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GRUPO DE TRABALHO 4
CIDADANIA, CONTROLE SOCIAL E MIGRAÇÕES
INTERNACIONAIS
“REPENSANDO O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO:
EDUCAÇÃO, PUNIÇÃO OU EFEITOS
PERVERSOS?”
Ana Christina Brito Lopes
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“REPENSANDO O SISTEMA SÓCIO-EDUCATIVO: EDUCAÇÃO, PUNIÇÃO OU
EFEITOS PERVERSOS?”
Ana Christina Brito Lopes1
RESUMO
A comunicação pretende apresentar e problematizar representações sociais sobre jovens,
particularmente aqueles vistos como marginalizados, objetivando a imprescindível desconstrução
sobre o potencial de periculosidade e ameaça de adolescentes a partir da análise das contradições
que permeiam o universo do sistema sócio-educativo. As delegacias e penitenciárias superlotadas
por uma legião de jovens nascidos sob a égide do Estatuto da Criança e do Adolescente, que os
elevou à categoria de “sujeitos cujos direitos, devem ser protegidos integralmente, de forma
prioritária”, por si só, já apontam para o grande fracasso da proposta pedagógica idealizada. Não
bastasse isto, altos índices de letalidade de jovens vêm sendo observados. Para repensar os entraves
sociais do histórico modelo repressor e punitivo vitorioso sobre os direitos conquistados, serão
utilizadas fontes com origem em pesquisa própria, em uma abordagem interdisciplinar através de
um diálogo entre a Sociologia e o Direito, buscando analisar a perpetuação das práticas punitivas
culturalmente herdadas.
Palavras-chave: Adolescentes Infratores. Sujeitos de Direitos. Punição Precoce.
INTRODUÇÃO
A militância em prol de direitos humanos de crianças e adolescentes, marcada por uma
experiência inicial no grande “calcanhar de Aquiles” da Lei 8069/90 (Estatuto da Criança e do
Adolescente), representada pela aplicação e cumprimento da medida sócio-educativa de internação
para adolescentes infratores, a experiência em políticas públicas para a infância e adolescência
como Conselheira Estadual de Direitos de Crianças e Adolescentes e a experiência como
pesquisadora, suscitaram a necessidade de procurar em outra área do saber (Sociologia)
instrumentos para entender a lógica do sistema sócio-educativo e a interação entre os atores do
referido sistema incluindo aqui o denominado, sistema de garantia de direitos.
A necessidade de buscar uma interlocução com a Sociologia foi fruto da vontade de
compreender as práticas sociais diante da percepção que muitas conquistas legais não foram
efetivadas, apesar dos avanços enaltecidos, até internacionalmente, pela sua abrangência e
comprometimento com a proteção aos Direitos Humanos de crianças e adolescentes, identificada
1
Doutoranda em Sociologia (UFPR). Mestre em Ciências Penais. Secretária da Comissão da Criança e do Adolescente
da OABPR, Consultora do CEDCA-PR, representando a OABPR, Coordenadora e Professora do Curso de
Especialização da PUCPR “Panorama Interdisciplinar do Direito da Criança e do Adolescente”, Professora do Curso de
Direito da PUCPR, Membro do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da UFPR.
[email protected]
3
como Doutrina da Proteção Integral ainda conservam, nas práticas institucionais, relação com as
legislações ultrapassadas e revogadas, meramente punitivas e de controle social.
Alguns questionamentos foram provocados: será que os movimentos sociais que uniram
diversos segmentos da sociedade que se organizaram e lutaram por uma lei que previu ações
voltadas para a participação popular na defesa e deliberação de políticas para a infância e juventude,
não estão tendo força suficiente ou será fruto de uma desmobilização? Por que as mudanças
anunciadas sucumbiram às forças da herança das práticas antes criticadas e que inspiraram toda a
mobilização pró-mudanças?
Tais questionamentos se originam de análises baseada em dados de pesquisa própria e de
observações possíveis através do exercício profissional tanto academicamente quanto nos espaços
destinados à defesa e garantia de direitos de crianças e adolescentes como a Comissão da Criança e
do Adolescente da OABPR.
No cotidiano da trajetória pró-efetivação de direitos infanto-juvenis tem sido comum o
desalento em ver o acúmulo de aniversários da reforma legal sendo marcados pelas repetidas e
majoritárias vozes de pedido de redução da maioridade penal, como forma de proteger a sociedade
pelo aumento e antecipação da punição, ou em outras palavras, através de uma “precocidade
punitiva” em detrimento dos direitos do sujeito de direitos que emergiu na figura do adolescente
autor de ato infracional.
Revisitando o passado, parece que algumas possibilidades de explicações já são possíveis: a
matriz punitiva esteve sempre presente e apenas os discursos teóricos foram sendo trocados para
novas metáforas de controle, como as atuais medidas sócio-educativas. A Sociologia surge como a
ciência a possibilitar a compreensão dos fenômenos deste universo.
1 A Mudança De Paradigmas E A Busca Da Verdade À Luz Da Sociologia
O curso de Doutorado em Sociologia na UFPR possibilitou o conhecimento de quatro
referências bibliográficas apresentadas pelo Prof. Dimas Floriani que, desde logo, se destacaram
dentre as demais pela proximidade das análises apresentadas com o objeto dos estudos sobre os
temas de crianças e adolescentes que aqui serão sucintamente apresentadas para possibilitar a
interseção com os direitos de crianças e adolescentes.
Dentre as referências bibliográficas, destacou-se, em especial, a mudança de paradigma
apresentada por Alain Touraine 2, pela abordagem sobre a importância da afirmação de direitos,
2
TOURAINE, Alain. Um novo paradigma: para compreender o mundo de hoje; tradução de Gentil Avelino Tilton. 3ª
edição – Petrópolis, RJ: Vozes, 2007
4
pela ênfase nos Direitos Humanos Fundamentais e, principalmente, pela análise apresentada de uma
das noções que se encontra no centro do novo paradigma: os sujeitos de direitos.
Isto se justifica pela conquista a partir da reforma legal que elevou crianças e adolescentes,
antes objetos, à condição de sujeitos de direitos e priorizou a garantia aos Direitos Humanos
especiais.
