Análise de obras literárias vidas secas Graciliano Ramos Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700 CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP www.sistemacoc.com.br SumÁrio 1.Contexto social e HISTÓRICO..................................................... 7 2.Estilo literário da época............................................................ 9 3.O AUTOR.................................................................................................. 12 4. A obra..................................................................................................... 14 AOL-11 5.EXERCÍCIOS............................................................................................ 34 vidas secas Graciliano Ramos Vidas secas 1. Contexto social e HISTÓRICO Na história do Brasil, o período compreendido entre os anos de 1894 e 1930, aproximadamente, é chamado de República Velha, “a política do café com leite”, porque ocupava a Presidência da República ora um governo mineiro, ora um paulista, o que revela a importância dada à lavoura cafeeira e à pecuária. A manutenção desse regime dependia, sobretudo, do equilíbrio entre a produção e a exportação de café. A elite agropecuária brasileira delegava ao Estado o papel de comprador dos excedentes para garantir o preço em face às oscilações do mercado. Exemplo típico dessa política foi o chamado Acordo de Taubaté, em 1906, segundo o qual São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais se comprometiam a retirar do mercado os excedentes da produção cafeeira para garantir o nível dos preços. AOL-11 A sociedade brasileira, no início do século XX, sofreu transformações graças ao processo de urbanização e à vinda dos imigrantes europeus para a região Centro-Sul do país. Entretanto, ao mesmo tempo em que principiou o processo de industrialização na região Sudeste, a mão de obra desqualificada dos ex-escravos foi marginalizada, e esses se deslocaram para a periferia e para os morros; a cultura canavieira do Nordeste entrou em declínio, pois não tinha como competir com o apoio dado pelo governo federal à “política do café com leite”. No final do século XIX e início do século XX, duas realidades coexistiam no Brasil: de um lado, a urbanização da região Centro-Sul, com sua consequente industrialização, e, de outro, o atraso das regiões Norte e Nordeste. E um terceiro fator, ainda mais grave, somava-se a esse quadro: as oligarquias rurais, com seus arranjos políticos, não representavam os novos estratos 7 Graciliano Ramos socioeconômicos. O resultado disso foi o surgimento de um quadro caótico, que teve seu término com a chamada Revolução de 1930 e o Estado Novo de Getúlio Vargas. Na Bahia, ocorreu a chamada Guerra de Canudos; em Juazeiro, no Ceará, o fenômeno do jagunço e a política do padre Cícero; os movimentos operários, em São Paulo; a criação do Partido Comunista; o tenentismo, que teve seu ápice na Coluna Prestes, combatida por Arthur Bernardes e Washington Luís. É claro que esses conflitos ocorreram em tempos e locais diversos, entre 1894 e 1930, parecendo exprimir, às vezes, problemas bem localizados. Entretanto, no conjunto, revelaram a realidade de um país que se desenvolvia à custa de graves desequilíbrios. A queda da Bolsa de Nova York em 1929 e o movimento tenentista colocaram fim à República Velha, com a vitória na chamada Revolução de 1930, dando início ao chamado Estado Novo ou Era Vargas. 8 Vidas secas AOL-11 2.Estilo literário da época 9 Graciliano Ramos Os intelectuais brasileiros da década de 1920 não ficaram alheios a todas essas transformações sociais e históricas listadas anteriormente, até porque, somados a elas, eventos importantes na esfera artística vinham acontecendo, como a publicação de livros como Os sertões, de Euclides da Cunha, Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, e Canaã, de Graça Aranha, os quais chamaram a atenção para aspectos da realidade do país até então não tematizados pela literatura brasileira, ao menos da forma como o fizeram seus autores nessas três publicações. Vivia-se também, na Europa, a ebulição artística internacional provocada pelos movimentos vanguardistas, que consolidaram em sua esteira as teorias futurista, surrealista, cubista e dadaísta. No âmbito da língua portuguesa, surgia oficialmente o Modernismo português em 1915. Dois anos depois, no Brasil, Anita Malfatti realizava sua famosa exposição de telas inspiradas no Expressionismo alemão, o que provocou a irada reação de Monteiro Lobato na forma de seu famoso artigo Paranoia ou mistificação? A soma de todos esses fatos – sociais e históricos – acabou por gerar determinadas reações e condições no seio da incipiente intelectualidade brasileira. A partir daí, foram necessários alguns passos para mudar os rumos seguidos até então, tanto pelo pensamento sociológico nacional quanto pela arte brasileira. Essas reações aconteceram de tal forma que o Modernismo brasileiro, independentemente do rótulo pelo qual viesse a ser nomeado, estava fadado a ser aquilo em que se transformou naturalmente: maturidade e emancipação da arte brasileira. Isso se deu principalmente por ter sido o Modernismo um olhar novo e perscrutador sobre a realidade social do país, a qual começou a ser artística e detidamente observada, seja com benevolência por alguns seja com rigor crítico por outros. Essa realidade passou, então, a ser considerada com a importância que de fato tem: essência do país. Foi esse olhar, essa análise, que gerou a rebeldia contra os padrões da arte europeia, a qual, em alta porcentagem, ainda tinha seus traços facilmente identificáveis na arte brasileira. Esse olhar fez com que os modernistas da primeira hora tentassem identificar a verdadeira cultura nacional, para fazer dela a autêntica matéria-prima da sociologia e arte nacionais, e, no passo seguinte, propusessem e praticassem uma arte de ruptura com os modelos anteriores. Foi esse novo olhar que nos apresentou o homem sertanejo da caatinga e do norte de Minas com sua particular visão de mundo; o dos canaviais e dos engenhos; o da briga pelo cacau; o caboclo dos cafezais e o das “rocinhas” do interior paulista; o dos imigrantes italianos de São Paulo; o vivente dos pampas, no seu trabalho de campeador ou às voltas com as lutas fronteiriças; o homem da periferia das grandes cidades. Além disso, mostrou-nos, ainda que ficcional10 Vidas secas mente, nossas lutas históricas regionais, o sentimento nacionalista e, sobretudo, o jeito de ser brasileiro de cada um, na fala peculiar, nas tradições e nas práticas quotidianas a que chamamos de regionalismo. E esse novo olhar nos revelou, entranhados nas frinchas e nos poros desses temas, a nossa sensibilidade e os nossos sentimentos, seja como indivíduos seja como coletividade. É esse vastíssimo painel que resultou da renovação da arte brasileira, painel que se constitui no grande legado modernista ao país, a ponto de esse movimento ser considerado, legitimamente, como a independência da arte do Brasil. 2ª GERAÇÃO DO MODERNISMO (1930-1945) Em literatura, o período entre 1930 e 1945 caracteriza-se pela tendência do posicionamento ideológico, político e social dos intelectuais brasileiros. A rebeldia estética da primeira fase modernista cedeu lugar à literatura socialmente comprometida, sobretudo no que diz respeito à prosa de ficção. A revolução de 1930, o declínio e a dissolução das estruturas sociais e econômicas do Nordeste, a imigração nas estradas do Sul apareciam nos novos estilos de ficção, caracterizados pela observação real e direta dos fatos. Euclides da Cunha e Lima Barreto, do Pré-Modernismo, não eram mais exceções, mas sim os primeiros a abordar o elemento regional/social e, como tal, ganharam sucessores. As elites urbanas e seus intelectuais analisavam e procuravam compreender o país nos seus novos aspectos. O campo de visão em que o artista atuaria se ampliava extremamente e passava a lhe oferecer uma gama jamais vista quanto à variedade temática e à atitude filosófica, política, formal e psicológica, sejam individuais ou coletivas, resultando em ensaio, teatro, prosa e poesia em quantidade e variedade. Diante de tal complexidade, a prosa passou a ser o gênero mais cultivado, principalmente na vertente regionalista, com nas produções de Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Jorge Amado, Raquel de Queirós, José Américo de Almeida e José Lins do Rego. Além do aspecto regional, usava-se o texto também para analisar ou denunciar injustiças sociais, como dificuldades com o trabalho, o meio, o abandono do cidadão por parte do Estado, resumindo tudo na falta de perspectiva de uma vida minimamente decente para o cidadão anônimo, modelo, aliás, ao qual se enquadra a temática de Graciliano Ramos, autor de Vidas secas. AOL-11 A preocupação com essas realidades foi tão intensa nesses autores que a linguagem literária evoluiu muito pouco, principalmente se considerarmos as propostas inovadoras da geração modernista de 1922, isso porque preocupações com a linguagem foram relegadas a segundo plano, haja vista que a essência do projeto artístico desses autores centrava-se nos planos social e histórico. 