O vazio da trilha Considerações sobre o silêncio e sua atuação na narrativa cinematográfica João Henrique Tellaroli Terezani O VAZIO DA TRILHA Considerações sobre o silêncio e sua atuação na narrativa cinematográfica João Henrique Tellaroli Terezani 2 Resumo: O silêncio construído pela trilha sonora do cinema é observado em seu desempenho narrativo, sendo levantadas as questões que cercam sua atuação nos filmes. Ainda, busca-‐se compreender os seus padrões e como a sua representação interfere ativamente na percepção do espectador. Os filmes “Cleópatra” e “A Erva do Rato” (2008) de Julio Bressane servem à discussão por apresentar a ausência de sons como artifício capaz de deslocar a percepção sobre o seu texto narrativo. Palavras-‐chave: 1. Silêncio 2. Som no Cinema 3. Cinema Brasileiro Moderno Embora não tenha sido considerado nas categorizações gerais sobre o material sonoro do cinema (que basicamente prevêem a voz, a música e o ruído1), existe ainda a lacuna em que o silêncio foi esquecido, de onde alguns pesquisadores e autores tentam retirá-‐lo para indicar a sua contribuição ao texto narrativo audiovisual, sendo relevante sua consideração como elemento integrante da trilha sonora cinematográfica, uma vez que sua presença tem sido cada vez mais percebida nos filmes. O silêncio incorporado como ferramenta narrativa na linguagem audiovisual só foi possível após a sincronização do som à película e, principalmente, após o desenvolvimento das tecnologias de gravação, de mixagem e de reprodução sonora capazes de “construir” o silêncio cinematográfico. Como afirmam Bordwell e Thompson, o silêncio só pôde despontar enquanto artifício de qualidades narrativas com o advento do sonoro: O som traz um novo sentido para o silêncio. (...) No contexto do som, o silêncio assume uma nova função expressiva.2 Devido a força expressiva que alcança, é possível aqui indagá-‐lo enquanto uma ruptura sonora, se ponderada a mudança de atenção que a “ausência de sons” resulta na audiência ao deslocar sua atenção. Atualmente as produções cinematográficas, com seus inúmeros recursos tecnológicos, têm promovido, de modo geral, o aumento da 1 2 (STAM. 2003, p. 237). (BORDWELL. THOMPSON. 1985). 3 quantidade e da qualidade dos sons reproduzidos, e com isso assistimos (e ouvimos) a filmes sobrecarregados de informações sonoras, possibilitando que o silêncio presente atualmente nas trilhas de filmes crie um estado de percepção distinto. Não obstante, ao propor os momentos de silêncios que ouvimos, o cinema tende a representá-‐los por meio de um detalhado desenho de som cuja composição é feita por elementos sonoros recursivos que, a fim de evitá-‐lo absoluto, recriam uma “sensação silenciosa”. Paradoxalmente, o som é improvisado como matéria-‐prima para a recriação cinematográfica da ausência de sons, compondo, assim, o arranjo sonoro que lhe imprimirá o “efeito silencioso” através de: “latidos de animais, relógios no quarto vizinho ou o farfalhar das folhas”3 Recriado, o silêncio revela possibilidades variadas, não sendo um recurso invariável dentro dos filmes. Sua funcionalidade ocorre em diferentes planos dentro da narrativa cinematográfica, e estabelece um sem-‐números de relações possíveis. Analisadas suas características em cada caso, desempenha ainda papéis e alcança a atenção do espectador, participando tanto quanto bandas sonoras mais barulhentas na percepção sobre o texto fílmico. Por meio de um controlado arranjo, os sons no cinema são pensados para garantir um destaque segundo sua posição narrativa na cena, ou seja, sua audibilidade e a sobreposição de um som sobre outro costura a malha sonora e evidenciam o lugar que ocupam na narrativa. Sobre a organização do desenho sonoro, Robert Stam indica a maneira como o material sonoro é trabalhado por meio de padrões que se estabeleceram no cinema: O som cinematográfico, em resumo, é altamente codificado, construído e cercado de restrições, sendo o produto de uma infinidade de protocolos e proibições.4 Neste sentido, em suas possibilidades narrativas, assim como qualquer outro elemento audiovisual, o silêncio pode ocorrer em diferentes níveis, devida a relação que mantém 3 (SONNENSCHEN. 2001. p. 125) Trecho original: “A synonym for silence may be used, such as faraway animal calls, clocks in the next room or leaves rustling”. 4 (STAM. 2003, p. 241). 