Outro ponto da análise de Touraine que contribuiu para o tema aqui desenvolvido foi seu
questionamento sobre a hipótese da escalada da violência e o recurso ao sujeito pessoal serem
conseqüências do declínio social, evocando como temas3:
1)
a decomposição social;
2)
a escalada das forças situadas acima da sociedade: a guerra, os
mercados, o comunitarismo, a violência pessoal e interpessoal;
3)
o apelo ao individualismo como princípio de uma „moral‟.
A leitura da construção histórica do relatório da Comissão Gulbenkian para Reestruturação
das Ciências Sociais4, permitiu compreender a ligação do uso da história, como primeira disciplina
das ciências sociais e que adquiriu existência institucional autônoma, para a “busca de verdades”
que se pretenda descobrir em pesquisas sobre determinado tema dentro da sociedade.
Na verdade, esta prática foi utilizada na pesquisa de Mestrado realizada5 como forma
conhecer a trajetória do atendimento prestado à infância no passado. Ficou evidente a importância
de resgatar as práticas passadas para a percepção e revelação que o círculo vicioso formado por
discursos progressistas que terminam em palavras mortas, quando o assunto é políticas e ações para
proteger infantes, vêm de longa data.
O citado relatório chamou a atenção, ainda, por resgatar o fato de que o campo do Direito
nunca havia chegado a atingir o estatuto de ciência social, sob a crítica de cientistas sociais de
vocação nomotética para quem “as suas leis não eram leis científicas”6.
Hoje, seria possível combater tais críticas com base na Lei 8069/90, Estatuto da Criança e do
Adolescente. Esta, a exemplo da internacional Convenção dos Direitos das Crianças da ONU
(1989), teve seu texto baseado em pesquisas e conhecimentos interdisciplinares originados para
reverter as péssimas condições em que eram tratadas crianças e adolescentes, em especial, os mais
criminalizados, aqueles marginalizados. Daí, possivelmente, ser considerada uma das leis mais
avançadas para o seu tempo (e ainda hoje), sendo copiada por outros países.
3
TOURAINE, Alain. Ob. Cit.
Comissão Gulbenkian para Reestruturação das Ciências Sociais – (Immanuel Walterstein – Presidente da Comissão).
São Paulo: Cortez Editora, 2005
5
“Ultrapassando Muros”: um olhar crítico sobre a criminalização e a vitimização do adolescente privado de liberdade
6
Comissão Gulbenkian para Reestruturação das Ciências Sociais – (Immanuel Walterstein – Presidente da Comissão).
São Paulo: Cortez Editora, 2005
4
5
Parece que o valor científico que emana do texto do Estatuto não teve tempo suficiente
ainda, nos seus poucos 19 anos de existência, de tão bem representar uma construção de cunho
compatível com a forma de “conhecimento pós-moderno”. Os estudos científicos que vêm se
desenvolvendo neste campo do saber, caracterizam-se por ter que construir seus trabalhos de forma
a corresponder ao que Boaventura (2005)7 chamou de “composição transdisciplinar e
individualizada”, sugerindo movimentos no sentido da maior personalização do trabalho científico.
Boaventura Santos (2005), aborda a troca de paradigmas no âmbito das ciências: do
dominante ao emergente, em discurso de 1985, no qual ele descreve a crise paradigmática e atribui
às ciências sociais anti-positivistas, uma nova centralidade, defendendo que a ciência, em geral,
primeiro rompe com o senso comum para posteriormente transformar-se em outro mais
esclarecido8.
No âmbito do ordenamento jurídico para a infância e juventude, por seu lado, é possível
apontar para uma outra mudança de paradigmas que introduziu um novo olhar sobre os direitos da
infância que teve como influência na construção de normas jurídicas a troca do olhar da
criminologia tradicional (positivista) pela criminologia crítica (sociologia do direito penal) nos
temas pertinentes ao envolvimento de crianças e adolescentes com condutas criminalizadas.
Não bastava olhar o fato criminalizado objetivamente, mas perceber as circunstâncias
paralelas na vida dos novos sujeitos de direito, tais como fatores psicológicos, familiares e sócioeconômicos, o que provocou e vem provocando uma formação muito específica por parte dos que
pretendem fazer ciência ou que atuam com a infanto-adolescência. Não mais com disciplinas
estanques, mas com diálogo entre elas.
Tratar da complexa questão representada pelos temas da garantia dos direitos infanto-juvenis
demanda a reunião de saberes de áreas de conhecimentos diversos. Mas se o tema escolhido é o
relativo ao envolvimento de adolescentes com condutas criminalizadas e a reação da sociedade e
das leis a esta ação do adolescente, a Sociologia ganha grande destaque como forma de
compreender as tensões das práticas que empurram para uma possível “ilegalidade oficial”, no
sentido de não serem observadas as leis em detrimento da herança cultural dominante na sociedade.
A mudança de paradigma apresentada por Touraine (2007) 9com ênfase na relevância dos
problemas culturais, passando pela globalização e sistemas de informação para uma análise sobre a
realidade social, a priori, parece que poderá contribuir às desafiantes análises para a compreensão
do envolvimento de adolescentes com as condutas criminalizadas, parcela mais vulnerável às
mudanças do mundo globalizado e das conseqüências deste, em especial, pela análise a partir de um
modelo com ênfase em ações a serem efetivadas pelos sujeitos que, para tanto, precisam estar
7
SANTOS. Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez Editora, 2005
Idem, ibidem.
9
TOURAINE, Alain. Ob. Cit.
8
6
conscientes de tal condição, para empreenderem ações em prol de direitos individuais e coletivos.
2 Os Movimentos Sociais E A Emergência De Sujeitos: O Sujeito Adolescente Autor De Ato
Infracional
O ingresso no doutorado de sociologia possibilitou o contato com Touraine (2007) 10e dentre
os autores lidos, este chamou atenção por dedicar-se a falar sobre dois temas marcantes para o
desenvolvimento das pesquisas e militância política: sujeitos e movimentos sociais. Neste
particular, outro autor, Sosa (2005)11, que igualmente contribui para as reflexões sobre os
movimentos sociais, reconhecendo a importância de Touraine para este tema pelo reconhecimento
merecido que deu às lutas sociais. Ele ressalta, ainda, que o referido autor atribui como
característica aos movimentos sociais o fato destes estarem ligados à democracia e à defesa dos
direitos humanos.
