UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
LICENCIATURA PLENA EM LETRAS
HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA
RENAN SILVA DE SOUZA LOPES
O FLUXO DA CONSCIÊNCIA EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO
RAMOS
JOÃO PESSOA
AGOSTO DE 2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
LICENCIATURA PLENA EM LETRAS
HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA
RENAN SILVA DE SOUZA LOPES
O FLUXO DA CONSCIÊNCIA EM ANGÚSTIA DE GRACILIANO
RAMOS
Trabalho apresentado ao Curso de
Licenciatura em Letras da Universidade
Federal da Paraíba, como requisito para
obtenção do grau de Licenciado em
Letras,
habilitação
em
Língua
Portuguesa.
Orientador: Prof.º Dr.º Arturo Gouveia
de Araújo
JOÃO PESSOA
AGOSTO DE 2013
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal da Paraíba.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
Lopes, Renan Silva de Souza.
.
O fluxo da consciência em Angústia, de Graciliano Ramos / Renan Silva de
Souza Lopes. - João Pessoa, 2013.
27 f.
Monografia (Graduação em Letras Português) – Universidade Federal da
SILVA DE
SOUZA
LOPES
Paraíba - Centro de RENAN
Ciências Humanas,
Letras
e Artes.
Orientador: Profº. Drº. Arturo Gouveia de Araújo.
.
1. Análise Literária – Fluxo da consciência. 2. Teoria do foco
narrativo. I. Título.
BSE-CCHLA
CDU 82.0
O FLUXO DA CONSCIÊNCIA EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS
Trabalho apresentado ao Curso de Licenciatura em Letras da Universidade Federal da
Paraíba como requisito para o grau de Licenciado em Letras, habilitação em Língua
Portuguesa.
Data da aprovação:____/____/____
Banca examinadora
____________________________________________
Prof. Dr. Arturo Gouveia de Araújo, DLCV, UFPB
Examinador
_____________________________________________
Prof. Dr. Expedito Ferraz júnior , DLCV, UFPB
Examinador
_____________________________________________
Profa. Dra. Vanessa Neves Riambau Pinheiro, DLCV, UFPB
Examinadora
AGRADECIMENTOS
A Deus, que sempre esteve comigo.
Ao meu filho Guilherme.
À Gerlane Nogueira, pela paciência e pelo carinho.
À minha mãe, pela confiança em mim depositada.
Ao meu pai, pela influência literária.
Ao meu professor orientador, Dr.º Arturo Gouveia de Araújo, pela assessoria e
competência indiscutível.
RESUMO
Neste trabalho, analisaremos o emprego da técnica do fluxo da consciência pelo
narrador da obra Angústia (1936), de Graciliano Ramos, precursor na utilização desse
recurso narrativo no Brasil. Consequentemente, compreenderemos os motivos pelos
quais a consciência humana foi tematizada pela ficção no início do século XX e como
isso se reflete na referida obra através de Luís da Silva, cuja linguagem, densa e
desordenada, constitui uma verdadeira ruptura dos paradigmas narrativos de até então
na nossa literatura. Também iremos abordar como as questões de ordem social irão
atuar na consciência do protagonista e nos elementos formais do romance, tendo como
categoria principal da nossa análise o narrador. A base teórico-crítica da nossa pesquisa
recebe as contribuições de Lukács (2000), Carvalho( 1983), Humphrey (1976), James
(1979) e Moisés (2006).
Palavras-chave: Angústia, narrador, fluxo da consciência.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 8
1. A TEORIA DO FOCO NARRATIVO ................................................................ 10
2. O FLUXO DA CONSCIÊNCIA ......................................................................... 12
3. ANÁLISE DO ENREDO ..................................................................................... 15
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 26
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 27
8
INTRODUÇÃO
A partir de 1930, todo aquele comportamento rebelde e incisivo decorrente da
geração de 22 dava lugar a um novo modo de fazer literário: é o momento de
amadurecer essa literatura, em vez de limitar-se a combater única e exclusivamente as
tradições acadêmicas. Desta forma, a Semana de Arte Moderna já era considerada
ultrapassada, de pouca seriedade para o que se pretendia. Indica-se o período entre
1930 e 1945 como uma das épocas mais ricas de toda a nossa literatura, graças à
contribuição dos escritores que deram autenticidade à ficção durante esses anos.
Costuma-se chamar esses escritores de regionalistas, o que pode levar à errônea
indução de que o regionalismo se opõe ao universalismo. O artista elege uma certa
região geográfica e o seu funcionamento social como tema de sua obra justamente para
investigar e demonstrar os dramas humanos e sociais inerentes a todos, sem ficar apenas
no que essa região e esse povo têm de peculiar e único.
Graciliano Ramos, alagoano de Quebrângulo, teve uma vida marcada pela
militância política e dedicação literária, o que o faz ser um dos maiores expoentes da
literatura brasileira. Produziu crônicas, contos e memórias. Porém, foi sobretudo no
romance que se notabilizou pela crítica brasileira.
