P.º R. P. 314/2004 DSJ-CT - Transmissão por morte. – Títulos para registo emitidos em país estrangeiro: testamento e “Declaração notarial do direito sucessório e deferimento da herança” lavrados por notário holandês. – Tradução dos documentos escritos em língua estrangeira. – Direito aplicável (normas de conflitos). Lei reguladora da sucessão “mortis causa”. Conformidade substantiva dos documentos passados no estrangeiro com a lei local. I – Em 15 de Outubro de 2004, sob a Ap. 20, foi requerido na Conservatória do Registo Predial … o registo de aquisição dos prédios descritos sob os números 01220/050493 e 00683/991125, das freguesias de … e …, respectivamente, prédios que, de acordo com a declaração complementar inserta no verso da requisição, vieram à posse da recorrente por força do testamento deixado pelo marido Larry …, falecido em 2 de Abril de 2004. Instruíram o pedido: cópias autenticadas do testamento e da declaração de direito sucessório e deferimento da herança, lavrados por notário holandês, bem como das respectivas traduções para a língua portuguesa; duplicado da participação de transmissões gratuitas e declaração de actualização do prédio na matriz, apresentados em 23/09/04 e 1/06/04 na Repartição de Finanças de …; certidão comprovativa da isenção do imposto de selo e certidão de teor matricial, emitidas em 28/09/04 e 15/10/04, respectivamente, pelo mesmo Serviço. 1 – O registo foi efectuado, provisoriamente por dúvidas, a favor de Maria C …, por sucessão hereditária. Os motivos determinantes dessas dúvidas residem, conforme se refere no competente despacho , datado de 29/10/04, na “… falta de certificação efectuada pelo agente diplomático ou consular do país da lei pessoal do autor da herança, lei holandesa, de que o documento apresentado, declaração notarial de direito sucessório e de deferimento da herança, comprova a habilitação, uma vez que o conservador não conhece o direito internacional privado, sucessório e notarial estrangeiro aplicável, e parecendo-nos existir contradição entre o testamento em que se institui herdeiro de todos os bens o cônjuge do testador, e a habilitação, onde por um lado refere-se que o testador deixa toda a herança ao cônjuge e a um filho do 1.º casamento e por outro diz-se que deixou toda a herança ao cônjuge, e apesar de o documento apresentado conter a apostilha, esta apenas certifica a sua validade formal e não material.”. E ainda no facto do testamento apresentado não estar traduzido em conformidade com a lei notarial e não ter sido junta certidão de nascimento do sujeito activo, cujo estado civil não consta do título. 1 Como fundamentação legal foram invocados os artigos 68.º, 70.º, 43.º, n.º 3, 44.º, n.º 1, alínea a) e 46.º, n.º 1, alínea a), todos do Código do Registo Predial, e 348.º do Código Civil. 2 – Em exposição endereçada à Sr.ª Conservadora “a quo” – equiparada para os devidos efeitos à interposição de recurso hierárquico – a interessada no registo relata as diligências a que procedeu com vista à efectivação do mesmo, referindo, a propósito, que havia já conseguido realizar o mesmo tipo de registo noutra conservatória, instruindo-o com os mesmos documentos estrangeiros ora juntos, sem que tivessem então sido levantadas quaisquer objecções. Propõe-se sanar as dúvidas relativas à prova do seu estado civil, mediante a junção da sua certidão de nascimento “… se tal for o único impedimento para a efectivação dos registos.”. Entende que não está em causa a validade formal da intitulada “Declaração Notarial de Direito Sucessório e Deferimento da Herança”, suportada pelo testamento, porque foi lavrada por Notário competente, conforme certifica a respectiva Apostilha. Quanto à sua validade material, posta em causa pela suposta contradição patenteada no texto respectivo – segundo o qual o testador não introduziu alterações na sucessão legitimária, sendo, portanto, seus herdeiros o filho e a esposa (segunda), deixando a esta, no uso das atribuições que lhe são conferidas pelo art.º 1157.º do Código Civil dos Países Baixos, todo o activo e passivo da sua herança –, é de parecer que tal contradição só poderá existir face ao disposto no direito civil português. E deixa as seguintes interrogações: “A quem competirá confirmar o disposto no direito internacional privado?”; “Porventura o testamento também deveria ser certificado por Apostilha. Mas não bastará a referida Declaração para comprovar o direito à herança?”