IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-BA
HISTÓRIA: SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS.
29 de Julho a 1° de Agosto de 2008.
Vitória da Conquista - BA.
RECONHECIMENTO E AUTO -ESTIMA: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
DOS MORADORES DA COMUNIDADE NEGRA RURAL DE TIJUAÇU – BA,
PÓS-RECONHECIMENTO DO TERRITÓRIO COMO REMANESCENTE DE
QUILOMBO
Carmélia Aparecida Silva Miranda
Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB)/Campus IV – Jacobina
Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC -SP)
E-mail:[email protected]
Palavras-chave: Reconhecimento. Auto-estima. Quilombo. Identidade.
Identidade, reconhecimento e auto -estima
O referido trabalho discute sobre a construção da identidade e da auto -estima dos
moradores da comunidade negra rural de Tijuaçu, localizada no município de Senhor do
Bonfim, que em 28 de fevereiro de 2000, teve seu território reconhecido, como terra
quilombola.
Em 1988, com as comemorações do centenário da Abolição da escravatura e a
promulgação da Nova Constituição do Brasil, habitantes de várias comunidades rurais negras
passaram a se mobilizar e lutar em prol do direito a terra por eles ocupadas. Diante de tal
situação, os representantes do poder legislativo foram pressionados a incluir alguns artigos na
Constituição de 1988 que faziam referências sobre as terras ocupadas por afro -descendentes.
Com a promulgação da Constituição, algumas entidades – principalmente ligadas a diferentes
setores do Movimento Negro
–, organizações não governamentais, intelectuais e
pesquisadores, em especial das Ciências Humanas, passaram a defender os direitos das
comunidades negras rurais ( SILVA, 2000). Nesse debate, Tijuaçu pa ssou a receber visitas de
diferentes setores, que tinham como objetivo mobilizar os habitantes para defesa dos seus
direitos instituídos pela Constituição de 1988.
A
população,
informada
dessa
discussão,
passou
a
mobilizar -se
através,
principalmente, da v isita de representantes do Movimento Negro Unificado e de técnicos da
Fundação Cultural Palmares, que iniciaram um trabalho de conscientização com os
moradores. A partir dessas visitas, começou uma trajetória
de reivindicações e
conscientização dos seus di reitos, quando tem início, também, o processo do reconhecimento
do território como remanescente de quilombo, sintonizado com o que instituía nossa Lei
Maior.
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A partir da Carta de 1988, os conflitos recrudescem e alcançam destaque
considerável na imprensa do Brasil e do exterior, pois a questão passa a ser
vinculada ao referido artigo, uma novidade constitucional já experimentada
em legislações federais de países como Jamaica e Colômbia (SILVA, 2000,
p. 267).
A partir de então, as comunidades negras, até então tratada como questão fundiária,
assumem uma conotação mais ampla, compreendendo
aspectos étnicos, históricos,
antropológicos e culturais. Em 1995, o Congresso Nacional resolve regulamentá -las como
pressuposto necessário à sua aplicação pelo Governo F ederal, indo de encontro à opinião de
juristas e de organizações civis que entendiam ser o Art. 68, auto -aplicável (SILVA, 2000, p.
267-269).
Esses segmentos defendem a abordagem que associa a reivindicação de
direito possessório àquele previsto no Art. 6 8, assim ampliando o rol de
argumentação exigido pelo Judiciário e as instituições governamentais afetas
ao problema. Por outro lado, a publicidade do debate enseja a
arregimentação de forças políticas contrárias às demandas das comunidades.
A base das argumentações para a não aplicação do Art. 68 retoma o
arcabouço jurídico colonial, que definia quilombo como grupo de escravos
que, à margem das leis existentes, fugiam e se embrenhavam nas matas para
saquear, roubar e matar administradores e proprietários d e fazendas. Tal
noção, ainda hoje, baliza e estrutura os argumentos legais dos que advogam
contra os interesses das comunidades.