11 Graciliano Ramos 3.O AUTOR Graciliano Ramos nasceu em Quebrângulo, interior de Alagoas, em 27 de outubro de 1892. O mais velho dos 16 filhos de Sebastião Ramos e Maria Amélia Ramos passou a infância nas cidades alagoanas de Buíque, Viçosa e Palmeira dos Índios. Assim como o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999), Graciliano Ramos não possuía diploma universitário. Concluiu os seus estudos secundários em Maceió, mudando-se, logo em seguida, para o Rio de Janeiro, onde trabalhou em algumas redações de jornais, para depois voltar a Alagoas, fixando residência em Palmeira dos Índios, onde trabalhou no comércio do pai. Eleito prefeito da pequena cidade, cumpriu por dois anos o mandato, renunciando a ele por incompatibilidade política com o governo estadual. Casou-se com Maria Augusta Ramos, com quem teve quatro filhos. Ao enviuvar após sete anos de casamento, contraiu segundas núpcias com Heloísa de Medeiros. De volta a Maceió, foi perseguido, preso e levado para a Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Acusação: comunista. Nem ao menos filiado a algum partido de esquerda ele era. Dentro do presídio, demonstrou toda a sua revolta contra a ditadura do governo de Getúlio Vargas, escrevendo o romance autobiográfico Memórias do cárcere, magnificamente interpretado no cinema pelo ator Carlos Vereza. Libertado, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro. 12 Vidas secas Em 1951, foi eleito presidente da Associação Brasileira de Escritores, sendo reeleito no ano seguinte. Interessante foi a sua inclusão na literatura: foi descoberto pelo poeta e editor Augusto Frederico Schmidt (1906-1965), que lera os relatórios (nada convencionais) que Graciliano enviava ao governo de Alagoas quando prefeito de Palmeira dos Índios e não teve dúvidas de que ali estaria escondido um grande escritor. Indagado por Schmidt se não havia nada realmente literário engavetado, Graciliano mostrou-lhe o romance Caetés, obra de nítida concepção introspectiva. Surgia assim ao público um dos maiores prosadores da literatura brasileira. Certa vez, seu amigo José Lins do Rego (1901-1957) escreveu sobre o primeiro encontro deles: O tabelião de Mata Grande nos havia dito: os senhores vão encontrar em Palmeira dos Índios o homem que sabe mais mitologia em todo o sertão. O homem que sabia mitologia entendia também de Balzac, de Flaubert, de literatura, como se vivesse disto, sabia francês, inglês, falava italiano. (O Estado de S. Paulo, Dimensão de Graciliano, 24/4/05) Apesar de viver em precárias condições financeiras (foi inspetor federal de ensino), viajou pelo exterior, conhecendo os países comunistas, o que resultou na obra Viagem. Segundo Jorge Amado (1912-2001), ainda no artigo do Estadão, Graciliano parecia seco e difícil (diziam-no pessimista); entretanto, era terno e solidário, acreditava no homem e no futuro. Fumante inveterado, morreu vitimado pelo câncer em 20 de março de 1953, na cidade do Rio de Janeiro. AOL-11 Obras 1933 – Caetés (romance) 1934 – São Bernardo (romance) 1936 – Angústia (romance) 1938 – Vidas secas (novela) 1945 – Infância (memórias) 1944 – Dois dedos (literatura infantil) 1944 – Histórias incompletas (literatura infantil) 1947 – Insônia (contos) 1953 – Memórias do cárcere (memórias) 1954 – Viagem (relatos) 1962 – Alexandre e outros heróis (contos, contendo Histórias de Alexandre; A terra dos meninos pelados e História da República) 1962 – Linhas tortas (crônicas) 1962 – Viventes das Alagoas (memórias) 13 Graciliano Ramos 4.A obra 14 Vidas secas Vidas secas, uma novela desmontável? Romance, novela ou uma coletânea de contos? O próprio Graciliano Ramos, em Alguns tipos sem importância, uma das crônicas de seu livro Linhas tortas, depõe: Em 1937 escrevi algumas linhas sobre a morte duma cachorra, um bicho que saiu inteligente demais, creio eu, e por isso um pouco diferente dos meus bípedes. Dediquei em seguida várias páginas aos donos do animal. Essas coisas foram vendidas, em retalho, a jornais e revistas. E como José Olímpio (proprietário da Livraria José Olympio Editora) me pedisse um livro para o começo do ano passado, arranjei outras narrações, que tanto podem ser contos como capítulos de romance. Assim nasceram Fabiano, a mulher, os dois filhos e a cachorra Baleia, as últimas criaturas que pus em circulação. Portanto, Vidas secas é uma junção de treze* contos formando uma novela (ou romance, como disse o próprio autor), já que todos eles estão ligados entre si, sendo o primeiro (agora capítulo) uma espécie de apresentação das personagens. Nos demais, há capítulos especialmente feitos para cada componente da família (aí se inclui a cachorra Baleia), em que os outros viventes não passam de coadjuvantes, dando à obra um caráter novelístico. *Os capítulos (ou contos) de Vidas secas são: Mudança; Fabiano; Cadeia; Sinha Vitória; O menino mais novo; O menino mais velho; Inverno; Festa; Baleia; Contas; O soldado amarelo; O mundo coberto de penas; Fuga. Quanto às influências recebidas Vidas secas se enquadra na linha regionalista, introduzida, na literatura brasileira, pelo romancista romântico Franklin Távora (1842-1888) ao publicar, em 1876, O cabeleira, obra cujo assunto gira em torno do banditismo no Nordeste. Mas foi com romances regionalistas do Naturalismo que não só Vidas secas, mas vários romances da geração de 1930 – como, por exemplo, A bagaceira (José Américo de Almeida), O quinze (Raquel de Queirós), Pedra bonita (José Lins do Rego) e Seara vermelha (Jorge Amado) – mais se identificaram. Estamos falando de Dona Guidinha do Poço, de Manuel Oliveira Paiva (1861-1892) e, principalmente, de Luzia-homem, de Domingos Olímpio (1850-1906), obra em que a seca1 se faz presente, como podemos notar nesta passagem, cujo trecho se assemelha muito com Vidas secas: O sol repontava no horizonte, como um rubro e enorme disco, surgindo de um lago de oiro incandescente, quando o cortejo do êxodo se pôs em marcha, pela estrada da serra. AOL-11 Luzia percorreu, com enternecimento de saudade, os recantos da casa vazia, onde ficavam o pilão, o jirau da latada, a trempe de pedra, os tições extintos, enterrados sob 1 Entretanto, não houve escritor mais preocupado com as grandes secas nordestinas que Rodolfo Teófilo, romancista, pesquisador e cientista cearense, nascido na metade do século XIX, autor de História da seca do Ceará, Secas do Ceará, A seca de 1915, A fome, Secas e tipos, dentre outras. 15 Graciliano Ramos tulhas mornas de cinza, tristes vestígios dos habitantes que a abandonavam. Contemplou com lágrimas comovidas, o lar apagado, o terreiro, em torno, limpo, varrido, as árvores mortas, os mandacarus carcomidos até ao alcance dos dentes dos animais vorazes, a paisagem triste, coisas mudas e mestas, que se lhe afiguravam companheiros de infortúnio, dos quais se despedia para sempre. E partiu, conduzindo, à cabeça, uma pequena troixa. Quanto à linguagem Sobre seu ofício de escritor, Graciliano Ramos comentou: Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer... (O Estado de S. Paulo, Dimensão de Graciliano, 24/4/05). Podemos perceber que Graciliano Ramos era um escritor obsessivamente preocupado com a lapidação do texto. Não houve prosador da geração de 1930 mais direto, conciso e objetivo que Graciliano Ramos, mas nem por isso deixou de trabalhar a linguagem com seus recursos estilísticos. Até mesmo em Vidas secas, em que tudo é minguado – água, comida, dinheiro, diálogos, adjetivos –, podemos encontrar algumas figuras que quebram a seca narrativa de personagens secos vivendo em terra seca: símiles e onomatopeias são as mais utilizadas, isso porque as personagens são, a todo instante, comparadas a animais e, por vezes, à vegetação da região, além de balbuciarem, grunhirem, rugirem imitando cabras, bois, ventos em sons onomatopaicos. Abaixo selecionamos exemplos, aproveitando para também mostrarmos o interessante processo que Graciliano Ramos realizou em sua obra, animalizando as personagens humanas e humanizando a cachorra Baleia: Sinha Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Os calcanhares (de Fabiano), duros como cascos, gretavam-se e sangravam. Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos – e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera. Chape-chape. As alpercatas batiam no chão rachado. O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco. Entregue aos arranjos da casa, regando os craveiros e as panelas de losna, descendo ao bebedouro com o pote vazio e regressando com o pote cheio, deixava os filhos soltos no barreiro, enlameados como porcos. Estava escondido no mato como tatu. Duro, lerdo como tatu. Mas um dia sairia da toca, andaria com a cabeça levantada, seria homem. 16 Vidas secas Pôs-se a berrar, imitando as cabras, chamando o irmão (mais velho) e a cachorra. Debaixo dos couros, Fabiano andava banzeiro, pesado, direitinho um urubu. Olhou com raiva o irmão e a cachorra. Deviam tê-lo prevenido. Não descobriu neles nenhum sinal de solidariedade: o irmão ria como um doido, Baleia, séria, desaprovava tudo aquilo. Mas Graciliano Ramos encontrou espaço para criar imagens metafóricas e paradoxais impressionantes, quebrando um pouco a frieza de sua linguagem: O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. ... temendo que a nuvem se tivesse desfeito, vencida pelo azul terrível, aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente. O casal agoniado sonhava desgraças. Quanto ao foco narrativo Como bem observou o crítico literário Álvaro Lins, no posfácio Valores e misérias das vidas secas, presente na edição de Vidas secas, Graciliano Ramos, em seus três romances anteriores, Caetés, São Bernardo e Angústia, adota narradores em primeira pessoa: João Valério, Paulo Honório e Luís da Silva, respectivamente. Dessa forma, o romancista parece que se excluiu da responsabilidade sobre eles, largando-os à própria sorte, deixando-os com seus sofrimentos, suas angústias, seus traumas, como se nada disso fosse com ele. Em Vidas secas, não. Ao adotar um narrador em terceira pessoa, ainda mais onisciente, Graciliano deixa de lado a impessoalidade, passando a sofrer com a família (incluindo aí Baleia), daí não seria exagero dizermos que o narrador é o próprio Graciliano Ramos. Como as personagens, principalmente Fabiano, são monossilábicas, pouco se expressam pela fala, o autor lança mão do discurso indireto livre (em que há uma mistura da fala do narrador com a fala da personagem), fazendo com que a história deslanche (já que, de enredo mesmo, pouco há). Caso contrário, seria impossível o seu desenrolar. A seguir, três fragmentos, exemplos de discurso indireto livre: AOL-11 Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali de passagem, era hóspede. Sim senhor, hóspede que demorava demais, tomava amizade à casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro que os tinha abrigado uma noite. 17 Graciliano Ramos *** Estirou as pernas, encostou as carnes doídas ao muro. Se lhe tivessem dado tempo, ele teria explicado tudo direitinho. Mas pegado de surpresa, embatucara. Quem não ficaria azuretado com semelhante despropósito? Não queria capacitar-se de que a malvadez tivesse sido para ele. Havia engano, provavelmente o amarelo o confundira com outro. Não era senão isso. Então porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, dá-se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas as injustiças. Quanto aos temas Graciliano Ramos concebeu Vidas secas seguindo a linha proposta num encontro de regionalistas promovido por Gilberto Freire, no Recife, em 1926, e pelo romance A bagaceira (1928), de José Américo de Almeida. Nesse encontro, foram discutidos a seca e os problemas dela decorrentes. Vidas secas superou tudo o que já fora escrito sobre o tema. É interessante lermos a opinião do próprio Graciliano Ramos sobre esse tema, presente no texto A propósito da seca (e da retirada), incluído em sua obra Linhas tortas: Certamente há demasiada miséria no sertão, como em toda parte, mas não é indispensável que a chuva falte para que o camponês pobre se desfaça dos filhos inúteis. Não há dúvida de que a seca engrossou as correntes emigratórias que se dirigiram ao norte e ao sul do país, mas a seca é apenas uma das causas da fome, e de qualquer forma os nordestinos, em maior ou menor quantidade, teriam ido cortar seringa no Amazonas ou apanhar café no Espírito Santo ou em São Paulo. Que é que determina penúria tão grande no Nordeste? Por que a fuga da gente de lá? A verdade é que essas coisas são evidentes em consequência do elevado número de habitantes. Se excluíssemos a seca, ainda nos restaria bastante miséria, e ela avultaria mais que em Mato Grosso, por exemplo, onde, sendo muito espalhada, pode não ser percebida. O êxodo dos flagelados é um modo de falar. Não há êxodo. Mas sai muita gente. Sai gente de toda parte. Numa região, porém, onde se espremem quase dez milhões de indivíduos mal acomodados, o total dos que emigram deve ser considerável. Do Pará e de Goiás não poderiam sair muitos. Podemos citar como outros temas, presentes em Vidas secas: • a miséria (a penúria em que vive a família); • a arbitrariedade (ou o abuso de autoridade na figura do soldado amarelo); • a exploração no trabalho (a figura do fazendeiro explorador e do empregado explorado); • a corrupção governamental (na figura do cobrador de impostos da prefeitura); • a falta de perspectiva de vida (na figura do próprio narrador). 18 Vidas secas Regional x Universal Vidas secas é uma obra regionalista na medida em que o seu autor se utiliza de um espaço geograficamente delimitado: o sertão nordestino, com sua caatinga rala (mandacarus espinhosos, juazeiros de galhos pelados), com os utensílios típicos do sertanejo (cuia, aió, baú de folhas), com vestimenta característica da vaquejada (perneiras, gibão, guarda-peito e chapéu de couro com barbicacho), com as aves de arribação sobrevoando ao redor de bichos moribundos, com o seu rio intermitente. Entretanto, tudo isso vai dando lugar (em interessantes monólogos interiores) a anseios, frustrações, esperanças, sonhos e fantasias de uma família que se retira, fazendo com que a obra ganhe um caráter introspectivo e, consequentemente, universal. É interessante ressaltarmos que o que caracteriza cada membro da família é a solidão. Abaixo, dois trechos para exemplificar o regional e o universal. Note-se que o comportamento de Sinha Vitória, no segundo trecho, não difere em nada do de mulheres de outros lugares e outras épocas: Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da caatinga rala. *** Agachou-se, atiçou o fogo, apanhou uma brasa com a colher, acendeu o cachimbo, pôs-se a chupar o canudo de taquari cheio de sarro. Jogou longe uma cusparada, que passou por cima da janela e foi cair no terreiro. Preparou-se para cuspir novamente. Por uma associação, relacionou este ato com a lembrança da cama. Se o cuspo alcançasse o terreiro, a cama seria comprada antes do fim do ano. Encheu a boca de saliva, inclinou-se – e não conseguiu o que esperava. Fez várias tentativas, inutilmente. O resultado foi secar a garganta. Ergueu-se desapontada. Besteira, aquilo não valia. RESUMO DA OBRA Vidas secas é uma obra composta de treze capítulos, sendo que o primeiro e o décimo terceiro se encontram, formando o que chamamos de obra cíclica. AOL-11 Mudança A obra se inicia com uma pequena descrição (direta e objetiva) da caatinga nordestina: seca, de vegetação rala, com seus juazeiros de galhos pelados. Sob o sol escaldante, uma família de retirantes: Fabiano, Sinha Vitória, os seus dois filhos, a cachorra Baleia e um papagaio. O cenário é desolador: urubus sobrevoam o céu à espera da morte dos animais doentes. O menino mais velho, não aguentando mais a caminhada, põe-se a chorar, interrompendo a viagem: O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário – e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde. 