Angústia, escrito em 1936, terceiro romance do escritor alagoano, é a obra a ser
utilizada como corpus deste trabalho. Caracteriza-se por ser uma obra bastante
complexa, que destoa dos outros romances que primam pelo rigor e pela linearidade
racionalista. Escrito em primeira pessoa, a exemplo de Caetés (1933) e São Bernardo
(1934), o romance se diferencia por ser experimentador, utilizando técnicas até então
nunca vistas na literatura brasileira, abrindo caminho para que diversos outros autores
pudessem, posteriormente, desbravar os labirintos mais íntimos da mente humana. As
ocorrências de digressão causam grande estranhamento ao leitor na medida em que o
narrador mistura fatos do passado com o presente, comprometendo a linearidade do
enredo sem necessariamente reduzir a sua qualidade estética. Um turbilhão de sensações
e exacerbações expressionistas, escritas quase que automaticamente através de uma
linguagem densa, caracterizam aquilo que William James chamou de fluxo da
9
consciência, ou seja, "O primeiro fato para nós, portanto, como psicólogos, é que o
pensamento, de algum modo, continua" (JAMES, 1979, 122). Vale salientar, no entanto,
que apesar de a narrativa ser um retrato da consciência do protagonista, que observa os
fatos da maneira mais pessoal possível, suas idéias se sucedem de maneira associada a
algum fato do seu passado, rompendo com a lógica cadenciada da expressão. O que o
narrador põe em evidência é exatamente aquilo que precede a sua verbalização. Mas
para, de fato, entender uma obra tão inovadora no que diz respeito à linguagem e à
narrativa, é preciso buscar na teoria da literatura as definições dessa categoria tão
fundamental e relevante para auxiliar numa possível interpretação, considerando a
polissemia inerente a todos os textos literários.
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1. A TEORIA DO FOCO NARRATIVO
Massaud Moisés (2006), em sua obra A criação literária, revela que o autor não
escolhe o uso da primeira ou terceira pessoa do singular por mero acaso: são recursos
com que o narrador tem de construir um mundo visto de maneira distanciada ou
aproximada, completa ou parcial, neutra ou participativa: "Em suma, o foco narrativo
compreende as matrizes que condicionam a mundividência de cada escritor" (MOISÉS,
2006, p. 284).
O narrador em terceira pessoa tem apresentado, ao longo da história, uma visão
limitada no sentido de não oferecer ao personagem uma autonomia que corresponda à
realidade, tendo em vista a complexidade que cada ser humano carrega. Por estar
distanciado dos personagens, estes se submetem ao narrador como marionetes, assim
como o seu destino e o plano de fundo, resultando num mundo não tão dinâmico e
objetivo. No Brasil, as escolas românticas, realistas e naturalistas utilizaram
predominantemente este tipo de foco narrativo através dos seus autores pelos mais
diversos motivos: para entreter e distrair o público leitor, como aconteceu no
Romantismo, ou por razões científicas, obedecendo a preceitos sociológicos,
deterministas e zoológicos, como ocorre na vigência do Realismo e Naturalismo. A
impessoalidade e a superficialidade de sua cosmovisão não permite adentrar com afinco
no eu do personagem. Nesse caso, tudo o que se sabe e o que se pode depreender dele é
somente através dos seus gestos e atos, conforme revela o narrador pelos dados da
narrativa.
A narrativa em primeira pessoa é aquela em que o narrador participa direta ou
indiretamente dos fatos, quer seja protagonista ou coadjuvante, caracterizando o que
tradicionalmente se denomina narrador-personagem:
O ficcionista abandona a visão macroscópica do Universo em favor duma
visão microscópica: não mais entreter nem reformar , mas conhecer o homem
no seu "eu" subterrâneo e procurar enriquecer o leitor com o espetáculo das
próprias mazelas. (MOISÉS, Massaud, 2006, 287)
11
Ora, desse modo haverá, naturalmente, um estreitamento da visão de mundo
tendo em vista que os fatos são narrados a partir das impressões de uma pessoa. Por
outro lado, a riqueza psicológica dessa pessoa ficará bem mais evidente graças às
impressões, lembranças, livres associações e outras atividades mentais que a narrativa
em primeira pessoa proporcionará. A verossimilhança é bem maior nesse aspecto, pois o
narrador em terceira pessoa não tem a prerrogativa de infiltrar-se na mente de seus
personagens. A partir de Machado de Assis, o romance em primeira pessoa ganhará
notoriedade e passará a ser usado com o objetivo de desbravar a essência do ser
humano.
Em Angústia pode-se dizer que a narrativa é em primeira pessoa, tendo o seu
protagonista, Luís da Silva, como narrador-personagem. Todos os outros personagens e
acontecimentos do presente e do passado são condicionados única e exclusivamente à
sua visão e às suas interpretações. Todo o conhecimento de mundo de Luís da Silva é
afetado pelas suas experiências mais remotas, influindo em tudo o que ele irá analisar e
mostrar ao leitor. Para ilustrar essa idéia, vejamos como ele vê e analisa Julião Tavares,
seu grande desafeto:
O outro sujeito inútil que apareceu era muito diferente. Gordo, bem vestido e
falador, tão falador que ficávamos enjoados com as lorotas dele. Não
podíamos ser amigos. Em primeiro lugar o homem era bacharel, o que nos
distanciava. Pimentel, forte na palavra escrita, anulava-se diante de Julião
Tavares. Moisés, apesar de falar cinco línguas, emudecia. Eu, que viajei
muito e sei que há doutores quartaus, metia também a viola no saco.
(ANGÚSTIA, 1969, p. 60).
Tal impressão que ele tem do seu rival vai predominar durante toda a obra,
revelando enfim toda a sua inquietude e complexo por se tratar de alguém cujo sucesso
ele próprio nunca conseguiu alcançar, em todos os aspectos. E assim ele procede
também com todos os outros personagens, que aparecerão na obra contaminados com
sua carga emocional e subjetiva.
A intervenção da arbitrariedade do narrador de Angústia deve ser levada em
consideração pelo leitor na hora de analisar os personagens e os fatos: até que ponto
esses dados apresentados são mesmo compatíveis com a objetividade dos fatos? Qual a
intenção do autor em escancarar algo visto de uma ótica tão impregnada por sua
obsessão?
