MARNOCO E SOUSA
José Ferreira Marnoco e Sousa nasceu em Sousela (Lousada, Porto) a 29
de Agosto de 1869 – filho de António José Ferreira Marnoco e Sousa e de D.
Sofia Elisa Cândida Marnoco e Sousa – , vindo a falecer na cidade de Coimbra a
17 de Março de 19161.
Frequenta o Seminário do Porto e, após a conclusão do curso de ciência
eclesiásticas, matricula-se, a 14 de Outubro de 1890, na Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra. Aí, no decorrer do curso – no qual logo se
distingue – , alcança o bacharelato (a 23 de Junho de 1894) e a licenciatura2
(em 25 Abril de 1896). 3 Um ano volvido, no dia 5 de Dezembro de 1897,
presta provas de Doutoramento4.
Sendo, então, a par de Machado Vilela e de Francisco Joaquim
Fernandes, um dos “elementos mais destacados da geração nova da
Faculdade”5, os primeiros anos de Marnoco (após ter dado entrada, em 1898,
naquela instituição como professor substituto) prenunciam a sua futura e
intensa actividade docente e intelectual, dispersa por variados ramos do saber
jurídico – que se manterá (ou, mesmo, intensificará) depois da sua promoção
a Catedrático (em 1902).
Da sua passagem por diversas cadeiras do curso de Direito, deixa uma
obra vasta e valiosa, que lhe valeu os mais rasgados elogios. Aníbal Almeida
tem-no por “um dos maiores nomes de sempre da sua Faculdade,
indubitavelmente digno de se escrever em bronze nas velhas pedras “dos seus
humbrais””, “trabalhador emérito”, “estudioso incansável” e “ “assombroso
erudito” sem vestígio de hipérbole”6. Paralelamente, na Grande Enciclopédia
1
Braga da Cruz traduz bem o ambiente de comoção que rodeou a sua morte prematura:
“MARNOCO E SOUZA soçobrou ao peso do trabalho, falecendo em plena pujança da vida (com
46 anos de idade), após uma enfermidade de poucos meses, contraída, manifestamente, na
sequência do esforço físico que a si próprio se impôs, durante anos seguidos, numa vida de
tarefas contínuas e sem um momento de repouso. A sua morte revestiu, assim, um aspecto
quase dramático e veio acrescentar ao seu real valor intelectual e à soma de serviços
prestados à sua Escola e ao País uma aura de prestígio raramente igualada no professorado
universitário. A Faculdade de Direito deu emocionadamente o seu nome a uma das salas de
aula dos Gerais – homenagem que nunca tinha prestado e nunca mais prestou a qualquer
outro professor; o Boletim da Faculdade consagrou-lhe um fascículo especial (...); e a Revista
lamentou a sua perda (...).” – Cruz, Guilherme Braga da (1975) – A Revista de Legislação e de
Jurisprudência. Esboço da sua História. Publicação Comemorativa do Centenário da Revista
(1868-1968), vol. I, Coimbra, separata da Revista de Legislação e de Jurisprudência, do ano
101º (1968 – 1969) ao ano 107º (1974 - 1975), 489 e 490.
2
Apresentando a dissertação Impedimentos do Casamento do Direito Portuguez.
3
Cfr. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. XVI, Editorial Enciclopédia,
Lisboa/Rio de Janeiro, 387 e 388; Rodrigues, Manuel Augusto (dir.) (1992) – Memoria
Professorum Universitatis Conimbrigensis (1772 – 1937), Vol. II, Arquivo da Universidade de
Coimbra, Coimbra, 173 e 174; e Chorão, Luís Bigotte (1998) – A Comercialística Portuguesa e
o Ensino Universitário do Direito Comercial no Século XIX. I – Subsídios para a História do
Direito Comercial, Edições Cosmos, Lisboa, 64.
4
Defendendo o seu estudo Das letras no direito commercial portuguez.
5
Cruz, Guilherme Braga da (1975) o.cit., 455.
