XX CONGRESSO DE CIÊNCIA DA COMUNICAÇÃO INTERCOM 97 Chico Bento: um herói caipira A comunicação mediatizada e a mudança do caipira Pesquisadora Cristina Schmidt Silva São Paulo junho/1997 2 XX Congresso de Ciência da Comunicação (INTERCOM) GT - Comunicação e Quadrinhos Coordenação: Prof. Dr. Flávio Calazans Chico Bento: um herói caipira A cultura caipira sempre foi julgada como uma cultura exótica, pitoresca e por isso inferior. Apesar das comprovações sociológicas e antropológicas de sua condição explorada, o caipira sempre carregou uma imagem estereotipada de “Jeca”. Com a regionalização dos meios de comunicação, que teve início em meados de 1970 e se estende durante toda a década de 80, os tipos “exóticos” da cultura popular e erudita, são alguns dos personagens que ora são marginalizados, ora incorporados ao processo de urbanização. O mercado de publicações nesse período também foi muito expressivo e expansivo. Nessa época foram lançadas as revistas mensais da turma da Mônica. E, criado em 1961, Chico Bento, o personagem mais abrasileirado de Maurício de Souza, aparece nas tiras e histórias, num universo limitado e ficcional com as características estereotipadas do homem do campo. Profª. Cristina Schmidt Silva Universidade de Taubaté / Doutoranda da Universidade Católica de São Paulo Endereço: Rua Cláudio Cesar de Aguiar Mauriz, 508 11250-00 - Vila Itapanhaú - Bertioga - SP Fone: (013) 317 3580 3 1. O contexto “Hoje creio que não se pode falar de criatividade cultural no universo caipira, porque ele quase acabou. O que há é impulso adquirido, resto, repetição - ou paródia - é imitação deformada, mais ou menos parecida.” (Antonio Cândido - Recortes) A cultura caipira sempre foi julgada como uma cultura exótica, pitoresca e, por isso, inferior. Apesar das comprovações sociológicas e antropológicas de sua condição explorada, o caipira sempre carregou uma imagem “doentia” que foi registrada por estudiosos como Saint-Hilaire, mais tarde, por positivistas, e na literatura, por Monteiro Lobato. Com o processo de industrialização no Brasil, a partir de 1930, no campo e na cidade, a cultura brasileira é direcionada por uma ideologia da urbanização, que provoca um rompimento com os valores tradicionais eruditos e rústicos da elite e das classes populares. É na década de 30, inicialmente, que o capitalismo brasileiro incorpora uma preocupação de desenvolvimento nacional, sustentada por uma política populista, e se instala uma crescente valorização do “urbano” como modelo ideal, melhor e superior. “Em primeiro lugar estão alguns aspectos propriamente culturais do processo de desenvolvimento gestado em 1930. Dele nos interessa focalizar não só a característica da proeminência da urbanização sobre o desenvolvimento econômico, mas também o ethos urbano, resultado da grande concentração demográfica. Este se manifesta por um estilo de vida específico (conjunto de práticas e idéias) e por um clima mental distinto do predominante em áreas não urbanas. Portanto, o desenvolvimento da urbanização implica a assimilação desse clima por populações rurais que se deslocam para a cidade.”i Essa ideologia da urbanização reforça a imagem do trabalhador do campo como uma massa de ignorantes e o caipira torna-se o símbolo dessa cultura inferior. As migrações vêm em decorrência dessa política que força os trabalhadores a buscarem “melhores condições de vida” nas cidades. A promessa de uma ascensão social na cidade e o investimento efetivo na indústria fazem com que a produção industrial 4 supere a agrícola já a partir de 1956, e provoque uma corrida ao “Eldorado urbano”. Esse processo migratório afetará drasticamente a estrutura cultural caipira, pois penetrará nos valores fundamentais do seu cotidiano, como a divisão do trabalho deixa de ser centralizada no pai e automaticamente rompe com a referência da autoridade paterna: sua religiosidade é transformada em fantasia e exotismo; a casa, as roupas, as festas, a linguagem e a forma de falar são reelaboradas a partir de um novo quadro de referência: o urbano. Ecléa Bosi define o povo migrante como um povo arrancado de sua terra, arrancado de suas raízes. Em suas palavras “a conquista colonial causa desenraizamento e morte com a supressão brutal das tradições. A conquista militar também. Mas a dominação econômica