LITERATURA PORTUGUESA I O DISCURSO ENGENHOSO BARROCO PROF. DR. CARLOS FRANCISCO DE MORAIS “Apólogo da morte” Vi eu um dia a Morte andar folgando Por um campo de vivos, que a não viam. Os velhos, sem saber o que faziam, A cada passo nela iam topando. Na mocidade os moços confiando, Ignorantes da morte, a não temiam. Todos cegos, nenhuns se lhes desviam; Ela a todos co dedo os vai contando. Então, quis disparar, e os olhos cerra: Tirou, e errou! Eu, vendo seus empregos Tão sem ordem, bradei: Tem-te homicida! Voltou-se, e respondeu: Tal vai de guerra! Se vós todos andais comigo cegos, Que esperais que convosco ande advertida? “Antes da confissão” Eu que faço? que sei? Que vou buscando? Conto, lugar, ou tempo a esta fraqueza? Tenho eu mais que acusar, por mais firmeza, Toda a vida, sem mais como, nem quando? Se cuidando, Senhor, falando, obrando, Te ofenda minha ingrata natureza, Nascer, viver, morrer, tudo é torpeza. Donde vou? donde venho? donde ando? Tudo é culpa, ó bom Deus! Não uma e uma Descubro ante os teus olhos. Toda a vida Se conte por delito e por ofensa. Mas que fora de nós, se esta, se alguma Fora mais que uma gota, a ser medida Co largo mar de tua graça imensa? “Lampadario de crystal” (excerto) Alpe luzido, Luminar nevado, Pompa da Regia Sala, Thesouro no valor, brinco na gala Onde a materia vasta, a sutil arte Fazendo illustre excesso, O preço abate sublimando o preço: Confusão porém clara Da luzida no Ceo, na terra escura Sciencia, que reparte Fortuna a Venus, & infortunio a Marte; Porque quando separa Do crystalino Ceo, Ceo estrellado Vosso puro crystal, vossa luz pura Une fazendo proprio o peregrino Com estrellado Ceo, Ceo crystallino. Lampada Soberana, Dignissima do templo de Diana, Mas se nelle tivera Vossa luz sua esfera Com tal excesso brilha, Brilha taõ sem exemplo, Que fora mais estranha maravilha A lampada, que o Templo; Que fora o Templo, emulação do polo De Diana por si, por vós de Apollo. (Fênix Renascida, tomo III, pp. 1-2 da I.ª ed.)