CURRÍCULO, FORMAÇÃO DE PROFESSORES E REPERCUSSÕES METODOLÓGICAS Rita de Cassia Cavalcanti Porto Professora do Departamento de Habilitações Pedagógicas - Centro de Educação – UFPB. Membro do Centro Paulo Freire e Vice-Presidente da ANFOPE – Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação. Freire nos deixa uma grande herança. Sua história, sua práxis político- pedagógica e sua luta para a construção de um projeto de sociedade inclusiva. Continuar discutindo com e a respeito da sua pedagogia é um compromisso de todos nós que lutamos por inclusão social, pela ética, por liberdade, autonomia, pela recuperação da memória coletiva e pela construção de um projeto para uma Escola cidadã. Tratar desta temática em Freire não nos dá o dire ito de enquadrá-lo dentro de um campo teórico determinado e nem de trazer um desses campos para testarmos a validade científica da sua pedagogia; no entanto, a interpretação da sua obra se dará a partir de uma vivência teórico- prática. A esse respeito, o próprio Freire nos chama a atenção para um novo conhecimento que é gerado e produzido na tensão entre a prática e a teoria. Ao produzir este texto, o fazemos no sentido de reinventar a sua pedagogia, contudo procuraremos ser fiéis às categorias fundantes dessa mesma pedagogia, até porque é ela a referência basilar para o estudo que estamos desenvolvendo no interior da teoria crítica de currículo. Ao reler a obra de Freire, o fizemos na expectativa de, levantando o universo vocabular referente às questões pró prias do currículo, à formação de professor e metodologias, buscar uma aproximação possível com a teoria crítica de currículo. Pretendemos compreender a temática de forma inter-relacionada, no entanto, para efeito didático, sua análise será realizada separadamente em um primeiro momento e em outro numa unidade inter- relacionada. 1. Currículo Para Freire, o currículo é entendido no sentido amplo que passa necessariamente por uma leitura do mundo. A esse respeito, ele é categórico quando afirma que: “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, da mesma maneira que o ato de ler palavras implica, necessariamente, uma contínua releitura do mundo”. Com isso, ele critica o currículo tradicional centrado em disciplinas. Para Freire (1986, p.97): “O currículo padrão, o currículo de transferência é uma forma mecânica e autoritária de pensar sobre como organizar um programa, que implica, acima de tudo, numa tremenda falta de confiança na criatividade dos estudantes e na capacidade dos professores! Porque, em última análise, quando certos centros de poder estabelecem o que deve ser feito em classe, sua maneira autoritária nega o exercício da criatividade entre professores e estudantes. O centro, acima de tudo, está comandando e manipulando, à distância, as atividades dos educadores e dos educandos”. Em oposição, ele mostra, com a sua primeira obra Educação como prática da liberdade, a importância de construirmos o currículo a partir do levantamento do universo vocabular, dentro de um contexto cultural situado. Desse modo, ele diferencia a cultura popular da erudita e assim o fazendo, opta pela cultura das classes populares. O currículo, nesta perspectiva, passa a ser organizado a partir da seleção de temas geradores em função da relevância social que estes venham a assumir para um determinado grupo de pessoas. Embora não se encontre explicitamente em Freire definição mais elaborada a respeito do currículo, sua obra se acha impregnada do caráter político, histórico e cultural do currículo, assim como faz ressaltar permanentemente a importância de desocultar a ideologia subjacente ao currículo oficial e propõe que se busquem formas de resistência às imposições autoritárias. Ao ser indagado, quando Secretário de educação da cidade de São Paulo em 1989, a respeito do caráter político e ideológico do projeto pedagógico ao nível de conteúdo e cultura erudita, pelo jornal Psicologia, Freire responde que “todo projeto pedagógico é político e se acha molhado de ideologia. A questão a saber é a favor de quê e de quem, contra quê e contra quem se faz política de que a educação jamais prescinde”. Ele aproveita para reforçar sua posição frente às críticas feitas à sua pedagogia no passado, e diz que (1991, p.44- 45) “não há prática educativa sem conteúdo, quer dizer sem objeto de conhecimento a ser ensinado pelo educador e apreendido, para poder ser aprendido pelo educando. Isto porque a prática