de uma região sobre outra no interior de um país causa a mesma doença. Age como conquista colonial e militar ao mesmo tempo, destruindo raízes, tornando os nativos estrangeiros em sua própria terra”.ii Nesse período, a política nacional de desenvolvimento busca uma homogeneização da população, concebendo o povo como uma massa na construção de uma nação. A fim de que essa ideologia nacionalista fosse incorporada por todos, aos meios de comunicação é atribuído um papel fundamental de difusor e socializador. A indústria incorpora o imaginário e cria modelos que são veiculados pelos meios de comunicação. O rádio - Rádio Nacional - entre as décadas de 1940 e 1950 atinge elevados índices de audiência com as radionovelas e, no final da década, conquista o público com programas de auditório. O cinema brasileiro era balizado por um lado pela política norte americana que, por sua vez, tinha interesses em investir na América Latina, e, por outro lado, preocupava-se em atender aos grandes distribuidores do mercado cinematográfico mundial. A Atlântida (1941) grande produtora das chanchadas, e a Vera Cruz (1949) foram responsáveis pela produção de vinte e sete filmes anuais em média, no período de 1951 a 1955. Os filmes eram distribuídos por todo o país. A expansão do mercado de publicações também foi muito expressiva nesse período, principalmente em revistas direcionadas à leitura popular do tipo fotonovela como: Grande Hotel (1951) e Capricho (1952), que tiveram sucesso em decorrência das 5 radionovelas. Os jornais também ampliaram em número e tiragem, seguidos pelos livros que aumentaram em 300% o volume editado durante 1938 e 1950.iii “Porém, foram o rádio e o cinema os meios que nesse período mais propiciaram às classes populares, seja as pessoas do interior, seja aos migrantes nas cidades, as primeiras vivências cotidianas da nação, difundindo a experiência cultural simultaneamente partilhada por nordestinos, gaúchos, paulistas e cariocas...”iv Essa possibilidade de acesso às informações e padrões de uma cultura urbana, em função da expansão dos meios de comunicação, vão enfatizar cada vez mais a superioridade do urbano sobre o rural e estimular o fortalecimento do mercado de bens simbólicos. É a partir de 1956, com o Governo de Juscelino Kubitschek, que a ideologia desenvolvimentista transnacionaliza a produção industrial. Com a entrada do capital estrangeiro e a produção com vistas a um mercado internacional, o país passa a estabelecer uma dependência econômica e cultural. Com o golpe militar de 1964, há o crescimento do capitalismo e a necessidade, conseqüente, de um mercado material interno. Segundo Renato Ortiz, é nesse momento que se estabelece de fato a Indústria Cultural no Brasil e, com ela, o mercado de bens simbólicos. Com o governo militar, houve uma “segunda revolução industrial” no país - visto que a primeira foi provocada por Juscelino - que na verdade implantou de maneira mais sólida o “capitalismo tardio”. v A implantação do capitalismo num país subdesenvolvido como o Brasil deu-se em decorrência do interesse de integração política dos militares e um acordo comercial com os empresários que visavam uma ampliação de mercado, que se deu a base de um autoritarismo centralizador, com repressões e censuras. Para que o controle atingisse tanto o meio urbano quanto o meio rural, o governo militar investil na implantação de tecnologia, criou o sistema de telecomunicações, as transmissões via satélite pela Embratel e Telebrás. “O andamento dos meios de massa acerta o passo com a produção e o mercado próprio de uma sociedade capitalista de feições internacionais”, analisa Alfredo Bosi. Essa forma social propõe uma cultura sempre nova embora nem sempre original, pois a linha de montagem de bens simbólicos segue um ritmo industrial sem tempo e sem espaço. São modelos criados a partir do desenraizamento dos grupos sociais, cada 6 produto é sempre início de uma nova etapa de readaptação e mudanças. É o novo que nasce do velho, do vendável, do supérfluo, da moda.vi “Agente que vive na cidade procurou sempre adotar modos de ser, pensar e agir que lhes pareciam os mais civilizados, os que permitem ver logo que uma pessoa está acostumada com o que é prescrito de maneira tirânica pelas modas. Moda na roupa, na etiqueta, na escolha dos