12
2. O FLUXO DA CONSCIÊNCIA
A necessidade de registrar a essência humana penetrando a fundo na sua
consciência é uma característica dos romances modernos no século XX. Humphrey
(1976, p. 4), nos faz uma comparação bastante pertinente para demonstrar a dimensão
do que se esconde por trás da nossa consciência:
Pensemos na consciência como tendo a forma de um iceberg- o iceberg
inteiro, e não apenas a parte relativamente pequena que aparece. A ficção de
fluxo da consciência, para levar avante esta comparação, ocupa-se em grande
parte com o que está abaixo da superfície.
Na linha de antecessores que utilizaram as mais variadas técnicas com a
finalidade ir além da ponta do iceberg, sobretudo por James Joyce, Virginia Woolf e
William Faulkner, Graciliano Ramos também empregará notavelmente esses recursos
com o mesmo objetivo. Dentre as quatro técnicas descritas por Humphrey (1976, p.
21), o autor de Angústia se utilizará basicamente de uma: o monólogo interior. O teórico
americano define esta técnica da seguinte forma:
O monólogo interior é, então, a técnica usada na ficção para representar o
conteúdo e os processos psíquicos do personagem, parcial ou inteiramente
inarticulados, exatamente da maneira como esses processos existem em
diversos níveis de controle consciente antes de serem formulados para fala
deliberada. (HUMPHREY, 1976, p. 22)
Assim, temos em Angústia diversas passagens que condizem com a teoria acima.
Logo no começo da narrativa, Luís da Silva descarrega uma infinidade de pensamentos
e anseios que não são concretizados através da fala:
Que estará fazendo Marina? Procuro afastar de mim essa criatura. Uma
viagem, embriaguez, suicídio[...] Enxoto as imagens lúgubres. Vão e voltam,
sem vergonha, e com elas a lembrança de Julião Tavares. Intolerável.
Esforço-me por desviar o pensamento dessas coisas. Não sou um rato, não
quero ser um rato. Tento distrair-me olhando a rua. (ANGÚSTIA, 1969, p.
21)
13
Percebe-se o quanto as imagens de suas duas maiores obsessões, Marina e Julião
Tavares, transtornam o narrador ao ponto de causar um conflito que vai perdurar por
toda a narrativa. Através da monólogo interior, a impressão que o leitor tem é a de que
essas imagens nunca sairão da mente de Luís da Silva, a despeito de todos os seus
esforços para expulsá-las. São esses e outros conteúdos que povoarão a mente do
personagem de maneira ininterrupta e pessoal, características principais do fluxo da
consciência, de acordo com William James (1979, p. 121). Ainda de acordo com ele, o
"isolamento absoluto" e a "constante mudança" do pensamento fazem com que o
mesmo seja confuso e complexo, fatos constatados não só em Angústia, mas em todos
os romances de fluxo de consciência. A respeito dessa tendência nos tempos modernos,
Theodor Adorno, no seu ensaio "A posição do narrador no romance contemporâneo",
afirma que:
De fato, os romances que hoje contam , aqueles em que a subjetividade
liberada é levada por sua própria força de gravidade a converter-se em seu
contrário, assemelham-se a epopéias negativas. São testemunhas de uma
condição na qual o indivíduo liquida a si mesmo [...] (ADORNO, 2003, p.
62)
Essa autodestruição é latente no narrador de Angústia. Em vários momentos,
percebemos que esse processo de investigação introspectiva de Luís da Silva sempre
acaba em conclusões pessimistas, quer seja na sua imagem, na sua trajetória pretérita até
chegar onde chegou e no futuro que nada promete a não ser a perseguição e a morte,
conforme constatamos nos trechos abaixo:
"[...] Um sujeito feio, os olhos baços, o nariz grosso, um sorriso besta e a atrapalhação,
o encolhimento que é mesmo uma desgraça" (ANGÚSTIA, 1969, p. 46).
"[...] Não tenho consciência dos movimentos, sinto-me leve. Ignoro quanto tempo fico
assim. Provavelmente um segundo, mas um segundo que parece uma eternidade. Está
claro que todo o desarranjo é interior" (ANGÚSTIA, p. 32)
"[...] Penso no meu cadáver, magríssimo, com os dentes arreganhados, os olhos como
duas jabuticabas sem casca, os dedos pretos do cigarro cruzados no peito fundo"
(ANGÚSTIA, p. 21)
Através dessas e outras passagens conclui-se que Luís da Silva apresenta elevado
grau de complexo de inferioridade, o que corrobora a tese da epopéia negativa de
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Adorno (2003), em que o sujeito moderno jamais alcança seus ideais, "encontrando
prazer na dissonância e no abandono".
O grande desafio do romancista de fluxo da consciência é, segundo Humphrey
(1976), conseguir expressar com clareza o processo psíquico do homem, que é caótico e
personalíssimo por natureza. É justamente através dessas técnicas e digressões que
Graciliano Ramos consegue mimetizar o fluxo da consciência do seu personagem, o que
causou profundo espanto para crítica brasileira, que se deparou com uma obra tão
inovadora e experimental no país.
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3. ANÁLISE DO ENREDO
A narrativa a ser analisada tem início quando Luís da Silva ainda se encontra em
devaneios após um longo período de reclusão:
Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci
completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas
umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me
produzem calafrios. (ANGÚSTIA, 1969, p. 19)
A partir daí, uma série de informações são expostas pelo narrador de maneira
contínua e desconexa, misturando pessoas, imagens, fatos do passado, medos e
complexos que fazem jus ao título da obra. Aos poucos, a narrativa vai apresentando
quem é esse personagem atormentado por suas próprias obsessões.