Sosa(2005) e Touraine(2007) pela abordagem que fazem sobre a mobilização social tornamse referenciais teóricos úteis diante da importância desta prática para as questões da infância,
desenvolvidos na dissertação desenvolvida no Mestrado12 cujo objeto era o adolescente privado de
liberdade. Nela, teve grande destaque a mobilização e a participação popular que estão intimamente
ligadas com a luta pelas transformações vistas como necessárias para um atendimento a crianças e
adolescentes com ênfase nos direitos humanos para esta parcela da sociedade, reconhecida como
Doutrina da Proteção Integral.
Os primeiros cinco anos da década de 80 foram marcados por um grande número
de iniciativas em todo o território nacional, onde pastorais, associações de
moradores e outras entidades promoveram trabalho com "menores" e criticaram
duramente o modelo clássico de intervenção adotado pelo Estado... Os novos atores
que surgem e se consolidam na primeira metade dos anos 80 são justamente
aqueles que irão imprimir ao processo Constituinte (1987 e 1988) avanços que
permitirão o texto da Carta Magna definir criança como prioridade absoluta... O
resultado deste movimento se traduz num texto constitucional que, construído
através de mecanismos de embate e negociação, contém expressivas
transformações obtidas pelos setores populares. 13
A participação popular que moveu a luta pelos direitos foi privilegiada no próprio texto da
nova lei com a instituição de dos Conselhos de Direitos e Tutelares, ambos marcados pela presença
de representantes da sociedade civil. No primeiro, para deliberação de políticas públicas para a
infância e adolescência e no segundo para que pessoas da própria comunidade em que reside o
tutelado zelem para impedir violação dos direitos de que são titulares.
10
Idem, ibidem.
SOSA, Armando Cisneros. Movimientos em la sociedad posindustrial. In Crítica dos Movimientos Sociales: debate
sobre la modernidad, la democracia y la igualdad social. Mexico: UAM, 2001
12
“Ultrapassando Muros”: um olhar crítico sobre a criminalização e a vitimização do adolescente privado de liberdade
13
BAZÍLIO, Luiz Cavalieri. Crianças e Adolescentes no Centro da Cena: Trajetória e Consolidação de um Grupo de
Pesquisa. Ravil Editora. Rio de Janeiro. 2001, pg. 84 e 85.
11
7
É observável que, mesmo depois de muitas lutas para imprimir a reforma legal dos direitos
de crianças e adolescentes, muitas das conquistas não vêm sendo concretizadas. Ao contrário,
parece que o compromisso maior seja com a manutenção da ordem anterior que os movimentos
quiseram derrubar e transformar.
A mais lembrada mudança instaurada a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do
Adolescente é a transformação de crianças e adolescentes de objetos em sujeitos de direitos. No
entanto, os interesses e o poder que estão ameaçados são os dos adultos e parece que aí reside a
resistência e o fator que faz com que as conquistas não tenham sido efetivadas em sua totalidade.
Daí a importância da análise de Touraine (2005) com o destaque para o sujeito. Na análise
dele a partir de um novo paradigma este tem destaque. Para exemplificar, ressalta o caso das
mulheres. Aponta para a mobilização feita por elas explicando que
as mulheres lutam para serem reconhecidas como sujeitos – e até se pensam a si
mesmas como sujeitos mais que os homens... Já há muito tempo, a estas
reivindicações de igualdade somou-se a afirmação dos direitos específicos da
mulher, concretizada na fórmula militante.14
São notórios os avanços promovidos por movimentos de segmentos da sociedade, tais como
os alcançados pelos denominados grupos vulneráveis. Negros, homossexuais, idosos e mulheres
avançaram muito em seus direitos. No entanto, eles fizeram a própria mobilização para imprimir as
mudanças que foram conquistadas legalmente ou que, na mão contrária, propiciaram novas normas
em prol de seus interesses.
A análise de Touraine (2007)15 sobre a dificuldade de defesa dos direitos do indivíduo
contra os da comunidade que leva à desconfiança pelas instituições encarregadas de punir os
desviantes e os criminosos é confirmada pela crítica e reflexão por parte de Morais da Rosa,
(2007)16, legitimado pela experiência como Juiz da Infância e Juventude em Joinville, sobre a falta
de respeito com a subjetividade do adolescente autor de ato infracional , reconhecendo que “em
nome do bem”
Ao movimento do adolescente de se rebelar, de deixar de ser o objeto de desejo de
seus pais, surge, não raro, a Instituição para realinhar o adolescente, então,
objetificado, ao desejo dos pais, ocasionando, muitas vezes, o agravamento
subjetivo do adolescente e o desconsiderando como sujeito... Os adultos,
especialistas em adolescente, mesmo imaginariamente, acreditam saber que é bom
para este, especificamente no tocante à normatização de seu desejo, mesmo que ao
preço da autonomia do sujeito.
14
Ob. citada
Ob. Citada, pg. 127. “Sempre tememos que o que se chama de interesse da sociedade ignore o direito que tememos
que o que se chama de interesse da sociedade ignore o direito que cada um tem de ser tratado como sujeito,
respeitando o que chamamos de direitos humanos fundamentais”.
16
Morais da Rosa. Alexandre. Introdução Crítica ao Ato Infracional: princípios e garantias processuais. Rio de Janeiro.
Lumen Juris, 2007
15
8
Morais da Rosa clama pela ética na intervenção, destacando como significante primeiro para
tanto, o reconhecimento do adolescente como um sujeito independente e com autonomia para tomar
suas decisões.
... a negativa da sociedade e suas agências em reconhecer o adolescente como
sujeito tocaia as intervenções ditas pedagógicas e no fundo totalitárias. Muito
porque os adultos preferem (in)conscientemente esquecer esta fase, cuja
lembrança, ainda que muitas vezes angustiante, precisa ser resgatada para poder
ensejar uma abordagem eticamente garantida...17
A questão reside no poder a que estão submetidos crianças e adolescentes que, durante o
período de desenvolvimento de suas vidas, ficam subordinados aos desejos e ao lugar de objeto
daqueles que estão na condição de cuidadores, mesmo que momentaneamente, circunstância na qual
deterão a guarda (e poder) sobre os infantes.