6
Almeida, Aníbal (1991): Relatório com o programa, os conteúdos e os métodos de ensino
teórico e prático da disciplina de Economia e Finanças Públicas, elaborado com vista a um
1
Portuguesa e Brasileira, o seu labor enquanto mestre universitário é descrito
repleto de louvores “Homem de lúcida inteligência, de forte vontade, de rara
austeridade, organizador tenaz e disciplinado para ser disciplinador,
realizador dotado de qualidades invulgares de trabalho, em todos os cargos
desempenhados deixou impresso o cunho da sua rica personalidade, exemplo
perfeito para alunos e subordinados. Como professor universitário legou-nos
um nome perdurável, já pela memória que ficou das suas lições orais, já
pelos seus escritos, notáveis na qualidade e quantidade”. No necrológico que
lhe dedica, a Revista de Legislação e Jurisprudência apresenta-o da seguinte
forma: “Dotado de muito talento e de grandes faculdades de trabalho
persistente o sr. dr. Marnoco e Souza foi professor modelo, para quem era
uma espécie de culto religioso o cumprimento de seus deveres profissionais,
que guiava e ilustrava os discípulos instruindo-os nos principios e dando-lhes
conta dos últimos progressos das sciencias que professava, e que se impunha
ao respeito e consideração de seus ouvintes pela competência e espírito de
justiça como julgador. As suas prelecções magistrais eram logo seguidas de
publicações pela imprensa, sempre instruídas e estimadas.”7. Por fim, Braga
da Cruz8 caracteriza-o como “um professor quase eclético, tendo regido na
Faculdade uma extrema variedade de cadeiras e tendo deixada assinalada a
sua passagem por essas regências com a publicação das respectivas prelecções
ou de trabalhos científicos relacionados com as respectivas matérias”.9
No entanto, o legado que deixa à Faculdade supera a vasta obra que
elaborou, ou mesmo a dedicação com que explicava as matérias – pois a ele se
deve uma intensa renovação, e um sincero esforço de modernização, da
Escola. Tal traduziu-se não só na reforma de variadas cadeiras10, como na
implementação do estudo de novas (e importantes) disciplinas, cuja ausência
curricular parecia querer justificar alguns dos ataques que se protagonizavam
contra a velha Faculdade11. Em simultâneo, instou os colegas a, seguindo o
concurso para professor associado do Grupo de Ciências Económicas da Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra, Coimbra, policopiado, 49, 50 e 51.
7
Revista de Legislação e Jurisprudência, 48º ano, nº 2019 (1 de Abril de 1916), França
Amado, Coimbra, 481.
8
Cruz, Guilherme Braga da (1975), o.cit., 456 e 457.
9
Leccionou as seguintes matérias: Direito Eclesiástico, Princípios Gerais de Direito Público,
Economia Política e Estadística (mais tarde desdobrada na cadeira de Economia Política e nos
cursos semestrais de Estadística e Economia Social), Processo Civil e Prática Judicial, Processo
Penal, História das Instituições do Direito Romano, Peninsular e Português, Administração
Colonial, e, por fim, Finanças. A impressionante listagem das principais obras que elaborou ao
longo desses anos vem incluída em Cruz, Guilherme Braga da (1975), o.cit., 458 a 460, nota
1092, bem como em Vilela, Álvaro da Costa Machado, Dr. José Ferreira Marnoco e Sousa
(Notas biográficas), in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Ano II
(1916), nº 17, 331 e sgts. Aí esclarece o autor ser “preocupação de sempre” de Marnoco
“esgotar o estudo dos assuntos e fornecer aos seus alunos todos os elementos necessários
para o completo conhecimento das questões. A bibliografia é sempre riquíssima, o
conhecimento das fontes é completo, a documentação é perfeita.”.
10
Designadamente Economia Política, Finanças, Direito Político e Direito Eclesiástico. A
própria História do Direito recebe interessada atenção.
11
Foi, dentre o respectivo professorado, Marnoco quem – acompanhado por José Alberto dos
Reis – veio à praça pública defender a Faculdade de Direito conimbricense aquando das
violentíssimas críticas que lhe foram dirigidas, numa enorme campanha (que depressa
alastrou do Pátio das Escolas a S. Bento e à imprensa) que a acusava de muito atrasada quer
nos métodos científicos de investigação dos seus elementos, quer no modelo de docência
2
seu exemplo, darem à estampa as respectivas lições12. Desta forma, concluía
Machado Vilela, “Dificilmente se encontrará no país uma corporação
scientífica que tenha na sua história uma década mais fecunda de produção
scientífica, do que foram êsses dez anos da Faculdade de Direito de Coimbra.