educativa é naturalmente gnosiológica e não é possível conhecer nada a não ser que nada se substantive e vire objeto a ser conhecido, portanto vire conteúdo. A questão fundamental é política. Tem que ver com: que conteúdos ensinar, a quem e a favor de que e de quem, contra quê, como ensinar. Tem que ver com quem decide sobre que conteúdos ensinar, que participação têm os estudantes, os pais , os professores, os movimentos populares na discussão em torno da organização dos conteúdos programáticos”. Embora seu trabalho tenha se restringido, inicialmente, à prática de alfabetização de adultos, com o decorrer do tempo suas idéias chegaram a influenciar marxistas e neomarxistas e principalmente os intelectuais da teoria crítica de currículos, cujo berço é a Escola de Frankfurt, da qual faziam parte Horkheime, Adorno, Marcuse e Habermas que buscaram construir uma teoria social a partir de uma crítica à racionalidade positiva e do resgate da imprescindibilidade da experiência cultural. Observamos nos trabalhos de autores norte- americanos como Giroux (1986) e Apple (1989 e 1999) e brasileiros, como Moreira (1994), Saul (1988 e 1999), Santiago (1990) e Porto (1992) a influência da teoria crítica no currículo. Para eles, o currículo vai além da grade curricular, da seleção de conteúdos e organização de disciplinas, por isso, embora de forma diferenciada, eles concebem o currículo como instrumento político no sentido amplo e fazendo assim, incorporam às suas análises as categorias da teoria crítica do currículo, bem como as idéias mestras da pedagogia freireana. Vale salientar que categorias tais como poder, ideologia, cultura, currículo oculto, classe social, gênero e raça, formas de resistência, conscientização e libertação estão presentes naqueles estudos, o que faz com que haja uma aproximação entre a teoria crítica do currículo e a teoria pedagógica freireana. Uma outra influência freireana pode ser percebida em várias experiências de reorientação curricular desenvolvidas por secretarias de Educação municipais, a exemplo dos trabalhos desenvolvidos em Porto Alegre e São Paulo. O projeto da escola cidadã de Porto Alegre busca em Freire o estudo de Tema Gerador para fundamentar e exercer coletivamente o que eles chamaram de Rede Municipal de Ensino de Complexo Temático organizada por Ciclos de Formação. Esses ciclos, de acordo com Krug (2001, p.17), propõem a organização dos estudantes por fases de formação: infância (6 a 8 anos); pré - adolescência (9 a 11 anos) e adolescência (12 a 14); o conteúdo escolar é organizado a partir de uma pesquisa socioantropológica realizada na comunidade.. 2. Formação de Professores Freire, já nos seus primeiros trabalhos, propõe a discussão a respeito da formação do professor, denominando- o coordenador e posteriormente o chamou de educador. Ele fez questão de reforçar a diferença entre o professor e o educador. Para ele, o professor se preocupava mais com as questões técnicas do que com as questões políticas, enquanto o educador teria o caráter humanista revolucionário.(1980: 7880.). Foi com a Pedagogia do Oprimido (1982) que ele fundamentou a relação educadoreducando, mostrando o papel do educador depositante e do educando depositário e a sua superação. Para Freire, há duas concepções de educação: uma bancária, que serve à dominação e outra, problematizadora, que serve à libertação. Nesse sentido, faz uma opção pela educação problema tizadora que desde o início busca a superação educador-educando. Isso vai levá- lo a compreender um novo termo: educadoreducando com educando-educador. Em Medo e Ousadia (1986:86) ele reforça a competência política e técnica do educador libertador. “Quanto mais seriamente você está comprometido com a busca da transformação, mais rigoroso você deve ser, mais você tem de buscar o conhecimento, mais você tem de estimular os estudantes a se prepararem científica e tecnicamente para a sociedade real na qual eles ainda vivem” Observamos que o Freire atual caminha para uma reunificação dos termos educador– educando e professor-estudante. Entretanto, isso não quer dizer que ele abandonou seus princípios; muito pelo contrário, para ele o professor tem que ser necessariamente um educador transformador. A esse respeito, ele escreve o livro “Professora Sim, Tia Não” para mostrar a desvirtuação contida no termo tia, enfatiza a armadilha ideológica que tal denominação encerra. Para ele, “Ser professora implica assumir uma