Entretanto, a conceituação de quilombo, segundo a legislação em voga, abriu
perspectiva para que os historiadores discutissem e apresentassem argumentações acerca da
aplicação da atual norma constitucional, segundo Silva (2000, p. 269). Dentro dessa
discussão, percebeu -se, então, que o reconhecimento dos direitos das comunidades negras
rurais às suas terras pressupõe a “revisão de procedimentos técnicos e jurídicos dos órgãos
afetos à questão do ordenamento jurídico agrário, territorial e ambiental para reconhecer e
incorporar as diferenças étnicas e culturais”. É justamente nesse último aspecto que se
encontra dificuldade maior para assegurar os direitos das comunidades, pois a situação das
terras implica
no reconhecimento da diferença racial como pressuposto para o
estabelecimento de direitos sociais específicos. Com base nessas discussões, estudiosos das
Ciências Humanas, passa ram a definir o conceito de quilombo tendo como pressuposto a
resistência cultural dessas comunidades negras rurais, dando -os a nomenclatura de quilombos
contemporâneos. Segundo Moura (1999, p. 100), as comunidades rurais negras são
consideradas como quilo mbos contemporâneos dado à ancestralidade de seus habitantes e às
relações que essas populações travam no interior do território. Sintonizados com o conceito
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abaixo, vários territórios negros passaram a serem reconhecidos no Brasil, como comunidade
remanescente de quilombo.
Podem-se definir quilombos contemporâneos como comunidades negras
rurais habitadas por descendentes de escravos que mantêm laços de
parentesco e vivem, em sua maioria, de culturas de subsistência, em terra
doada, comprada ou ocupada sec ularmente pelo grupo. Os negros dessas
comunidades valorizam as tradições culturais dos antepassados, religiosas ou
não, recriando-as no presente. Possuem uma história comum e têm normas
de pertencimento explícitas, com consciência de sua identidade étnica
(MOURA, 1999, p. 100).
Nessa perspectiva, a partir da segunda metade da década de 1990, foi realizado o
mapeamento de diversas comunidades negras rurais. É essa matriz histórica dos quilombos
que passou a ser reapropriada para referir -se, de um modo ger al, às comunidades rurais negras
no Brasil.
No decorrer dessa discussão e tendo como pressuposto a aceleração do processo de
reconhecimento de Tijuaçu, técnicos da Fundação Cultural Palmares e representantes do
Movimento Negro, orientaram a população para que fosse criada uma associação com o
escopo de mobilizar e discutir a cultura, a história da comunidade e a defesa dos direitos
coletivos. Em abril de 2000, foi criada a Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e
Adjacências. A referida comunidade j á tinha formado a Associação de Desenvolvimento
Comunitário, uma organização dos moradores com objetivo de junto aos órgãos competentes,
obter benefícios para a comunidade, entretanto, estava restrito somente ao distrito, não
abrangia os povoados o perímet ro quilombola. Segundo os moradores, era necessário criar
uma associação que tivesse representantes de todo perímetro quilombola, como forma de
agregar todo o grupo:
Digo adjacências porque na verdade, ela hoje não somente atua na sede de
Tijuaçu, e são dez comunidades juntas. Tijuaçu com mais nove comunidades
circunvizinhas, onde a associação atua desde 2000 quando foi fundada,
então, assim que foi reconhecida, o reconhecimento se deu no dia 28 de
fevereiro do ano 2000. O reconhecimento saiu e foi public ado no Diário
Oficial, e alguns dias depois, no dia 2 do mês 4, no começo de abril de 2000,
também nós fundamos a associação aqui em Tijuaçu. Mas uma associação
que abrange todo esse perímetro quilombola, que abrange cerca de 2.700 e
mais alguns quilômetro s aqui em Tijuaçu. Eu fui eleito como o novo
presidente, e juntamente com as outras pessoas da diretoria, a Dona Ilca dos
Santos, temos a tesoureira que é Cássia Maria dos Santos, temos a vice que é
Valdelice da Silva, temos também a Natasha Fagundes que é a primeira
secretária e temos ainda a Vitoriana que é do povoado de Conceição, que faz
parte da associação, e a nossa segunda secretária. Temos outras pessoas que
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fazem parte do conselho fiscal. Outra coisa que eu gostaria de frisar, que é
de grande importância, é que a associação é uma associação bastante unida,
e na verdade nós temos cerca de 50 pessoas trabalhando junto com a direção.