objetos, na comida, na dança, nos espetáculos, na gíria. A moda logo passa; por isso, a gente da cidade deve e pode mudar, trocar de objetos e costumes, estar em dia. Como conseqüência, se entra em contacto com um grupo ou uma pessoa que não mudaram tanto assim; que usam roupas como há dez anos atrás e respondem a um cumprimento com certa fórmula desusada; que não sabem qual é o cantor da moda nem o novo jeito de namorar; quando entra em contacto com gente assim, o citadino diz que ela é caipira, querendo dizer que é atrasada e, portanto, meio ridículo. Diz, ou dizia, porque hoje a mudança é tão rápida que o termo está saindo das expressões de todo dia e serve mais para designar certas sobrevivências teimosas ou alteradas do passado: música caipira, festas caipiras, danças caipiras por exemplo. Que, aliás, na maioria das vezes conhecemos não praticados por caipiras, mas por gente que se finge de caipira e usa a realidade do seu mundo como um produto comercial pitoresco”.vii Nessa fase os valores populares, regionais, são substituídos por valores transnacionais. As emissoras de TV veiculam uma “visão de mundo” com referências internacionais, os “enlatados” predominam na programação e criam um comportamento global, de massa, sem raiz. Diferente do período anterior, de 1940 a 1960, quando a maioria dos aparelhos de TV eram importados e poucas pessoas tinham acesso a ele, na fase pós 64, a política transnacional possibilita a fabricação de bens materiais, simultaneamente à criação de um operariado consumidor em potencial. Em nome do mercado, do profissionalismo e do corporativismo, formam-se os oligopólios da comunicação no eixo Rio-São Paulo. “Forma-se, pela primeira vez um público massivo em função do porte nacional alcançado pelo mercado da TV, da revista, do jornal e do rádio. A expansão quantitativa e qualitativa do setor publicitário dos últimos anos é bem representativa da dinâmica interna da indústria cultural brasileira e de sua crescente autonomização”.viii O governo definitivamente assume o mercado cultural e cria incentivos, verdadeiras instituições que se tornaram o suporte das produções de livros (INL Instituto Nacional do Livro), de teatro (SNT - Sistema Nacional de Teatro), de cinema (Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes), de turismo (Embratur - Empresa 7 Brasileira de Turismo). E, também, cria mecanismos de controle como a Lei de Imprensa, a Lei de Segurança Nacional e a Censura. É dessa maneira que os meios de comunicação de massa tornam-se “modernos”, por terem como referência o modelo estrangeiro, tornam-se o setor mais dinâmico e hegemônico de bens culturais e atuam como uma forma de educação paralela. Os tipos exóticos da cultura popular e erudita tornam-se estereótipos ora para marginalizar, ora para incorporar esses grupos sociais ao contexto de urbanização. Na verdade, de acordo com Karl Marx, esse processo é a transformação do valor de troca da mercadoria cultural em valor de uso dentro do mercado de consumo de bens simbólicos. A ritmo acelerado dos novos modelos culturais afetam a essência, a raiz, as tradições. Para Benjamin, a reprodução técnica não contempla a origem e a importância histórica das manifestações culturais. A reprodução isenta os homens de uma participação, de uma cumplicidade, de uma responsabilidade tradicional enraizada. ixOs meios de comunicação tira a responsabilidade dos grupos sociais da produção da cultura e estabelecem uma relação de proximidade e distanciamento com as suas raízes. “Foi então que o caipira se tornou cada vez mais espetáculo, assunto de curiosidade e divertimento para o homem da cidade que, instalado na sua civilização e querendo ressaltar este privilégio, usava aquele irmão miserável para provar como ele havia prosperado, como era triunfalmente diverso. A vida do caipira ficou sendo então, para ele próprio, uma privação terrível, porque podia ser comparada a outras situações, e para o citadino, um divertimento que lhe dava a confortável sensação de haver mudado para algo melhor e mais alto.”x A atemporariedade dos bens simbólicos constitui a cultura de massa que transforma tanto o citadino como o caipira, sua visão de mundo e suas necessidades de consumo são formadas por esses bens urbanos e internacionais. A indústria cultural brasileira, que se efetiva nas duas últimas décadas, será a responsável pela incorporação do homo-urbanus, por meio de um discurso de modernização; e, junto com a economia industrial implantada no meio rural, é a co-autora do new-caipira. 