Luís da Silva é um mero funcionário da Diretoria da Fazendo em Maceió, capital
de Alagoas. Vindo do interior, teve antepassados que faziam parte da velha e tradicional
aristocracia rural, mas que foram entrando em decadência e perdendo espaço para o
crescimento da burguesia. Seu avô, Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, fora
um rico senhor de engenho, inclusive lembrado com um nostálgico orgulho pelo neto
em várias passagens, com seu nome sendo expressado sempre de maneira completa. Seu
pai, Camilo Pereira da Silva, não herdou a pujança e a grandeza do avô, no nome e na
vida: "Meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias inteiros manzanzando
numa rede armada nos esteios do copiar, cortando palha de milhos para cigarros, lendo
o Carlos Magno, sonhando com a vitória do partido que Padre Inácio chefiava"
(ANGÚSTIA, p. 23). Luís da Silva chega a alcançar o avô já em decadência na sua
infância e perde o pai na adolescência, fato que o faz sair do áspero sertão rumo à
capital do Estado. Chegando ao mundo urbano, passa por maus bocados: serve o
exército, vende suas próprias obras literárias nas ruas, muitas vezes se humilhando para
tal, até arranjar o emprego na repartição pública: "Afinal, para se livrarem de mim,
atiraram-me este osso que vou roendo com ódio" (ANGÚSTIA, p. 39).
Se pudesse, abandonaria tudo e recomeçaria as minhas viagens. Esta vida
monótona, agarrada à banca das nove horas ao meio-dia e das duas às cinco,
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é estúpida. Vida de sururu. Estúpida. Quando a repartição se fecha, arrastome até o relógio oficial, meto-me no primeiro bonde de Ponta-da-Terra.
(ANGÚSTIA, 1969, p. 21)
Apesar da aparente estabilidade do emprego, vive com muitas atribulações
financeiras, dentre elas a dificuldade de pagar o aluguel da casa de seu proprietário, o
Dr. Gouveia. Tem poucos amigos com os quais se identifica em alguns aspectos, a
saber: Moisés, Pimentel e seu Ivo, além de sua criada Sinhá Vitória. Após certo tempo,
Luís consegue equilibrar razoavelmente a sua situação financeira até conhecer Marina,
que agora mora na casa vizinha: "era uma sujeitinha vermelhaça, de olhos azuis e
cabelos tão amarelos que pareciam oxigenados" (ANGÚSTIA, p. 45). Fica encantado
com a beleza de Marina e se acanha quando se encontra a sós com ela devido ao seu já
conhecido complexo de inferioridade. Apesar de tudo isso, ele aparentemente consegue
conquistá-la e torná-la sua noiva. Ganha o respeito de seu Ramalho, pai de Marina, que
por sua vez o admira por ser um homem trabalhador e honesto.
Proposto o casamento a Marina, Luís da Silva confia-lhe todo o dinheiro para a
compra do enxoval e do material necessário para o matrimônio. Porém, todo o seu
esforço e empenho para juntar o dinheiro é inútil, após Marina fazer pouco caso do que
recebera, gastando apenas o que lhe convinha. Isso causa profunda ira e decepção do
protagonista, que começa a ver Marina com outros olhos. Desesperado, contrai dívidas
para tentar atender aos desejos de Marina, chegando inclusive a sonhar com números de
loteria e conjecturar uma vida de riqueza ao lado de sua amada.
Um dia, porém, todas as suas esperanças vão por água abaixo quando se depara
com a seguinte cena:
Ao chegar à Rua do Macena recebi um choque tremendo. Foi a maior
decepção que já experimentei. À janela da minha casa, caído para fora,
vermelho, papudo, Julião Tavares pregava os olhos em Marina, que, da casa
vizinha, se derretia para ele, tão embebida que n]ao percebeu a minha
chegada. Empurrei a porta brutalmente, o coração estava estalando de raiva, e
fiquei em pé diante de Julião Tavares, sentindo um desejo enorme de apertarlhe as goelas. (ANGÚSTIA, p. 87)
A partir desse momento, o ódio e o despeito do protagonista para com Julião
Tavares toma proporções nefastas, sobretudo com o desejo de eliminá-lo a qualquer
custo. Carvalho (1983) explica que esse ódio é freado pelas demandas da lei e da moral
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e, por isso, Luís da Silva terá que recorrer às cenas do passado envolvendo assassinatos
para se libertar. Trata-se de uma catarse obtida através das mortes que presenciou.
O que mais chama a atenção para esses episódios pretéritos é o que há de comum
entre eles: a morte por enforcamento, que ficou evidente através do modo da vingança
desejada de Luís da Silva. Ora, essas digressões utilizadas pelo narrador, aparentemente
sem causa e desordenadas, são pistas do fluxo da consciência que acabam por revelar
sua ânsia mais profunda. Fatos como as brincadeiras de matar cobras no pátio da
fazenda e a cascavel que quase matou o seu avô enforcado ilustram muito bem esse
pensamento logo após Luís da Silva se deparar com Julião Tavares e Marina trocando
olhares. Ao afastar estes pensamentos momentaneamente, Luís da Silva torna a olhar os
pés dos transeuntes e, através disso, faz outra associação com traumas do passado:
"Tornei a baixar a cabeça, desanimado, continuei a olhar os pés dos raros transeuntes
que passavam na rua. Ia e vinha. Um, dois, um, dois - meia-volta. Este exercício era
irritante" (ANGÚSTIA, p. 89). A vida da caserna, lembrada na cena acima, por sua vez,
associa a outros fatos do passado, como a sua vida de "cigano e selvagem" e aos
túmulos que encontrava no caminho dos sertões, de sujeitos que namoravam mulheres
alheias.