Agora, de que forma essas pessoas trabalham? Por exemplo, essas pessoas,
elas são conhecidas como lideranças dos povoad os, lideranças das ruas
também, quer dizer, a associação hoje cresceu e já temos mais de 400 sócios,
então nós precisamos de um trabalho assim, fortalecido e unido (Entrevista
realizada pela autora com Antônio Marcos Rodrigues, atual presidente da
Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências, em 02 de
fevereiro de 2005, em Tijuaçu).
A Associação Quilombola tem conquistado espaço , enquanto, órgão representativo,
procurando atender às reivindicações da comunidade e defendendo os direitos dess es
remanescentes. Nessa perspectiva é realizado um trabalho comunitário sintonizado com a
população. Para concretizar tais ações, são realizadas reuniões periódicas com membros e
representantes das diferentes comunidades como: Fazenda Alto, Olaria, Quebra Facão, Água
Branca, Lajinha, Conceição, Macaco, Barreira, Queimada Grande e Fazenda Capim. Nessas
reuniões, discutem -se os problemas que afligem a população, os projetos que estão chegando
a Tijuaçu, como administrá -los, as informações oriundas da Fundação Cultural Palmares, da
União de Negros pela Igualdade ( Unegro) e de outros órgãos que têm relação com a cultura
afro-descendente. Dessa forma, a Associação desenvolve o seu trabalho, conscientizando os
participantes dos seus direitos e deveres como cidadão s.
Até a visita dos técnicos da Fundação Cultural Palmares, os moradores
desconheciam o significado da palavra quilombo. Eles tinham ouvido o referido vocábulo,
mas não sabiam de fato o seu significado, como também desconheciam o que era ser
remanescente de quilombo. Como podemos perceber através do depoimento abaixo:
Olha, ser reconhecido como quilombo foi muito bom, a gente num sabia o
que era quilombo, hoje todo mundo ta sabendo o que é um quilombo, né,
que foi aonde os negros ficava naquela comunidade, e ali foi chamado
remanescente de Quilombo (Fala de Ilca, entrevistada pela autora em 28 de
out. de 2003, em Tijuaçu).
Para os moradores de Tijuaçu, o quilombo estava bem distante da sua realidade.
Mesmo tendo a pele escura, costumes e tradições afros, o s habitantes de Tijuaçu não se
identificavam como afro -brasileiros; viviam imitando a cultura do branco. Eles definiam -se
como: moreno, escurinho, moreninho ou outras denominações, mas nunca como negros.
Tinham uma auto -estima baixa, consideravam -se inferiores e fugiam de tal situação isolando se pelos diferentes povoados e roças de Tijuaçu, como se observa no depoimento abaixo:
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Porque de primeiro, aqui os negros não eram considerados como gente e
hoje em dia está sendo, através do trabalho que a Associação vem
desenvolvendo. (Entrevista com Juliana Rodrigues, realizada pela autora em
2 de fevereiro de 2005, em Tijuaçu).
Até algum tempo atrás, Tijuaçu era visto como uma comunidade rural
qualquer, não despertava para essa questão de quilombo. Porque a gente n o
estudo da história, na escola, os professores falam sobre o negro, mas de
uma maneira muito distante daqui do sertão. Então, por mais que a gente
tenha negro aqui no sertão, sempre você era levado a pensar que os negros
estavam apenas em Salvador, que fo ram para a zona da mata e o litoral
brasileiro, Rio de Janeiro, São Paulo, e que eles ficaram por aí e daí não
passaram. Agora, Tijuaçu por sua vez é visto como uma comunidade rural.
Quando começou a falar sobre a questão quilombola e se colocar algumas
questões da cultura de Tijuaçu em evidência aqui para a comunidade é que a
gente tá vendo o despertar para questão quilombola. Mas anterior, era uma
comunidade rural, era um lugar que, imaginem, ia até lá. Ninguém tinha
compromisso com Tijuaçu. De lá vem ape nas à melancia, o feijão. Hoje as
pessoas já visitam Tijuaçu, porque foi um quilombo. (Entrevista realizada
pela autora com Ivomar Gitânio dos Santos, em 2 de fevereiro de 2005, em
Senhor do Bonfim).