. 3 – No despacho de sustentação das dúvidas apostas à efectivação do registo, reafirmam-se as razões antes invocadas, relevando os pontos seguintes: – a apresentação de documento emitido pelo agente diplomático ou consular do país da lei pessoal do autor da sucessão, a comprovar que o documento conhecido por declaração notarial do direito sucessório e deferimento da herança constitui prova de que a requerente nele identificada é a única herdeira do falecido, dispensará o conhecimento pela conservatória do direito internacional privado e sucessório estrangeiro aplicável; – o testamento apresentado não foi traduzido nos termos prescritos no art.º 44.º, n.º 3 do Código do Notariado, nem contém a Apostilha que suprimiria a exigência da legalização diplomática ou consular dos actos públicos estrangeiros, bem como a sua regularidade formal; 2 – a certidão de nascimento poderá ser apresentada apenas com o pedido de conversão do registo. Além de se trazer à colação, em apoio à orientação adoptada, o entendimento veiculado pelo parecer do Conselho Técnico da Direcção Geral dos Registos e do Notariado, emitido no P.º R. P. 176/2001 DSJ-CT, publicado no B.R.N., II, n.º 4/2002. 4 – Exposta a situação, tendo presente que o processo é próprio e válido, que não há nulidades, excepções ou questões prévias impeditivas do conhecimento do mérito e que foi tempestiva a impugnação da decisão do conservador, importa que nos pronunciemos, em cumprimento de determinação superior, sobre o problema suscitado. II – Começamos, naturalmente, pelos documentos que instruíram o registo em apreço e sobre os quais recaem as dúvidas antes expostas. 1 – Documentos passados no estrangeiro Os documentos passados no estrangeiro em conformidade com a lei local fazem prova como o fariam os documentos da mesma natureza exarados em Portugal; caso não estejam legalizados nos termos da lei processual, pode ser exigida a sua legalização, quando houver fundadas dúvidas sobre a sua autenticidade ou sobre a autenticidade do reconhecimento. Esta a doutrina que resulta do estatuído no art.º 365.º do Código Civil, e que mereceu acolhimento no art.º 44.º, n.ºs 1 e 2 do Código do Notariado, relativo à utilização desses documentos na instrução de actos notariais. A legalização dos documentos em causa, a que os citados preceitos se reportam, processa-se em conformidade com o estabelecido no n.º 1 do art.º 540.º do Código do Processo Civil, ou seja, mediante o reconhecimento da assinatura do funcionário público pelo agente diplomático ou consular português no Estado respectivo e a autenticação da assinatura deste agente com o respectivo selo branco consular. A menos que esses documentos tenham emanado de países signatários ou aderentes à Convenção da Haia de 5 de Outubro de 1961 (Dec.-Lei n.º 48450, de 24/06/68), ratificada por Portugal (conforme aviso publicado no Diário do Governo de 28/02/69), casos em que a legalização é feita por Apostilha, nos termos do art.º 3.º da referida Convenção.1 Mas não é a legalização de tais documentos, operada por qualquer um dos dois modos a que acabámos de nos referir, que poderá comprovar o preenchimento do requisito 1 A legalização por Apostilha, relativamente aos documentos emitidos pelas autoridades portuguesas para produzirem os seus efeitos em países signatários ou aderentes à Convenção, é da competência da Procuradoria-Geral da República ou dos Procuradores junto das Relações, conforme o caso, de acordo com o despacho do Ministro da Justiça de 10/02/69. – Cfr. A.M. Borges de Araújo, in “Prática Notarial”, 4.ª edição, pág. 46, nota 1 de rodapé. 3 que, legalmente, parece condicionar a sua equivalência aos documentos da mesma natureza exarados em Portugal, requisito esse que se analisa na conformidade dos mesmos com a lei do país que os emitiu. A não ser que o oficial público português a quem, para os devidos efeitos, os documentos em apreço são apresentados tenha suficiente conhecimento da lei do país que os emitiu – conhecimento que, de resto, não lhe será, em princípio, exigível.2 Tal legalização é garantia apenas da regularidade formal dos documentos a ela submetidos. Refira-se, a propósito, que esses documentos, legalizados ou não, desde que sejam apresentados, para quaisquer efeitos legais, em Portugal, ficam sujeitos ao pagamento de imposto de selo, consoante decorre do estatuído no art.