Homilia do Provincial do Brasil, P. Carlos Palacio, na Eucaristia de ação de graças e oração pelo Papa Francisco Rio de Janeiro, Igreja Santo Inácio, sábado 16 de março de 2013 Liturgia do 5º Domingo da Quaresma - Ano C 1ª leitura: Is. 43, 16-21; 2ª leitura: Fl 3, 8-14; Evangelho: Jo 8, 1-11 Em pouco menos de um mês passamos, como comunidade eclesial, por intensas e profundas experiências: a renúncia de Bento XVI, a eleição de um Papa não europeu e o primeiro latino-americano, e a surpresa do primeiro jesuíta na história a ser eleito Papa. Que quer nos dizer o Senhor com esses acontecimentos? Como ler e interpretar estes 'sinais'? A palavra de Deus na liturgia de hoje ilumina e nos abre o sentido destes densos eventos. 1. Até faz pouco tempo, aos olhos da sociedade e do mundo, a Igreja se encontrava na situação dessa mulher de que nos fala o evangelho: surpreendida em adultério, acusada de pecado, jogada na praça pública e exposta ao escárnio de todos: pelo escândalo da pedofilia e dos abusos sexuais; pela revelação de intrigas intestinas e da luta pelo poder; pela falta de transparência na administração das finanças, etc. sem falar das críticas vindas da discussão de temas candentes que afetam as pessoas e a sociedade de modo geral: o tratamento eclesial dos que não puderam sustentar o casamento; a união civil de pessoas do mesmo gênero; as diversas formas de ameaça à vida, etc. Todos estavam prestes a atirar pedras sobre a Igreja, como sobre a Geni da canção de Chico Buarque. Essa situação pesava sobre a Igreja e para cada um de nós era fonte de sofrimento e de desânimo. 2. Mas era essa a última palavra de Deus sobre essa mulher e sobre essa Igreja? A resposta a essa pergunta nos é dada pelo gesto misterioso e carregado de sentido do ‘inclinar-se’ de Jesus. Por duas vezes o texto nos diz que 'Jesus se inclinou'. Inclinar-se é o movimento da encarnação. Ao se encarnar, Jesus se abaixa, se aproxima, se deixa tocar pela fragilidade humana, até as suas entranhas se comoverem. É descendo ao fundo da nossa miséria que ele pode ver e resgatar o que há de melhor nessa mulher. A pressão dos acusadores continuava. À primeira vista, a resposta a todos esses problemas estava ao alcance da mão, parecia evidente: trata-se apenas de aplicar a lei; e a lei ordena que seja apedrejada. Jesus, porém, erguendo-se, formula uma equação surpreendente: quem não estiver implicado de alguma forma com o mal pode começar a atirar. Essa palavra de Jesus abala a aparente segurança das respostas já prontas. São tão evidentes as soluções que se apresentam para problemas tão complexos como os acima mencionados? Quem pode afirmar não estar implicado de alguma forma e condicionado na busca de soluções para esses problemas? É possível julgar sem sentir-se também posto em questão? E Jesus se 'inclina' novamente sobre essa situação de pecado, numa espécie de abraço infinito, para curar e re-erguer essa pecadora que é também a Igreja. Ao se erguer de novo, tinham desaparecido os acusadores. A mulher, contudo, continuava prostrada, à espera de uma palavra que lhe devolvesse a dignidade re-erguendo-a: ‘eu também não te condeno’, diz-lhe Jesus; levanta-te! Acredita! Podes recomeçar!’ 3. A eleição do Papa Francisco é o gesto-resposta de Deus à situação de prostração, de abandono e de desamparo da Igreja nesse momento histórico. É uma resposta que nos surpreendeu. Primeiro pelo resultado inesperado do conclave, e a seguir pelo modo simples, frágil e desarmado do Papa Francisco desde a sua primeira manifestação. Ainda estamos saturados pela avalanche de notícias e informações que os meios de comunicação não cessam de despejar sobre nós. A cada dia aparecem traços novos e surpreendentes do Papa. São gestos fortes, capazes de comover as pessoas comuns, homens e mulheres, i.é. seres humanos, católicos ou não. Qual é a razão da sua força? O experimentado até agora nos permite condensar a novidade do Papa Francisco em três aspectos fundamentais: o seu estilo simples e humano, a naturalidade da sua profundidade espiritual e uma aproximação da Igreja ao mundo. a) O seu estilo simples e humano chamou a atenção desde o início e cativou os mais diversos grupos de pessoas, desde o cristão simples, até os teólogos mais críticos, passando pelos homens e mulheres comuns da rua. São gestos simples, muito humanos, plenamente 'normais': pagar a conta no hotel, voltar à casa de ônibus com os cardeais, fazer ele mesmo uma ligação para falar com o nosso Pe. Geral, a visita inesperada à Basílica