E não é exagero afirmar que, em grande parte, isso se deve à sugestão ou ao
pedido do dr. MARNOCO. O seu exemplo deu como fruto uma grande e
indestrutível obra scientífca, que vigorizou a Faculdade e honrou a
Universidade e o país, no conceito dos portugueses de boa fé e no conceito
dos estranjeiros que falam ou conhecem a língua portuguesa.”13. O empenho
que sempre manifestou na adequação do ensino à época e às realidades
nacionais foi aproveitado através de convites para participar em importantes
reformas – tais como a comissão organizada pela Faculdade de Direito, a fim
de se considerar a organização de um curso de notariado14, ou a missão de
estudo que o levou (bem como a Alberto dos Reis) a França e Itália15.16
adoptado. Num meritório esforço, buscando demonstrar que a renovação havia já principiado,
e que a Escola não poupava esforços no sentido da modernização, publicaram, em 1907, o
livro A Faculdade de Direito e o seu ensino.
12
“E assim é que, velhos e novos, quási todos – HENRIQUES DA SILVA, GUIMARÃES PEDROSA,
DIAS DA SILVA, GUILHERME MOREIRA, TEIXEIRA DE ABREU, JOSÉ TAVARES, ALBERTO DOS REIS,
PEDRO MARTINS, CAEIRO DA MATA, RUY ULRICH, e o autor destas linhas, dão publicidade às
suas lições e alguns organizam livros definitivos, mostrando ao país culto que a Faculdade
era uma grande oficina de trabalho, onde se conheciam tanto as novas correntes doutrinais
como os processos da investigação scientífica.” – Vilela, Álvaro da Costa Machado (1916),
o.cit., 337 e 338.
13
Id., ibid., 338.
14
Integrando a comissão, Marnoco e Sousa foi o autor do relatório apresentado pela mesma no
dia 24 de Abril de 1900, no qual se defende o projecto de constituição do referido curso de
notariado.
15
Beneficiando (em virtude do regime da autonomia universitária criado em 1907), de fundos
destinados à promoção do progresso do ensino, a Faculdade de Direito entendeu ser da maior
utilidade nomear aqueles seus dois docentes para uma deslocação às suas congéneres de
Paris, Turim e Roma, a fim de tomarem contacto com a docência das matérias jurídicas
naqueles países. Machado Vilela narra o episódio: “Pensando a Faculdade na reforma dos seus
estudos, tornava-se da maior utilidade verificar pessoalmente como era praticada a
organização do ensino do direito nos países de maior cultura jurídica. Assim o
compreenderam os dois professores, resolvendo estudar o ensino jurídico em França e Itália,
dois países largamente progressivos e de uma civilização e cultura semelhante à nossa
civilização e à nossa cultura. Visitaram por isso as universidades de Paris, Turim e Roma,
onde estudaram de modo completo a organização e funcionamento das faculdades de direito,
onde ouviram lições, assistiram a conferências, presenciaram exercícios e viram exames,
onde em suma surpreenderam o ensino como ele era na realidade. Finda a missão e
regressando ao país, reduziram a escrito e publicaram as suas observações e as suas
apreciações, relatando no livro indicado (O ensino jurídico na França e na Itália – Coimbra,
1910) o que viram e ouviram e formulando as críticas que, em seu critério, merecia o regime
francês e o regime italiano. Esse relatório, altamente interessante para o conhecimento da
organização e vida das faculdades de direito francesas e italianas, teve para a Faculdade de
Direito de Coimbra o grande mérito de reunir elementos de informação e orientação para
missões posteriores e para a elaboração da reforma dos seus estudos, que era então a sua
grande preocupação.” – Vilela, Álvaro da Costa Machado (1916), o.cit., 354.
16
A permanente preocupação com o ensino do Direito norteou, como é compreensível,
fortemente a sua própria actividade docente, na qual Machado Vilela (que desenvolve com
cuidado este tema – id., ibid., 339 e sgts) conseguiu divisar dois momentos: um, inicial, de
“orientação (...) acentuadamente académica, de tendências muito teóricas e doutrinais”; ao
qual sucedeu (sobretudo após a reforma dos estudos jurídicos de 18 de Abril de 1811, onde
tomou parte activa) a adesão ao “ensino concretizado”, assente no ideal de que a escola deve
3
Para além destas actividades, Marnoco não descurou, também, a
frequente participação em revistas científicas, designadamente nos Estudos
Jurídicos (publicação em que, e apesar da sua curta existência17, deixou
colaboração de relevo), no Boletim da Faculdade de Direito18, e, sobretudo,
na Revista de Legislação e Jurisprudência. Tendo entrado para a redacção em
1907, só abandonou esse lugar na altura da sua morte. Machado Vilela procura
esboçar a amplíssima obra que Marnoco deixou nas páginas da referida
publicação19 – bem justificativa, afinal, do elogio fúnebre que lhe foi
dedicado20.