º 4.º, n.º 2, alínea a), do Código do Imposto de Selo, constituindo-se a respectiva obrigação tributária no momento da sua apresentação junto das autoridades competentes (art.º 5.º, alínea d). No caso em análise, a designada “Declaração Notarial de Direito Sucessório e Deferimento da Herança” encontra-se legalizada por apostilha. O imposto de selo relativo ao testamento, na importância de 25 euros, conforme a verba 15.6 da Tabela Geral do Imposto de Selo, mostra-se cobrado; o mesmo não sucedendo quanto à verba 15.1 da mesma Tabela, relativamente à referida “Declaração Notarial”. 2 – Tradução A circunstância dos documentos a que nos temos vindo a referir estarem escritos em língua estrangeira implica que, para poderem ser utilizados, se proceda à respectiva tradução. De acordo com o preceituado no art.º 43.º, n.º 3, do Código do Registo Predial, só podem ser aceites os documentos escritos em língua estrangeira, quando traduzidos nos termos da lei notarial, cuja disciplina jurídica, no que concerne às entidades com legitimidade para tal, se acha contida no n.º 3 do art.º 44.º do Código do Notariado e ainda no art.º 5.º do Dec.-Lei n.º 237/2001 3, de 30 de Agosto (“ex vi” do seu art.º 6.º). 4 2 Refere, a propósito, no que, em especial, concerne aos serviços notariais, Borges de Araújo cit., in ob. cit., pág. 47: “Pela forma como a nossa lei está redigida parece que o notário só pode legalmente ter dúvidas sobre a autenticidade do documento se ele não contiver reconhecimento notarial português. Se o tiver, a autenticidade existe para a lei portuguesa, o que significará que para ela autenticidade e conformidade são uma e a mesma coisa. E por isso ao notário será defeso ter dúvidas sobre a conformidade com a lei local de documento passado no estrangeiro, quando ele contiver uma apostilha ou reconhecimento consular, que são as formalidades estabelecidas para a legalização.(…) A. legalização, seja por reconhecimento consular ou por apostilha,… não assegura a conformidade do documento com a lei local. No entanto o notário nada tem a ver com a solução consagrada na lei. E daí que tenha de aceitar um documento que poderá ser inválido na origem, sem que o possa verificar…” 3 Trata-se do diploma que, em obediência ao anunciado propósito de simplificar a actividade notarial e na prossecução dos objectivos assumidos quanto à introdução de formas alternativas de atribuição de valor 4 Resulta do primeiro que a tradução pode ser feita por: notário português; consulado português no país onde o documento foi passado; consulado desse país em Portugal; ou ainda, tradutor idóneo que, sob juramento ou compromisso de honra, afirme, perante o notário ser fiel a tradução 5 6. E ainda, por virtude do segundo, pelas câmaras de comércio e indústria, reconhecidas nos termos do Dec.-Lei n.º 244/92, de 29/10, e por advogados e solicitadores. E é o art.º 172.º do Código do Notariado que dispõe sobre o modo como se fazem e em que consistem as traduções. Assim, a tradução compreende a versão para a língua portuguesa do conteúdo integral do documento escrito numa língua estrangeira, e, além dos requisitos comuns de qualquer certificado ou certidão a que se refere o n.º 1 do art.º 160.º (designação do serviço emitente, numeração das folhas, data e lugar em que foram passadas e a rubrica e assinatura do notário) deve conter: a indicação da língua em que está escrito o texto original e a declaração de que o mesmo foi fielmente traduzido. Caso a tradução tenha sido feita por tradutor ajuramentado, deve mencionar-se, em certificado aposto na própria tradução ou em folha anexa, a forma como ela foi feita, assim como a afirmação do tradutor perante o notário, sob juramento ou compromisso de honra, de que a tradução é fiel. A par destes requisitos e por força da remissão imposta pelo n.º 4 do citado art.º 172.