profissão enquanto não se é tia por profissão” (1993:11). A tarefa de ensinar é uma tarefa profissional. A professora precisa ter a consciência e a ousadia para se fazer educadora, com paixão e com postura profissional. Nessa obra, Freire nos instiga a refletir acerca do papel do educador profissional. De acordo com Freire, a pesquisa faz parte da natureza da prática docente (1996,p.32) “Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino, continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar e constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade”. Uma outra preocupação que sempre esteve presente na obra de Freire foi a ética. Ultimamente ele vinha chamando a responsabilidade dos educadores para a natureza ética da prática educativa. Nesse sentido, estabelece contundente diferenciação ent re a ética do mercado que se curva obediente aos interesses dos lucros e a ética universal do ser humano ( 1996, p.17) “...que condena a exploração da força de trabalho do ser humano, que condena acusar por ouvir dizer, afirma que alguém falou A sabendo que foi dito B, falsear a verdade, iludir o incauto, golpear o fraco e indefeso, soterrar o sonho e a utopia, prometer sabendo que não cumprirá a promessa. ...a ética que se sabe afrontada na manifestação discriminatória de raça, de gênero e de classe”. por ouvir dizer 3. Perspectivas Metodológicas É fato inconteste que a concepção teórico- metodológica da pedagogia freireana é dialética. O próprio Freire é um ser dialético que exerceu sua dialeticidade em toda sua vida. Só a título de exemplificação, quando ele foi indagado a respeito da possível mudança em seus primeiros livros, a exemplo de “Educação como Prática de Liberdade”, ele respondeu que não iria reescrever nenhum dos seus livros, pois os mesmos faziam parte dos escritos refletidos em um determinado contexto sóciohistórico- político-cultural, o que ele faria, sim, era avançar na produção de novos textos tendo como base a experiência prática e a reflexão do atual contexto. Com isso, ele nos chama a compreender alguns princípios da dialética: o da mudança, o da contradição, o da transformação da quantidade em qualidade e o da unidade dialética dos contrários. Também repudia o positivismo que defende a neutralidade da ciência, e evidencia o marxismo. Assim, fundamenta sua pedagogia na concepção histórico- dialética. Ao desenvolver uma epistemologia do conhecimento, Freire parte de uma reflexão acerca de uma experiência concreta para desenvolver sua metodologia dialética: açãoreflexão-ação. Metodologia esta que parte da problematização da prática concreta, vai à teoria estudando- a e reelaborando- a criticamente e retorna à prática para transformá - la. Nesta concepção, o diálogo se apresenta como condição fundamental para sua concretização. Ele nos apresenta sua teoria metodológica a partir da sua prática refletida na alfabetização de jovens e adultos, iniciada nos sessenta. O trabalho que foi denominado como “método Paulo Freire”, ou “método de conscientização” foi desenvolvido, a partir de uma leitura de mundo, em cinco fases: Levantamento do Universo Vocabular, Temas Geradores e escolha de Palavras Geradoras, Criação de situações existenciais típicas do grupo, Elaboração de fichasroteiro e Leitura de fichas com a decomposição das famílias fonêmicas. Apesar do reconhecimento da qualidade emancipatória do processo de alfabetização divulgada e experienciada em boa parte do planeta Terra, Freire insiste em que as experiências não podem ser transplantadas, mas reinventadas. Nesse sentido, o da reinvenção, é que acompanhamos várias experiências com a pedagogia freireana. Ele reforça a importância da participação democrática e o exercício da autonomia para construção dos projetos político- pedagógicos. Em oposição ele condena os novos pacotes pedagógicos que são impostos sem a participação da comunidade escolar e incentiva a incorporação de múltiplos saberes necessários a prática de educação crítica. Para isso referencia o respeito aos saberes dos educandos que segundo ele (1996, p.33- 34) são saberes socialmente construídos na prática comunitária e sugere que se discuta com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação ao ensino dos conteúdos e as razões políticas ideológicas. Essas experiências se dão em vários espaços, sejam eles em movimentos sociais, em reorientações curriculares das universidades, na elaboração de projetos pedagógicos em redes de ensino público municipal, a exemplo do movimento de reorientação curricular das rede públicas municipais de São Paulo e Porto Alegre, bem como na produção e socialização dos documentos gerados pelos educadores em associações político-científicas, a exemplo da ANPEd- Associação Nacional de Pós- Graduação e Pesquisa em educação e da ANFOPE –Associação Nacional pela Formação Nacional Pela Formação dos Profissionais da Educação. 