Contudo – e não obstante a intensíssima actividade científica que o
caracterizou – Marnoco e Sousa, ao longo da sua curta vida, cultivou, ainda,
outros interesses para além dos estritamente jurídicos.
Ainda no âmbito da Universidade de Coimbra21, ocupou os cargos de
Director da Biblioteca daquela instituição, bem como Director da sua
“quanto possível, ser um laboratório em que se descrevam ou se reproduzam os factos de
que, mediante processos lógicos, os princípios resultam e em que os princípios se
concretizam.”.
17
Pois durou menos de um ano.
18
No breve período que transcorreu entre o surgimento do Boletim (no ano lectivo de
1914/915) e a morte de Marnoco (1916), este aí publicou três artigos, com efectivas
repercussões práticas na legislação nacional (cfr. Vilela, Álvaro da Costa Machado (1916),
o.cit., 349).
19
“Os artigos publicados na Revista não são assinados, aparecendo sob a responsabilidade
colectiva da redacção, mas, como é natural, teem sempre um relator, que estuda as questões
e formula, fundamentando-as, as soluções que são submetidas à discussão em conferência de
todos os redactores. O trabalho principal é, pois, do relator, como, em regra, são as suas
opiniões que prevalecem. Ora, para se avaliar o trabalho do dr. MARNOCO como redactor da
Revista, basta notar que a quási totalidade dos artigos que aí foram publicados sôbre direito
comercial e sôbre direito penal desde maio de 1907 a janeiro de 1916, a quási totalidade dos
artigos sôbre direito administrativo desde o comêço de outubro de 1909 tambêm até Janeiro
de 1916, e a quási totalidade dos artigos sôbre direito fiscal desde o princípio do ano de 1911
igualmente até Janeiro de 1916, são devidos à sua pena, assim como a ela se devem
bastantes artigos sôbre direito civil nos anos 40º e 41º, isto é, desde 1907 a 1909. Quem ler
os artigos sôbre direito comercial, penal, administrativo e fiscal, publicados dentro das datas
acima indicadas, encontrará mais uma grande prova do que era e do valia o dr. MARNOCO. O
conhecimento sempre admirável da literatura jurídica tanto nacional como estranjeira, o
conhecimento tantas vezes difícil da legislação administrativa e fiscal, o conhecimento
sempre completo da juriprudência tanto dos tribunais como das estações administrativas
superiores, o bom critério que sempre presidia à determinação das soluções, e a forte
argumentação que as apoiava, revelam eloquentemente no autor dos mesmos artigos um
jurisconsulto de proporções pouco vulgares.” – Vilela, Álvaro da Costa Machado (1916), o.cit.,
347 e 348.
20
Salientando que “nas conferências da Redacção as suas observações eram sempre judiciosas
e o seu voto sempre ponderado, e com tanta urbanidade e modéstia discutia que parecia
empenho nele querer ocultar o talento que possuía”, concluía-se que “grande é a falta que
deixou este mártir do estudo e do professorado, e o seu nome jamais poderá ser preenchido
nos Anais da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e nas páginas da Revista de
Legislação e Jurisprudência.” – Revista de Legislação e Jurisprudência, cit., 482. Braga da
Cruz corrobora: “Colaborando na Revista em matérias tão diversas (...), MARNOCO E SOUZA
deixou, de facto, na Redacção, um vácuo difícil de preencher e, sobretudo, impossível de
colmatar com a escolha dum só homem, capaz de tocar indiferentemente todas essas teclas
do piano jurídico.” – Cruz, Guilherme Braga da (1975), o.cit., 490.
21
Foi eleito Sócio Efectivo do Instituto de Coimbra em 4 de Julho de 1896.
4
Faculdade. Foi eleito para ambos os cargos no ano de 1913 (em Setembro e
Outubro, respectivamente), aí permanecendo até à data em que faleceu.