2. Os exemplos 8 Para Paul Zumthor, faz muito tempo que o meio acadêmico foi expulsando de seu campo de interesse o que ele chama de “palavra viva”. Em seu artigo “Permanência da voz”, ele faz um apontamento demonstrando a importância da voz em sua corporeidade, que a voz vai além do que o simples pronunciar palavras ou sons, como por exemplo, o que expusemos acima, o papel incontestável de conservação das sociedades. Inclusive, para situar a voz contextualmente, ele nos remete a compreensão de tradição oral como “um conjunto de intercâmbios orais ligado a comportamentos mais ou menos codificados, cuja finalidade básica é manter a continuidade de uma determinada concepção de vida e de experiência coletiva sem as quais o indivíduo estaria abandonado à sua solidão, talvez ao desespero”xi. Esses intercâmbios vão estabelecer os contatos entre os indivíduos e desses com a natureza, com o mundo, estabelecendo os espaços da cultura oral através de sinais, normas e rituais. E, na medida em que se vai abstraindo esses espaços, racionalizando-o, burocratizando-o, vai se estabelecendo o espaço da cultura escrita. A partir daí, Zumthor apresenta uma tipologia geral das “situações de oralidade” , compreendidas em quatro momentos: a oralidade primária, aquela onde não há qualquer forma de escrita; a oralidade mista, que coexiste com a escrita num contexto sociológico onde a influência desta é parcial, extrema e de efeito lento; a oralidade secundária, que de fato se recompõe a partir da escrita; e a oralidade mediatizada, a que conhecemos pelo rádio, discos, computador, e outros meios de massa. Com essa referência podemos fazer a leitura de dois exemplos onde a oralidade mediatizada reforça e altera uma concepção de mundo. Os meios de comunicação de massa mediatizam o cotidiano criando um novo caipira. Escolher dois exemplos de veículos/linguagens diferentes, como fizemos neste estudo, objetivou estabelecer o novo universo caipira; até porque, essas linguagens são formadoras de uma oralidade que define novos códigos de comportamento, mas desvinculam da tradição oral. 2. 1. Mazzaropi, o Jeca esperto 9 O tempo áureo do cinema foi marcado pelas histórias ingênuas e cômicas. Assim podemos também considerar os trabalhos de Amacio Mazzaropi que, através da incorporação do caipira - caboclo/italiano - conquistou imensas platéias nos cinemas de todo o país, até meados de 1970. Mazzaropi nasceu a nove de abril de 1919, em São Paulo, filho de pai imigrante, o italiano Bernardo Mazzaropi, e de mãe brasileira , filha de portugueses, Clara Ferreira. Desde criança se entretinha com circos que se instalavam nas proximidades de sua casa. Como não se deu bem com os estudos, iniciou sua carreira muito cedo, com 14 anos, no circo popular do faquir Ferris. Fugiu de casa e passou a acompanhar o referido circo. Nesse período Mazzaropi inicia suas representações cômicas, durante os intervalos das apresentações cômicas, durante os intervalos das apresentações e, como o caipira estava em moda, começou a definir um papel que delineasse ao mesmo tempo a simplicidade cabocla e a esperteza imigrante. Viajou por inúmeras cidades do estado de São Paulo e do país, com o circo do Ferris, até que, em 1940, montou o Pavilhão Mazzaropi. O pavilhão era feito de madeira e coberto com lona, desmontável, o que facilitava suas apresentações em praças, nas cidades da região, onde permanecia em média por dez dias. Seu grupo era formado por vinte artistas, que apresentavam shows variados, como era costume na época, uma mistura de declamações com peças teatrais, cantigas regionais e caipiras, e anedotas. O repertório, apesar da variedade, era fixo, por encontrar uma grande aceitação do público. Porém, um momento de crise em 1945 impossibilita a continuidade do Pavilhão e sua Trupe, quando é desfeito o grupo. Mazzaropi volta a permanecer na cidade de São Paulo onde atua no circo Oberdã. Seu jeito patético, meio torto, caipira, jeca, torna-o conhecido. Daí, sai dos circos e passa para o rádio e para a televisão. Em 1946, a convite do diretor da Rádio Tupi, Demerval Costa