SEGURANÇA URBANA: AUTORIDADES E INEFICIÊNCIA- 39 UM LUGAR PARA CADA COISA, CADA COISA EM SEU LUGAR1 ou O QUE DEVO LAMENTAR MAIS: O ASSASSINATO DE 3 JOVENS INGÊNUOS OU O SUICÍDIO DE 11 TOLOS? Aristoteles Rodrigues Professor e Psicólogo, Mestre em Ciência da Religião. Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa” da UFJF. [email protected] Quem ainda lembra de Fantasia, o desenho de longa metragem de Walt Disney, recordará de Merlin, a espinafrar o aprendiz de feiticeiro, desempenhado por Mickey, que, ainda sem conhecer o mundo da magia, invocou uma vassoura e um balde de água, para que limpem o castelo. Sem controle, a vassoura e o balde encantados continuam indefinidamente seu “trabalho”, para desespero do aprendiz. O fato se resolve na fantasia, como seu nome avisa. Em uma favela do Rio de Janeiro, cinco jovens foram detidos por um destacamento do exército brasileiro, sob a acusação de desacato. Identificados, seriam libertados, mas não o foram: levados pelo destacamento, foram entregues a traficantes do morro, como “um presentinho”, conforme noticiou a tevê; o fato não se resolveu na fantasia, porque não era um desenho animado. Como pôde acontecer um fato dessa natureza, envolvendo um tenente, formado pela Academia Militar de Agulhas Negras, sargento e soldados do Exército Brasileiro? 1 Goethe Metendo-me em seara que não é a minha, já falei que as forças armadas são a única instituição urbana, no Brasil; também já falei que há toda uma dificuldade de contato delas com as instituições civis, dado o caráter caipira destas. O projeto de um político caipira, que atende a uma comunidade caipira, é licitado e entregue a uma empresa caipira. Esta precisa de segurança, porque a obra será executada em área que é dominada por quadrilha caipira de traficantes. Projeto político, que deverá alavancar candidatura a outros cargos, convocam-se as forças armadas, instituição urbana, para gerir a segurança. A partir daí, volta-se à clássica definição, que define a modernidade do mundo ocidental: lugar das forças armadas, antes que se saiba o que pode acontecer a partir de contato com o mundo civil, é no quartel (cada coisa em seu lugar). As forças armadas, por excelência, são inocentes, na relação com o mundo caipira que as rodeia: acreditam na farda, na bandeira, na pátria, crenças que não ocupam as pessoas caipiras/civis, de um modo geral. Por um instante, uma lembrança: alguém me contou que, por volta dos 10 anos de idade, teve a idéia, inspirada também por desenho animado, de jogar um filhote de gato em um quintal, onde dois cães ferozes rosnavam e latiam para todos. Esperava ver o gato subindo pelo muro e fugindo, com o rabo grosso, e viu um dos cães fechar os dentes na cabeça do gato, que caiu já morto, no chão. Arrepende-se do ato, até hoje, o narrador, mesmo sabendo que o fez por inocência. No fato havido na favela, também houve inocência, mas ocupando 11 homens adultos, sendo um deles um oficial do Exército Brasileiro: tenente, sargento e nove soldados do Exército promoveram a morte de três idiotinhas favelados: desgraçam 14 famílias, o que até poderia dar piada, não fosse o que foi. O tenente chorou convulsivamente, como um infante, frente ao juiz que o interrogava. Para completar, o governo federal anunciou que mandará projeto de lei para o Congresso, buscando conceder pensão de um salário mínimo a cada família dos assassinados, enquanto concede pensão equivalente a um ano de cada um deles para os que foram presos, nos governos militares, por motivos políticos. Policiais militares são flagrados a aproveitar a lei seca e faturar um troco, achacando motoristas em situação irregular – qualquer que seja a irregularidade; depois, outros policiais militares atiram em carro parecido com o de suspeitos que perseguiam, embora aquele em que atiraram tivesse parado e parado permanecesse, e mataram criança, dentro do carro, na companhia da mãe e de um irmão bebê. O presidente do Supremo Tribunal Federal liberou bandidos de colarinho branco presos, duas vezes seguidas – isso, depois de falar mal das prisões – e, por fim, falou mal do juiz que decretou as prisões. Existirá um vírus social? As coisas brasileiras estão a indicar que sim, existe um vírus social, que contamina pessoas, a partir de um portador. Ou talvez a mídia não se ocupasse dessas questiúnculas e agora esteja se ocupando, motivo por que ficamos sabendo. Vou tentar encaixar esses fatos em minha teoria de caipiras X urbanos: o Exército é a única instituição urbana que possuímos; veio aceitando caipiras em seu meio, acreditando que pudesse urbanizá-los. Talvez possa, mas obviamente não do modo que tem adotado, a julgar pelos resultados: o tenente, cujo salário não deve ser excelente, mas é bom, mora em uma favela. O sargento e os soldados, também. Nada contra favelas e seus moradores, ditos favelados, mas há dois fatores que desaconselham a convivência entre agentes da lei e da ordem com traficantes e bandidos: um é que agentes da lei têm que ser pessoas urbanas e a favela é habitada por pessoas suburbanas, ou mesmo caipiras, ordem velha, que os infecta. Outra é que pessoas trabalhadoras e quase honestas2, não devem fazê-lo, particularmente quando suas famílias também vivem ali, porque eles ficam vulneráveis através delas (é esse o motivo de super-heróis terem duas identidades). Outrossim, uma freira que decida viver em uma zona de meretrício, ajudando as profissionais do sexo que ali vivam, após uns 10 anos deterão o mesmo grau de santidade de suas colegas? Provavelmente não. Isso ajuda a entender por que há raras denúncias contra traficantes, milicianos e demais bandidos, vindas das pessoas que vivem nessas áreas e, por conseguinte, sabem quem é quem, vivem com medo, poderiam ficar livres, mas calamse. Na guerra, não há inocentes, já disse alguém. A polícia militar é monitorada pelo exército, desde os governos militares; assumiu publicamente que não treina seus policiais há muito tempo e resolveu dar-lhes um treinamento de emergência, agora, após o assassinato da criança. Reduz o risco de repetirem isso, mas não o elimina, porque ficará no emergencial, o que é prática do serviço público brasileiro: tradicionalmente, há sempre dinheiro para construir, mas não há dinheiro para manter. Nem para ensinar os homens que a compõem a atirar. A polícia militar, em sendo monitorada pelo exército, deveria tornar-se uma instituição urbana. Mas é administrada diuturnamente por pessoas não urbanas, recebe pessoas não urbanas para compô-la e atua na cidade. Permanece suburbana. A única coisa que soma diversas possibilidades e dá certo é o ornitorrinco: tem pele, pêlos, bico de pato, rabo de castor e patas com membranas e é, ao mesmo tempo, um réptil, um pássaro e um mamífero. Além de ser ovíparo, produz leite para os filhotes, como um marsupial, tem pele adaptada à vida na água e veneno comparável ao das serpentes. O resto dessas coisas esquisitas, híbridas, não costuma dar certo. Não dão certo. Como é que ficam os serviços reservados do Exército e da Polícia Militar? Sabem onde moram os membros de seus efetivos? Sabem com quem eles andam? Quais os carros que usam, tanto eles quanto seus familiares? Sabem o valor das aplicações que eventualmente possuem em bancos ou financeiras? Se possuem casas ou apartamentos, assim mesmo, no plural? 2 o “quase honestas” é a definição que recebi de como somos, quase todos, ao longo da vida. Esses serviços reservados também têm sido ornitorrincos e por isso não dão certo: não sabem nada daquilo ali, ou, se sabem, fica pior: não utilizam as informações, o que leva aos desastres que temos assistido e aos que provavelmente assistiremos. O governo central está no mesmo diapasão: propõe-se administrar a cidade, mas, poverello, é caipira, só pode administrar o campo. Mas não quer administrar o campo, quer administrar a cidade. Enxerga seu próprio umbigo e imagina que este seja o da cidade. Não é. Mas quem tem o poder tem o poder: o governo central, caipira, tem-no. A polícia militar, caipira, tem-no. O Exército, urbano, tem-no. Sem conciliação, o que é péssimo para nós, que precisamos de segurança na cidade e não a temos.