4. Considerações Finais No atual momento de imposição de políticas neoliberais e de globalização excludente, precisamos recorrer a Freire para continuar lutando pela construção de um projeto de qualidade social. Um projeto que coloque a educação como prioridade nacional. De acord o com Freire (2000. p.43) “Uma das primordiais tarefas da pedagogia crítica radical libertadora é trabalhar a legitimidade do sonho ético- político da superação da realidade injusta. É trabalhar a genuinidade desta luta e a possibilidade de mudar, vale dizer, é trabalhar contra a força da ideologia fatalista dominante, que estimula a imobilidade dos oprimidos e sua acomodação à realidade injusta, necessária ao movimento dos dominadores. É defender uma prática docente em que o ensino rigoroso dos conteúdos ja mais se faça de forma fria, mecânica e mentirosamente neutra”. Dessa forma, Freire nos convida a participar das lutas cotidianas nos nossos espaços de trabalho e nos movimentos sociais. Incentiva a construção de projetos pedagógicos emancipatórios que prio rizem a formação de cidadãos e cidadãs na expressão mais verdadeira do termo, isto é, críticos(as), criativos(as) e participativos(as). Assim, a temática currículo, formação de professores e perspectivas metodológicas faz parte de um todo, ou seja, de um projeto- político pedagógico que deverá ser construído coletivamente em cada espaço de educação. Não adianta produzirem- se currículos ou técnicas sofisticadas sem o devido investimento na capacitação do professor ou da professora, na sua valorização profissional, o que equivale a dizer que sua formação técnica não pode ser desvinculada da formação político- pedagógica. De acordo com o que conseguimos apreender com a pedagogia freireana, bem como com os desdobramentos das pesquisas decorrentes da práxis pedagógica de experiências localizadas, as ações desencadeadas pelos processos de formação do educador devem necessariamente, entre outras finalidades, visar à construção de currículos e ao desenvolvimento de novas metodologias críticas a serem postos a serviço do exercício da cidadania. À luz desse pressuposto, cumpre- nos chamar a atenção para as graves lacunas existentes entre as atuais políticas nacionais para formação do profissional da educação e aquelas que vêm sendo amadurecidas em amplos debates nas várias instâncias dos movimentos sociais. Um exemplo que bem ilustra essa nossa preocupação pode ser dado pelas diretrizes curriculares nacionais de formação de professores para a Educação Básica que foi recentemente regulamentada pelo Conselho Nacional de Educação. É o próprio Paulo Freire que nos convida a ver essa luta como tarefa de cada um e de todos nós, precisando às vezes atravessar gerações. Ele é pleno e ao mesmo tempo sucinto quando ensina, (2001, p.94): “Os que optam pela preservação do “status quo”p recisam de saber que mudar é difícil mas é possível para organizar- se e programar suas táticas de luta. Uma dessas táticas, por exemplo, é a ênfase na compreensão fatalista da realidade que despolitiza os fatos, a educação e erige o destino e a sina como sujeitos da história. Os que decidem pela transformação da realidade da mesma forma precisam organizar suas táticas em coerência com suas estratégias, quer dizer, com seu sonho possível ou sua utopia”. 5. Referências Bibliográficas APPLE, Michael & NÓVOA, Antônio (org.). Paulo Freire: política e pedagogia. Portugal: Porto Editora, 1998. FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação, uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Moraes, 1980. ________. Pedagogia do oprimido.11.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. ________. Educação como prática da liberdade. 15. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983a ________. Educação e mudança. 6.ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983b. ________&. FAUNDEZ Antonio Por uma pedagogia da pergunta.2. ed., Rio: Paz e Terra, 1985. ________ & SHOR, Ira. 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