19 Graciliano Ramos Fabiano, arrependido do pensamento, carregou o menino no “cangote”; jamais deixaria o filho ali, desprotegido. A fome apertara a tal ponto que Sinha Vitória não teve outra alternativa: matar o papagaio. E, para não ficar com a consciência pesada, encontrou uma desculpa plausível: de que servia um papagaio que não falava? Isso mostra o quanto a família não se comunica entre si. Não há conversas, só balbucios, grunhidos, rangidos, olhares e gestos. Chegam, finalmente, a uma fazenda abandonada e por ali se arrancham. A fome é disfarçada quando um preá é caçado por Baleia, que, ciente de sua condição de animal, iria ficar apenas com os ossos e, talvez, com o couro. Enquanto assam o preá, Fabiano sonha com o final da seca, vivendo feliz com a sua família: A fazenda renasceria – e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria o dono daquele mundo. Os troços minguados ajuntavam-se no chão: a espingarda de perdeneira, o aió, a cuia de água e o baú de folha pintada. A fogueira estalava. O preá chiava em cima das brasas. Uma ressurreição. As cores da saúde voltariam à cara triste de Sinha Vitória. Os meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores. A caatinga ficaria verde. Baleia agitava o rabo, olhando as brasas. E como não podia ocupar-se daquelas coisas, esperava com paciência a hora de mastigar os ossos. Depois iria dormir. Fabiano Fabiano cura bicheira, fabrica as alpercatas dos filhos, afasta as veredas com as mãos, assim como os seus antepassados. Lembra os sofrimentos passados antes de se apossarem da casa, sente-se homem por um momento, para depois considerar-se um bicho. Mas também sente-se orgulhoso por isso, é forte, gordo, fuma o seu cigarro de palha. Era vaqueiro e ninguém o tiraria dali. Mas cai em si e sabe que nada daquilo lhe pertence. Era descomposto pelo fazendeiro, que pouco aparecia e, quando aparecia, achava tudo ruim. Sabia que, a qualquer momento, podia ser despedido. Arrepia-se só em pensar na volta da seca. Volta e meia recorda-se de seu Tomás da bolandeira. Preocupa-se sempre com a educação dos meninos. É importante observar, ainda, que, só neste capítulo, Fabiano e sua família são comparados a cabra, rato, macaco, tatu e rês. Um dia... Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito... Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andar certo? Não sabia. Seu Tomás da bolandeira é que devia ter lido isso. Livres daquele perigo, os meninos poderiam falar, perguntar, encher-se de caprichos. Agora tinham a obrigação de comportar-se como gente da laia deles. Alcançou o pátio, enxergou a casa baixa e escura, de telhas pretas, deixou atrás os juazeiros, as pedras onde jogavam cobras mortas, o carro de bois. As alpercatas dos pequenos batiam no chão branco e liso. A cachorra Baleia trotava arquejando, a boca aberta. 20 Vidas secas Aquela hora Sinha Vitória devia estar na cozinha, acocorada junto à trempe, a saia de ramagens entalada entre as coxas, preparando a janta. Fabiano sentiu vontade de comer. Depois da comida, falaria com Sinha Vitória a respeito da educação dos meninos. Cadeia Fabiano vai à feira da cidade comprar mantimentos. Na bodega de seu Inácio, não se conforma em beber cachaça “batizada” (misturada com água, assim como o querosene). O bodegueiro fingiu não ouvir o seu protesto. Na rua, é convidado pelo soldado amarelo a jogar trinta-e-um. Não consegue dizer não e titubeia em sua resposta, soltando palavras desconexas: Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto etc. É conforme. Após perder dinheiro, sai sem se despedir. O soldado, tomando aquilo por ofensa, vai ao seu encalço. Encontra-o debaixo de um jatobá, tentando encontrar uma desculpa para explicar a Sinha Vitória a perda do dinheiro. Como não sabe mentir, com certeza gaguejaria e Sinha Vitória o conhecia muito bem. Após alguns empurrões do amarelo, Fabiano não se contém e xinga a sua mãe. O soldado leva-o preso (por desacato à autoridade) e Fabiano é surrado na cadeia. Sentindo-se humilhado e atormentado, sente ódio do soldado. Preocupa-se com a família (o que Sinha Vitória poderia estar pensando?). Fabiano passa a divagar (numa confusão de pensamentos) sobre si mesmo, sobre o governo personificado naquele soldado e na sua vingança (matando não o soldado, mas os seus superiores). Então porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, dá-se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas as injustiças. E o conhecidos que dormiam no tronco e aguentavam cipó de boi oferecia consolações: – “Tenha paciência. Apanhar do governo não é desfeita”. Mas agora rangia os dentes, soprava. Merecia castigo? – An! E, por mais que forcejasse, não se convencia de que o soldado amarelo fosse governo. Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar. O soldado amarelo estava ali perto, além da grade, era fraco e ruim, jogava na esteira com os matutos e provocava-os depois. O governo não devia consentir tão grande safadeza. AOL-11 Sinha Vitória Como já citado, o maior desejo de Sinha Vitória é uma cama de lastro de couro igual à de seu Tomás da bolandeira. Não suporta mais dormir na cama de varas. É, entre todas as personagens da família, a menos animalizada, apesar de sua linguagem gutural, soltando, de quando em quando, rugidos. Tem respeito por Fabiano e é a única pessoa que o compreende. Sempre cachimbando junto à trempe de fogo, devaneia ora desejando a cama de couro, ora 21 Graciliano Ramos lembrando o papagaio que matara para enganar a fome da família, ora na novilha raposa que “roubara” a galinha. Se vendesse as galinhas e a marrã? Infelizmente a excomungada raposa tinha comido a pedrês, a mais gorda. Precisava dar uma lição à raposa. Ia armar o mundéu junto ao poleiro e quebrar o espinhaço daquela sem-vergonha. Ergueu-se, foi à camarinha procurar qualquer coisa, voltou desanimada e esquecida. Onde tinha a cabeça? Sentou-se na janela baixa da cozinha, desgostosa. Venderia as galinhas e a marrã, deixaria de comprar querosene. Inútil consultar Fabiano, que sempre se entusiasmava, arrumava projetos. Esfriava logo – e ela franzia a testa, espantada, certa de que o marido se satisfazia com a ideia de possuir uma cama, de couro e sucupira, igual à de seu Tomás da bolandeira. O menino mais novo Sente orgulho do pai e quer ser um bravo vaqueiro como ele. O gibão, as perneiras, o guarda-peito e o chapéu de couro faziam de seu pai um homem invencível; só os outros é que não percebiam isso. E, para provar que poderia vir a ser como ele, monta num bode e cai estatelado no chão, provocando gargalhadas no irmão e a reprovação de Baleia, quando, na verdade, queria era ganhar a admiração deles. Retirou-se. A humilhação atenuou-se pouco a pouco e morreu. Precisava crescer, ficar tão grande como Fabiano, matar cabras a mão de pilão, trazer uma faca de ponta à cintura. Ia crescer, espichar-se numa cama de varas, fumar cigarros de palha, calçar sapatos de couro cru. Subiu a ladeira, chegou-se a casa devagar, entortando as pernas, banzeiro. Quando fosse homem, caminharia assim, pesado, cambaio, importante, as rosetas das esporas tilintando. Saltaria no lombo de um cavalo brabo e voaria na catinga como pé-de-vento, levantando poeira. Ao regressar, apear-se-ia num pulo e andaria no pátio assim torto, de perneiras, gibão, guarda-peito e chapéu de couro com barbicacho. O menino mais velho e Baleia ficariam admirados. O menino mais velho É curioso e, ao ouvir a palavra inferno, acha-a bonita, mas não sabe o que significa. Por isso, pergunta para Sinha Vitória, que lhe fala de um lugar com espetos quentes e fogueiras (não seria a própria região castigada pela seca?). Não estando satisfeito, procura pelo pai, mas este não lhe dá confiança. Volta e pergunta à mãe se ela já tinha ido lá. Recebe um cocorote como resposta. Revoltado, abraça de maneira apertada a cachorra (coisa de que Baleia não gostava, mas não se desvencilha para não magoá-lo). Sente falta de uma amizade e Baleia era o único vivente que lhe demonstrava simpatia. 