º, a tradução deve ainda incluir a declaração de conformidade com o original, a transcrição de legalizações ou reconhecimentos feitos por funcionários portugueses; a menção das estampilhas e verbas de pagamento do imposto de selo que constem do original e das irregularidades ou deficiências constantes do texto que viciem o acto ou o documento, além da transcrição das contas, averbamentos e cotas de referência nele insertos. probatório a documentos, veio permitir às câmaras de comércio e indústria e aos advogados e solicitadores a tradução ou a certificação da tradução de documentos. 4 Já quanto à tradução de documentos escritos em língua estrangeira que sejam juntos a processos pendentes em tribunais, é o art.º 140.º do Código do Processo Civil que regula, podendo o juiz oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes exigir que o representante junte a tradução, e ordenando, quando a idoneidade desta lhe suscite dúvidas, que lhe seja junta tradução feita por notário ou autenticada por funcionário diplomático ou consular do Estado respectivo; caso se revele impossível obter a tradução ou na falta de cumprimento tempestivo da sua determinação, pode o juiz incumbir da tradução um perito designado pelo tribunal. 5 Vide “Manual de Direito Notarial”, 3.ª edição, de Fernando Neto Ferreirinha e Zulmira Neto Lino da Silva, pág.688: “Os tradutores não são tradutores oficiais, sendo normalmente nomeados por indicação dos interessados. De contrário, não se justificava o juramento ou o compromisso de honra que lhes é exigido.”. 6 Borges de Araújo, ob. cit., pág. 50: “O documento original escrito em língua estrangeira e a sua tradução devem ser anexados, presos um ao outro, ficando a constituir um todo inseparável. Só assim se assegura que o original fique permanentemente a instruir a sua tradução, permitindo em qualquer momento verificar a fidelidade desta. A certeza da tradução e os interesses das partes assim o exigem.”. 5 A tradução tem, pois, a natureza de um certificado de teor que abrange a tradução propriamente dita (versão integral do texto original), obedecendo também aos requisitos especiais e comuns das certidões e certificados.7 8 No caso sub judice, a tradução dos documentos escritos em língua estrangeira que instruiu o registo foi feita por tradutora “ajuramentada pelo tribunal de Círculo de …”, como consta do carimbo aposto na sua assinatura. E, mesmo que se aceitasse a idoneidade da sua intervenção num documento cuja legalização pela Apostilha da Convenção de Haia se mostra efectuada em data posterior àquela em que a tradução foi feita, certo é que esta não obedece a nenhuma das formas previstas na nossa lei notarial, não preenchendo, assim, o requisito condicionante da aceitação dos documentos escritos em língua estrangeira na instrução de actos de registo predial, consoante decorre expressamente do mencionado artigo 43.º, n.º 3: Justificam-se, deste modo, as dúvidas levantadas por tal razão. 3 – Lei aplicável. De acordo com o disposto no art.º 43.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, só podem ser registados os factos constantes de documentos que legalmente os comprovem, postulando, assim, o conhecimento da legislação aplicável, quer no que respeita à forma da declaração negocial e à capacidade dos contraentes, quer no que toca ao regime jurídico aplicável à situação real, consoante a mesma ocorra no âmbito dos direitos reais, da sucessão mortis causa ou das relações matrimoniais. E se esse conhecimento é relativamente acessível quando os problemas emergem de relações privadas pertencentes à esfera jurídica interna de um só Estado, o mesmo não sucede quando essas relações, por virtude de qualquer dos seus elementos – nacionalidade, residência ou domicílio dos sujeitos ou localização das coisas a que respeitam – apresentam conexões com diferentes sistemas de direito, como fenómenos que são do comércio jurídico internacional, de resto, em crescimento constante. 7 Borges de Araújo ob. e pág. cits.: “Duas partes bem distintas, que passam a formar um todo e que darão origem a procedimentos diferentes, consoante a tradução for feita por notário ou por tradutor ajuramentado. No primeiro caso o notário tudo certificará… traduzindo e dando autenticidade ao documento. Se a tradução for feita por tradutor ajuramentado, as declarações referentes à tradução propriamente dita serão da responsabilidade do tradutor, cabendo ao notário certificar então, somente, as transcrições e menções a que a lei obriga para além da versão da língua, matéria que já não é … tradução.”