Lima, estréia no programa Rancho Alegre, que lhe proporciona tremenda popularidade e o impulsiona decididamente para o cinema. O programa era produzido por Cassiano Gabus Mendes e reuniu, ao longo das apresentações, cantores, humoristas e artistas; formou a “Brigada da Alegria” que percorreu o Brasil (Linda Batista, Hebe Camargo, Henricão e Rosa Maria, Michele Allard). Com o sucesso obtido com essa caravana e a rádio, Mazzaropi 10 é convidado a trabalhar na TV Tupi (1950), recém inaugurada, apresentando o mesmo programa Rancho Alegre, ao vivo, semanalmente. No cinema, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, com o teatrólogo e diretor Abílio Pereira de Almeida, faz o primeiro teste para o ator em 1951. Mazzaropi faz o personagem principal em “Sai da Frente”(1952), “Nadando em Dinheiro”(1953) e “Candinho”(1954). Isso lhe rendeu uma imensa popularidade e um contrato milionário frente aos demais atores da companhia. Já fora da Vera Cruz, realizou outros filmes de sucesso, tais como: “A Carrocinha” (1955), “O Gato de Madame” (1956), “O Fuzileiro do Amor”(1956), “O Noivo da Girafa”(1957), “Chico Fumaça”(1958), e como produtor inicia com “Chofer de Praça”(1958). Mas é em 1959, com o filme JECA TATU, que Mazzaropi definitivamente modela seu personagem, unindo características do caipira-caboclo ao estereótipo criado por Monteiro Lobato. Essa caricatura foi criada pelo escritor a partir de experiências vividas na Fazenda Paraíso, onde Monteiro Lobato conheceu os caipiras que para ele trabalhavam; acrescido das características do animal tatu, que lhe estragava a plantação de milho, surge Jeca Tatu. O Jeca Tatu era desnutrido, com lombrigas e preguiçoso, o que o tornou símbolo da campanha publicitária do produto fortificante da Biotônico Fontoura, que o tornava forte e esperto trabalhador. No filme Jeca Tatu, Mazzaropi faz uma adaptação desse estereótipo acrescido de uma personalidade ingênua, porém astuta, e da comicidade que já lhe era acentuada. O filme JECA TATU é a história de um caboclo oprimido e perseguido pelo administrador de uma grande fazenda , por ocupar um pedaço dessas terras e não querer desocupá-la ou vendê-la a qualquer preço. O fazendeiro queima sua casa e Jeca e sua família ficam sem ter onde morar. Mas, como Jeca era uma pessoa muito popular na região, recebe o apoio de um político que o faz vencer o malfadado fazendeiro, e tudo acaba bem. Em 1961, Mazzaropi compra a fazenda da Santa, onde monta seus estúdios, com equipamentos importados da melhor qualidade. Ali ele cria suas histórias, o argumento, 11 o roteiro, dirigia e interpretava. Dentre os filmes de sucesso: Tristeza do Jeca, Casinha Pequenina (1962), O Jeca e a Freira (1967), Uma pistola para Djeca (1969), O paraíso das solteironas (1970), Bentão Ronca Ferro (1970), e uma super produção realizada no exterior, Um caipira em Bariloche (1972), Jeca, o macumbeiro (1975), Jeca contra o capeta, Jeca e seu filho preto, e tentos outros. Seu último filme “O Jeca e a Égua Milagrosa”(1981) encerra uma carreira que tenta fazer do caipira um personagem cômico aventureiro, a fim de atender ao público popular que o acompanhou fielmente. Muito longe de retratar uma realidade social, Mazzaropi mostrou traços de uma cultura estereotipada e que foi mudando, através do seu personagem, em decorrência das mudanças culturais do período em que produziu. Fazer cinema, para ele, era fazer o público rir, chorar e se envolver numa trama, ao que a figura caricata do caipira atendia com sucesso. 2. 2. Chico Bento, um herói caipira. Maurício de Souza pode ser considerado o único quadrinhista brasileiro a viver de histórias em quadrinhos, e a conseguir montar um “império” que vai dos quadrinhos à animação, merchandising, e parque de diversão. Sua história profissional começa na redação do jornal Folha da Manhã - atual Folha de São Paulo - em 1954, quando, exausto de procurar um emprego como desenhista, aceitou trabalhar como repórter policial. Mesmo na redação, continuou a desenvolver seus desenhos e, algumas vezes, quando a matéria não podia ser fotografada, ilustrava-a. Nascido em 27 de outubro de 1935, na cidade de Santa Isabel, interior de São Paulo, e criado em Mogi das Cruzes, de acordo com sua biografia, Maurício de Souza sempre teve inclinação para o desenho, tanto que na adolescência criou seu primeiro personagem, o Capitão Picolé. Entretanto, somente em julho de 1959 convence a empresa Folha da Manhã a publicar uma tira do cachorrinho Bidú e seu dono Franjinha, o primeiro trabalho que lhe abre definitivamente as portas para os quadrinhos. Outros personagens surgiram em seguida como Cebolinha (1960), Piteco (1961), Cascão (1961), Chico Bento (1961), Jotalhão (1962), Astronauta (1963) Horácio (1963), Magalí (1963), Mônica (1963), Penadinho (1964), Tina (1964) que sofreu duas mudanças nas duas décadas posteriores, Pelezinho (1976). 