Segundo Hall (2001, p. 88 -89), o que acont eceu com os africanos que vieram para o
Brasil tem como precedente a assimilação da cultura do branco sem perder, no entanto, suas
raízes. É o que o autor denomina de tradição e descreve como aquelas formações de
identidade que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que
foram dispersas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus
lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são
obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem serem assimiladas por elas e
sem perderem completamente a identidade. Carregam os troncos das culturas, das tradições,
das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas
não são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque são, irrevogavelmente, o preceito
de várias histórias e culturas internectadas, que pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias
“casas” e não a uma “casa” particular. Hall (2001) afirma que as pessoas perten centes a essas
culturas híbridas (no caso, consideradas as culturas dessas comunidades negras rurais) têm
sido obrigadas a renunciar a sonhos ou à condição de redescobrir qualquer tipo de pobreza
cultural “perdoada” ou de absolutismo étnico. Elas são irrev ogavelmente traduzidas. Elas são
o produto das novas “diásporas”, criadas pelas migrações pós -coloniais e devem aprender a
habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar
entre elas. As culturas híbridas con stituem um dos diversos tipos de identidade, distintamente,
produzidas na era da modernidade.
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Certamente essa situação híbrida de fronteiras, de não reconhecimento de sua cultura
experimentou por muito tempo a população de Tijuaçu. O trabalho realizado pe la Fundação
Cultural Palmares e pela Unegro despertou uma conscientização e conseqüentemente a
valorização desses remanescentes por sua cultura. O termo fronteira é aqui utilizado, não no
sentido de território, de espaço, mas no sentido cultural.
Assim, fazemos as seguintes indagações: quais os caminhos traçados após o
reconhecimento? Como aconteceram os primeiros contatos? Em meados da década de 90, a
comunidade recebeu funcionários da Fundação Cultural Palmares, como advogados,
antropólogos e outros profi ssionais com o objetivo de mapear os diferentes povoados cuja
população fosse predominantemente negra e traçar o Laudo Antropológico para que Tijuaçu,
juntamente com as outras 2.000 comunidades existentes no Brasil, fosse reconhecida como
remanescente de q uilombo e pudesse receber os benefícios que a lei instituía.
Os primeiros contatos dos membros da comunidade de Tijuaçu com pessoas que
estavam discutindo a questão das comunidades “remanescentes de quilombo” ocorreram com
os técnicos do Instituto de Terr as da Bahia (Interba) – órgão hoje extinto, da Fundação
Cultural Palmares e do Ministério da Cultura. Na época, esses órgãos firmaram alguns
convênios que tinham como proposta o reconhecimento e a titulação das terras das
comunidades negras rurais nos dife rentes estados. Esses técnicos fizeram várias reuniões com
os membros da comunidade para provocar uma primeira discussão sobre a questão de suas
terras, tendo como meta a aplicação do Ato da Disposição Constitucional Transitória
(ADCT).
A participação de m oradores de Tijuaçu no I Encontro Nacional das Comunidades
Negras Rurais Remanescentes de Quilombo, ocorrido em Salvador em 1994, iniciou o
percurso do reconhecimento. Esse foi apenas o primeiro passo para muitos outros que vieram.
No referido evento, os p articipantes receberam informações a respeito das experiências
desenvolvidas em outras comunidades, como os “remanescentes de quilombo de Rio das Rãs
(Bom Jesus da Lapa/BA)”.
Segundo o Relatório do antropólogo Osvaldo Oliveira, a população, motivada por e sse
processo de mobilização que se iniciava no dia 10 de agosto de 1998, e alguns representantes
da comunidade reuniram -se na Escola de Primeiro Grau de Tijuaçu e traçaram algumas
reivindicações.
Desse documento, constam o mapeamento do espaço e da popula ção local; histórias
contadas pelos mais velhos sobre a ocupação da terra e a genealogia da comunidade ;
descrição de alguns conflitos de terras com os fazendeiros da região; atividades produtivas,
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criatórias e artesanais; atividades políticas e reivindicaç ões; como a população se identifica
como afro-descendente e uma descrição das manifestações culturais.
O povo recebeu o reconhecimento como uma conquista. A partir de então, tem se
mobilizado com o objetivo de entender traços de sua cultura e, nesse perc urso, resgatar
algumas manifestações culturais que estavam adormecidas e que foram despertadas após o
reconhecimento.
