HG 613 Tópicos Especiais de Epistemologia das Ciências Naturais II
Graduação, 2o Semestre de 2010 - Prof. Silvio Seno Chibeni
Prova 1 (15/10/2010)
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Os valores das questões são iguais.
Leia atentamente as questões.
Responda de forma objetiva e clara, separando os itens.
Os exemplos das questões 4 e 5 inspiram-se em casos reais, mas não visam à exatidão histórica.
1. No desenvolvimento da ciência moderna, em torno do séc. XVII, novas visões de mundo
substituíram as antigas. Como um denominador comum dessas novas formas de entender a realidade
física, podemos apontar a concepção conhecida como mecanicismo. a) Defina-a e explique-a
brevemente. b) Indique, a título de exemplo, como os fenômenos sonoros são explicados nessa
concepção (não precisa dar detalhes formais; indique apenas a estrutura conceitual da explicação,
destacando o papel da distinção entre qualidades primárias e secundárias).
2. a) O que é, na terminologia de Hempel, uma implicação de teste? Dê um exemplo. b) Por
que as implicações de teste são importantes na ciência?
3. Na seção 2.2, Hempel apresenta a forma de argumento lógico chamada modus tollens,
muitas vezes usada nas situações de falseação de hipóteses. Invente uma hipótese (ou mencione
alguma já conhecida) e uma implicação de teste dessa hipótese e monte com elas um argumento desse
tipo, que mostre que a hipótese é falsa. (Simbolize o argumento usando a notação padrão encontrada
no texto de Hempel e explicada nas aulas. Não vale reproduzir nenhum dos argumentos do livro, nem
dado pelo professor nas aulas.)
4. O sociólogo Emile Durkheim (1859-1917) propôs, num ensaio chamado Suicídio (1897), a
hipótese de que “um alto grau de individualismo num dado grupo social causa uma maior taxa de
suicídio no grupo” (Hs). A avaliação dessa hipótese com base na evidência empírica enfrenta o
problema de que embora a taxa de suicídio seja algo mensurável diretamente, o individualismo não é.
Assim, para extrair implicações de teste de Hs Durkheim lançou mão de várias hipóteses auxiliares.
Uma delas era a de que uma das marcas do individualismo de um grupo é o grau de independência das
atividades individuais detalhadas de seus membros relativamente ao grupo; ou seja, quanto menos o
grupo governa a vida dos seus membros, mais individualismo haverá (Hi). Assumiu, ademais, que
entre católicos há mais controle do grupo sobre os indivíduos do que entre protestantes (Hc). Com
essas hipóteses ele inferiu de Hs que a taxa de suicídio entre os protestantes franceses seria maior do
que a dos católicos. Suponha que essa previsão (simbolizada por Sp>Sc) tenha sido encontrada ser
falsa na experiência. a) Monte o argumento formal para a refutação de Hs a partir dessa situação,
seguindo as estruturas apresentadas por Hempel e pelas notas de aula. b) Indique um modo pelo qual,
mesmo diante desse argumento, alguém poderia tentar salvar a hipótese Hs, de preferência sem apelar
a hipóteses ad hoc, ou seja, sem introduzir hipóteses não-testáveis.
5. Considere duas hipóteses sobre as espécies biológicas: Hg: Alguns seres vivos atuais são
gerados espontaneamente a partir de matéria inanimada; e Hd: Todos os seres vivos atuais
descendem de outros seres vivos. Um dos fatos que, no séc. XIX, eram dados como corroboradores de
Hg é que em pedaços de carne deixados apodrecer (C) surgem larvas (L), ao cabo de alguns dias. No
entanto, esse fato não ajuda a decidir entre as hipóteses, pois Hd também prevê a ocorrência de L nas
mesmas circunstâncias C, embora por razões diferentes (a visita de moscas que colocam ovos na
carne). Diante disso, Pasteur montou um teste crucial para decidir entre Hg e Hd, modificando a
condição de teste C, que passou a ser C*: a carne deixada apodrecer num recipiente coberto por uma
tela fina. Constatou que nesse caso não surgiram larvas. a) Apresente e explique a estrutura formal do
teste crucial de Pasteur. (Lembre que ela consiste de dois argumentos, um envolvendo a premissa
Hg → (C* → L), e o outro a premissa Hd → (C* → ~L). b) Comente brevemente o resultado do
teste, no que diz respeito ao veredicto que fornece acerca das duas hipóteses, ou seja, como e em que
medida o teste realmente refuta uma hipótese e corrobora a outra.
HG 613 Tópicos Especiais de Epistemologia das Ciências Naturais II – 2 sem. 2010
Prova 1 (15/10/2010)
Correção
1. a) O mecanicismo concebe a realidade física como regida, em seus aspectos fundamentais, por
leis mecânicas, isto é, leis que dizem como os corpos se movem. Todos os fenômenos físicos
seriam, então, devidos ao movimento dos corpos. Detalhando um pouco mais, segundo o
mecanicismo os corpos seriam caracterizados, em última instância, por um conjunto pequeno de
qualidades – qualidades a que Locke chamou de “primárias”: extensão, forma, movimento,
tamanho, solidez, número e arranjo de partes. Todas as demais – as qualidades “secundárias” –,
como as cores, sons, cheiros, etc. decorreriam das primárias, levando-se em conta, especialmente,
as partes diminutas dos corpos. b) Por exemplo: um som nada mais seria do que o efeito de certos
movimentos vibratórios dos corpos que “emitem” o som, vibração essa que se transmite
mecanicamente às partículas do ar, até chegarem aos ouvidos, onde, novamente por ação
mecânica, são postas em vibração diversas de suas partes (membranas, ossos, líquidos, etc). Na
versão original do mecanicismo (defendida por Descartes, entre outros), esses movimentos se
transmitiriam então a partículas que preenchem os nervos – os “espíritos animais” –, que os
levariam à glândula pineal, ponto do corpo mais particularmente ligado à alma. Esta interpretaria
esses movimentos como um som.