Se já é difícil a efetivação da transformação de crianças e adolescentes de objetos a “ser de
direitos”, a dificuldade se agrava para os que praticam atos infracionais fazerem nascer esta
condição, no viés da garantia de seus Direitos Humanos quando ingressam no sistema sócioeducativo.
3 Repensando O Sistema Sócio-Educativo
Dezenove anos se passaram da comemoração pela promulgação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei 8069/90), muito festejado pelos defensores dos direitos humanos de crianças e
adolescentes após toda a mobilização social por segmentos diversos da sociedade comprometidos
com a transformação de um melhor atendimento e respeito à infância para a conquista de direitos e
garantias legais, consubstanciado na denominada “Doutrina da Proteção Integral”.
Vale dizer que esta Proteção Integral, que se constitui em direitos fundamentais a serem
operacionalizados por um conjunto de ações articuladas por organismos governamentais e nãogovernamentais, não se concretiza apenas com as previsões do Estatuto, mas com outras normas
que a ele se somam para a efetivação do propósito protetivo, em especial, com os poucos
conhecidos documentos internacionais18, com destaque para a Convenção dos Direitos da Criança
da ONU, que completa 20 anos, em novembro deste ano (2009).
Diante do contexto que se configura nestes anos, vale oportunizar e dar maior visibilidade ao
que se costuma chamar “o calcanhar de Aquiles” do Estatuto da Criança e do Adolescente: seu
sistema sócio-educativo representado pelas medidas sócio-educativas e sua aplicação, sempre
17
18
Morais da Rosa. Alexandre. Ob. Cit.
Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude - Regras de Beijing, Regras Mínimas das Nações
Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade e Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil - Diretrizes de
Riad, dentre outras.
9
criticada pela maioria da sociedade, como sinônimo de ausência de punição.
Ocorre que para o grande público, que não têm proximidade com a aplicação e cumprimento
da medida sócio-educativa de internação, não fica evidenciada a tensão entre discurso oficial (e
legal) e prática institucional, fruto de uma herança cultural de práticas passadas e enraizadas que
emerge cristalina após um olhar no passado.
Daí a proposta aqui de revisitar o passado para
viabilizar um melhor panorama sobre a perpetuação do passado a partir do confronto com as
transformações anunciadas na reforma legal.
3.1 A Trajetória Histórica de uma Tentativa de Transformação da Punição em Educação no
Âmbito do Sistema Sócio-Educativo
Para repensar o sistema sócio-educativo, não há como não revisitar a história, metodologia
feita durante a pesquisa de Mestrado que possibilitou identificar que no tratamento dado à infância,
várias críticas feitas no âmbito da internação de adolescentes no decorrer da história eram
completamente atuais.
Uma das situações era relativa às previsões de estabelecimentos dignos e educativos para a
privação de liberdade em um viés “protetivo” contra os riscos e malefícios do confinamento, mas
que na prática não correspondia aos modelos estabelecidos legalmente.
Instituições como o SAM – Serviço de Assistência ao Menor e sua sucessora, FUNABEM Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, revelaram a distância entre o discurso oficial da
criação de tais instituições e a realidade praticada. A primeira, destinada a atuar junto aos “menores
desvalidos e delinqüentes”, marcou o início da fase assistencialista e veio a ser substituída pela
outra identificada com a ideologia do início do regime militar em 1964, com o discurso de afastar as
falhas e malefícios da sua antecessora, e representou a fase de elevação do “menor à categoria de
problema de Segurança Nacional”(Bazílio, 2001).
Ambas não lograram êxito e os discursos de "salvação", milagre, proteção e bem-estar, na
verdade, apontaram para um criativo arsenal lingüístico para encobrir as metáforas de controle da
juventude pobre e da criminalização a ela imposta nos períodos analisados. Uma e outra instituição
tinham algo em comum: a prática constante e abusiva de internações e a forma como estas se davam
nos diferentes diplomas sob discursos de caráter protetivos e pedagógicos. Na verdade, era como
uma espécie de reprodução de uma “cultura de internamento” já bastante consolidada à época
atingindo até alguns pais que buscavam as instituições como local para “educar” os filhos, como se
fossem os famosos “colégios internos”.
10
Ficou evidente, também, o quanto a ausência de políticas públicas que afetava a cidadania de
crianças e adolescentes era atribuída como uma falha da família e até da criança marginalizada, ao
invés de ser entendida como problema de um modelo sócio-econômico excludente.
Uma outra característica marcante deste período, que emerge cristalina, é o olhar seletivo
dirigido aos marginalizados, que eram os que lotavam as instituições de privação de liberdade com
as facilidades presentes em uma legislação frágil que possibilitava a internação face à ausência de
garantias legais, tais como a presença de um defensor que evitasse apreensões arbitrárias por
motivos questionáveis.
Diante de tantas falhas, tanto no atendimento ao adolescente que viesse a se envolver com
uma conduta criminalizada quanto na legislação especial, é que se ergueram os militantes pródireitos humanos de crianças e adolescentes que se mobilizaram para conquistar, em um primeiro
momento na Assembléia Nacional Constituinte, o artigo 227 da Constituição Federal que garantiu a
proteção aos direitos fundamentais da infância e juventude, prioritariamente, além de colocá-los a
salvo de toda forma de violência, negligência, crueldade e opressão.
A mobilização social não cessou com a conquista constitucional, continuou organizada na
luta para as previsões constantes da regulamentação do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Como a proposta aqui é a reflexão tão-somente no âmbito do sistema sócio-educativo, vale
chamar a atenção para a importância dos estudos da Criminologia Crítica (Sociologia do Direito
Penal) para os avanços em prol de um novo olhar sobre a prática das condutas criminalizadas.
Isto fica evidente quando o cometimento do ato infracional é tratado de forma diferenciada e
avançada, condizente aos estudos desenvolvidos com conhecimentos multidisciplinares para a
construção das teses defendidas pelos criminólogos críticos e identificadas no texto do Estatuto
tendo em vista três pontos centrais como a defesa dos Direitos Humanos, as críticas à privação de
liberdade pela descrença nos discursos ressocializadores e a ênfase em soluções extrajudiciais
identificáveis no corpo do texto legal, tais como os direitos fundamentais elencados e suas
garantias, previsão de aplicação da medida de internação somente em último caso,
excepcionalmente, indicando a preferência para a aplicação de medidas ditas em meio-aberto
(advertência, prestação de serviços à comunidade, obrigação de reparar o dano e liberdade assistida)
em detrimento das que acarretassem em restrição ou privação de liberdade (semi-liberdade e
internação).