Ah! Eu acho muito bom ser remanescente de quilombo. Depois que a gente
descobrimos, que o Valmir discobriu, eu acho que modificou muito a vida da
gente aqui. Mudou, Ave Maria, 100%. Porque a gente era muito excluída. Eu
mermo já fui muito excluída.
Ah! Nós agora já sabe conversar. Que aqui antigamente tinha gente que não
conversava. Se tiver uma reunião, a gente ia pra reunião só ouvir, não podia
dar opinião, porque se nós assim, eu vou conversar a colega dizia não
levanta não que tu não sabe conversar. Aí agora aqui, aqui a gente ficava
como comandado, se a gente se levantava alguém dizia assim. Oh! É
passado assim. Não espera aí, é depois, deixa fulano conversar primeiro. Era
outras pessoas, porque eles dizia que a gente não sabia e aquilo ia passando,
e hoje não, a gente hoje, a gente vai pra uma reunião, a gente sai, a gente
pode conversar o que for na reunião, alguém quer falar, a gente já se levanta.
Qualquer pessoa se levanta e pergunta. Mutcha vezes a gente aqui nunca
andou, andava, a gente aqui, mas se tivesse uma reunião era reunião de
branco, se era reunião aqui, mas era branco, preto se ficasse olhando, tinha
que olhar de longe. Ai ! acho que nós, que hoje nós somos mais
homenageado que, hoje a gente, até na radia, na radia Caraíba. Hoje tem uma
pessoa de Tijuaçu conversando, logo uma que aqui não tinha telefone e hoje
já tem. (Entrevista realizada pela autora com Nira, em 5 de dez. de 2004, em
sua residência em Tijuaçu).
Os afro-descendentes se auto -identificaram e passaram a reivindicar seus direitos,
porque anteriormente não se viam como cidadãos e sofriam muito com o preconceito, como
se pode perceber no depoimento abaixo:
A gente, eu mermo, no tempo de escola, já sofri muito. O povo, as
professoras. A professora gostava muito de chamar a gente de neguinha do
cabelo duro, quando a gente chegava, que as mães da gente penteava o
cabelo da gente, não penteava na hora da gente ir pr a escola, não era como
agora. Minha mãe, sempre penteava o cabelo da gente de tarde que era pra
gente ir pra escola no outro dia, aí a gente fazia aquelas trancinhas, uma
pegada na outra, quando a gente chegava, tinha vez, assim que a mãe da
gente não dava tempo pintiar, quando a gente fosse com aquele, com aquele
cabelo coisado, ela chegava e dizia: “é, tua mãe é porca, né, mais esses
negos, gosta de ser porco, não pentea nem os cabelos dos filhos”, eu já sofri
muito... muito. (Entrevista realizada pela au tora com Nira, em 5 de
dezembro de 2004, em sua residência em Tijuaçu).
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Diante dessas e outras situações, os moradores de Tijuaçu sentiam -se acuados,
excluídos, indignados pelo tratamento recebido por aqueles que se achavam brancos e
utilizavam palavras ofensivas com o intuito de humilhá -los. Não sabiam como proceder diante
das provocações; e tinham como alternativa se ausentar do mundo do outro e isolar -se na sua
comunidade.
Para Barth (apud POUTIGNAT ; STREIFF-FENART, 1998), a identidade é
construída e transformada na interação de grupos sociais, através de processos de exclusão e
inclusão que estabelecem limites entre diferentes grupos, definindo os que os integram ou
não. Essa identidade está sendo construída a partir das situações vivenciadas por ess es afrobrasileiros.
Hoje tão vendo a gente como gente, que antigamente, não todos né, aquelas
pessoas que a gente conhece, não conhecia a gente como gente não, né? Não
tratava a gente como, pelo nome, tratava com o apelido de nego. Nego vem
cá. Nego faz isso. Hoje, é, ta tratando a gente como gente. (Fala de Ilca,
entrevistada pela autora em 14 de agosto de 2002, em sua residência em
Tijuaçu).