12 Em 1960, durante seis meses, a Editora Continental publicou em forma de revista: Bidú, Cebolinha e Piteco; as publicações foram interrompidas pelo fato de a editora fechar pouco tempo depois. Em maio de 1970, a Editora Abril Cultural publica a primeira revista mensal da Mônica, seguida por Cebolinha, lançada em 1973. Somadas atingiam uma tiragem mensal de cerca de 500 mil exemplares. No final da década de 80, Maurício muda de editora e passa a trabalhar com a Globo, pois objetivava expandir sua atuação ao cinema a à televisão e, inclusive, no mercado internacional. As produções Maurício de Souza têm registrados mais de 100 personagens que aparecem também em camisetas, adesivos, bonecos, roupas de cama e banho, etc.xii As produções de Maurício de Souza conseguiram se impor tanto no mercado interno quanto no externo: Europa, Japão e, com animação, os Estados Unidos. E para que isso se tornasse possível, seguiu modelos e referências das produções internacionais. Segundo Moacy Cirne em seu livro Ä linguagem dos quadrinhos”, o artista deve manter um trabalho que seja questionador da indústria cultural e tenha compromissos com a realidade onde atua. Ressalva a universalidade dos personagens e suas características voltadas a uma preocupação consumista, e mesmo tendo um interesse em divulgar a cultura brasileira, não forma uma cultura brasileira, repetindo moldes veiculados no cinema e na televisão. “Por que Maurício de Souza, nos últimos anos, não tem tentado uma abrasileiração progressiva dos personagens que giram em torno da Mônica? É verdade que existe o Chico Bento está ligado a um mundo limitado dentro de seu universo ficcional (...)”.xiii Chico Bento foi criado em 1961 a partir de uma referência particular, ou seja, um tio-avô de Maurício de Souza que vivia em um sítio e apresentava todos os traços de uma cultura rural simples e desprendida. Essas características foram tomadas como suporte para o perfil inicial de Chico Bento. Além disso, naquele período era forte a imagem do Jeca Tatu, criada por Monteiro Lobato, e o tipo caipira que fazia sucesso no cinema e no rádio, com Mazzaropi e as histórias de Pedro Malazartes. Nesse contexto, o personagem dos quadrinhos pendeu para o estereótipo de modo a apresentar-se como uma preguiçosa e ingênua figura do campo. 13 No decorrer dos anos, Chico Bento adquire “amiguinhos” que irão participar do universo rural das suas histórias. Somente em agosto de 1982 foi lançada a primeira revista exclusiva do personagem e sua turma. A Turma da Roça, como é denominada pela produção, é composta por vários personagens caricaturados, a fim de compor um clima pacato, harmonioso e cooperativo de um suposto mundo camponês. Os personagens são: a namorada Rosinha, o primo e amigo Zé Lelé, o colega oriental Hiro, o exemplar aluno Zé da Roça, o padre Lino, a dedicada professora Dona Marocas, o Coronel, o dono da apetitosa goiabeira Nho Lau, o pai trabalhador Zé Bento, e a incansável rainha do lar Mãe, entre outros como a galinha Gizerda, o primo da cidade, o vendeiro, etc. O universo ficcional a que se refere Moacy Cirne traz uma idéia de mundo ideal. O campo se sobrepõe à cidade pois é colocado como solução para os problemas do homem. A presença da natureza, como um pano de fundo para uma realidade harmoniosa e segura, é a resposta para a felicidade. O respeito pelos rios, árvores, animais e pela terra torna-se a bandeira dos temas. Principalmente nesses últimos três anos, em que a ecologia virou moda, Chico bento se tornou um líder em defesa da natureza. Suas histórias chegam a ser transformadas em verdadeiros discursos ecológicos. As crendices populares fazem parte do contexto, unem natureza com uma dose de misticismo e apontam a necessidade de uma fé