. 8 Quando os documentos escritos em língua estrangeira se destinem à instrução de processos pendentes nos tribunais, o juiz oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes pode ordenar que o apresentante junte a respectiva tradução, que, em caso de dúvidas fundadas sobre a sua idoneidade, deve ser feita por notário ou autenticada por funcionário diplomático ou consular do Estado respectivo; na impossibilidade de a obter ou de a apresentar no prazo fixado, pode a tradução ficar a cargo de perito designado por tribunal. (art.º 140.º do Código do Processo Civil). 6 Determinar, em função das conexões reveladas pelos diversos elementos da situação de facto, qual a legislação, das várias em confronto, que há-de ser chamada a regular as questões suscitadas pelas relações privadas internacionais, é tarefa da responsabilidade do Direito Internacional Privado que, através das suas regras de conflitos, se propõe, justamente, resolver um problema de concurso entre preceitos jurídico-materiais procedentes de diferentes sistemas de direito. A função de tais normas é meramente instrumental, já que não visam elas próprias compor os conflitos de interesses entre os indivíduos, nem fixar o regime jurídico das suas relações, mas apenas indicar a legislação ao abrigo de cujas normas deve juridicamente resolver-se a questão. É, pois, às normas de conflitos do nosso ordenamento jurídico que temos de recorrer para determinar qual a legislação aplicável à situação jurídico-privada internacional em causa no presente processo. Assim, decorre do art.º 62.º do Código Civil que a sucessão por morte é regida pela lei pessoal – que, nos termos do art.º 31.º do mesmo Código, é a da nacionalidade do indivíduo – do autor da sucessão, ao tempo de seu falecimento.9 A essa lei cabe regular a vocação sucessória e a devolução da herança, bem como tudo o que diz respeito ao fenómeno sucessório, sem prejuízo do que, relativamente à capacidade de disposição, à interpretação, falta e vícios da vontade e forma dos testamentos, se acha previsto nos artigos 63.º, 64.º e 65.º do mesmo diploma. Segundo estes preceitos, a lei pessoal do autor da sucessão a ter em conta, no que respeita à capacidade de disposição e à interpretação, falta e vícios da vontade, é a vigente ao tempo da declaração, enquanto que a validade, quanto à forma, das disposições por morte se afere pela lei do lugar onde o acto foi celebrado, ou pela lei pessoal do autor da sucessão, quer no momento da declaração – a não ser que esta exija, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, que será respeitada, ainda que o acto seja praticado no estrangeiro (n.º 2 do art.º 65.º) –, quer no momento da morte, ou pela lei para que remeta a norma de conflitos da lei local. A par das normas de Direito Internacional Privado específicas de cada Estado, há também normas de conflitos estabelecidas por tratados e convenções internacionais que cobram eficácia na ordem interna de cada um dos Estados contratantes, desde que aí recebidas e incorporadas. Está nestas condições a Convenção de Haia de 5/10/61, a que atrás aludimos, e que suprimiu a necessidade da legalização diplomática ou consular dos actos públicos estrangeiros, assegurando a regularidade formal dos documentos. Portanto, neste aspecto, não se levantam quaisquer dúvidas relativamente ao documento apresentado, no qual se encontra inserta a necessária Apostilha. 9 Note-se que tudo nos autos aponta para que a lei pessoal do “de cuius”seja a holandesa, conquanto o mesmo tenha nascido em Tegal (Indonésia), conforme resulta do testamento e da “Declaração Notarial de Direito Sucessório e de Deferimento da Herança”. 7 Todavia, para além da regularidade formal do documento, interessa saber se, do ponto de vista substantivo, o mesmo foi lavrado de acordo com a lei pessoal do autor da herança e aplicação do respectivo direito sucessório. Só assim poderá o conservador, no exercício da sua actividade qualificadora (art.º 68.