Profundamente contrariado, Luís da Silva tenta desafogar as mágoas não só
através das recordações que lhe convêm, mas também no álcool: "(...) É verdade que
tenho o cigarro e tenho o álcool, mas quando bebo demais ou fumo demais a minha
tristeza cresce. Tristeza e raiva" (ANGÚSTIA, 1969, p. 20)
Ele também tenta expulsar as dores no prazer pago e rápido, como no episódio da
prostituta em que aceita a sua proposta só para ter o que comer.
Quatro anos. E ali estava aquela carcaça comida pelo treponema. Panos
caídos no chão, o irrigador com permanganato. Na mesinha da cabeceira
essências ordinárias disfarçavam um cheiro forte de esperma. Tive
necessidade de fumar (...) A mulher levantou-se. Escanzelada, coxas finas
com marcas de varizes, nádegas murchas. Chi! que peleiro! (ANGÚSTIA,
1969, p. 92)
Mas todas essas tentativas só serviram para aumentar a sua depressão e o seu
despeito pelo rival. E isso foi fazendo com que ele rompesse gradativamente com
Marina:
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Pouco a pouco fomos nos distanciando, um mês depois éramos inimigos. A
princípio houve brigas, reconciliações desajeitadas, conversas azedas com D.
Adélia. Tempo perdido. Marina estava realmente com a cabeça virada para
Julião Tavares. Comecei a passar trombudo pela calçada, remoendo a
decepção, que procurei recalcar. (ANGÚSTIA, 1969, p. 102).
Com esse distanciamento, Julião Tavares começa a frequentar a casa de Marina,
obrigando Luís da Silva a ficar mais retraído e atento à rotina dos dois. Neste momento
a ação do enredo fica ainda mais paralisada, com ênfase no tormento psicológico do
narrador, que intensifica suas lembranças e funde-as com o presente. Junte-se a tudo isto
o medo insuportável ao imaginar possíveis relações sexuais entre Marina e Julião
Tavares. Apesar de tudo isto, ainda não perdera a fé de tê-la de volta: " Se Marina
voltasse...por que não? A água lava tudo, as feridas cicatrizam. Não valia a pena pensar
no outro. Julião Tavares era um caminho errado." (ANGÚSTIA,1969, p. 115). Mas
bastaria o namoro de D. Rosália, uma mulher da vizinhança, com o marido, quando
chegava de suas viagens, para que o turbilhão de pensamentos e angústias voltasse a
todo o vapor. Ao ouvir o que se passava na casa dessa vizinha, o narrador, no meio dos
seus delírios, expressa através de imagens aparentemente sem nexo todo o seu estado de
espírito:
Essa repetição me exasperava e endoidecia. O corpo em completo sossego, o
cigarro apagado. Não sabia em que posição estavam as pernas. As mãos
pesavamem cima do peito. Mas as pernas, onde estariam elas? Flutuava como
um balão. O corpo quase adormecido e sem pernas. As idéias, porém, não me
deixavam, idéias truncadas. Uma guerra na Europa. D. Mercedes comprara
discos novos para a vitrola. Moisés se ocultava, com medo da matéria. As
botinas de Lobisomem estavam cada vez mais cambadas. Onde estaria seu
Ivo? Um espírito boiando. Como seria? O espírito de Deus era levado sobre
as águas. (ANGÚSTIA, 1969, p. 116)
Toda essa confusão indica o estado da pré-fala, anteriormente já mencionado por
Humphrey (1976), quando o narrador usa o monólogo interior para deixar vir à tona o
que estaria "abaixo da superfície do iceberg".
Enquanto tudo isso acontece, Luís da Silva passa a se aproximar de seu
Ramalho, com quem timidamente se identificava. Concordam que o mundo em que
viviam era contaminado pela imoralidade e pela incerteza, cujas instituições outrora
sagradas agora estavam falidas. Contavam fatos que confirmavam essas idéias. Numa
19
delas, seu Ramalho irá fixar definitivamente o desejo de vingança em Luís da Silva.
Este, sem se preocupar com a veracidade do fato, irá se deleitar ao ouvi-la:
Um moleque de bagaceira tinha arrancado os tampos da filha do senhor de
engenho. Sabendo da patifaria, o senhor de engenho manda amarrar o cabra e
à boca da noite começa a furá-lo devagar, com ponta de faca. De madrugada,
o paciente ainda bulia, mas todo picado. Aí cortaram-lhe os testículos e
meteram-lhos pela garganta, a punhal. Em seguida tiraram-lhe os beiçois. E
afinal abriram-lhe a veia do pescoço, porque vinha amanhecendo e era
impossível continuar a tortura. (ANGÚSTIA, 1969, p. 119)
A respeito deste fato, Carvalho (1983) interpreta que o narrador e o ouvinte se
identificam com os desejos de vingança. Vingança que se aflora não só pela violação
sexual, mas sobretudo pela violação hierárquica, tendo em vista que o moleque fora
punida por violar uma filha de senhor de engenho. Desta forma, e trazendo para a sua
realidade, os dois se indignam pela "violação" em questão: a filha do proletariado sendo
violado pelo filho da burguesia. E a repetição incessante da narrativa do moleque faz
com que o protagonista outra vez delire, demonstrando, através de uma linguagem ainda
mais confusa, a completa junção entre um passado fantástico e o presente real:
Enquanto ele batia na testa, avançava e recuava, eu ia pouco a pouco
distinguindo uma figura nua e preta estirada nas pedras da rua. O ventre era
uma pasta escura de carne retalhada; os membros, torcidos na agonia,
estavam cobertos de buracos que esguichavam de sangue; a boca, sem beiços,
mostrava dentes acavalados e vermelhos, numa careta medonha; os olhos
esbugalhados tornavam-se vermelhos. O negro arquejava. Corria sangue
entre as frestas dos paralelepípedos e empoçava a sarjeta. A poça crescia, em
pouco
tempo
transformava-se
num
regato
espumoso
e
vermelho
(ANGÚSTIA, 1969, p. 212)
E ainda:
"Mas a figura continuava a escabujar no chão. Agora não era preta nem estava nua.
