ID: 41391090 21-04-2012 Tiragem: 46977 Pág: 31 País: Portugal Cores: Cor Period.: Diária Área: 10,63 x 30,19 cm² Âmbito: Informação Geral Corte: 1 de 1 O corpo que nunca tivemos, filho do rei que nunca chegou Crítica de Dança Perda Preciosa mmmMM de André e. Teodósio (dramaturgia e encenação), Rui Lopes Graça (coreografia) e Massimo Mazzeo (direcção musical), Companhia Nacional de Bailado, Teatro Camões, 19 Abril, 21h. Até dia 29. Meia sala Quando, em 1993, Alexandre Melo escreveu que os portugueses não tinham corpo, procurando reflectir sobre o modo como a ditadura teria ditado uma impossibilidade de representação, através da dança, da identidade portuguesa, estava também a dizer que aquela que poderia ser uma fraqueza em comparação com outras danças — e outras identidades — era uma possibilidade de transformação da própria disciplina. Vinte anos, ou quase, depois, ver Perda Preciosa pela CNB é perceber, outra vez, que o corpo que constituiu alguma da identidade coreográfica portuguesa se construiu, nessa fascinante vertigem criativa, a partir de um território sem forma, onde a preocupação com a definição de uma identidade confundia muitas vezes forma, meio e conteúdo. A peça tem fragilidades, claro. É excessiva, é ilustrativa, insiste na narrativa, corta cerce na leitura linear e faz gala da profusão de imagens, como se acreditasse realmente que pode tudo. Sabe que não pode e o modo como se vai rarefazendo, numa desmontagem cínica do movimento e da estrutura, revela uma capacidade de abandono das referências, das obrigações e do próprio futuro. Como se dissesse que, se o país tivesse sabido fazer o mesmo, Sebastião seria hoje apenas um louco e não Nosso Senhor. É dessa massa que se faz o solo inicial, momento tão alto que a própria coreografia sabe nunca poder voltar a repetir. Isso deve-se a um intérprete novíssimo, Dominic Withbrook, primeiro papel de protagonista na CNB, um corpo etéreo em doridos movimentos, entre o diáfano e o mefistofélico. Um risco que o bailarino agarra como se a sua vida (a do rei, a do país, a do espectáculo) dependesse disso, tirando-nos o fôlego numa comovente construção sobre o prenúncio da morte. E é essa carga emotiva que sustenta a dramaturgia e a coreografia, arriscando perder o controlo de uma massa de corpos forçados a uma convivência. Ao questionar permanentemente o princípio formal da dança, a sua efemeridade, com piscares de olhos a outros coreógrafos, memórias vivas de uma identidade, Perda Preciosa faz o impensável: promete para não cumprir. Este fascinante desfile de intenções tem, contudo, duas notas dissonantes. Os figurinos de Mariana Sá Nogueira nunca abandonam o formalismo de um exercício de construção a partir das roupas de ensaio de bailarinos, muitas vezes impedindo-nos de chegar às diversas (e contraditórias) camadas que os movimentos comportam. E nada justifica que alguns bailarinos sejam simplesmente funcionais na interpretação, não dando a um guião coreógrafico denso a devida réplica. Dir-se-á que se a peça não fosse apresentada pela CNB seriam mais evidentes algumas das suas (boas) contradições, assumidas inclusivamente num guião que não ambiciona a sua própria materialização em movimento, mas será para peças como Perda Preciosa que existe a CNB. Peças de risco, que afrontam a própria ideia de um repertório contemporâneo, falando de um país. Tiago Bartolomeu Costa RICARDO BRITO Dominic Withbrook é Sebastião, rei e santo, corpo-mártir de um país