º, C.R.P.), aferir da capacidade do título apresentado para provar os factos cujo registo foi pedido. No fundo, tudo passará pelo conhecimento que este profissional tenha ou venha a ter do direito estrangeiro aplicável. Conhecimento que, face ao exposto, a Sr.ª Conservadora “a quo” não possui. A própria contradição que assinalou no documento apresentado pode ser apenas aparente. A circunstância de serem herdeiros, como do mesmo resulta, o cônjuge e o filho do primeiro casamento do autor da sucessão não será necessariamente incompatível – atento o disposto no invocado art.º 1167.º do livro 4 e seguintes do Código Civil dos Países Baixos – com a atribuição ao primeiro, em partilha hereditária e por vontade do testador, de todos os bens que compõem a herança. Na linha da orientação que tem vindo a ser sustentada por este Conselho10, a informação sobre o direito estrangeiro aplicável pode ser dispensada em caso de certificação por agente diplomático ou consular do país emitente de que o documento apresentado constitui prova bastante do facto submetido a registo. Quando isso não suceda, é necessário juntar prova documental da existência e conteúdo desse direito, “in casu”, nas suas vertentes notarial, internacional privada, matrimonial e sucessória – em conformidade com o que resulta do disposto nos artigos 348.º, n.º 1, do Código Civil, e 85.º, n.º 2, do Código do Notariado (relativo aos documentos instrutórios da escritura de habilitação, quando a lei reguladora da sucessão não for a portuguesa) –, incumbindo, então, ao próprio conservador a aplicação directa do direito holandês. Considerando o que, a este respeito, dispõe o n.º 2 daquele artigo 348.º (“O conhecimento oficioso incumbe também ao tribunal sempre que este tenha de decidir com base no direito … estrangeiro…”), entendeu-se – à semelhança do que havia acontecido no âmbito do referido P.R.P. 176/2001 – que, não sendo a Direcção Geral, ainda que em sede de impugnação das decisões do conservador, “tribunal”, deveria, contudo, tomar providências no sentido de obter conhecimento documental do direito estrangeiro aplicável junto da Embaixada dos Países Baixos, em Lisboa. Contactada, nesse sentido, esta representação diplomática emitiu apenas “sobre o direito sucessório aplicável a cidadãos neerlandeses com residência em Portugal”, uma declaração geral, cujo conteúdo é, textualmente o seguinte:”Segundo a Convenção de Direito Sucessório de 1989, ratificada em Outubro de 2001 pelos Países Baixos, o direito sucessório aplicável à herança de um cidadão neerlandês com residência no estrangeiro é o do país onde este tinha a sua residência nos cinco anos anteriores à sua morte desde que, 10 Cfr. parecer proferido no já citado P.º R. P. 176/2001 DSJ-CT, in BRN, II, n.º 4/2002, pág. 11. 8 em testamento, não tenha expressado o desejo de ser aplicado o Direito Sucessório Neerlandês.”. Estamos, pois, perante uma situação de reenvio que, como se sabe, ocorre quando a legislação estrangeira designada pelo Direito Internacional Privado do foro para regular certa questão jurídica se lhe não considere aplicável, remetendo antes para outra ordem jurídica que tanto pode ser a do Estado local, como a de um terceiro Estado. 11 A norma de conflitos da lei portuguesa, contida no art.º 18.º do Código Civil, admite, em princípio, o reenvio, como decorre do estatuído no seu número 1. 12 Princípio que, todavia, no campo do estatuto pessoal, comporta excepções. Se a lei portuguesa manda aplicar a lei nacional, o retorno para a lei portuguesa só tem lugar se o interessado tiver a sua residência habitual em território português ou em país que considere igualmente competente a lei portuguesa, ou seja, nos casos previstos no n.