4 com os outros sons. Sendo assim, como proposto por Stam, existe ainda aqui a possibilidade de observarmos o silêncio conforme os protocolos e os padrões a que são submetidos. O pesquisador Paul Thebérge em seu artigo Almost Silence: the interplay of sound and silence in Contemporary Cinema and Television (2008) indaga um entendimento sobre os meios em que o silêncio atua em relação ao som no filme, os meios em que padrões de som e de silêncio emergem e contribuem para a estrutura da narrativa.5 O modo como o desenho de som no moderno sistema multi-‐pista estabelece os seus momentos de silêncio encoraja significados que despontam na leitura do espectador, evidenciando a capacidade que o material sonoro, em sua representação do silêncio, detém de influenciar a percepção: O silêncio atravessa todas as maneiras de contexto: ele nunca é absoluto, e alcança significado na sua relação com o que nega, Referência para a discussão sobre o silêncio, o compositor John Cage o apresenta como exercício capaz de significar em diferentes contextos, incentivando sua compreensão além de sua matéria sonora, como ponderou: Silêncio não é acústico. É uma mudança de espírito.6 Em sua experiência na câmara anecóica7, verificou que o silêncio enquanto ausência plena de sons não ocorre, quando, devido à constatação de que sons são produzidos ininterruptamente, revê seu trabalho e declara: “Eu pensei, honesta e ingenuamente, que existia de fato algum silêncio.” 8 5 (THEBÉRGE, 2008, p. 51). Trecho original: “What is more important to my purposes here is to develop an understanding of the ways in which silence works in relation to sound in film, the ways in which patters of sound and silence emerge and contribute to the overall structure of the narrative”. 6 (REVILL, 1992, p. 164). 7 Câmara anecóica – uma sala especial totalmente revestida de material com alto coeficiente de absorção, com isolamento sonoro de quase 100% e no interior da qual verifica-‐se o maior silêncio possível. (ANTUNES. 1999) A experiência de John Cage na câmara anecóica e seu relato são amplamente discutidos nas discussões sobre o silêncio, pois depois de tê-‐la visitado o compositor abriu o debate sobre a possibilidade da inexistência de um silêncio absoluto. 8 (REVILL, 1992, p. 163). 5 Enquanto experiência audiovisual, “a ausência de sons” pode ser proposta como elemento de significação participante da narrativa. Ao propor um novo modelo de análise através do estudo do silêncio e de suas funções em filmes e na televisão, Thebérge nos adverte a escutá-‐lo segundo a relação que mantém com os outros elementos sonoros (diálogo, música e ruído), pois: uma percepção mais integrada do desenho de som nos permite compreender cada um dos elementos sonoros em suas relações um com os outros, assim como a sua contribuição acumulativa para a narrativa. 9 A apreensão do silêncio como elemento pertinente da malha sonora do filme, revela a maneira como ele é construído e trabalhado contemporaneamente nas produções audiovisuais, possibilitando-‐nos compreender assim seus códigos e sua capacidade de significar tanto quanto a presença (ou melhor, a audibilidade) de sons no filme. Próximas às propostas de Thebérge, e dos outros autores, o silêncio é observado aqui conforme a função estrutural que desempenha em “A erva do rato” e “Cléopatra”, ambos do diretor Julio Bressane. Conclusão O resultado de uma análise estendida sobre o silêncio no cinema, atenta à sua construção e à relação que estabelece com os outros elementos com quem interage, revela a sua participação enquanto artifício narrativo capaz de fornecer sentidos específicos que influenciarão na leitura sobre o filme. Torna-‐se claro o desempenho que a ausência de sons no cinema contemporâneo pode alcançar dentro de um texto fílmico, visto o impacto que a suspensão sonora acarreta na fruição da recepção. A edição e a mixagem podem construir o silêncio mediado por inúmeros elementos sonoros, compondo a trilha sonora para recriar sua sensação de vazio através de outros 9 (BECK; GRAJEDA. 2008. p. 5) Trecho original: “a more integrated sense of sound design allows us to understand each of the sonic elements in their relation to one another as well as their cumulative contribution to the narration”. 6 sons, uma vez que, absoluto, o silêncio viria de encontro ao princípio clássico do cinema dominante e sua busca pela ilusão e identificação. É desta forma que, em decorrência da suspensão que assume na narrativa do cinema, o silêncio alcança significados e propõe sentidos à interpretação. Embora seja observada sua recusa e negação por parte da cultura ocidental como um todo, foi evidente a sua retomada enquanto componente de discussões e obras ao longo do século XX, como nos mostrou Cage e Fernando Morais da Costa. Neste sentido, o silêncio obtém, por vezes, o espaço necessário em trilhas sonoras para agregar informações ao texto, se libertando de uma presença esvaziada ou insignificante. O cinema encontra no silêncio uma