Pouco a pouco ia embranquecendo e engordando, o sangue estacava, as feridas
saravam"(ANGÚSTIA,1969, p. 122).
Os trechos mostram realmente a concretização dos desejos do protagonista na sua
forma mais exacerbada. A par disto tudo, a obsessão pela corda e pelo esganamento vão
dominando progressivamente o seu inconsciente, seja repetindo os fatos presenciados
20
ou criando outros novos, surgidos através das associações. Até mesmo quando se junta a
notívagos na rua, observa um deles e sentencia: "Tudo aquilo me envoergonhava: as
conversas simples, a alegria, especialmente os músculos do homem que falava ao
engraxate. Músculos e mãos enormes que esganariam facilmente um inimigo."
(ANGÚSTIA, 1969, p. 128).
O tempo passa e "as visitas de Julião Tavares foram escasseando e a alegria
ruidosa de Marina pouco a pouco desapareceu. "(ANGÚSTIA, 1969, p. 139). Luís da
Silva vai se dando conta, através dos sinais de sua amada, de que ela está grávida. Sua
fúria aumenta. Expõe ainda mais episódios envolvendo cordas, laços e enforcamentos,
como o de Amaro vaqueiro e Seu Evaristo, que se suicidara utilizando o instrumento de
suas obsessões. Descobre que Marina planeja um aborto e a persegue até o local do ato:
a casa de D. Albertina. Lá ele a espera e a encontra após tudo consumado. Uma última
conversa permite que Luís da Silva desabafe tudo a Marina, que agora é apenas uma das
pobre "vítimas" do seu rival. Ele não consegue sentir ódio de Marina, mas de Julião
Tavares.
Antes do aborto, uma visita inesperada de seu Ivo aflorou de vez os instintos
inconscientes de Luís da Silva, quando aquele o presenteou com uma corda para
amarrar rede. Em princípio, evitou desenroscar e nomear o objeto. Mas, após
desenroscar, todo o seu íntimo se revelou: "Logo que se desenroscara, dera-me um
choque violento, fizera-me recuar tremendo. Antes de refletir, tive a impressão de que
aquilo me ia amarrar ou morder". (ANGÚSTIA, 1969, p. 154). Carvalho (1983, p. 35)
analisa o fato da seguinte maneira:
Antes de receber a corda, o desejo de eliminar o negociante só se manifestava
através de representações: cenas de tortura, imagens de defuntos antigos,
casos de vingança, enfim, experiências penosas revivescidas pelo sujeito, as
quais, ludibriando o aparelho censor, contrabandeiam o desejo reprimido e o
exteriorizam de forma distorcida e transformada.
Materializado o seu desejo através do objeto, Luís da Silva, após externar todos
os acontecimentos do passado associando à corda, numa infinidade de significações que
incluem, segundo Carvalho (1983, p. 39), "arma de defesa, instrumento de prisão,
instrumento de autodestruição e metáfora de poder", vai em busca do seu rival para
fazer a sua própria justiça. Vale lembrar que o elemento corda, tão repetido na narrativa,
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servirá como prolepse para o ato final de Luís da Silva, ou seja, uma antecipação do seu
destino.
Após descobrir que ele tem uma nova amante, o protagonista passa a persegui-lo
sorrateiramente até a casa onde eles se encontram e fica à espreita. Sentia "raiva de
cangaceiro"(ANGÚSTIA, p. 199). Através dessa associação, entre um momento e outro,
relembrava cenas de ódio de cangaceiros que assassinavam com requintes de crueldade
na surdina e de animais que atacam nessas situações, apresentando as mesmas
características de surpresa e fatalidade (onça, carcará). O próprio protagonista revela
que a ação não flui, mas a consciência flui, volta, reconstrói o presente e modela o
futuro: "Quanto tempo duraram as recordações e o enfraquecimento? Um minuto, ou
menos." (ANGÚSTIA, p. 200).
Quando Luís da Silva consegue, enfim, enforcar Julião Tavares, tem a impressão
de que os tormentos e as obsessões iriam acabar. Mas o seu engano fora confirmado
ainda no caminho para casa, quando sua mente se inundou de maus presságios e de
possíveis castigos que viriam por causa do seu suposto assassinato. Quando ele chega
em casa extenuado, começa o verdadeiro turbilhão de monólogos que colocariam de
vez toda as suas fraqueza, receios, e angústias, numa linguagem completamente densa e
desconectada. Por dois longos meses, Luís da Silva fica de cama enquanto várias visões
e pressentimentos surgem para desnorteá-lo. E, quando voltamos para o começo da
narrativa, percebemos que ela continua exatamente de onde parou no final, quando Luís
da Silva se recupera - não completamente - das visões que o atormentavam nesse
período de reclusão, o que faz com que haja um rompimento nos moldes tradicionais da
narrativa linear: o fluxo da consciência permite que a narrativa aconteça em círculos,
estruturalmente falando.
Luís da Silva consegue exprimir seu estado emocional através de uma linguagem
bastante hermética, numa estrutura que confunde à primeira leitura. As informações do
enredo não são mostradas da forma tradicional e linear, mas através dos seus monólogos
e pensamentos, fazendo com que o leitor se desdobre em busca da concatenação dos
fatos acontecidos em círculos. Isso demonstra que Graciliano Ramos conseguiu
mimetizar o funcionamento de uma consciência através da quebra da causalidade, da
fragmentação de lembranças.