Tais previsões legais visavam impedir a repetição das arbitrariedades antes evidenciadas à
época do Código de Menores, como um alto número de internações e o encaminhamento e
institucionalização também de crianças (menores de 12 anos) que a partir do Estatuto deixaram de
ter suas condutas criminalizadas e deixaram de ser encaminhadas para o Judiciário para irem para
os Conselhos Tutelares, responsáveis pela aplicação das medidas protetivas. A proposta foi afastar a
11
culpabilidade da criança com o entendimento que seu envolvimento ocorreu por circunstâncias
presentes na sua vida. Esta descriminalização é uma das grandes identificações com as propostas
construídas pelos cientistas que se debruçaram sobre uma nova forma de tratar e reagir diante da
prática de condutas criminalizadas.
Em especial, destaca-se a grande preocupação com a defesa e garantia dos Direitos
Humanos durante a privação de liberdade que deveria atender às características específicas de
pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, como consta do artigo 6º do Estatuto da Criança
e do Adolescente e cujos direitos específicos estão elencados, em especial, no artigo 124 do ECA,
fortalecido pela normativa internacional pertinente.
Na referida pesquisa de Mestrado, já citada, ficou evidenciado que, apesar das conquistas
aqui apontadas a partir da reforma legal, fortemente amparada pelo respeito aos direitos humanos
dos adolescentes autores de atos infracionais, estava presente um círculo vicioso de processos
paralelos de vitimização e de criminalização compatíveis com um forte sistema de seletividade
punitiva.
Na dissertação foram investigadas as circunstâncias presentes antes, durante e após a
aplicação e cumprimento da medida sócio-educativa de internação, através das falas dos próprios
adolescentes paralelamente a de seus familiares.
Isto possibilitou estabelecer e identificar três processos paralelos de vitimização e
criminalização de graus diferentes, assim discriminados: de primeiro grau (relativo à ausência de
políticas públicas e a seletividade desde a apreensão e julgamento da decisão judicial; de segundo
grau (correspondente ao período em que o adolescente cumpria a medida sócio-educativa de
internação e vivia o clímax do círculo vicioso) e a de terceiro grau (quando o adolescente retorna ao
seio da sociedade por regressão da medida pelo Juiz ou pela evasão de altos índices, cujos efeitos
perversos serão analisados mais adiante).
O percurso histórico revelou a prevalência da força da cultura punitiva em detrimento de
propostas de políticas de atendimento e previsões legais protetivas e educativas e a continuidade nas
três fases investigadas não obstante o forte aparato legal atual com ênfase nos Direitos Humanos
que evidenciou a face oculta do sistema que aqui serão denominadas na sequência como equívocos
e efeitos perversos.
3.2 Equívocos Perversos
Não obstante os resultados negativos no âmbito do sistema sócio-educativo, em especial
quando aplicada a privação de liberdade e dos baixos índices de envolvimento dos adolescentes
com condutas de alto índice de violência, como homicídio, a cada vez que um adolescente pratica
12
um ato violento de grande destaque na mídia, tem início todo um processo de combate à atual
legislação, clamando pelo rebaixamento da maioridade penal sob o discurso de que os adolescentes
ficam impunes, gerando nova mobilização social tanto pró quanto contra a mudança que procurar
ressuscitar o velho discurso baseado no critério do discernimento.
O que poucos sabem é que isto significa um retorno a um passado bem distante,
desprezando toda a produção de conhecimento moderno e pós-moderno. O Código Criminal de
1830, já trazia tal critério, bem como o primeiro Código Penal Republicano, no qual vigorava a
inimputabilidade para os menores de 9 anos e o encaminhamento para um estabelecimento
correcional daqueles que estivessem entre a idade de 9 e 14 anos.
O grande risco deste tipo de critério, já historicamente ultrapassado, é a subjetividade
presente na decisão que indicará se houve ou não discernimento. O texto legal do Estatuto teve a
contribuição de estudiosos de diferentes áreas do conhecimento e apontou para um avanço
legislativo pelo texto comprometido com novas conquistas científicas. Seria um retrocesso
científico, bem como social. Daí configurar o que J.J. Gomes Canotilho chama de “Proibição de
Retrocesso Social19, impossibilitando qualquer tipo de alteração constitucional.
Seria uma espécie de “fracasso anunciado”, representado por um caso emblemático de um
passado não tão distante. Trata-se do famoso “caso Aída Cury”, de grande clamor público em
conseqüência de um forte trabalho vitorioso de produção de subjetividade. Por conta da participação
de um jovem menor de 18 anos na morte de uma estudante, houve um retrocesso e um agravamento
na responsabilidade penal. A Lei 5258/67 substituiu a chamada Lei de Emergência (Decreto-Lei
6026 de 24.11.1943) que adequou o Código de Menores (1927) ao Código Penal de 1940,
rebaixando para 16 anos a idade da responsabilidade penal.
Certos conceitos que estão introjetados na subjetividade da maioria das pessoas, com a
contribuição dos meios de comunicação de massa, como o adolescente oferecer maior
periculosidade que os adultos, voltam à tona a cada episódio. A mídia é invadida por notícias não
tão informativas com o viés do interesse público, como eticamente deveriam ser. Bodê (2005)
20
,
assim abordou a questão.
O adolescente foi apresentado como sendo o principal mentor e o mais perigoso
entre os criminosos. Aliás, os adultos que faziam parte do grupo ficaram eclipsados
pela suposta periculosidade do menor, que teria confessado „ter matado apenas
porque sentiu vontade de matar‟.”
19
LOPES, Ana Christina Brito & ROSA, Alexandre Morais da. Redução da Idade Penal: Vale a Pena Ver de Novo?
In VALLE, Juliano Keller do & MARCELINO JR., Julio César. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008
20
BODÊ DE MORAES. Pedro Rodolfo. Juventude, Medo e Violência. In Ciclo de Debates Direito e Psicanálise.
Paraná. digit. 2005
13
Dentre conceitos que precisam ser desconstruídos, além da periculosidade excessiva,
destaca-se o da impunidade que, na maioria das vezes, é atribuída aos adolescentes. Na verdade,
confunde-se esta com inimputabilidade.