Santa Maria Maior ou a espontaneidade com que se dirigiu hoje de manhã a mais de seis mil jornalistas, etc. Esse modo de ser só se tornou possível com a renúncia de Bento XVI. Ao renunciar, Bento XVI devolveu à figura do Papa os seus contornos humanos: ele é também um ser limitado, condicionado de muitas formas, fragilizado pela idade, capaz de alegrar-se e de sofrer como qualquer ser humano. Ora, a exaltação mítica da função corre o risco de sobrepor-se à pessoa do Papa e anulá-la. E quando a pessoa desaparece por trás da função, se torna insignificante em si mesma. A figura do Papa tinha uma aura de sagrado, algo deslumbrante, cheio de fascínio, mas distante dos problemas concretos e da vida cotidiana das pessoas. No Papa Francisco a pessoa aparece em primeiro plano e devolve vida e calor humano à função. Essa pode ser a razão pela qual os gestos simples do Papa despertam tanto ânimo e esperança nas pessoas. ‘Um Papa humilde’, estampa um jornal na manchete principal. ‘É um dos nossos’, exclama Angélica, jovem italiana de 30 anos. O caminho da Igreja, havia dito muitos anos atrás Paulo VI, é a humanidade. Francisco parece ter encontrado esse caminho. Por meio da sua simplicidade, proximidade e ternura, Deus está chegando ao coração das pessoas. É lá que Ele nos interpela: no mais profundo de cada um, onde, como qualquer ser humano - membros ou não da Igreja - nos encontramos com a nossa 'humanidade'. E é lá que nos diz: Vive o que estás chamado a viver! b) Com esse modo de ser o Papa Francisco está acenando para todos que o caminho da Igreja não é a ostentação, a grandiosidade ou o poder. A linguagem da Igreja tem que ser a linguagem simples da vida, como a de Jesus nas parábolas do evangelho. Essa referência ao evangelho está inscrita na escolha do nome, como ele mesmo explicou hoje de manhã na audiência aos jornalistas. 'Francisco' é uma referência ao evangelho sem glosa: o homem dos pobres, o homem da paz, o amante da criação. Ao escolher esse nome é possível que o novo Papa, como jesuíta, se tenha lembrado que a referência a Francisco de Assis esteve presente e teve um forte impacto no início do processo de conversão de Santo Inácio (cfr. Autobiografia n. 7). Na força dos gestos humanos do Papa Francisco transparece uma profundidade espiritual que tem suas raízes no evangelho. O centro da Igreja, o coração da Igreja é Cristo, não o sucessor de Pedro. Sem essa referência fundamental nem o Papa nem a Igreja teriam razão de existir. Palavras contundentes, pronunciadas na alocução aos jornalistas, mas plenamente coerentes com o que diz Paulo da sua experiência (segunda leitura de hoje). O evangelho é o caminho de vida e de evangelização para a Igreja. c) A Igreja, portanto, não existe para si mesma, não tem em si mesma a razão de ser: existe para ser enviada, a sua finalidade é o serviço do evangelho. Com seu modo de ser, simples e informal, o Papa Francisco começa a tender pontes entre a Igreja e o mundo. A força dos seus gestos vai além da quebra do protocolo; com eles o Papa faz sentir e experimentar às pessoas que a Igreja se aproxima, se inclina e quer dialogar com elas, escutando primeiro as suas angústias e preocupações, e depois anunciandolhes a boa notícia de conforto que vem do evangelho. Algo disso experimentaram hoje os mais de mil jornalistas de todo o mundo durante a primeira audiência com o Papa no Auditório Paulo VI. A sua reação calorosa é a prova de que as palavras do Papa, ao reconhecer a crescente importância dos meios de comunicação e o ingente trabalho por eles realizado durante a cobertura do Conclave, chegaram aos corações. Depois de desejar-lhes o melhor para eles e para as suas famílias, o Papa terminou com estas palavras de enorme sensibilidade e respeito pelas diferenças, neste caso, religiosas: ‘tinha prometido dar-lhes minha bênção, disse o Papa; mas muitos de vocês não pertencem à Igreja Católica; outros são não crentes; por isso dou a cada um a bênção em silêncio, respeitando a consciência de cada um, mas sabendo que todos são filhos de Deus. Que Deus vos bendiga!’. Com o Papa Francisco, queridas irmãs e irmãos, Deus está abrindo para a Igreja neste momento histórico um caminho novo, ‘uma passagem no mar e um caminho entre águas impetuosas’, como nos dizia a primeira leitura de Isaías, e nos convida a olhar para o futuro com esperança: ‘não relembreis coisas passadas; não olheis para fatos antigos. Eis que eu farei coisas novas, que já estão surgindo: acaso não as reconheceis?’. Que assim seja!