Liberdade Viva da Curva Leônidas José de Oliveira* Elizabeth Harris, em seu delicioso livro Le Corbusier, riscos brasileiros, agregou as 10 conferências proferidas pelo arquiteto em Buenos Aires, resumindo suas experiências latino-americanas, descrevendo também o orgulho paternal do mestre europeu pelos jovens discípulos brasileiros, unidos todos no mesmo objetivo: o de abrir os caminhos para uma nova arquitetura, apropriada aos novos tempos. Assim dizia Le Corbusier: “(...)compreendi na terra desses irmãos, separados de nós pelo silêncio de um oceano, os escrúpulos, as dúvidas, as vacilações e as razões que motivam suas manifestações e tenho confiança no futuro. Debaixo de semelhante luz, a arquitetura nascerá”. Igreja São Francisco de Assis – Foto: Divanildo Marques No grupo que começava a desenvolver essa nova arquitetura no Brasil, sob a tutela de Lúcio Costa, estava Oscar Niemeyer. Esse grupo da modernidade brasileira, da literatura às artes plásticas, tinha como paradoxo o olhar europeu resistente e a necessidade reiterada de romper com seus paradigmas, na corrente oposta, na busca pela identidade nacional. Tal propósito foi alcançado. Desenvolveu-se aqui uma forma arquitetônica tipicamente brasileira, aflorada na Pampulha, em 1942-43. Essa invenção é reconhecida também pelo próprio Niemeyer, que registrou no painel instalado na Casa do Baile: Pampulha foi o início de tudo, Brasília começa aqui. Essa novíssima arquitetura teria ainda o traço barroco da curva reinventada no concreto armado, sua grande matriz, igualmente curvilínea, resultando na legitimidade da arquitetura mineira. E, em Minas, é justamente o barroco que desperta a memória e favorece o processo de reconhecimento do nosso patrimônio e das nossas identidades. Ouro Preto Foi luz para os modernos. Casa do Baile - Foto: Divanildo Marques O tempo que separava essa cidade da época moderna foi tratado como senha de identidade. O barroco é que marca também nossa ideia de urbanidade, ruas tortuosas entre montanhas onde se desenvolve a mansidão desperta do caráter mineiro. A Pampulha significou igualmente o rompimento com os postulados de Le Corbusier, seu grande inspirador, sobretudo no que se refere a essa primazia da curva sobre o ângulo reto. Assim diria Niemeyer sobre a Pampulha: “O projeto me interessava vivamente. Era a oportunidade de contestar a monotonia que cercava a arquitetura contemporânea, a onda de um funcionalismo mal compreendido, que castrava dos dogmas da forma e função que surgiam, contrariando a liberdade plástica que o concreto armado permitia. A curva me atraía. A curva lineal e sensual que a nova técnica sugeria e as velhas igrejas barrocas lembravam (..)”. Na Igreja da Pampulha, esse barroco curvo é revisitado de forma plena, sem, contudo, esquecer a punção moderna e a sua crítica metafórica explicitada pela forma espermatozoidal de Ceschiatti no confessionário, que aponta indubitavelmente para a fecundidade do altar. Era o símbolo se juntando à moderna arquitetura em contraposição a racionalidade de sua origem: a arquitetura purista da Bauhaus. Igreja São Francisco de Assis – Foto: Sérgio Freitas A arquitetura racionalista envereda, portanto, para outro caminho, o simbólico, na forma e na renovada comunhão entre a arquitetura e as artes plásticas. Completa Niemeyer: “E lá está, a desafiar os eternos contestadores, a pequena igreja, com suas curvas harmônicas e variadas, o cassino, o clube, o restaurante. Este último, com uma marquise a cobrir, sinuosa, as mesas ao ar livre, como a lembrar que a curva pode ser bela, lógica e graciosas se bem construída e estruturada”. O restaurante, lugar que hoje conhecemos como a Casa do Baile, complementa e se expande para o espaço exterior, com a criação de uma arquitetura nacional específica e distinta, fluida e lírica, de grande riqueza escultórica, que, em analogia, a ele integra as formas também curvas do lago. Ao completar 70 anos – o conjunto foi oficialmente inaugurado num domingo, dia 16 de maio de 1943; a data pode ser comprovada pelas cópias dos jornais Estado de Minas e Folha de Minas, ambos de terçafeira,dia 18/5/1943 -, o conjunto arquitetônico da Pampulha mostra o protagonismo de ter sido a criadora de um marco na arquitetura genuinamente brasileira. A ação conjunta de Oscar Niemayer, Cândido Portinari, Roberto Burle Marx e tantos outros reinventou a forma, sem, contudo, desprezar a história, postura inovadora da modernidade tipicamente nacional. Nela convivem pintura e azulejos, jardins sensuais, arquitetura cenográficas. Casa do Baile - Foto: Ronaldo Guimarães Porta de Entrada A Pampulha significou a capacidade de interpretar com êxito os princípios da arquitetura moderna tradicional moderna tradicional e mais, foi capaz de influenciar na arquitetura mundial. Essa característica se aproxima do título de Patrimônio da Humanidade, uma vez que, depois dela, a arquitetura moderna e mundial também se reinventaria e levaria até mesmo o seu criador, Le Corbusier, a aproximar-se da metáfora e da forma curva e simbólica, fato que se expressaria, mais tarde, na Capela de Notre Dame du Haut, em Ronchamp, em 1950, na França e na luz simbólica do mosteiro de La Tourett, perto de Lyon, em 1953. Como Patrimônio da Humanidade, a Pampulha será a porta de entrada de Minas e elemento fundamental para compreender nossa cultura. Museu de Arte da Pampulha – Foto: Ronaldo Guimarães As arquiteturas singulares que consagram Niemayer como o arquiteto brasileiro por antonomásia e colocam a Pampulha como a responsável pela eclosão de uma arquitetura moderna, oscilando entre a imaginação fria, mas eficaz da forma ortogonal e a sensibilidade considerada como a autêntica beleza, a da paisagem natural, a geometria das curvas e das irregularidades. Essa vertente de compreensão da cultura local nos faz lembrar Gilberto Freyre, que explicou os conceitos da formação do Brasil, desde suas origens coloniais, por meio da fusão da ordem formal da casa-grande (geométrica) com a irregularidade desordenada e viva da senzala, ou seja, do regular como norma e do irregular como sistema. Da modernidade ríspida europeia à liberdade viva da curva. À arte de Niemeyer se junta o dinamismo do grande empreendedor Juscelino Kubitschek, um dos maiores impulsionadores da era republicana, representante do momento que sintetiza um tempo paradigmático para todos nós de ousadia e vanguarda. *Leoônidas José de Oliveira é presidente da Fundação Municipal de Cultura.