Na Biblioteca, procurou prosseguir as políticas dos seus antecessores
José Maria Rodrigues e Mendes dos Remédios, numa acção concertada
destinada ao mais eficaz funcionamento dos serviços daquela casa, onde os
riquíssimos fundos se encontravam pouco cuidados. Apostou, pois, em três
linhas de actuação: (i) na edificação de uma nova sala de leitura e capaz
acomodação de parte do espólio; (ii) na melhoria das condições de trabalho
dos funcionários, sobretudo no respeitante aos vencimentos auferidos (cujos
valores eram escandalosamente baixos); e, finalmente, (iii) na criação do
Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, que se apresentava como
uma publicação ao nível das mais modernas do seu género, na época22.
A Faculdade de Direito também não se pode olvidar da sua intervenção
enquanto Director, pois a ele lhe deve não somente a estruturação da
secretaria e grandes obras de beneficiação nos edifícios que a albergam,
como, também, a efectiva implementação da importante reforma dos estudos
jurídicos de 1911, e, ainda, a constituição do Instituto Jurídico e da opulenta
biblioteca que lhe está agregada.
A vida política não lhe foi, por outro lado, indiferente. Após uma feliz
passagem pela direcção do município conimbricense (a cuja câmara presidiu,
de 1904 a 1910, em dois memoráveis triénios – remontam a esses anos, de
fervorosa actividade, francas melhorias na iluminação da urbe, a conclusão da
Avenida Sá da Bandeira, a edificação de parte do Mercado Municipal, as
primeiras intervenções no, então recente, bairro do Penedo da Saudade, a
canalização de água do Mondego em benefício das zonas em expansão, a
criação de diversos espaços verdes, e, sobretudo, o grande investimento nos
transportes urbanos municipalizados) é convidado para integrar o último
Governo da monarquia, liderado por Teixeira de Sousa. É-lhe oferecida a
pasta da Marinha e Ultramar, mas, como adverte Braga da Cruz, ocupou o
lugar “por tão pouco tempo que nem chegou a interromper as suas aulas”23.
Não obstante, segundo Machado Vilela, nem mesmo esta breve temporada
passou indiferente: “No ministério da marinha e ultramar, onde tanto havia a
esperar dos seus largos conhecimentos sôbre administração colonial, não teve
tempo de se revelar, pois que a revolução veio surpreendê-lo, três meses
apenas depois de constituido o gabinete, quando delineava e preparava a sua
obra ministerial. Contudo, como era natural e como o exigiam as
responsabilidades do seu nome, foi no ministério o trabalhador de sempre,
sintetizando bem a incansável sofreguidão de bem conhecer e o forte desejo
de bem gerir os negócios da sua pasta”.24
Se, tal como Machado Vilela o debuxa, Marnoco, num “ciclo assombroso
de trabalho, formidável de actividade”, se caracterizou pelo “labor
22
Nomeadamente por dispor de uma secção votada a “estudos sôbre os nossos problemas
económicos e sociais, baseados nas publicações da actualidade que deem entrada na
biblioteca.” – Vilela, Álvaro da Costa Machado (1916), o.cit., 358.
23
Cruz, Guilherme Braga da (1975), o.cit., 461, nota 1093.
24
Vilela, Álvaro da Costa Machado (1916), o.cit., 357. O Presidente do Conselho teria, então,
confidenciado a Caeiro da Matta:”está há dois meses na pasta da marinha e pareceria que a
sobraça há dois anos”.
5
constante”, “cerebração febril”, “pena incansável” e “acção prodigiosa”25 –
essas características prevaleceram, igualmente, no período em que se dedicou
ao Direito Político.
Foi nos anos lectivos de 1898/899 e 1899/90026 que se viu encarregado,
em acumulação, entre os meses e Janeiro e Maio, da cadeira de Princípios
Gerias de Direito Público. E, nesse escasso período, tão grande mudança
operou no modo como a mesma era ministrada em Coimbra que, alguns anos
mais tarde, Fezas Vital não hesita em o considerar uma inultrapassável
referência naquele domínio, pois (escreveu) “pode afirmar-se, sem receio de
exagêro, que o prof. MARNOCO E SOUZA transformou por completo o ensino
do direito político em Portugal.”27.