Outras vozes também se levantaram e concordaram com Nira e Ilca sobre o benefício
que o reconhecimento trouxe à população. Após o reconhecimento, alguns depoentes pontuam
que houve uma mudança de comportamento também por parte dos habitantes de Senhor do
Bonfim em relação à população de Tijuaçu. Houve uma diminuição do preconceito. O que
significa para população se r afro-descendente?
Afro-descendente significa pra mim uma coisa muito importante, porque a
gente, eu mermo não sabia que era afro, e agora estamos sabendo, e por isso
que é uma coisa muito importante pra mim.
Com o reconhecimento mudou muita coisa em Tij uaçu. O pessoal não usava
muita trança aqui, que disse que trança era coisa de gente tabaréu 1, e hoje já
usa, então mudou 100%, em tudo por tudo.
A postura de certos moradores de Senhor do Bonfim deixava alguns habitantes de
Tijuaçu indignados. Várias fo ram às situações que demonstravam atitudes preconceituosas.
Entretanto, a afirmação de sua identidade cultural possibilitou a conquista de um espaço, uma
vez que esta é uma construção de coisa comum que se afirma perante algo, é um fenômeno
em mudança, não é um conceito estático. Essa percepção enquanto afro -descendente estava
adormecida e escondida atrás do preconceito e do racismo sentido por esses moradores de
1
O mesmo que matuto, caipira.
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Tijuaçu. A identidade tornou -se uma “celebração móvel”: formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos
sistemas culturais que nos rodeiam.
Para Hall (2001), a identidade é definida historicamente, e não biologicamente. O
sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos sem un ificá-las ao redor de um
“eu” coerente. Dentro de cada um há, identidades contraditórias, empurrando para diferentes
direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Á
medida que os sistemas de significação e representa ção cultural multiplicavam -se, haverá
confrontos por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com
cada uma das quais poderiam identificar -se – ao menos temporariamente. Pois, escreve Barth
(1998), que os traços que se leva em conta não era a soma das diferenças objetivas, mas
unicamente aqueles que os próprios atores consideram como significativos .2
A identidade desses afro -brasileiros residentes em Tijuaçu foi construída a partir da
diferença. Para Souza (2002, p. 141 -142), através das identificações históricas e culturais,
funda-se o conceito de etnia, que abarca os que supõe ter uma ascendência comum, base da
identidade do grupo e de sua distinção com relação à sociedade abrangente.
Ademais, a identidade étnica é construída não pelas diferenças em si, mas pela tomada
de consciência delas, que ganham significados ao se inserirem em sistemas sociais. Ao tomar
conhecimento dessas diferenças, a população une -se em prol da sua cultura e, evidentemente,
de sua identidade. A etnicid ade serve, portanto, para pensar um novo tipo de sociedade, na
qual convivem grupos de variadas origens que se pautam por diferenciadas instituições
sociais. Segundo Cunha (1985, p. 208):
Nesse novo tipo de sociedade, a coerência é dada pelo sistema multi étnico e
não mais pela cultura original. Nesse contexto, os processos de constituição
étnica dão-se pela seleção de certos traços escolhidos como símbolos
privilegiados da identidade étnica e pelo esquecimento de outros: A
memória e o esquecimento históric o são assim comandados pela relevância
do novo sistema.
A população de Tijuaçu tem procurado cada vez mais se afirmar como um grupo afro descendente e tem conservado símbolos e significados dessa identidade étnica. Primeiro por
uma fase de descoberta e, p osteriormente, conhecimento da cultura dos seus antepassados. Em
2
Cf. Poutignat e Streiff -Fenart (1998, p. 11), afirmam que a etnicidade não é um conjunto intemporal, imutável
de “traços culturais ” (crenças, valores, símbolos, ritos, regras de conduta, língua, código de polidez, práticas de
vestuário ou culinárias etc.), transmitidos da mesma forma de geração para geração na história do grupo; ela
provoca ações e reações entre este grupo e os outro s em uma organização social que não cessa de evoluir.
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seguida, descobriram um estágio de conscientização e valorização dessa cultura. No último
período, conheceram sua história e a de seus antepassados e passaram a valorizar suas
manifestações c ulturais, suas relações de trabalho, sua religiosidade e seus traços físicos.