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As questões sociais também são fundamentais para entender-se o processo de
deteriorização de Luís da Silva. O seu avô representa para ele um passado de glória que
nunca vai voltar; não é por acaso que, toda vez que o protagonista se refere a ele, o faz
orgulhosamente, expressando todo o seu nome completo. Com o seu pai, já não
acontece a mesma coisa: Camilo Pereira da Silva não herdou o brilho do avô, que ainda
em vida já se encontrava falido. O êxodo rural fica evidente quando o protagonista
interpreta, conscientemente, a nova ordem do mundo burguês:
Sabia onde ficavam o Rio de Janeiro, São Paulo, Minas lugares que me
atraíam, e que atraem a minha raça vagabunda e queimada pela seca. Resolvi
desertar para uma dessas terras distantes. Abandonei a vila, com uma trouxa
debaixo do braço e os livros da escola [...] E comecei a andar lentamente pelo
caminho estreito, afastando-me da vila adormecida (ANGÚSTIA, 1969, p.
35)
Órfão de tudo o que a aristocracia poderia proporcionar, Luís da Silva não
consegue se adaptar ao mundo citadino. Sente-se acuado e incapaz de progredir numa
sociedade altamente competitiva e desumana, e isso se reflete nos seus monólogos
interiores, transcritos nos cinco trechos abaixo:
Quando o carro pára, essas sombras antigas desaparecem de supetão - e vejo
coisas que não me excitam nenhum interesse: os focos da iluminação pública,
espaçados, cochilando, piongos, tão piongos como luzes de cemitério; um
palácio transformado em albergue de vagabundos; escuridões, capoeiras,
barreiras cortadas a pique no monte; a frontaria de uma fábrica de tecidos; e,
de longe em longe, através de ramagens, pedaços de mangue cinzentos (...) as
recordações da minha infância precipitam-se. E a decadência de Trajano
Pereira de Aquino Cavalcante e Silva precipita-se também. (ANGÚSTIA,
1969, p. 24)
"Não
brinque, madame. Sou um sertanejo, um bruto, um selvagem"( ANGÚSTIA,
1969, p.48)
"Considerava-me um valor, valor miúdo, uma espécie de níquel social, mas enfim
valor"( ANGÚSTIA, 1969, p. 49)
"(...) cidade grande,
falta de trabalho" (ANGÚSTIA, 1969, p. 22)
E coisas piores, que me envoergonham e não conto a Moisés. Empregos
vasqueiros, a bainha das calças roída, o estômago roído, noites passadas num
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banco, importunado pelo guarda. Farejava um provinciano de longe, conhecia
o nordestino pela roupa, pela cor desbotada, pela pronúncia. E assaltava-o:
- Um filho do Nordeste, perseguido pela adversidade, apela para a
generosidade de V. Exª. (ANGÚSTIA, 1969, p. 39)
Ciente de sua condição social, Luís da Silva enxerga os mais abastados como
uma ameaça, ao mesmo tempo em que idealiza alcançar o mesmo status para que
pudesse conquistar Marina e preencher o vazio que tanto lhe incomodava havia trinta e
cinco anos. Quando ele analisa Julião Tavares, percebe que ele preenche os requisitos
para obter tudo o que desejasse. Carvalho (1983) interpreta o despeito do protagonista
com o seu rival com ênfase em suas reminiscências:
Assim, a desconfiança quanto à legitimidade para o exercício amoroso
colabora com a concepção negativa que o sujeito alimenta sobre o amor,
'coisa sempre complicada e dolorosa', e que desliza para um sentimento de
bastardia, que nos obriga a recorrer ao tema freudiano de Édipo.
Sentimentos de inferioridade, incapacidade de adaptação à nova realidade,
incapacidade de se aproximar de mulheres, traumas infantis, falta de um trabalho que
fizesse jus à sua capacidade intelectual, falta de dinheiro. Tudo isso é expresso com
veemência pelo narrador durante toda a narrativa, com elevado grau de pessimismo.
Essas repetições são grandes recursos da técnica do fluxo da consciência na tentativa de
demonstrar o seu estado emocional, dando a impressão de que a mágoa que sente não
terá fim. Bakhtin (apud José Marcos Mariani de Macedo in LUKÁCS, 2000, p.99)
afirma que "um dos principais problemas interiores do romance é justamente o tema da
inadequação de sua personagem à sua situação. O homem ou é superior ao seu destino
ou é inferior à sua humanidade". É exatamente isso que se vê latente em Luís da Silva
ao se comparar com as pessoas que ele julga mais capacitadas, principalmente com
Julião Tavares. Lukács, em sua obra A teoria do romance, ao descrever o romance
moderno, analisa as características desse "herói" moderno em seus momentos de
idealismo abstrato:
(...) Uma sofreguidão excessiva e exorbitante pelo dever-ser em oposição à
vida e uma percepção desesperada da inutilidade dessa aspiração; uma utopia
que, desde o início, sofre de consciência pesada e tem certeza da derrota. E o
decisivo nessa certeza é o seu vínculo indissolúvel com a consciência moral,
a evidência de que o fracasso é uma consequência necessária de sua própria
estrutura interna(...). (LUKÁCS, 2000, p. 122)
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E essas características são marcantes em vários monólogos do protagonista de
Angústia, como o do trecho abaixo, em que ele sutilmente deseja fazer parte da alta
sociedade:
Agora não tinha dinheiro. De quando em quando metia a mão no bolso.
Desarmado e só, inteiramente só, encostado à janela, ouvindo o barulho dos
automóveis. Nenhum desejo de fugir das pessoas que iam ao teatro. Sentia
era vontade de ir também, sentar-me numa cadeira junto do palco, bater
palmas, olhar os camarotes. (ANGÚSTIA, 1969, p. 130)
Idealismo abstrato que se percebe também nos momentos de sua aspiração
doentia de obter os números da loteria para garantir o futuro que Marina queria:
O cego dos bilhetes de loteria passou entre as cadeiras, batendo com seu
cajado no chão, cantando o número.(...)