22 Vidas secas – Inferno, inferno. Não acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim. E resolvera discutir com Sinha Vitória. Se ela houvesse dito que tinha ido ao inferno, bem. Sinha Vitória impunha-se, autoridade visível e poderosa. Se houvesse feito menção de qualquer autoridade invisível e mais poderosa, muito bem. Mas tentara convencê-lo dando-lhe um cocorote, e isto lhe parecia absurdo. Achava as pancadas naturais quando as pessoas grandes se zangavam, pensava até que a zanga delas era a causa única dos cascudos e puxavantes de orelha. Esta convicção tornava-o desconfiado, fazia-o observar os pais antes de se dirigir a eles. Animara-se a interrogar Sinha Vitória porque ela estava bem-disposta. Explicou isto à cachorrinha com abundância de gritos e gestos. Inverno Neste capítulo, toda a família está reunida diante do fogareiro, protegendo-se do frio. Lá fora, a chuva é torrencial. Fabiano tenta contar uma história, mas tropeça nas palavras, atrapalhando-se. Definitivamente, não se dava com elas. Mas ele está esperançoso, pois finalmente veria a caatiga verde com que tanto sonhava. Sinha Vitória está assustada com o temporal e imagina que pode acontecer uma enchente e destruir tudo. Quando não é a seca que a apavora, é a água. Mas o que mais impressiona é o sentido de família que Graciliano deu ao reunir todos eles em torno do fogão de lenha. Fabiano tornou a esfregar as mãos e iniciou uma história bastante confusa, mas como só estavam iluminadas as alpercatas dele, o gesto passou despercebido. O menino mais velho abriu os ouvidos, atento. Se pudesse ver o rosto do pai, compreenderia talvez uma parte da narração, mas assim no escuro a dificuldade era grande. Levantou-se, foi a um canto da cozinha, trouxe de lá uma braçada de lenha. Sinha Vitória aprovou este ato com um rugido, mas Fabiano condenou a interrupção, achou que o procedimento do filho revelava falta de respeito e estirou o braço para castigá-lo. O pequeno escapuliu-se, foi enrolar-se na saia da mãe, que se pôs francamente do lado dele. – Hum! hum! Que brabeza! Aquele homem era assim mesmo, tinha o coração perto da goela. AOL-11 Festa A família, desajeitada e sentindo-se ridícula em suas roupas (feitas por Sinha Terta) e sapatos apertados, encaminha-se para a cidade, para a festa de Natal. Todos se sentem inferiores às pessoas de lá. Fabiano tem verdadeiro pavor de multidão, de lugares aglomerados (por isso não assiste à missa), tendo sempre a impressão de que querem passá-lo para trás. Está preocupado em não perder de vista a mulher e os filhos. Tem a intenção de jogar, mas é proibido por Sinha Vitória. Vai até a uma tolda, bebe e, bêbado, revolta-se contra todos os que o exploram; sonha com soldados amarelos ameaçando-o, enquanto Sinha Vitória enxergava, através das barracas, a cama de seu Tomás da bolandeira, uma cama de verdade. 23 Graciliano Ramos Convidou a mulher e os filhos para os cavalinhos, arrumou-os, distraiu-se um pouco vendo-os rodar. Em seguida encaminhou-os às barracas de jogo. Coçou-se, puxou o lenço, desatou-o, contou o dinheiro, com a tentação de arriscá-lo no bozó. Se fosse feliz, poderia comprar a cama de couro cru, o sonho de Sinha Vitória. Foi beber cachaça numa tolda, voltou, pôs-se a rondar indeciso, pedindo com os olhos a opinião da mulher. Sinha Vitória fez um gesto de reprovação, e Fabiano retirou-se, lembrando-se do jogo que tivera em casa de seu Inácio, com o soldado amarelo. Fora roubado, com certeza fora roubado. Avizinhou-se da tolda e bebeu mais cachaça. Pouco a pouco ficou sem-vergonha. – Festa é festa. Baleia Este capítulo, o primeiro escrito por Graciliano como conto, trata da morte da cachorra. Fabiano, considerando-a doente (hidrófoba), é obrigado a sacrificá-la. Justifica tal atitude, temendo pela vida dos meninos. Sinha Vitória impede que os meninos presenciem a cena do sacrifício, porém luta para contê-los, principalmente o mais velho, que a tem como o seu melhor amigo. Sem atinar para o que está acontecendo (não entende por que Fabiano aponta para ela a espingarda), Baleia é ferida, não sente mais as pernas (e não as patas). Baleia tem vontade de morder Fabiano, mas logo descarta essa ideia, pois nascera ao lado dele, passara a vida ajudando-o na lida com o gado, sendo submissa a ele. Esse é o momento da obra em que Baleia é mais humanizada. Pouco antes de morrer, ela delira: Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes. Contas Fabiano é explorado pelo fazendeiro. Recebe como pagamento pelo trabalho de vaqueiro a quarta parte dos bezerros e a terça dos cabritos. Como Fabiano é um “sem-terra”, como tantos que vivem por aí, não tem onde colocá-los, por isso é obrigado a vendê-los ao próprio patrão: pouco a pouco o ferro do proprietário queimava os bichos de Fabiano. E quando não tinha mais nada para vender, o sertanejo endividava-se. Ao chegar a partilha, estava encalacrado, e na hora das contas davam-lhe uma ninharia. Mesmo sendo alertado por Sinha Vitória, que “tinha miolo” e sabia fazer contas, Fabiano não consegue se impor, aceitando a explicação do fazendeiro: a diferença era por causa dos juros cobrados. E em seu monólogo interior, revolta-se ainda mais ao recordar-se do cobrador de impostos da prefeitura, que lhe tirara dinheiro cobrando imposto sobre a carne que pretendera vender na cidade. Tenciona beber cachaça na bodega de seu Inácio, mas o incidente com o soldado amarelo vem à mente e, mais uma vez resignado, volta para casa. 24 Vidas secas Olhou as cédulas arrumadas na palma, os níqueis e as pratas, suspirou, mordeu os beiços. Nem lhe restava o direito de protestar. Baixava a crista. Se não baixasse, desocuparia a terra, largar-se-ia com a mulher, os filhos pequenos e os cacarecos. Para onde? Hem? Tinha para onde levar a mulher e os meninos? Tinha nada! O soldado amarelo Na caatinga, ao se deparar com o soldado amarelo que estava perdido, Fabiano tem a chance de vingar-se da surra que levara na cadeia: O rosto de Fabiano contraía-se, medonho, mais feio que um focinho. O soldado amarelo (amarelo agora de medo) é franzino e treme. Mas Fabiano decide não matá-lo, concluindo que não adiantaria nada. Por isso, ensina ao soldado o caminho a ser seguido. Devia sujeitar-se àquela tremura, àquela amarelidão? Era um bicho resistente, calejado. Tinha nervo, queria brigar, metera-se em espalhafatos e saíra de crista levantada. Recordou-se de lutas antigas, em danças com fêmeas e cachaça. Uma vez, de lambedeira em punho, espalhara a negrada. Aí Sinha Vitória começara a gostar dele. Sempre fora reimoso. Iria esfriando com a idade? Quantos anos teria? Ignorava, mas certamente envelhecia e fraquejava. Se possuísse espelhos, veria rugas e cabelos brancos. Arruinado, um caco. Não sentira a transformação, mas estava-se acabando. O suor umedeceu-lhe as mãos duras. Então? Suando com medo de uma peste que se escondia tremendo? Não era uma infelicidade grande, a maior das infelicidades? Provavelmente não se esquentaria nunca mais, passaria o resto da vida assim mole e ronceiro. Como a gente muda! Era. Estava mudado. Outro indivíduo, muito diferente do Fabiano que levantava poeira nas salas de dança. Um Fabiano bom para aguentar facão no lombo e dormir na cadeira. O mundo coberto de penas Curiosamente, este era o título que Graciliano Ramos deu à sua obra antes de vir a lume. AOL-11 As aves de arribação prenunciam a proximidade da seca. Elas estão bebendo a água do gado, que logo morrerá. Fabiano, mais uma vez, admira a esperteza da mulher, que o alertara de que as aves é que matavam o gado. Em contrapartida, elas servem de alimento para a família, abatidas pela espingarda certeira de Fabiano. Esqueceu a infelicidade próxima, riu-se encantado com a esperteza de Sinha Vitória. Uma pessoa como aquela valia ouro. Tinha ideias, sim senhor, tinha muita coisa no miolo. Nas situações difíceis encontrava saída. Então! Descobrir que as arribações matavam o gado! E matavam. Aquela hora o mulungu do bebedouro, sem folhas e sem flores, uma garrancharia pelada, enfeitava-se de penas. 