisa construir para provocar a efetivação das transformações anunciadas pela reforma legal, em suas lições para 18 uma busca para maior efetividade das conquistas legais e a conseqüente afirmação dos direitos especiais. Há que se buscar a inversão da lógica do atual senso comum que, no âmbito do sistema sócio-educativo: 1) coloca o ônus dos altos índices de violência sob responsabilidade de adolescentes, colocando-os como de alta periculosidade para a sociedade - inimigos públicos número um; 2) proclama que Estatuto da Criança e do Adolescente seja sinônimo de impunidade e que; 3) para melhorar a solução medidas gravosas devem ter lugar como a que vem inspirando mudanças para o rebaixamento da maioridade penal na intenção de buscar uma punição mais precoce. Parece que o ensinamento de Boaventura (2007), aproximando a ciência do “senso comum” para ampliar o acesso ao conhecimento e devolver um outro “senso comum” possa ser uma boa metodologia de desconstrução neste âmbito, quiçá com a ajuda dos próprios meios de comunicação de massa que tanto contribuem para disseminar o senso comum que se quer transformar e que deixam de informar por não estarem ainda comprometidos com os princípios constitucionais dos meios de comunicação que deveriam priorizar informações educativas de relevância social. Por outro e, paralelamente, não obstante a dependência que subordina crianças e adolescentes ao mundo adulto que os “domina” e os mantém objeto de suas vontades, há que se buscar a conscientização para a libertação e afirmação de direitos, de que também trata Touraine (2007), usando-se de formas específicas e legitimadas pelo atual ordenamento jurídico que fortalece esta participação, em especial, nos Conselhos de Direitos para deliberação de políticas públicas que a eles beneficiarão. A democracia participativa como forma de controle da sociedade, como defende, Boaventura Santos (2005). A histórica punição precoce que se mantém e que alguns querem exacerbar, chega a denotar uma “ordem” estabelecida que precisa ser subvertida para ajustar a mudança legislativa à realidade Baratta (1998) parece ter antevisto a dificuldade que estava por vir analisando a reforma legislativa ao dizer que Sem que se realize o projeto de uma sociedade mais igualitária e mais justa, a aplicação do novo direito da infância e da adolescência é impossível... Hoje, utopia concreta é a legalidade constitucional, e a realidade material, a defesa com todos os meios do status quo das relações sociais, é a subversão, caso esta palavra ainda possua sentido.27 E, para além da subversão da (des)ordem 28 , há que se subverter também o senso comum totalmente equivocado e distante da produção científica, mas tão-somente por ter acesso a conhecimentos muitas vezes equivocados e selecionados pela mídia que, também deve contribuir 27 BARATTA, Alessandro. Prefácio In Difíceis Ganhos Fáceis:drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Vera Malaguti Batista. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia: Freitas Bastos, 1998 28 Diante da legislação atual, vive-se uma ordem subvertida, tendo em vista o não cumprimento legal na sua totalidade 19 nesta proposta. Voltando a Touraine(2007)29, cuja análise orientou as reflexões aqui desenvolvidas no intuito de repensar o sistema sócio-educativo e que possibilitará muitas outras, tendo em vista que o olhar sociológico está apenas aqui introduzido, há que se enfrentar novos conflitos e no âmbito do sistema sócio-educativo, reconhecendo os adolescentes, em especial os autores de atos infracionais, como categoria inferiorizada, a luta parece ser pelo protagonismo dos próprios adolescentes para, a exemplo das mulheres, organizarem-se em novos movimentos sociais agora não mais para conquistar direitos, mas para tomar posse e afirmar os que já foram conquistados. A partir das análises aqui destacadas, é possível vislumbrar a necessidade de que há que haver um esforço conjunto, capitaneado pelos próprios adolescentes para despertarem como sujeitos que os potencialize a ponto de serem capazes de neutralizar equívocos e efeitos perversos. Há, ainda, que se dar amplo acesso ao conhecimento científico neste âmbito do sistema sócio-educativo a partir de um grande repensar do sistema sócio-educativo para que adolescentes infratores deixem de ser o bode-expiatório selecionado para políticas emergenciais e punitivas. Esta é a esperança que, finalmente, a verdadeira ordem seja restabelecida e ocupe seu lugar. Por último, que o “senso comum” perca o “apetite punitivo” ao alcançar o conhecimento que o transforme em respeito à lei reconhecendo-a como suficiente e capaz de fazer as mudanças desejadas e postergadas apenas pela sua efetivação não com mudanças em busca de oficializar e agravar a punição precoce. 29 Ob. Cit. (pg.242) 20 Referências Bibliográficas BARATTA, Alessandro. Prefácio. In Difíceis Ganhos Fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Vera Malaguti Batista. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia: Freitas Bastos, 1998 BAZÍLIO, Luiz Cavalieri. Crianças e Adolescentes no Centro da Cena: Trajetória e Consolidação de um Grupo de Pesquisa. Ravil Editora. Rio de Janeiro. 2001 BODÊ DE MORAES. Pedro Rodolfo. Juventude, Medo e Violência. In Ciclo de Debates Direito e Psicanálise. Paraná. digit. 2005 LOPES. Ana Christina Brito. Ultrapassando Muros: um olhar crítico sobra a criminalização e a vitimização do adolescente privado de liberdade. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UCAM, 2003 _______ & ROSA, Alexandre Morais da. Redução da Idade Penal: Vale a Pena Ver de Novo? In VALLE, Juliano Keller do & MARCELINO JR., Julio César. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008 MORAIS DA ROSA. Alexandre. Introdução Crítica ao Ato Infracional: princípios e garantias processuais. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2007 SANTOS. Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez Editora, 2005 SOSA, Armando Cisneros. Movimientos em la sociedad posindustrial. In Crítica dos Movimientos Sociales: debate sobre la modernidad, la democracia y la igualdad social. Mexico: UAM, 2001 TOURAINE, Alain. Um novo paradigma: para compreender o mundo de hoje; tradução de Gentil Avelino Tilton. 3ª edição – Petrópolis, RJ: Vozes, 2007