No ordenamento jurídico nacional, aqueles que têm idade inferior a 18 anos são
inimputáveis de acordo com a Constituição Federal, o Código Penal e o Estatuto da Criança e do
Adolescente. No entanto, são imputáveis à legislação especial, que é justamente o Estatuto, o qual
regula a responsabilidade dos adolescentes quando estes praticarem um ato previsto como crime ou
contravenção penal. Portanto, não há que se falar em impunidade que seria o caso daqueles que não
serão responsabilizados e sobre si não terão a aplicação de qualquer tipo de sanção.
Adolescentes infratores não deveriam ser punidos e sim educados e protegidos, não mais por
uma questão de filantropia ou assistencialismo, objetos da caridade e assistência. Deveriam ser
responsabilizados sob o ordenamento jurídico que regula seus direitos. No entanto, mesmo com os
avanços legais, parece que a práxis vem saindo vitoriosa e perpetuando uma incrível punição que
vem transformando as medidas sócio-educativas em meras metáforas de controle cujos equívocos
vem apresentando conseqüências mais uma vez vitimizadoras.
3.3 Efeitos Perversos
Como efeitos perversos são entendidos os resultados da seletividade punitiva representada
pelos processos paralelos e inseparáveis de criminalização e vitimização ao qual são submetidos os
adolescentes, sujeitos de direito responsabilizados pelo Estatuto à privação de liberdade.
Resumidamente, as etapas do processo foram assim categorizadas na dissertação de
Mestrado:
a) primeiro grau (antes da aplicação da medida sócio-educativa de internação) – os
adolescentes unanimemente afirmaram ter se envolvido com as práticas criminalizadas por
vontade de terem acesso a bens de consumo que não teriam condições de adquirir com os
recursos das famílias;
b) segundo grau (durante a internação) - o processo de criminalização se desenvolvia pelos
relacionamentos com os demais adolescentes, muitas vezes em estágios mais avançados de
condutas criminalizadas e já reincidentes e, paralelamente, sustentavam diferentes tipos de
violação de seus direitos humanos e também previstos no Estatuto;
c) terceiro grau (pós-internação) – retorno à “liberdade” através da progressão da medida.
Momento que alimenta o círculo vicioso pela forma marginalizada que se dá o regresso, por
evasão do sistema sócio-educativo, cujos efeitos serão mais detalhados na sequência.
14
A militância na área de direitos de crianças e adolescentes e o exercício profissional em dois
Estados e Municípios diferentes – Rio de Janeiro e Curitiba - contribuíram para a observação de
momentos diferenciados de risco para a ocorrência de letalidade de adolescentes sujeitos ao sistema
sócio-educativo que levam ao mesmo resultado: punição precoce por extermínio real (letalidade) ou
simbólico (ingresso no sistema penitenciário).
No Estado do Rio de Janeiro, de acordo com a pesquisa realizada para o Mestrado, o risco
maior é durante a fase correspondente a medida sócio-educativa de semi-liberdade, enquanto em
Curitiba e região Metropolitana, este se observa durante o período de cumprimento das medidas
ditas em meio-aberto (liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade). A primeira
hipótese para os diferentes índices de aplicação em um e outro Estado, pode ser conseqüência da
diferença de oferta de programas e unidades executoras nos dois Estados o que acaba propiciando a
aplicação pelo Judiciário de uma ou outra dependendo da possibilidade do adolescente ter como
cumprir a medida.21
No caso do Rio de Janeiro, a atuação como advogada 22possibilitou o acompanhamento após
o momento intramuros. Somente cumpriram a medida de semi-liberdade aplicada, de um a dois por
cento dos adolescentes atendidos. Imediatamente após o ingresso nas unidades onde deveriam
cumprir a medida, evadiam-se por motivos que não caberão ser aqui abordados. Daí a medida
configurar o que os próprios familiares passaram a chamar de “armadilha”.
Iniciava-se o momento de maior risco para o controle efetivo desta parcela da sociedade
representada pela juventude maciçamente da periferia: a punição maior pelo extermínio de duas
vias.23
Não obstante o final das atividades profissionais com os adolescentes e da pesquisa de
Mestrado, um acompanhamento informal das trajetórias dos adolescentes foi feito e os efeitos
perversos começaram a surgir: quatro mortes em circunstâncias não esclarecidas e dois ingressaram
imediatamente no sistema penitenciário.
Após seis anos de concluída a pesquisa de Mestrado aqui apresentada, a militância na área
de garantia e defesa de direitos infanto-juvenis possibilitou, em outro Estado, o contato com novas
fontes que permitiram o confronto e percepção da continuidade dos processos de vitimização já
detectados no terceiro momento investigado (pós-cumprimento da medida sócio-educativa de
internação e retorno à sociedade).
21
Esta questão não será fruto de análise neste momento, mas vale destacar a contrariedade ao direito do adolescente
autor de ato infracional, uma vez que o que deveria orientar a aplicação da medida seria a melhor adequação à conduta
praticada e às características e necessidades do adolescente.
22
Paralelamente a pesquisa de campo do Mestrado, havia a atuação no Projeto Quebrantar na Fundação Centro de
Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião na cidade do Rio de Janeiro voltado para o atendimento sócio-jurídico de
adolescentes infratores e suas famílias.
23
Como já explicitado acima, o extermínio aqui destacado pode se configurar na morte do adolescente ou no ingresso
no sistema penitenciário.
15
Isto ficou mais evidente com os dados revelados por um relatório produzido pela Comissão
de Direitos Humanos da OABPR relativo às diligências realizadas em Delegacias do Município de
Curitiba encaminhado para a Comissão da Criança e do Adolescente em março de 2009 no qual o
parecer realizado destacou a presença em Delegacias Públicas de um grande percentual de jovens
entre 19 e 23 anos, o que chamou a atenção e apontou para um aparente fracasso no que tange ao
que antes parecia ser um progresso apresentado pela reforma legislativa, ou seja, o sistema sócioeducativo que na letra da lei, introduzia uma política de atendimento que anunciava uma proposta
de vanguarda para adolescentes que teriam a chance de mudar de trajetória em suas vidas.