Nessa perspectiva, a população passou a emitir um outro olhar, auto -identificando-se
enquanto afro-descendente. Dessa forma, tornaram -se mais visíveis ao olhar do outro, pois
não tinham mais receio de expressar seus laços culturais. Projetos do Governo Federal
passaram a chegar a Tijuaçu e as informações eram divulgadas pelos meios de comunicação.
Assim, Tijuaçu ficou visível aos diversos olhares. Diante do exposto, vejamos o que dizem os
habitantes de Senhor do Bonfim sobre o reconhecimento:
Até algum tempo atrás, Tijuaçu era visto como uma comunidade rural
qualquer; não se despertava pra essa questão de quilombo. Porque a gente no
estudo de história, na escola, eles nos leva à f igura do negro muito distante
daqui do sertão, então por mais que a gente tenha negro aqui no sertão, no
alto sertão, sempre você é levado a pensar que os negros existem apenas em
Salvador, chegaram para a zona da mata e o litoral brasileiro, Rio de Janeir o,
Recife, São Paulo. Eles ficaram por aí né, ficaram por aí e daí não passaram.
Agora, Tijuaçu, por sua vez, é visto como uma comunidade rural, quando
começou a falar sobre a questão quilombola, é, e se colocar algumas
questões da cultura de Tijuaçu em ev idência aqui pra comunidade é que a
gente ta vendo o despertar, pra questão do quilombo. Então as pessoas agora
já estão vendo Tijuaçu como quilombo, em Bonfim nos termos um
quilombo, é Tijuaçu. É, mas anterior era uma comunidade rural, é um lugar
que ninguém ia lá fazer nada, ninguém tinha compromisso com Tijuaçu, era
apenas uma comunidade rural, de lá apenas vem à melancia, de lá apenas
vem o feijão, e a gente não tinha a comunidade, o centro da cidade não tinha
muita relação com Tijuaçu. Hoje não, hoje a s pessoas já tão vendo como
quilombo, e até já tão saindo da sede para visitar Tijuaçu, pra conhecer um
quilombo propriamente dito, hoje já tem um pensamento que está vindo a
um quilombo, é, é ao quilombo rural, vamos dizer assim. (Entrevista
realizada pela autora com Ivomar Gitânio da Silva, em 02 de fev. de 2005,
em Senhor do Bonfim).
Perguntamos então se a referida mudança era em decorrência do reconhecimento,
então Ivomar nos respondeu:
Ao reconhecimento, a divulgação da atividade da comunidade, da c ultura da
comunidade, a partir daí, do reconhecimento desta, do conjunto de atividade
é que as pessoas tão começando a despertar. (Entrevistado pela autora em 2
de fevereiro de 2005, em Senhor do Bonfim).
A identidade, então, surge não tanto da plenitude dela mesma, que já está dentro de
cada um como indivíduo, mas de uma falta de inteireza, que é “preenchida” a partir do
exterior, pelas formas através das quais se imagina ser visto por outros (HALL, 2001, p. 39).
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A possibilidade de uma identificação do povo de Tijuaçu vai aparecer a partir da
construção dessa identidade afro -brasileira assumida. A população não mais se intimida em
expressar seus costumes e sua cultura. Essa identidade foi formada, ao longo do tempo, aliada
as diferentes influências que a população comungou e que agora, com a auto -estima elevada e
sua auto-identificação enquanto afro -descendente, aparece com maior visibilidade e vigor.
O reconhecimento de Tijuaçu como remanescente de quilombo pela Fundação
Cultural Palmares empreendeu um a valorização da cultura, como também, a auto identificação desses moradores como afro -descendentes. Nessa perspectiva, várias mudanças
foram implantadas em decorrência do reconhecimento, como: a criação da Associação
Quilombola, que passou a representar o perímetro quilombola atingindo nove comunidades;
algumas manifestações culturais foram resgatadas; a comunidade passou a se mobilizar em
prol dos seus direitos, passando a cobrar dos órgãos competentes melhoria para o perímetro
quilombola. Os penteados e as roupas afros passaram a ser usadas freqüentemente. Alguns
costumes foram resgatados e reinventados por conta dessa auto -identificação.
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12
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Carmélia Aparecida Silva Miranda