-16.384, gemia o cego com a bengala no cimento.
Ou seria outro número. Cem contos de réis, dinheiro bastante para a
felicidade de Marina. Se eu possuísse aquilo, construiria um bangalô no alto
do Farol, um bangalô com vista para a lagoa. Sentar-me-ia ali, de volta da
repartição, à tarde, como Tavares & Cia., Dr. Gouveia e os outros, contaria
histórias à minha mulher, olhando os coqueiros, as canoas dos pescadores.
(ANGÚSTIA, 1969, p. 83)
O problema social é uma das obsessões de Luís da Silva, mesmo que isso não
seja dito de forma explícita e deliberada, mas através dos rastros de seus monólogos,
que são as coordenadas para a compreensão e da força que tem os vocábulos que
emprega. Do fundo de sua subjetividade, ele consegue expor um panorama da época em
que vivia e mostrar de que forma o mundo externo pode influir na sua consciência.
A constante comparação com animais também é algo intrigante no romance. O
vocábulo "rato" é exaustivamente utilizado pelo narrador, denotando o medo e a ojeriza
a esse animal que o perturba em vários momentos do enredo. O termo em questão
também demanda a presença do seu rival natural, o gato, animal que assume a posição
de destaque positivo para as suas pretensões. As oscilações que o narrador faz com o
seu rival, na luta pelo papel do gato, mereceu a apreciação de Carvalho (1983, p. 79),
quando diz:
25
Por sua vez, quando Luís da Silva se declara um rato, ele está
consequentemente vendo o outro em sua ameaçadora superioridade de gato:
'[Julião Tavares] Derramava-se no bonde, e se alguém lhe tocava as pernas,
desenroscava-se com lentidão e lançava um olhar duro' (A, p. 193). De outro
modo, ao identificar no rival o rato (usurpador e ladrão), obriga-se
interiormente a assumir a condição heróica de gato, que lhe permitirá investir
contra o rival intruso.
Essas e outras obsessões que o narrador emprega através da linguagem caótica
atingirão o ápice no seu delírio final. Forma e conteúdo se unem, num caos total da
estrutura psicológica que se deduz através de um texto sem parágrafos e sem pausa. O
eu de Luís da Silva é exposto dramaticamente numa forma jamais vista na literatura
brasileira:
As riscas de piche cruzavam-se, formavam grades. - 'José Baía, meu
irmão, há quanto tempo!' As crianças corriam em torno da barca. -'José Baía,
meu irmão, estamos tão velhos!' Acomodavam-se todos. 16.384. Um colchão
de paina. Milhares de figurinhas insignificantes. Eu era uma figurinha
insignificante e mexia-me com cuidado para não molestar as outras. 16.384.
Íamos descansar. Um colchão de paina (ANGÚSTIA, 1969, p. 237).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho revela a complexidade do ser humano através de Angústia, uma
verdadeira obra de arte da nossa literatura, apesar do estranhamento que causou quando
foi publicado pela primeira vez no Brasil. Estranhamente não só pelo inovação que
trazia, mas por destoar do restante de suas obras pelo excesso de subjetividade. Otto
Maria Carpeux, no prefácio de Angústia, define a obra de Graciliano de maneira geral:
O lirismo de Graciliano Ramos é, porém, é bem estranho. Não tem nada de
musical, nada do desejo de dissolver em canto o mundo das coisas; acredito-o
incapaz de escrever a última página de Moleque Ricardo, de José Lins do
Rego, talvez a mais comovente página da prosa da literatura brasileira. O
lirismo de Graciliano Ramos é amusical, adinâmico; é estático, sóbrio,
clássico, classicista, traindo, às vezes, um oculto passado parnasiano do
escritor.
Sobriedade essa que não se encontra na obra analisada neste trabalho. O denso
pessimismo, preponderante em Angústia pelas razões destacadas, é o retrato de um
homem que não consegue alcançar seus objetivos, incapaz de agir, preso pelos grilhões
de uma sociedade desumana, capitalista, onde somente aquele que possui é contemplado
e visto com bons olhos.
A falta de ação vai acarretar o excesso de introspecção, cujas características
foram notavelmente imitadas através dos inovadores recursos e técnicas típicos do
século XX: o fluxo da consciência e os seus desdobramentos. O estudo revela que o que
está abaixo da superfície do iceberg (consciência) é algo a ser desbravado, porquanto lá
se encontram os segredos, os medos e os desejos que norteiam o comportamento do
homem. Desta forma podemos concluir que Angústia é uma obra inesgotável e atual,
obra que nenhuma interpretação irá defini-la por completo, tendo em vista que se trata
de uma manifestação exclusivamente humana, universalmente complexa e rica.
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BIBLIOGRAFIA
RAMOS, Graciliano. Angústia. 11. ed. São Paulo: Livraria Martins, 1969
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, Theodor. Notas de Literatura. São Paulo: Duas cidades, 2003
CARVALHO, L. H. A ponta do novelo – uma interpretação de Angústia de
Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1983
HUMPHREY, R. Fluxo de consciência. São Paulo: McGraw-Hill, 1976.
LUKÁCS, G. A teoria do romance. São Paulo: 34, 2000.
JAMES, W. Pragmatismo e Outros textos. Tradução de Jorge Caetano da Silva e
Pablo Rúben Mariconda. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
MOISÉS, Massaud. A criação literária. São Paulo: Cultrix, 2006
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O fluxo da consciência em Angústia - CCHLA