Desenvolvido nos “moldes da escola histórica coordenada com as
teorias sociológicas e da psicologia colectiva”28, o espírito novo insuflado por
Marnoco à cadeira corporiza-se nas Lições de Direito Político que fez publicar
em 1900. Estas “orientam-se pelas doutrinas da escola italiana dando ao
mesmo tempo uma grande attenção ás theorias sociologicas e da psychologia
collectiva, que então começava a fazer applicações muito interessantes aos
problemas politicos. Estudam-se as theorias fundamentaes da sciencia
politica – a theoria do Estado, a theoria da soberania, a theoria da divisão
dos poderes, a theoria das formas politicas, a theorias dos Estados
compostos, a theoria do governo representativo, a theoria dos governos
republicanos e monarchicos, a theoria dos governos simplesmente
representativos e dos governos parlamentares, a theoria dos partidos
politicos e a theoria da constituição politica – segundo os ultimos progressos
feitos por aquella sciencia. Seja-nos licito citar unicamente a apreciação do
referendum, a defêsa da representação dos interesses sociaes, a discussão das
duas formas de governo, monarchica e a republicana, que já tem sido
apresentada como modelo de imparcialidade pelos proprios republicanos, as
applicações do materialismo historico e da psychologia social á theoria dos
partidos politicos, a comparação entre os governos parlamentares e
simplesmente representativos, feita em harmonia com os dados dos proprios
escriptores americanos, para não haver duvida sobre a orientação moderna e
liberal deste curso. Foi estudada mesmo a organização politica dos principaes
Estados civilizados e especialmente da Inglaterra, França, Hespanha, Italia,
Belgica, Allemanha, Austria, França (sic), Estados Unidos e Brazil. (...) Do
direito constitucional português estudou-se principalmente o poder
legislativo, discutindo-se largamente a organização das camaras e as suas
attribuições. Não se desprezou nada de importante sobre similhante
assumpto, desde as formas mais scientificas de organizar o senado até ao
suffragio das mulheres, desde as theorias mais modernas sobre o fundamento
25
Id., ibid., 331.
No impedimendo de Frederico Laranjo.
27
Vital, Fezas, O professor Marnoco e Sousa e os estudos de direito político na Universidade
de Coimbra, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Ano II (1916), nº
17, 373 e sgts
28
Nas palavras de Machado Vilela – que justifica essa opção do biografado por o mesmo não
ser “um empirista que formulasse ou resolvesse problemas de direito político sem
subordinar o seu estudo a um critério superior que o orientasse o seu espírito com
segurança.” – Vilela, Álvaro da Costa Machado (1916), o.cit., 332.
26
6
do direito eleitoral até aos systemas mais engenhosos da representação das
minorias, desde a critica das principaes disposições da lei eleitoral de 26 de
julho de 1899 até á apresentação da proposta da reforma constitucional de 14
de março de 1900. A escola a que obedecem as doutrinas destas lições é ainda
a escola historica, modificada pelas doutrinas do evolucionismo critico de
Herbert Spencer, pois ella é a unica que permitte imprimir ás reformas
politicas a verdadeira orientação a seguir. Segundo a escola historicoevolucionista, não se podem admittir instituições politicas independentes da
realidade concreta das condições de cultura dum povo. Por isso, as reformas
politicas não podem ser construcções logicas do espirito humano, mas
adaptações graduaes e continuas do Estado ás variaveis condições do meio
ambiente. Não é a algebra de reformadores aprioristas que pode triumphar
na vida politica das sociedades, mas a força da evolução. A investigação do
melhor governo, diz Léon Duguit, é chimerica. É o A,B,C da sciencia politica
que o melhor governo é de facto o que se encontra melhor adaptado á
sociedade que rege, para desempenhar a missão que lhe incumbe.”.