25 Graciliano Ramos Fuga Início da nova retirada. Se pudesse, Fabiano ficaria ali com a sua família, mas é impossível: não há mais água, o gado está morrendo e, ainda por cima, está devendo ao seu patrão. Por isso deixam a fazenda de madrugada, fugindo. Fabiano está esperançoso. Chegando à cidade grande, tudo seria diferente: os meninos estudando e Sinha Vitória, finalmente, dormindo em sua tão sonhada cama de lastro de couro. Mas o narrador não compartilha dessa esperança: Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinha Vitória e os dois meninos. personagens No texto Alguns tipos sem importância, da obra Linhas tortas, Graciliano Ramos concluiu sobre as suas personagens: Todos os meus tipos foram constituídos por observações apanhadas aqui e ali, durante muitos anos. É o que penso, mas talvez me engane. É possível que eles não sejam senão pedaços de mim mesmo e que o vagabundo, o coronel assassino, o funcionário público e a cadela não existam. A família protagoniza a obra (sendo Fabiano a personagem de maior destaque). Não devemos nos esquecer, é claro, da cachorra Baleia. Quanto ao antagonista (aquele ou aquilo que faz mal ao protagonista), podemos considerar a seca como a principal oponente da família e, como coadjuvantes dela, o fazendeiro, o soldado amarelo, o cobrador de impostos da prefeitura, o bodegueiro etc. Portanto, nem sempre o antagonista é um ser, mas um fator, assim como na obra O cortiço, de Aluísio Azevedo (1857-1913), em que a miséria é a antagonista do cortiço (protagonista). A seguir, há caracterização de cada personagem de Vidas secas: Fabiano Chefe da família, Fabiano é um vaqueiro rude, de cara vermelha, olhos azuis, cabelo e barba ruivos que nem ao menos sabe quantos anos tem. Dos membros da família, é o mais animalizado (como vimos, é como cabra, cavalo, tatu), não consegue se expressar direito, por isso solta, a todo momento, grunhidos e sons monossilábicos como, por exemplo, “Ecô!”; “Hum! hum!”; “Bem, bem”, “An”. Não conseguindo se expressar de maneira coerente, tem receio de falar com as pessoas, pois elas poderiam interpretá-lo mal, ofendendo-o. Não sabe mentir e tem a imaginação fraca para inventar histórias. Assim, a única pessoa que o compreende é Sinha Vitória, já habituada com os seus gestos. 26 Vidas secas Fabiano, apesar de sua aridez, é preocupado com a educação de seus filhos e com o bem-estar de Sinha Vitória e, por não conseguir dar condições dignas à sua família, revolta-se contra todos e contra tudo. Tem a nítida certeza de que é passado para trás por todos, mas resigna-se. Não consegue se impor diante das pessoas: nem do bodegueiro seu Inácio, que “batiza” a cachaça e o querosene; nem do fiscal da prefeitura que lhe cobrou imposto sobre a carne que iria vender; nem do fazendeiro, que não é justo no acerto de contas; muito menos diante do soldado amarelo, que, abusando de sua autoridade, leva-o preso, ocasião em que é surrado injustamente. A surra que Fabiano levou na cadeia não foi muito diferente da levada por Graciliano Ramos quando menino, narrada por ele no capítulo Um cinturão, de seu livro Infância. Eis um trecho: As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. (...) Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que rogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo. (...) Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta, eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me, num desespero. (...) Foi esse o primeiro contacto que tive com a justiça. Abaixo, a surra levada por Fabiano, no capítulo Cadeia, de Vidas secas. Notem todo o seu inconformismo diante de tal brutalidade: AOL-11 Porque tinham feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bons costumes, sim senhor, nunca fora preso. De repente um fuzuê sem motivo. Achava-se tão perturbado que nem acreditava naquela desgraça. Tinham-lhe caído todos em cima, de supetão, como uns condenados. Assim um homem não podia resistir. – Bem, bem. Passou as mãos nas costas e no peito, sentiu-se moído, os olhos azulados brilharam como olhos de gato. Tinham-no realmente surrado e prendido. Mas era um caso tão esquisito que instantes depois balançava a cabeça, duvidando, apesar das machucaduras. 27 Graciliano Ramos Sinha Vitória Mulher de Fabiano. O seu maior desejo é poder deitar-se numa cama de lastro de couro, igual à de seu Tomás da bolandeira. Segundo Fabiano, a mulher tinha “tutano” para as contas, alertando-o sobre a exploração do patrão. Sinha Vitória é a própria personificação do sertão nordestino: quando a seca vai embora, ela fica taluda, os seios cheios, as nádegas volumosas, as pernas grossas e as bochechas vermelhas. Mas, quando a seca volta, Sinha Vitória emagrece, enruga e os seus seios ficam bambos. Se vendesse as galinhas e a marrã? Infelizmente a excomungada raposa tinha comido a pedrês, a mais gorda. Precisava dar uma lição à raposa. Ia armar o mundéu junto do poleiro e quebrar o espinhaço daquela sem-vergonha. Ergueu-se, foi à camarinha procurar qualquer coisa, voltou desanimada e esquecida. Onde tinha a cabeça? Sentou-se na janela baixa da cozinha, desgostosa. Venderia as galinhas e a marrã, deixaria de comprar querosene. Inútil consultar Fabiano, que sempre se entusiasmava, arrumava projetos. Esfriava logo – e ela franzia a testa, espantada, certa de que o marido se satisfazia com a ideia de possuir uma cama. Sinha Vitória desejava uma cama real, de couro e sucupira, igual à de seu Tomás da bolandeira. Baleia Quatro são os animais de maior destaque na literatura brasileira: o cachorro Quincas Borba, do romance Quincas Borba, de Machado de Assis; a cadela Baleia, de Vidas secas, e, em menor importância, a mula Camurça, do romance Chapadão do bugre, de Mário Palmério, e o burro Nicolau, da peça teatral O pagador de promessas, de Dias Gomes. Antes de comentarmos sobre Baleia, leiamos um trecho de Quincas Borba: Se, apesar de tudo, Quincas Borba conseguia adormecer, acordava logo, porque Rubião levantava-se e punha-se outra vez a descer e subir ladeiras. Soprava um triste vento, que parecia faca, e dava arrepios aos dois vagabundos. Rubião andava devagar; o próprio cansaço não lhe permitia as grandes pernadas do princípio, quando a chuva caía em bátegas. As paradas eram agora mais frequentes. O cão, morto de fome e de fadiga, não entendia aquela odisseia, ignorava o motivo, esquecera o lugar, não ouvia nada, senão as vozes surdas do senhor. Não podia ver as estrelas, que já então rutilavam, livres de nuvens. Rubião descobriuas; chegara à porta da igreja, como quando entrou na cidade; acabava de sentar-se e deu com elas. Estavam tão bonitas, reconheceu que eram os lustres do grande salão e ordenou que os apagassem. Não pôde ver a execução da ordem; adormeceu ali mesmo, com o cão ao pé de si. Quando acordaram de manhã, estavam tão juntinhos que pareciam pegados. 28 Vidas secas Baleia é ainda mais humanizada que o cachorro Quincas Borba. Segundo Fabiano, ela era sabida como gente. Ciente de sua condição de animal, Baleia se conforma com as sobras deixadas pela família. Vivia sonhando com ossos que poderiam estar dentro da panela de Sinha Vitória. Quando é ferida por Fabiano, tem vontade de mordê-lo, mas jamais faria isso, pois era submissa a ele, nascera perto dele, ladrava como que tangendo o gado para ajudá-lo. Momentos antes de morrer, teve uma alucinação: viu-se num mundo cheio de preás, onde estava um Fabiano enorme, onde tudo era enorme e onde seria feliz, espojando-se com os meninos. 1 A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença. Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente Sinha Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo. Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes. O menino mais novo Não sendo chamado pelo nome (nem seu irmão), sofre o processo de despersonalização, sendo só mais um naquele meio miserável e cruel. Sente orgulho de ser filho do vaqueiro Fabiano e quer ser como o pai. A roupa de vaqueiro de Fabiano é para ele como uma roupa de super-herói; sem ela, Fabiano era mais um entre todos os mortais, mas, vestido e no lombo da égua alazã, era terrível. E, para provar a si mesmo que poderia ser como o pai e ganhar a admiração do irmão e de Baleia, monta num bode, mas cai estatelado no chão. Sente-se humilhado, mas em pouco tempo se restabelece do acidente e: ... precisava crescer, ficar tão grande como Fabiano, matar cabras a mão de pilão, trazer uma faca de ponta à cintura. Ia crescer, espichar-se numa cama de varas, fumar cigarros de palha, calçar sapatos de couro cru. AOL-11 Subiu a ladeira, chegou-se a casa devagar, entortando as pernas, banzeiro. Quando fosse homem, caminharia assim, pesado, cambaio, importante, as rosetas das esporas tilintando. Saltaria no lombo de um cavalo brabo e voaria na catinga como pé-de-vento, levantando poeira. Ao regressar, apear-se-iam num pulo e andaria no pátio assim torto, de perneiras, gibão, guarda-peito e chapéu de couro com barbicacho. O menino mais velho e Baleia ficariam admirados. 