MESQUITA, Talitha de Castro Mendonça. O entre-lugar das Artes Cênicas: um
olhar expressivo sobre “Coreografia de Cordel”. Belo Horizonte: Universidade
Federal de Minas Gerais. Escola de Belas Artes, UFMG, Mestrado, Orientadora: Bya
Braga (Maria Beatriz Mendonça). Bolsa: CAPES Demanda Social (DS) stricto sensu.
Dançarina.
O entre-lugar das artes cênicas:
um olhar expressivo sobre “Coreografia de Cordel”
O presente capítulo trata de um primeiro olhar voltado ao espetáculo
“Coreografia de Cordel” (2004), da Companhia de Dança do Palácio das Artes, de
modo a reconhecer, exemplificar e dissertar sobre elementos presentes no entrelugar das artes cênicas contemporâneas, identificados nesta obra de um modo geral.
O objetivo é, então, permear as relações rizomáticas presentes nas fronteiras
disciplinares desde a preparação corporal do artista, passando pelo processo
criativo, até a cena em si, reconhecer elementos ali presentes e seus
desdobramentos na cena.
A escolha de “Coreografia de Cordel” se deu por estar relacionado
às
três
características
de
espetáculos
transdisciplinares,
as
quais
foram
consideradas ainda como relevantes na observação destas linguagens no entrelugar das artes cênicas neste primeiro olhar por se relacionarem diretamente a elas:
criação colaborativa, espaços não convencionais e relações disciplinares.
Acreditamos serem as relações disciplinares relevantes por serem
elas direcionadoras do próprio objetivo da pesquisa, principalmente aquelas que
apresentam fronteiras móveis e diluídas e que não sejam sistematizadas, as quais
caracterizam este lugar a ser analisado. A criação colaborativa foi considerada
fundamental para a diversidade do entre-lugar por abarcar, além das relações
disciplinares mencionadas acima, as relações rizomáticas entre as percepções e
subjetivações criativas dos artistas, na criação de expressividades próprias que
também apresentam o descentramento e deslocamento disciplinar. Em relação às
exibições em espaços (não)convencionais, foi considerado o abandonar do palco
italiano uma relevante característica que dialoga com a performatividade1 presente
nos trabalhos pós-disciplinares contemporâneos, pois permite, além da ocupação de
novos espaços não antes ocupados pelas Artes, desconstrução e reconstrução das
relações entre espectador e obra, e entre espectador e este espaço.
Sob o aspecto da fluidez entre as fronteiras das disciplinas Dança e
Teatro na contemporaneidade, este artigo, parte de pesquisa de mestrado em
andamento, vem apontar para possíveis elementos que caracterizem o entre-lugar
nas artes cênicas, no espetáculo “Coreografia de Cordel” da Cia. de Dança do
Palácio das Artes. Digo possíveis, pois estes elementos estão em trânsito entre
estas fronteiras porosas e móveis, e são aqui apontados com base em análises que
dialogam com o referencial teórico de Silviano Santiago (1978), sob o olhar de uma
pesquisadora-espectadora-artista-sujeito.
Deste modo, este olhar também é móvel e transita por estas
fronteiras em constante relação entre micropercepções2 que as permeiam. Ele está,
portanto, em constante atualização de si mesmo, sobretudo, diante de outras
pesquisas e análises, as quais busca estimular e colaborar para com elas. Não se
quer então aqui criar conceitos ou verdades, fechar sistemas ou provar afirmações,
mas sim estabelecer um diálogo sensível e crítico sobre o que possivelmente possa
1
Entende-se por performatividade a característica das obras de arte que exigem a presença do artista, cuja
criação tem como suporte essencial o seu próprio corpo. Consistem, portanto, num acontecimento, no tempo
presente, pelo que se lhes atribui igualmente um caráter efêmero e imaterial.
2
(GIL, 2005)
ser reconhecido em um espetáculo contemporâneo que se apresenta ao mesmo
tempo como mudança de paradigma de criação para os artistas que dele
participaram e diálogo com tendências contemporâneas de possibilidade inovadora
em relação à recepção, fruição e experiência artística para o espectador.
Nosso olhar é direcionado para relações disciplinares entre Teatro e
Dança na formação de uma linguagem pós-disciplinar em “Coreografia de Cordel”.
Pós-disciplinaridade que caracteriza o conceito de entre-lugar3 utilizado, relacionado
às transgressões das noções e limites entre disciplinas por meio de deslocamentos,
desconstruções e descentramentos de princípios que a cada uma delas seria
atribuído particularmente.
Em um primeiro olhar para o espetáculo como um todo,
reconhecemos presenças instaladas na percepção deste entre-lugar, as quais
haviam sido consideradas como características dos espetáculos contemporâneos
que apresentam esta transgressão disciplinar. Estas características nortearam um
primeiro dissertar sobre as presenças instaladas no entre-lugar das artes cênicas em
“Coreografia de Cordel” e seus desdobramentos cênicos, em relação ás mudanças
de paradigmas de preparação, criação e exibição cênicas da Cia. de Dança do
Palácio das Artes e à uma tendência das artes cênicas contemporâneas de um
modo geral: transdisciplinaridade, uma dramaturgia do movimento, a teatralidade e
a performatividade.