em deus. Para compor esse ambiente religioso, os temas abordam símbolos como: a Mula sem Cabeça, o Saci Pererê, o Boto Cor de Rosa, o Lobisomem. Atualmente, também influenciado pelo modismo místico, suas histórias já contam com personagens como: Bruxas, Gnomos e Duendes. Todos estes sempre reforçam as qualidades de Chico Bento de defensor da natureza e servo dos mandamentos divinos. Em algumas histórias, ele é ajudado pelos anjos a estudar ou a resolver problemas da sua comunidade. Deus conversa com ele, em alguns momentos, e até o utiliza como referência para seus feitos. Chico Bento é símbolo de bondade, amor, respeito e dedicação. A educação é simbolizada por uma professora extremamente dedicada e vista como uma autoridade na roça, respeitada tanto pelos alunos quanto pelos pais. Suas aulas buscam o conhecimento geral e a participação dos pais na educação dos filhos. 14 Estudar é a incumbência mais difícil de Chico Bento. Tem dificuldades de compreender os assuntos abordados nas aulas, qualquer que seja a matéria, o que lhe acarreta uma coleção de zeros como nota. Sempre atrasado e afobado com as provas, ele não mede conseqüências quando troca as tarefas de casa por um banho no lago ou uma pescaria. É muito comum nessas histórias a valorização do trabalho com a terra em detrimento do trabalho intelectual. Não precisa se um conhecedor das “letras” se for um honesto e dedicado trabalhador. Esse quadro ideológico também estimula formas mais cotidianas de comportamento, conduta, que devem ser adotadas para o equilíbrio do ambiente. A família é o núcleo fundamental de onde partem todos os acontecimentos sociais. O respeito pela sabedoria prática do pai e pelos conselhos da mãe são a base para a formação dos elos sociais entre os amigos e a namorada, reproduzindo-se aqui o patriarcado rural. Longe dos sofisticados aparelhos eletrodomésticos, a Mãe e o Pai realizam suas atividades de maneiras simples, chegando em alguns momentos a serem primitivos, com fogão a lenha e arado de tração animal. A sobrevivência, a base de uma agricultura de subsistência, é obtida através do trabalho na própria terra, um pequeno sítio onde se tem o necessário para uma vida modesta no campo. A relação com os grandes proprietários se faz através de história onde há a cooperação destes com o pai de Chico Bento e outros membros da comunidade, como o padre, ajudando em festas na Igreja, por exemplo. Até roubar goiaba na fazenda vizinha, prática de Chico e Zé Lelé, transforma-se na recuperação de gestos ingênuos de uma sociedade idealizada, onde a punição máxima é ser atingido por um tiro de espingarda de sal. A cidade é enfocada com um meio agressivo, poluído, desestruturado, de valores supérfluos e pessoas agressivas, cansadas e desiludidas. São comuns histórias onde grandes empresários, em busca de um novo empreendimento, acabam trocando o campo pela cidade, e, desistindo de desmatar e construir indústrias, compram terras para viverem tranqüilos e próximos da aconchegante natureza. Chico Bento não é uma publicação que procura discutir ou apresentar problemas rurais, conflitos sociais e miséria humana. Não é uma revista ou um personagem 15 revolucionários mas são ideológicos, no sentido de veicular um estereótipo rearticulado do homem do campo. Apesar de propor um mundo rural como algo sublime, harmonioso, exemplar, cria um outro modelo de caipira, que não é Jeca, é um herói para a natureza e os amigos, mas ainda um personagem ficcional. i BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 2ª edição. BOSI, Ecléa. Cultura e desenraizamento. (in) BOSI, Alfredo. Cultura brasileira: temas e situações. São Paulo: Editora Ática, 1987. iii CIRNE, Moacy. A lingagem dos quadrinhos. São Paulo: Editora Perspectiva 19__. iv CÂNDIDO, Antonio. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. v ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988. vi BOSI. Op.cit. vii CÂNDIDO. Op.cit. viii LOPES, Maria Immacolata. Pesquisa em comunicação. São Paulo: Ed. Loyola, 1990. ix BENJAMIN. Op.cit. x CÂNDIDO. Op.cit. xi ZUMTHOR, Paul. Permanência da Voz. xii SILVA, Robson Bastos da. Uma leitura filosófico-existencialista do personagem Horácio de Maurício de Souza. Tese de Mestrado. São Bernardo do Campo: Instituto Metodista de Ensino Superior, 1990. xiii CIRNE. Op.cit. ii