1 Há no nome Baleia um certo paradoxo, já que o animal vive numa terra castigada pela seca, que nada lembra a paisagem litorânea. Mas parece ser comum, em Graciliano Ramos, dar nomes de animais marinhos aos seus cães, como o Tubarão, cachorro de Paulo Honório, personagem de São Bernardo. 29 Graciliano Ramos O menino mais velho Solitário, sonhava com amigos, mas o único vivente que lhe dava atenção era Baleia, por isso é o que mais se desespera quando Fabiano a sacrifica. Não sabendo falar direito, balbuciava. Em sons onomatopaicos, imitava as cabras, o vento, os galhos que rangiam na caatinga. Ao escutar de Sinhá Terta a palavra inferno, achando-a diferente e bonita, decora-a para transmitir ao irmão e à Baleia, para ganhar-lhes a admiração. O menino tem imensa curiosidade em saber o significado da palavra inferno (parece ser o próprio Graciliano o menino curioso que aparece em um de seus livros de memórias, Infância). Do capítulo O inferno, retiramos o seguinte trecho: Um dia, em maré de conversa, na prensa de farinha do copiar, minha mãe tentava compor frases no vocabulário obscuro dos folhetos. Eu me deixava embalar pela música. E de quando em quando aventurava perguntas que ficavam sem respostas e perturbavam a narradora. Súbito ouvi uma palavra doméstica e veio-me a ideia de procurar a significação exata dela. Tratava-se de inferno. Minha mãe estranhou a curiosidade: impossível um menino de seis anos, em idade de entrar na escola, ignorar aquilo. Realmente eu possuía noções. O inferno era um nome feio, que não devíamos pronunciar. Mas não era apenas isso. Exprimia um lugar ruim, para onde as pessoas mal-educadas mandavam outras, em discussões. E num lugar existem casas, árvores, açudes, igrejas, tanta coisa, tanta coisa que exigi uma descrição. Minha mãe me condenou a exigência e quis permanecer nas generalidades. Não me conformei. Pedi esclarecimentos, apelei para a ciência dela. Por que não contava o negócio direitinho? Instada, condescendeu. Afirmou que aquela terra era diferente das outras. Não havia lá plantas, nem currais, nem lojas, e os moradores, péssimos, torturados por demônios de rabo e chifres, viviam depois de mortos em fogueiras maiores que as de S. João e em tachas de breu derretido. Falou um pouco a respeito dessas criaturas. Já o menino mais velho, em Vidas secas, não teve a mesma condescendência da mãe, Sinha Vitória, tampouco de seu pai, Fabiano: Deu-se aquilo porque Sinha Vitória não conversou um instante com o menino mais velho. Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a linguagem de Sinhá Terta, pediu informações. Sinha Vitória, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros. O menino foi à sala interrogar o pai, encontrou-o sentado no chão, com as pernas abertas, desenrolando um meio de sola. – Bota o pé aqui. A ordem se cumpriu e Fabiano tomou medida da alpercata: deu um traço com a ponta da faca atrás do calcanhar, outro adiante do dedo grande. Riscou em seguida a forma do calçado e bateu palmas: – Arreda. 30 Vidas secas O pequeno afastou-se um pouco, mas ficou por ali rondando e timidamente arriscou a pergunta. Não obteve resposta, voltou à cozinha, foi pendurar-se à saia da mãe: – Como é? Sinha Vitória falou em espetos quentes e fogueiras. – A senhora viu? Aí Sinha Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote. O menino saiu indignado com a injustiça, atravessou o terreiro, escondeu-se debaixo das catingueiras murchas, à beira da lagoa vazia. Seu Tomás da bolandeira Sua função na obra é servir de referência, de modelo de gente instruída, culta para Fabiano e Sinha Vitória. Ela é quem mais o admira e, por admirar uma pessoa culta (inclusive votava) e educada como o seu Tomás (seu Tomás não mandava, pedia), é menos animalizada que Fabiano, que, por sua vez, tem certas restrições: apesar de toda sabedoria, homem de tanta leitura, também fugira da seca, deixando para trás a sua bolandeira (máquina de descaroçar algodão). Note, no trecho abaixo, que Fabiano se sente superior ao seu Tomás quando o assunto é a seca: Ele, Fabiano, muitas vezes dissera: – “seu Tomás, vossemecê não regula. Para que tanto papel? Quando a desgraça chegar, seu Tomás se estrepa, igualzinho aos outros”. Pois viera a seca, e o pobre do velho, tão bom e tão lido, perdera tudo, andava por aí, mole. Talvez já tivesse dado o couro às varas, que pessoa como ele não podia aguentar verão puxado. O soldado amarelo Representa para Fabiano o poder opressor, o abuso de autoridade, mas, segundo ele, governo é governo. AOL-11 Quando Fabiano reencontra o soldado amarelo, agora em seu “hábitat natural”, isto é, a caatinga (e ninguém conhecia melhor aquele meio que o próprio Fabiano), tem a chance de vingar-se da surra que levara na cadeia. Aí o amarelo do soldado, que antes significava raiva, passa a significar medo (como é dito popularmente, “amarelou” de medo). Fabiano se sobrepõe a uma personagem que anteriormente lhe era superior. Mas desiste da vingança ao perceber que de nada adiantaria matá-lo: Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do polícia, que se desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o resto da vida. Estava acabado? Não estava. Mas para que suprimir aquele doente que bambeava e só queria ir para baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava, não valia a pena inutilizar-se. Guardava a sua força. 31 Graciliano Ramos O fazendeiro Simboliza a relação de exploração entre patrão e empregado. O fazendeiro o enganava no acerto de contas (Sinha Vitória o alertava sempre), mas Fabiano, com medo de perder o emprego, resignava-se. No capítulo Fuga, Fabiano, além de não ter direito a receber nada, devia ao patrão. Tudo seco em redor. E o patrão era seco também, arreliado, exigente e ladrão, espinhoso como um pé de mandacaru. Fiscal da prefeitura Símbolo da extorsão do governo, cobra de Fabiano um imposto sobre a carne que este tentava vender na cidade. Dessa forma, o soldado amarelo, o fazendeiro e o fiscal simbolizam para Fabiano poderes autoritários, exploradores e corruptores. Supunha que o cevado era dele. Agora se a prefeitura tinha uma parte, estava acabado. Pois ia voltar para casa e comer a carne. Podia comer a carne? Podia ou não podia? O funcionário batera o pé agastado e Fabiano se desculpara, o chapéu de couro na mão, o espinhaço curvo: – Quem foi que disse que eu queria brigar? O melhor é a gente acabar com isso. Despedira-se, metera a carne no saco e fora vendê-la noutra rua, escondido. Mas, atracado pelo cobrador, gemera no imposto e na multa. Daquele dia em diante não criara mais porcos. Era perigoso criá-los. Sinhá Terta Velha despachada, benzedeira e costureira, que, não chegando a ser como seu Tomás da bolandeira, também causa admiração em Fabiano. Isso devido à sua desenvoltura: Sinhá Terta é que se explicava como gente da rua. Muito bom uma criatura ser assim, ter recurso para se defender. COMENTÁRIO CRÍTICO No posfácio do livro Vidas secas, o crítico literário Álvaro Lins escreve um interessante ensaio sobre a produção literária de Graciliano Ramos, Valores e misérias das vidas secas. Da parte em que dedica à obra Vidas secas, retiramos alguns trechos em que o ensaísta evidencia acertos e defeitos presentes na obra: Aliás, o mais brasileiro dos livros do sr. Graciliano Ramos é sem dúvida a novela Vidas secas, publicada em 1938. Revelaram-se nesta obra algumas das melhores qualidades de seu autor, ausentes no que escrevera antes. Antes, em S. Bernardo e Angústia, a sua atitude humana era quase simplesmente de sarcasmo e revolta egoísta. Em Vidas secas, ele se mostra mais humano, sentimental e compreensivo, acompanhando o pobre vaqueiro Fabiano e sua família com uma simpatia e uma compaixão indisfarçáveis. 32 Vidas secas (...) Contudo, tecnicamente, Vidas secas apresenta dois defeitos consideráveis. Um deles é que a novela, tendo sido construída em quadros, os seus capítulos, assim independentes, não se articulam formalmente com bastante firmeza e segurança. Cada um deles é uma peça autônoma, vivendo por si mesma, com um valor literário tão indiscutível, aliás, que se poderia escolher qualquer um, conforme o gosto pessoal, para as antologias. O outro defeito é o excesso de introspecção em personagens tão primários e rústicos, estando constituída quase toda a novela em monólogos interiores. (...) Na substância, a novela apresenta uma perfeita unidade, uma completa harmonia interior. O drama do primeiro capítulo repete-se no último; e tudo o mais que se encontra entre eles constitui uma matéria de ligação entre os dois episódios semelhantes. AOL-11 Além de ser o mais humano e comovente dos livros de ficção do sr. Graciliano Ramos, Vidas secas é o que contém maior sentimento da terra nordestina, daquela parte que é áspera, dura e cruel, sem deixar de ser amada pelos que a ela estão ligados teluricamente. 