Fezas Vital, ao analisar as referidas Lições – onde considera palpitar
uma das mais marcantes particularidades de Marnoco (“a ância da última
palavra, que tanto o caracterisou”29 – lamenta que o autor tão pouca atenção
preste ao contributo alemão nesta área do saber jurídico30. No entanto, julga
dispor de razões justificativas da opção do biografado: “Reconhecendo como
única verdade a verdade experimental e vendo na observação históricocomparativa o meio mais seguro de descobrir as leis que governam o mundo
social, o Doutor MARNOCO E SOUZA não podia deixar de repelir, como
contrárias às modernas exigências do espírito humano, as construcções
sistemáticas dos escritores alemães, criadas com o auxílio dum método
essencialmente deductivo, em que a série encadeada de conceitos e
raciocínios lógicos nos é apresentada como o reflexo das realidades jurídicas
e em que de deduções justas em lógica formal se pensa tirar verdades
materiaes. Outra razão devia ter ainda contribuído para que a sciência
jurídica alemã houvesse sido por êle menos atendida. Espírito
eminentemente liberal, admitindo o princípio de que o Estado existe para o
indivíduo e não o indivíduo para o Estado, e encontrando na democracia,
posto que reconhecendo-lhe defeitos, a forma por excelência da organisação
política das sociedades modernas, o Doutor MARNOCO E SOUZA impressionouse certamente com o estadismo exagerado e as tendências absolutistas das
doutrinas alemãs, que, influenciadas pela filosofia hegeliana, elevam o
Estado à dignidade dum Deus, ao qual devemos cega obediência.”31.
29
Vital, Fezas (1916), o.cit., 373.
“Orientado pelas doutrinas da escola italiana, as suas prelecções baseiam-se especialmente
na literatura jurídica dêsse país, não esquecendo, contudo, a literatura francesa nem as
obras clássicas das restantes, lançando, para isso, mão de traduções ou de referências
colhidas em trabalhos dignos de fé. As arrojadas construcções jurídicas dos escritores
alemães pouco o interessam, é certo, e, forçoso é confessa-lo, dessa falta se ressentem as
lições referidas.” – id., ibid., 373.
31
Id., ibid., 374 e 375. No mesmo sentido, atente-se em Paulo Merêa: (As Lições) “orientamse pela escola italiana, coordenada com as teorias sociológicas e da psicologia colectiva. O
critério histórico-evolucionista que informava o seu espírito levava-o a rejeitar liminarmente
todas as concepções e doutrinas que se lhe afigurassem eivadas de pecado “metafísico”, e é
esse mesmo horror à metafísica que explica o desdém votado ao método jurídico, tal como
30
7
No âmbito do Direito Político, Marnoco deixou as seguintes obras:
• Direito Político e Direito Constitucional Portuguez.
Prelecções do Ex.mo Senhor Dr. Marnoco e Souza ao 2º anno
jurídico. 1898-1899, litografadas32;
• Lições de direito politico, feitas na Universidade de
Coimbra, ao curso do 2º anno juridico de 1899-1900, Tip. França
Amado, Coimbra, 190033;
• Direito politico. Poderes do Estado. Sua organização
segundo a sciencia politica e o direito constitucional portuguez,
França Amado ed., Coimbra, 191034;
ele era aplicado à ciência política pelos escritores alemães.” – Merêa, Manuel Paulo, “Esboço
de uma história da Faculdade de Direito. 2º Período: 1865-1902”, Boletim da Faculdade de
Direito. Coimbra, 29 (1953), 117
32
À quais se refere Merêa: “Pude também consultar as suas sebentas do ano 1989-99
(litografadas), redigidas segundo as suas prelecções (exemplar do Instituto Jurídico).” –
Merêa, Paulo (1953), o.cit., 117, nota 1.
33
Sobre este trabalho, escreveu Paulo Merêa: “conquanto sejam uma das suas primeiras
obras como professor, confirmam este juízo e mostram que o mestre estava ao corrente da
literatura mais corrente.” (id., ibi., 117). No mesmo sentido, Fezas Vital considera que,
nelas, “o prof. MARNOCO E SOUZA tinha revelado as suas excepcionais qualidades de
trabalhador e vulgarizador. Espírito sempre pronto a receber e a ensinar tudo o que, com
foros de sciência, chegava ao conhecimento do erudito insaciável, não atenua, muito antes
pelo contrário, na regência acidental desta cadeira, a reputação que mais tarde viria a
adquirir no ensino das sciências económicas, objecto particular dos seus estudos.” – Vital,
Fezas (1916), o.cit., 377.