Elementos que não podem ser atribuídos a uma fase ou outra do
espetáculo, até porque “Coreografia de Cordel” tem base investigativa e criativa no
método Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI)4, o qual pressupõe um elo entre
3
4
(SOUZA, 2007)
(RODRIGUES, 1997)
preparação, criação e exibição cênica por meio dos seus eixos de sustentação: o
inventário do corpo, o co-habitar com a fonte, a estruturação da personagem.
Como características de um entrelugar5 que passa pelo corpo do
artista em suas micropercepções e se projeta na cena em uma percepção maior e
coletiva, os elementos identificados estão relacionados a um espetáculo que se
baseia em memórias e subjetivações daqueles que o criam e nele atuam; sem
preocupação com uma técnica específica, mas com uma expressividade pósdisciplinar, formada da relação
transdisciplinar entre micropartículas das
linguagens disciplinares ou não que permeiam o corpo do artista-sujeito.
O espetáculo se estrutura sobre uma dramaturgia do movimento,
a qual se baseia mais em uma estética relacionada à expressividade corporal, do
que em uma lógica representativa ou em um texto dramatúrgico. Dramaturgia
composta por “microdramaturgias”, criadas particularmente nos corpos de cada
artista, as quais são interligadas por uma dramaturgias maior.
Tal dramaturgia é comum nos espetáculos de Dança que carregam
certa teatralidade além da estética da técnica e da forma, bem como no Teatro pósdramático e sua valorização da expressividade em detrimento da mera fisicidade das
ações. Teatralidade esta que, segundo Josette Féral (2004, p. 97), relaciona-se,
portanto, na atualidade mais com as dinâmicas de percepções entre artistas e
espectador do que com elementos que compõem uma cena teatral dramática em si.
A performatividade é notada quando vemos a cena se recriar em
cada apresentação, mesmo seguindo um roteiro e uma estrutura dramatúrgica de
gestos e movimentos para uma personagem. Não é exibido um produto cênico
5
STRAZZACAPPA & MORANDI (2006).
fechado, mas um constante processo de criação e transformação, na expressividade
sensível de um ser humano diante de um acontecimento momentâneo, que não se
dissocia da expressividade do artista. Cena que se reconfigura a partir dos afetos e
afetações diante das relações artistas-espectadores, principalmente nos espaços
(não)convencionais, que os aproximam física, hierárquica e cotidianamente.
O olhar para o artista enquanto sujeito e às suas criações,
indissociáveis de suas vivências cotidianas, vai ao encontro do que propõe o BPI,
quando baseia as investigações e criações em memórias de um inventário do corpo
que dialogam com afetos e afetações surgidas no contato com outras pessoas
inspiradoras/fontes de inspiração para a estruturação da personagem.
Este permitir de afetações por subjetivações diversas desde o
processo criativo de cada personagem, passando pela criação coletiva do
espetáculo, até a aproximação do espectador durante sua exibição é o que fica de
mais relevante até então neste primeiro olhar sobre “Coreografia de Cordel”. Foi este
espetáculo um momento para a companhia questionar suas práticas, bem como os
paradigmas artísticos atuais; um momento para artistas experientes e embasados
tecnicamente em linguagens diversas de experimentarem a criação de uma dança
autoral e, mais proximamente, perceberem o olhar tanto de sua Arte para
determinada realidade, quanto do espectador com sua realidade para a Arte da Cia.
de Dança do Palácio das Artes.
Presença6. Talvez seja a palavra que momentaneamente melhor
caracterize o entre-lugar das artes cênicas em “Coreografia de Cordel”. Presença em
expressividade, não importando o “como”, mas “o que” ela carrega e apresenta.
Referências Bibliográficas:
BRAGA, Bya (Maria Beatriz Mendonça). Étienne Decroux e a Artesania de Ator:
Caminhadas para a Soberania. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo.
São Paulo: Revista Sala Preta, n. 8, ECA/USP, 2008, p. 197-209. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57370/60352>.
Acesso
em:
outubro/2014.
GIL, José. Movimento Total: O Corpo e a Dança. Lisboa: Illuminuras, 2005.
LEAL JR., Milton de Andrade & NUNES, Juarez José Nascimento. Na busca de
uma dramaturgia do movimento. Florianópolis: Revista Da Pesquisa, UDESC.
Número
2,
vol.
2,
2006.
Disponível
em:
<http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume2/numero2/cenicas/Milton%
20-%20Juarez.pdf>. Acesso em: setembro/2014.
6
Segundo Bya Braga (2010), a condição de presença requer uma “atenção extremada, (...) uma
percepção de corpo inteiro, não somente com as partes que a tradição metafísica valorizou: olhos e
mente”. Deste modo, o entre-lugar das artes cênicas em “Coreografia de Cordel”, diante dos
aspectos que observamos, relaciona-se com as presenças do artista e do espectador, e com a
relação entre elas.
RODRIGUES,
Graziela
Estela
Fonseca.
Bailarino-Pesquisador-Intérprete:
processos de formação. Rio de Janeiro: Funarte, 1997.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
SOUZA. Marcos Aurélio Santos. O Entre-Lugar e os Estudos Culturais. Cascavel:
Revista travessias, Unioeste. 2007.
STRAZZACAPPA, Márcia e MORANDI, Carla. Entre a arte e a docência – a
formação do artista da dança. Papirus, 2006.
Download

O entre-lugar das artes cênicas: um olhar expressivo sobre