33 Graciliano Ramos 5.EXERCÍCIOS Leia o texto a seguir para responder às questões 1 e 2. Eram todos felizes. Sinha Vitória vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de Sinha Vitória remoçaria, as nádegas bambas de Sinha Vitória engrossariam, a roupa encarnada de Sinha Vitória provocaria a inveja das outras caboclas. A lua crescia, a sombra leitosa crescia, as estrelas foram esmaecendo naquela brancura que enchia a noite. Uma, duas, três, agora havia poucas estrelas no céu. Ali perto a nuvem escurecia o morro. A fazenda renasceria – e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria o dono daquele mundo. Os troços minguados ajuntavam-se no chão: a espingarda de pederneira, o aió, a cuia de água e o baú de folha pintada. A fogueira estalava. O preá chiava em cima das brasas. Uma ressurreição. As cores da saúde voltariam à cara triste de Sinha Vitória. Os meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores. A caatinga ficaria verde. Baleia agitava o rabo, olhando as brasas. E como não podia ocupar-se daquelas coisas, esperava com paciência a hora de mastigar os ossos. Depois iria dormir. Graciliano Ramos 1. Ufla-MG “Eram todos felizes”. Sobre essa frase, a afirmação falsa é: a)Corresponde a um sonho de Fabiano. b)É apenas um pensamento de Fabiano. c) Foi dita por Fabiano a Sinha Vitória. d)Equivale verdadeiramente a “Seriam todos felizes”. e)Tem o verbo no passado designando vagamente um tempo imaginado. 2. Ufla-MG I.O texto estrutura-se em dois planos: o do sonho e o da realidade. II.No plano do sonho, há a predominância dos verbos no futuro do pretérito, denotando hipótese. III.No plano da realidade, predominam os verbos no imperfeito do indicativo, denotando ação continuada. Com relação às afirmações citadas, pode-se dizer que: a) todas são falsas. b) todas são verdadeiras. c) somente a primeira é verdadeira. d)somente a segunda é verdadeira. e) somente a terceira é verdadeira. 34 Vidas secas 3. Fatec-SP Fabiano ouviu o falatório desconexo do bêbado, caiu numa indecisão dolorosa. Ele também dizia palavras sem sentido, conversava à toa. Mas irou-se com a comparação, deu murradas na parede. Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Graciliano Ramos, Vidas secas Neste trecho, a expressão “... não sabe falar direito?” reforça o ponto de vista predominante do narrador, que define: a) uma ambiguidade muito marcante no comportamento de Fabiano. b) o conflito entre Fabiano e o poder representado pelo soldado amarelo. c) o domínio da linguagem culta (padrão) como capacidade primeira que garante ao homem a defesa do direito à liberdade. d)a identificação de Fabiano com seu Tomás da bolandeira. e) a “indecisão dolorosa” de Fabiano em situações que não exigiam o domínio da palavra. 4. Fuvest-SP Vidas secas, reconhecidamente, compõe-se de capítulos que se constituem em quadros destacáveis, como se fossem narrativas autônomas. a)O que confere unidade à obra? b) Qual a relação existente entre o capítulo inicial, “Mudança”, e o final, “Fuga”? 5. Unicamp-SP Uma personagem constantemente mencionada em Vidas secas, de Graciliano Ramos, é seu Tomás da bolandeira. Homem letrado, é tido como um exemplo de “sabedoria” por Fabiano, que muitas vezes o vê como um modelo. AOL-11 Em horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo: dizia palavras difíceis, truncando tudo, e convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo. Seu Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de jornais e livros, mas não sabia mandar: pedia. Esquisitice um homem remediado ser cortês. Até o povo censurava aquelas maneiras. Mas todos obedeciam a ele. Ah! Quem disse que não obedeciam? a) Cite um episódio do romance em que fica evidente a dificuldade de expressão de Fabiano na presença de pessoas que julga superiores. b) Como o episódio escolhido por você exemplifica a relação, percebida por Fabiano, entre um uso mais “difícil” da linguagem e o poder exercido por determinadas pessoas? 35 Graciliano Ramos 6. Fuvest-SP Em determinada época, o romance brasileiro “procurou (...) enraizar fortemente as suas histórias e as suas personagens em espaços e tempos bem circunscritos, extraindo de situações culturais típicas a sua visão do Brasil” (Alfredo Bosi). Essa afirmação aplica-se a: a) Vidas secas e Fogo morto. b) Macunaíma e A hora da estrela. c) A hora da estrela e Serafim Ponte Grande. d)Fogo morto e Serafim Ponte Grande. e) Vidas secas e Macunaíma. 7. ITA-SP Assinale a melhor opção, considerando as seguintes asserções sobre Fabiano, personagem de Vidas secas, de Graciliano Ramos. I. Devido às dificuldades pelas quais passou no sertão, tornou-se um homem rude, mandante da morte de vários inimigos seus. II.Comparava-se, com orgulho, aos animais, pois era um homem errante que vivia fugindo da seca. III.Sentia-se fraco para exigir seus direitos diante de patrões e autoridades, por isso não se considerava um homem, mas um bicho. Está(ão) correta(s): a) apenas a I. b) apenas a III. c)I e II. d)I e III. e)II e III. Texto para as questões 8 e 9 Tudo seco em redor. E o patrão era seco também, arreliado, exigente e ladrão, espinhoso como um pé de mandacaru. Indispensável os meninos entrarem no bom caminho, saberem cortar mandacaru para o gado, consertar cercas, amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus. Se não calejassem, teriam o fim de seu Tomás da bolandeira. Coitado. Para que lhe servira tanto livro, tanto jornal? Morrera por causa do estômago doente e das pernas fracas. Graciliano Ramos, Vidas secas 36 Vidas secas 8. Centec-BA O trecho apresenta como ideia central: a) a valorização do trabalho intelectual para a existência humana. b) o elogio da condição humana em tempo de seca. c) as regras de sobrevivência humana em ambiente inóspito. d)a preocupação metafísica do autor com relação ao homem. e) a denúncia da fragilidade humana face à natureza. 9. Centec-BA O trecho evidencia: a) a crueldade das condições de vida e trabalho do homem. b) a admiração do homem do povo pela classe dominante. c) a inadequação do homem ao meio em que vive. d)o compromisso do homem com o desenvolvimento regional. e) o interesse pelo crescimento interior do indivíduo. 10. Vunesp Leia o texto abaixo e responda à questão. Mudança Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da caatinga rala. Arrastaram-se para lá, devagar, Sinha Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás. Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão. – Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai. Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo. Ramos, Graciliano. Vidas secas. 64. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1993, p. 9. AOL-11 Explique, com base nos elementos do texto, por que Vidas secas é considerado um romance regionalista. 37 Graciliano Ramos GAbarito 1.C 2.B 3.C 4. a)Os problemas (fome, miséria, necessidade de fuga) enfrentados pela família. Em cada capítulo, um membro da família é prioridade, mas já tinham sido apresentados em conjunto no primeiro capítulo. b)O primeiro capítulo mostra a família em retirada; o mesmo acontece no último, formando uma obra cíclica. 5. a) Há vários momentos a serem citados, como, por exemplo: quando Fabiano quer discutir com o vendeiro a respeito da pinga “batizada”, mas este não lhe dá ouvidos; quando o soldado amarelo o convida para o jogo e ele não consegue dizer não; quando Sinha Vitória contesta o pagamento recebido pelo marido na frente do patrão. Fabiano não consegue se impor. b)Uma pessoa, para ser respeitada e escutada dentro da sociedade, tem de ter o mínimo de domínio da linguagem. 6. A 7.E 8.C 9. A 10.A especificação do cenário (caatinga rala, juazeiros, galhos secos) e dos utensílios e hábitos dos personagens (cuia, aió, baú de folha) confere à obra um caráter regionalista. 38