Diante da leitura dos dados apresentados pela Diligência, os jovens presentes nas Delegacias
tinham a mesma idade ou pouco mais que o tempo de promulgação do Estatuto da Criança e da
Convenção dos Direitos da ONU24, indicando que a festejada Proteção Integral não atingira seus
propósitos diante da quantidade majoritária de jovens “depositados nas celas” prestes a ingressarem
em exclusão mais definitiva e cruel.
Esta percepção foi fortalecida pela observação de outras fontes: dados da Vara da Infância e
Juventude de Curitiba e do Programa Liberdade Solidária (executado pela Fundação de Ação Social
da Prefeitura de Curitiba)25, nas quais foram observados os números consideráveis de letalidade de
adolescentes durante o cumprimento das medidas sócio-educativas em meio-aberto (liberdade
assistida e prestação de serviços à comunidade).
De acordo com as fontes analisadas, é possível perceber que os efeitos perversos sobre a
juventude, majoritariamente das periferias, vêm se manifestando de duas formas distintas: pela
letalidade, geralmente de formas violentas, ou pelo ingresso no sistema penitenciário, que pode
representar uma forma metafórica de extermínio, tendo em vista que muitos sairão de lá
completamente “exterminados”, por terem consumido suas vidas intramuros e sem qualquer
possibilidade de convívio e inserção social enquanto outros sucumbirão por lá mesmo pelos
inúmeros riscos de conflito interno no ambiente carcerário.
Daí a necessidade de se repensar como buscar todos os argumentos usados e perdidos para
um sistema realmente sócio-educativo, compatibilizando discurso oficial e práticas institucionais.
Mas já é possível vislumbrar que o desafio seja o difícil reconhecimento da condição de sujeitos e a
afirmação dos direitos conquistados para os adolescentes.
24
Em 2009, o Estatuto completou 19 anos em julho e a Convenção completará 20 anos em novembro.
Trata-se de dados registrados por funcionários das duas instituições. O Programa da FAS desenvolve as ações
pertinentes ao cumprimento da medida sócio-educativa de liberdade assistida.
25
16
4 NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS: “O DESPERTAR DOS NOVOS SUJEITOS”
Touraine (2007) coloca como exemplo do despertar de novos sujeitos, o caso das mulheres,
como já mencionado acima. No entanto, ele atribui tal feito como conseqüência da militância
praticada por elas que, segundo ele passaram a unir reivindicações a igualdade de direitos com os
homens à afirmação de direitos específicos femininos. Ele continua, dizendo
é ao mesmo tempo a consciência da dominação sofrida e a de uma existência
particular, e portanto de direitos particulares, que fazem da mulher um sujeito, que
dirige sua ação principal para si mesma, para a afirmação de sua especificidade e
ao mesmo tempo de sua humanidade.
O autor citado fortalece o que já vem sendo o foco de lutas atuais de adultos próconcretização de direitos infanto-juvenis que não tenham interesses colidindo com a concretização
do avanço legal... Neste sentido, palestras, produções acadêmicas e várias outras ações vêm sendo
feitas para promover um direito também conquistado e ainda não efetivado que é o protagonismo da
infância e juventude no qual se oportuniza a participação do adolescente dando voz a ele para que
opine sobre sua própria vida como sujeito de direito que é.
Tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente, quanto a Convenção dos Direitos de Crianças
e Adolescentes priorizam e normatizam a participação e escuta de crianças e adolescentes sobre
seus direitos.
Uma das abordagens de Touraine (2007) que mais provocou reflexão por confirmar projetos
já idealizados para serem colocados em prática, como uma maior participação de adolescentes na
deliberação de políticas públicas nos Conselhos de Direitos, foi sobre iniciativas para a
conscientização deles como sujeitos
É impossível descrever a priori, ..., e em termos gerais, as condições que favorecem
o surgimento, num indivíduo ou num grupo, da consciência de ser um sujeito. Os
modelos propostos pela educação, ou seja, as expectativas manifestadas por
aqueles que estimulam ou não um jovem a se tornar a si mesmo como finalidade de
sua ação, a procurar-se a si mesmo, têm grande importância. Muitas vezes é um
adulto amigo ou um parente que exerce a influência decisiva sobre alguém mais
jovem...26
Ainda segundo Touraine (2007), para que se forme tal consciência é preciso o surgimento e
combinação de três componentes:
1) uma relação a si mesmo, ao ser individual, como portador de direitos fundamentais;
2) o sujeito não se forma a não ser entrando conscientemente em conflito com as forças
dominantes que lhe negam o direito e a possibilidade de agir como sujeito;
3) cada um, enquanto sujeito, propõe uma certa concepção geral do indivíduo.
O grande desafio é transportar o modelo sugerido por Touraine para a conscientização de
26
Ob.cit., pg. 131
17
adolescentes infratores, sujeitos de direitos fundamentais muito específicos pela grande dificuldade
de se colocarem em posição de conflito com as forças dominantes, tendo em vista que estarão na
base de uma cadeia de interesses e, principalmente por se encontrarem em situação de muita
vulnerabilidade intramuros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sistema sócio-educativo: educação, punição ou efeitos perversos? Pelas considerações a
partir da breve trajetória aqui apresentada, fica evidente um maior compromisso com a punição do
que com a educação, bem como os efeitos perversos que estão advindo de práticas ultrapassadas,
mas vitoriosas por estarem culturalmente disseminadas e até em consonância com os ideais do
“senso comum”.
No que diz respeito aos adolescentes na cidade do Rio de Janeiro, a vulnerabilidade aos
efeitos perversos estará presente durante a semi-liberdade, enquanto em Curitiba o risco de
incidência dos mesmos efeitos corresponderá ao período de cumprimento da medida de liberdade
assistida. Não obstante, as observações terem sido feitas em apenas dois Municípios, o contato com
dados de outras regiões territoriais aponta para um fenômeno observável nacionalmente, guardadas
as especificidades como as aqui verificadas cujos resultados sempre caminharão para um repensar
do sistema sócio-educativo para além do equivocado rebaixamento da maioridade penal por uma
questão de observância aos princípios constitucionais e legais.
A análise das fontes aponta para um tratamento de crianças e adolescentes de difícil
dissociação entre educação/disciplina e métodos punitivos, apesar de uma legislação fortemente
marcada pela garantia dos Direitos Humanos fruto de grande mobilização social e de profissionais
multidisciplinares para a construção e conquista da reforma legal que teve como um dos pilares a
transformação de crianças e adolescentes de objetos em sujeitos de direitos.