º 2 do mesmo preceito. Ora é justamente neste sentido que vai a declaração emitida pela Embaixada dos Países Baixos, se bem que a devolução para a lei portuguesa esteja condicionada pela não manifestação da vontade do autor da sucessão, em testamento, com vista à aplicação do Direito Sucessório Neerlandês. Acontece que, para além dos documentos constantes do processo não fornecerem elementos decisivos relativamente ao preenchimento da primeira condição – residência habitual em Portugal nos cinco anos anteriores à sua morte – apontando, até, no sentido contrário 13 , o teor do testamento e da aludida declaração de Direito Sucessório são de molde a fazer-nos concluir que a intenção do “de cuius” foi precisamente a da sujeição da abertura da herança, motivada pelo seu falecimento, e questões a ela inerentes, ao direito sucessório neerlandês. A diligência efectuada não surtiu, portanto, qualquer efeito útil, já que continua a haver razão para as dúvidas suscitadas, as quais, porém, nem sequer através da certificação pelo agente consular ou diplomático do país da lei pessoal do autor da herança de que o documento apresentado comprova a habilitação, poderão ser removidas, dado que, a nosso ver, não se trata só de saber quem são os herdeiros, mas também se a eventual habilitação e o testamento podem servir de título ao registo de aquisição de bens da herança a favor de um deles, independentemente de partilha. Será, por conseguinte, necessário certificar mais: que tais documentos constituem prova bastante dos factos objecto do registo solicitado. 11 A. Ferrer Correia, in Lições de Direito Internacional Privado”, I, págs. 265/266. “Se o direito internacional privado da lei designada pela norma de conflitos devolver para o direito interno português, é este o direito aplicável.” 13 Consta da declaração notarial de direito sucessório apresentada que o autor da sucessão faleceu em Portugal, mas teve a sua última residência habitual em Heerlen, que supomos que se localiza em território holandês. 12 9 Na impossibilidade de conseguir esta certificação, é preciso que a interessada junte, aquando do pedido de conversão do registo, documento idóneo – emitido pela autoridade consular ou diplomática competente – com a legislação aplicável, designadamente, os artigos 1167.º do Livro 4 e seguintes do Código Civil dos Países Baixos, expressamente invocados pelo “de cuius” na sua declaração de última vontade, e, referido, o primeiro, pelo notário que lavrou a referenciada declaração de direito sucessório. Face ao exposto, entendemos que o recurso não merece provimento e formulamos as seguintes CONCLUSÕES I – Os documentos passados no estrangeiro em conformidade com a lei local fazem prova como o fariam os documentos da mesma natureza exarados em Portugal, de acordo com o previsto nos artigos 365.º, n.º 1, do Código Civil e 44.º, n.º 1, do Código do Notariado. II – Quando houver dúvidas fundadas sobre a sua autenticidade, pode ser exigida a respectiva legalização – garante, tão só, da regularidade formal – que, tratando-se de países onde se aplique a Convenção de Haia de 5/10/61, é feita mediante a aposição de Apostilha, e, nos demais, através do reconhecimento da assinatura do funcionário público que os subscreveu por agente diplomático ou consular português no Estado respectivo, com assinatura autenticada pelo atinente selo branco notarial (n.º 2 do citado art.º 365.º, n.º 2 do também citado art.º 44.º e art.º 540.º do C. de Processo Civil. III – Os documentos escritos em língua estrangeira só podem ser aceites para registo desde que traduzidos nos termos da lei notarial - ou seja, por notário português; consulado português no país onde o documento foi passado; consulado desse país em Portugal; tradutor idóneo que, sob juramento ou compromisso de honra, afirme, perante o notário ser fiel a tradução (art.º 43.º, n.º 3, C. R. Predial e art.º 44.º, n.º 3, C. Notariado) -, ou traduzidos pelas câmaras de comércio e indústria, reconhecidas nos termos do Dec.-Lei n.º 244/92, de 29/10, ou por advogados e solicitadores (art.º 5.º do Dec.-Lei n.º 237/2001, de 30/08). IV – Sendo a lei reguladora da sucessão por morte a lei pessoal do seu autor (arts. 62.º e 31.º, C. Civil), a conformidade substantiva dos documentos que 10 titulam os factos sujeitos a registo com a lei estrangeira aplicável só pode aferir-se mediante o conhecimento do respectivo direito internacional privado, notarial, matrimonial e sucessório, através de documento idóneo com o texto da legislação aplicável; este conhecimento será dispensado quando os documentos instrutórios do registo sejam acompanhados da certificação consular ou diplomática do país da lei pessoal do “de cuius” de que tais documentos constituem prova bastante dos factos objecto do registo solicitado. Este parecer foi homologado por despacho do Director-Geral de 04.10.2005. 11