ferramenta que pronuncia tanto quanto qualquer som de um filme, e pode transformar a escuta de sua audiência. Como pretende apontar esta pesquisa, a impressão silenciosa no cinema origina por vezes o choque que tem efeito sobre a atenção dos que assistem e ouvem as imagens em um estado “silencioso”. Em uma primeira análise sobre a trilha sonora de “A erva do Rato”, conforme a tabela abaixo ilustra, uma sequência de aproximadamente trinta e cinco minutos foi analisada. Neste recorte, o filme permanece em “silêncio” por cerca de vinte e seis minutos; o diálogo e qualquer possibilidade de música são negados, sendo ouvidos apenas os ruídos diegéticos que a ação das personagens produz. Estatisticamente, a sequência analisada permanece em “silêncio” (sem voz e sem música) em setenta e quatro por cento de sua duração. Trilha sonora com diálogo Tempo (aprox) (minutos) 9 minutos Porcentagem (%) 26 Total (minutos) sem diálogo 26 minutos 74 35 com música 7 minutos 20 sem música 28 minutos 80 35 7 Tabela 1 – Análise da ocorrência do silêncio em trecho10 de A Erva do Rato. Durante este intervalo, somos pautados sonoramente apenas pelos ruídos diegéticos, situação que rompe com o hábito que temos da voz e da música presente para guiar nossa interpretação. Órfão, o espectador se confronta com uma maneira diferente de perceber o texto, sendo deslocado o seu engajamento com o filme. Em Cleópatra, uma primeira análise voltada ao silêncio em duas sequências cuja soma total é de 28 minutos apresenta os seguintes dados: 20 minutos sem diálogo e 8 minutos com diálogo; 17 minutos sem música e 11 minutos com música. Neste caso, ainda ocorre a suspensão dos ruídos diegéticos por aproximadamente dois minutos, minando a ideia de oposição ao silêncio absoluto na narrativa cinematográfica. Trilha sonora com diálogo Tempo (aprox.) (minutos) 8 minutos Porcentagem (%) 29 Total (aprox.) (minutos) sem diálogo 20 minutos 71 28 com música 11 minutos 39 sem música 17 minutos 61 28 Tabela 2 – Análise da ocorrência do silêncio em dois trechos11 de Cléopatra. Do mesmo modo, em diversos momentos do filme ocorre a supressão de elementos sonoros lingüísticos e simbólicos que dá lugar ao estado silencioso das cenas, O deslocamento que resulta da “ausência” de sons possibilita ao observador outros modos de engajamento com o texto fílmico. 10 -‐ Trecho: 23’:30” até 0:58’:20”. -‐ Trechos 01:12’:50” até 01:23’:05” e 01:32’:00” até 01:50’:00”. 11 8 Acostumado de modo geral com a predominância da voz na trilha sonora do cinema, o filme abre espaço para que a cena construa a sua significação além do recurso da fala. As personagens não deixam de interagir entre si, dando seguimento à ação na cena, porém o campo sonoro fornece apenas os ruídos diegéticos que “sobram” de suas representações. É evidente que o acompanhamento da cena por uma banda sonora carregada pela fala das personagens ou por música estabeleceria significações diferentes da alcançada no caso descrito acima, fato incentivador de análises sobre a atuação narrativa que o “vazio” sonoro cinematográfico pode desempenhar no cinema. Acostumados com trilhas sonoras carregadas, o silêncio funciona estruturalmente na narrativa ao transformar a nossa percepção. Ocasiona o “estalo” que “acorda” o espectador para a cena e desloca o sentido narrativo da sequência, resultado da tensão sonora promovida pelo vácuo que nos saltam aos ouvidos e, conseqüentemente, à mente, possibilitando outras condições de escuta e de interpretação. Referências bibliográficas A ERVA DO RATO. Direção: Júlio Bressane. Produção: Júlio Bressane e Marcelo Ludwig Maia. Rio de Janeiro: República Pureza Filmes, 2008. 82 min. ANTUNES, J. Silêncio. In: OPUS – Revista da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-‐Graduação em Música. Rio de Janeiro: ANPPOM, Ano 6, n° 6, 1999. ISSN: 1517-‐7017. BECK, J. The sounds of “Silence” -‐ Dolby Stereo, Sound Design and The Silence of the Lambs. In: Lowering the boom – Critical Studies in Film Sound. BECK, J.; GRAJEDA, T. University of Illinois Press: 2008. p. 69-‐83. BECK, J.; GRAJEDA, T. The future of Film Sound Studies. In: Lowering the boom – Critical Studies in Film Sound. BECK, J.; GRAJEDA, T. University of Illinois Press: 2008. p. 2-‐20. BORDWELL, David e THOMPSON, Kristin. Fundamental Aesthetics of Sound in the Cinema. In: WEIS, Elizabeth e BELTON, John. (eds): Film Sound: Theory and Practice. New York: Columbia University Press, 1985. (eds, p. 181 a 199). O’RAWE, D. The great secret: silence cinema and modernism. In: Journal Screen– London. Londres: Oxford University Press, 2006, p.399-‐46. 9 REVILL, D. 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