Dentre os grupos ditos vulneráveis, o grupo representado por crianças e adolescentes ainda
tem muitos direitos que não foram afirmados. No entanto, os demais mobilizaram-se e investiram
nas lutas em prol de seus próprios interesses e alcançaram êxito. O que pode se destacar como
obstáculo a ser transposto é a dominação exercida sobre eles pelo mundo adulto que os subordina e
os mantêm reféns como objetos, pela condição peculiar de pessoas em desenvolvimento que os
deixa submissos pela dependência total daqueles que detêm o poder sobre eles (pais, avós,
professores, educadores, técnicos...).
No âmbito da infância e juventude, parece que as análises de Boaventura Santos (2005) e
Touraine (2007) se somam e se adequam, em especial, ao conhecimento que se precisa construir
para provocar a efetivação das transformações anunciadas pela reforma legal, em suas lições para
18
uma busca para maior efetividade das conquistas legais e a conseqüente afirmação dos direitos
especiais.
Há que se buscar a inversão da lógica do atual senso comum que, no âmbito do sistema
sócio-educativo: 1) coloca o ônus dos altos índices de violência sob responsabilidade de
adolescentes, colocando-os como de alta periculosidade para a sociedade - inimigos públicos
número um; 2) proclama que Estatuto da Criança e do Adolescente seja sinônimo de impunidade e
que; 3) para melhorar a solução medidas gravosas devem ter lugar como a que vem inspirando
mudanças para o rebaixamento da maioridade penal na intenção de buscar uma punição mais
precoce.
Parece que o ensinamento de Boaventura (2007), aproximando a ciência do “senso comum”
para ampliar o acesso ao conhecimento e devolver um outro “senso comum” possa ser uma boa
metodologia de desconstrução neste âmbito, quiçá com a ajuda dos próprios meios de comunicação
de massa que tanto contribuem para disseminar o senso comum que se quer transformar e que
deixam de informar por não estarem ainda comprometidos com os princípios constitucionais dos
meios de comunicação que deveriam priorizar informações educativas de relevância social.
Por outro e, paralelamente, não obstante a dependência que subordina crianças e
adolescentes ao mundo adulto que os “domina” e os mantém objeto de suas vontades, há que se
buscar a conscientização para a libertação e afirmação de direitos, de que também trata Touraine
(2007), usando-se de formas específicas e legitimadas pelo atual ordenamento jurídico que fortalece
esta participação, em especial, nos Conselhos de Direitos para deliberação de políticas públicas que
a eles beneficiarão. A democracia participativa como forma de controle da sociedade, como
defende, Boaventura Santos (2005).
A histórica punição precoce que se mantém e que alguns querem exacerbar, chega a denotar
uma “ordem” estabelecida que precisa ser subvertida para ajustar a mudança legislativa à realidade
Baratta (1998) parece ter antevisto a dificuldade que estava por vir analisando a reforma
legislativa ao dizer que
Sem que se realize o projeto de uma sociedade mais igualitária e mais justa, a
aplicação do novo direito da infância e da adolescência é impossível... Hoje, utopia
concreta é a legalidade constitucional, e a realidade material, a defesa com todos os
meios do status quo das relações sociais, é a subversão, caso esta palavra ainda
possua sentido.27
E, para além da subversão da (des)ordem
28
, há que se subverter também o senso comum
totalmente equivocado e distante da produção científica, mas tão-somente por ter acesso a
conhecimentos muitas vezes equivocados e selecionados pela mídia que, também deve contribuir
27
BARATTA, Alessandro. Prefácio In Difíceis Ganhos Fáceis:drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Vera
Malaguti Batista. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia: Freitas Bastos, 1998
28
Diante da legislação atual, vive-se uma ordem subvertida, tendo em vista o não cumprimento legal na sua totalidade
19
nesta proposta.
Voltando a Touraine(2007)29, cuja análise orientou as reflexões aqui desenvolvidas no intuito
de repensar o sistema sócio-educativo e que possibilitará muitas outras, tendo em vista que o olhar
sociológico está apenas aqui introduzido, há que se enfrentar novos conflitos e no âmbito do sistema
sócio-educativo, reconhecendo os adolescentes, em especial os autores de atos infracionais, como
categoria inferiorizada, a luta parece ser pelo protagonismo dos próprios adolescentes para, a
exemplo das mulheres, organizarem-se em novos movimentos sociais agora não mais para
conquistar direitos, mas para tomar posse e afirmar os que já foram conquistados.
A partir das análises aqui destacadas, é possível vislumbrar a necessidade de que há que
haver um esforço conjunto, capitaneado pelos próprios adolescentes para despertarem como sujeitos
que os potencialize a ponto de serem capazes de neutralizar equívocos e efeitos perversos. Há,
ainda, que se dar amplo acesso ao conhecimento científico neste âmbito do sistema sócio-educativo
a partir de um grande repensar do sistema sócio-educativo para que adolescentes infratores deixem
de ser o bode-expiatório selecionado para políticas emergenciais e punitivas. Esta é a esperança que,
finalmente, a verdadeira ordem seja restabelecida e ocupe seu lugar. Por último, que o “senso
comum” perca o “apetite punitivo” ao alcançar o conhecimento que o transforme em respeito à lei
reconhecendo-a como suficiente e capaz de fazer as mudanças desejadas e postergadas apenas pela
sua efetivação não com mudanças em busca de oficializar e agravar a punição precoce.
29
Ob. Cit. (pg.242)
20
Referências Bibliográficas
BARATTA, Alessandro. Prefácio. In Difíceis Ganhos Fáceis: drogas e juventude pobre no Rio
de Janeiro. Vera Malaguti Batista. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia: Freitas
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2008
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SOSA, Armando Cisneros. Movimientos em la sociedad posindustrial. In Crítica dos
Movimientos Sociales: debate sobre la modernidad, la democracia y la igualdad social. Mexico:
UAM, 2001
TOURAINE, Alain. Um novo paradigma: para compreender o mundo de hoje; tradução de
Gentil Avelino Tilton. 3ª edição – Petrópolis, RJ: Vozes, 2007
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repensando o sistema sócio