2. a) Implicações de teste são eventos observáveis que uma hipótese prevê que ocorrerão, em
determinadas circunstâncias experimentais. Em outros termos, são as predições empíricas da
hipótese. Por exemplo, a hipótese de que um determinado líquido é ácido tem como uma
implicação de teste (entre outras) a formação de bolhas (liberação de um gás), quando se despeja
nele bicarbonato de sódio. b) As implicações de teste são importantes porque são elas que
permitem – como o nome diz – testar a hipótese, ou seja, confrontá-la com a experiência. Grosso
modo, se as implicações de teste se mostram falsas, a hipótese é refutada; se se mostram
verdadeiras, a hipótese é confirmada.
3. Tomemos o mesmo exemplo dado na resposta à questão 2. Chamemos a hipótese de que o
líquido é ácido de H, e de B a implicação de teste de que borbulhará ao receber o bicarbonato. A
falseação de H ocorre, como também já foi antecipado naquela resposta, quando, ao fazermos o
teste, obtemos o resultado de que não saem borbulhas, ou seja, obtemos ~B (onde ‘~’ é o símbolo
da negação). Montando então o argumento do modus tollens, temos:
H→B
~B
–––––––––
~H
Explicando esse esquema formal:
Primeira premissa: de H se segue B (i.e. B é implicação de teste de H).
Segunda premissa: B não ocorre (isso resulta da observação do líquido misturado com
bicarbonato)
Conclusão lógica: a hipótese H é falsa.
4. a) O argumento de refutação é o seguinte modus tollens:
(Hs & Hi & Hc) → Sp>Sc
∼ Sp>Sc
–––––––––––––––––––––––
∼ (Hs & Hi & Hc)
b) Dado que a conclusão não é simplesmente a negação de Hs, não se pode concluir com certeza que Hs
tenha sido refutada pela falsidade de Sp>Sc. Essa conclusão só se segue caso a verdade de Hi e Hc esteja
assegurada. Ora, a priori não há essa garantia, de modo que alguém pode continuar acreditando em Hs,
desde que seja capaz de mostrar que ao menos uma dessas hipóteses auxiliares é falsa (ou que há
eventuais outras hipóteses auxiliares falsas implícitas na implicação da primeira premissa). No caso,
parece mais fácil criticar a segunda delas, Hc, com base em um eventual estudo empírico rigoroso da
forma pela qual o controle social se exerce nos grupos católicos e protestantes. Essa sugestão é
independentemente testável, o que evita a acusação de que a manobra para salvar Hs seja puramente ad
hoc.
5. a) O teste crucial consiste nestes dois argumentos:
i)
Hg → (C* → L)
~L
–––––––––
∼ Hg
ii)
Hd → (C* → ∼L)
~L
–––––––––
Hd
O teste se caracteriza como crucial porque um mesmo experimento, a saber, o que resultou no fato ~L nas
condições C*, permite montar esses dois argumentos, o primeiro refutando a hipótese Hg e o segundo
confirmando a hipótese rival Hd. No argumento (i), a primeira premissa propõe que a hipótese da geração
espontânea prediz que mesmo com a tela (C*) surgiriam larvas (L). Como isso se mostra falso, conclui-se
que a hipótese é falsa. No argumento (ii), a primeira premissa propõe que a hipótese rival Hd prediz que
com a tela (C*) não surgiriam larvas (~L), porque segundo essa hipótese as larvas provêm de ovos de
insetos, cujo contato com a carne a tela impede. Como essa predição se obtém, a hipótese é confirmada
pelo experimento.
b) No entanto, tratando-se de um teste real, é provável que uma análise mais cuidadosa revele a presença
de hipóteses auxiliares implícitas nas primeiras premissas dos argumentos. O questionamento dessas
hipóteses pode, concebivelmente, levar a uma reversão do veredicto do teste. Assim, por exemplo, um
defensor ferrenho de Hg pode alegar que a presença da tela sombreia parcialmente o material, alterando
as condições propícias ao surgimento espontâneo das larvas. Isso pode ser rejeitado pelo oponente como
sendo uma manobra ad hoc. Para evitar essa acusação grave, caberia, então, ao defensor da geração
espontânea mostrar que a nova suposição que fez pode ser independentemente testada. (Por exemplo,
sombrear a carne com a tela sem tampar completamente o recipiente.) Nota-se, pois, que embora bastante
convincente o teste não representa uma decisão empírica inapelável, podendo em princípio levar a
desenvolvimentos experimentais e teóricos interessantes. (Na história real, como se sabe, a hipótese Hd
acabou saindo vitoriosa.)
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Prova 1 - Unicamp