34
Relativamente à referida obra, pondera Machado Vilela: “O Direito Político é um estudo dos
Poderes do Estado, nas bases da sua organização e na sua organização e funcionamento,
tanto sob o ponto de vista doutrinal como sob o ponto de vista do direito político português
na última fase da monarquia. Obedecendo à orientação da escola histórico-evolucionista,
aceitando a teoria da soberania nacional e concebendo o Estado como uma pessoa soberana,
o autor estuda com largueza de erudição e de crítica a construção dos poderes do Estado,
sem esquecer um sistêma doutrinal e sem pôr de parte um diploma legislativo, por forma
que aquela obra representa, não só o melhor trabalho que sôbre o assunto tem sido
publicado em Portugal, mas, por um lado, constitui um valioso elemento de estudo para
quem quiser conhecer as teorias do direito politico, e, por outro lado, é subsídio
indispensável para quem pretende saber o que era e o que valia o direito político português
monárquico nas vésperas da proclamação da república, pois o livro foi assinado em 1910” –
Vilela, Álvaro da Costa Machado (1916), o.cit., 343 e 344. E Fezas Vital: “É (...) no Direito
Político – Poderes do Estado (...) que nós vamos surpreender, em todo o seu fulgurante
brilho, a obra do ilustre publicista. Nesse volume, dividido em cinco partes, das quais a
primeira se refere às Bases da organização dos poderes, a segunda ao Poder legislativo, a
terceira ao Poder executivo, a quarta ao Poder judicial e a quinta ao Poder moderador,
acham-se, na verdade, expostas e criticadas com raro escrúpulo, algumas das teorias
fundamentais em sciência política. (...) O doutor MARNOCO E SOUZA, vendo no positivismo,
em harmonia com a lei comteana dos três estados, a última e definitiva étape percorrida
pelo pensamento humano na marcha ascencional do seu desenvolvimento e repudiando, por
anti-scientíficas, todas as construções de sabor teológico, ou metafísico, encontra na
observação dos factos o único processo de chegar à descoberta e verificação da verdade, só
rigorosamente scientífica quando livre de todo o elemento subjectivo.” Um pouco adiante,
após classificar Marnoco como “um positivista ferrenho”, Fezas Vital prossegue o seu
raciocínio: “Subordinado a esse critério filosófico, aos factos vae buscar a justificação das
8
• Constituição
politica
da
Republica
Comentario, França Amado ed., Coimbra, 191335.
Portugueza.
(Luís Cabral de Oliveira)
suas afirmações, sôbre eles procura construir as suas doutrinas e as suas teorias. Que admira,
pois, que o seu trabalho contenha os mais valiosos subsídios para quem deseje iniciar-se nos
estudos de direito constitucional comparado?” – Vital, Fezas (1916), o.cit., 377 e 378.
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Também relativamente a este estudo Machado Vilela e Fezas Vital são concordantes. O
primeiro entende que se trata de “um comentário da lei fundamental da república, a qual é
estudada nas suas origens doutrinais e legislativas, na sua elaboração e discussão
parlamentar e no seu valor no campo do direito constitucional comparado. Os vastos
conhecimentos do autor sôbre direito político eram garantia que o seu trabalho seria uma
obra segura nas suas bases scientíficas e uma obra útil como estudo de direito positivo. Em
verdade, se esta obra não é um trabalho tão perfeito como os outros dois anteriores, tem
contudo o grande mérito de agitar e discutir muitas das questões que suscita a compreensão
e a aplicação da constituição, foi o primeiro, como ainda é o único, estudo de conjunto do
nosso código político, e por isso representa o natural ponto de partida para trabalhos mais
completos. Publicado pouco mais de um ano depois da vigência da constituição, prazo
relativamente curto para a organização dum trabalho de tão largo alcance, é sem dúvida um
forte documento do saber do seu autor.” – Vilela, Álvaro da Costa Machado (1916), o.cit.,
344. Por seu lado, Fezas Vital aduz: (o Comentário) “ressentindo-se da pressa com que foi
elaborado, é, apesar disso, um elemento indispensável à interpretação da nossa lei orgânica
e o único trabalho de conjunto, cuja autoridade tem sido, de resto, várias vezes reconhecida
pelos vultos mais em destaque do actual regime. Se das faculdades de trabalho do prof.
MARNOCO outras provas não houvesse, esta seria suficiente para as revelar. Um ano após a
publicação da Constituição Política, e sobrecarregado com serviço, publica um Comentário de
621 páginas! Assombrosa organisação de trabalhador, a quem só a Morte conseguiu roubar ao
convívio dos seus livros!” – Vital, Fezas (1916), o.cit., 378 e 379.
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MARNOCO E SOUSA José Ferreira Marnoco e Sousa nasceu em