%HermesFileInfo:E-9:20130714:
O ESTADO DE S. PAULO
DOMINGO, 14 DE JULHO DE 2013
Pensando bem...
Uma manobra regimental na noite de quarta-feira permitiu a
aprovação da proposta de emenda à Constituição que acaba com a
figura do segundo suplente de senador e proíbe parentes na chapa. A
proposta havia sido derrotada horas antes, com repercussão negativa.
calizar sua implementação técnica, financeira, administrativa, jurídica.
O automatismo
do privilégio
As
manifestações de massa no Brasil tiveram o condão de atenuar
aletargiadasautoridadesconstituídas, em todos os poderes. Mas vale sempre recordar o que é a ética. Tratamos aqui
de práticas e atitudes mentais aprendidas
em determinado tempo e espaço e que de
tanto serem repetidas operam automaticamente. Quem aprendeu certo modo de agir
e pensar o retoma como se ele fosse natural. Nossos dirigentes e legisladores aprenderam a ética que afirma a superioridade
dos políticos sobre os “simples cidadãos”.
Assim, eles se assustaram diante das massas em revolta e correram para atender às
reivindicações em tempo rápido, sem deixar de lado a ética que aprenderam.
Várias dasnormasaprovadassão de caráterduvidoso,comoa quetransformaaspráticas corruptas em crime hediondo. Outras
apenas seguem o bom senso, na recusa da
PEC-37.Outraspodematenuaraimpunidadedosmesmospolíticos,comofim daprerrogativa de foro. Ademais, as propostas do
Executivoparaa reformapolítica, porignorarem o direito, são engavetadas, como a
Constituinte exclusiva para a reforma polí-
tica e o plebiscito.
Num clima de incerteza quanto aos rumos a serem tomados, deputados, senadores e ministros reiteram a ética indicada
acima, o automatismo do privilégio. O caso
dos aviões, helicópteros e outras máquinas
quedeveriam serviropúblico mostraquanto eles esperam o momento para voltar à
trilha seguida de 1500 até hoje. Assim, as
medidas tomadas não integram um plano
de poder público, não pensam exatamente
nas condições corretas a serem propostas
ao País. Elas são apenas sinalizações de que
algo se move no colosso estatal brasileiro.
Não há lógica rigorosa nos projetos, nas
leis,nas ações congressuais. Digamos que o
desarrazoado impera na Praça dos Três Poderes. Grande parte de semelhante pânico
encontra-se na péssima organização dos
partidos políticos. Vejamos.
Um partido nada mais é que certo mapa
doEstadoedasociedadepropostosaoseleitores. Podemos dizer que ele é a maquete
de uma futura construção política. Sua estrutura,programas,práticas,indicamaopovo soberano o que será feito quando seus
integrantes chegarem aos poderes. Nossos
partidos, então, tal como operam no Brasil,
deixamdeserpartidos.Seusprogramasser-
JOSÉ CRUZ/ABR
vem apenas para o registro na corte eleitoral. Uma vez aprovados, as alianças oportunistas e simplesmente eleitorais assumem
o primeiro plano e os programas são abandonados com rapidez extrema. Tal falta de
obediência programática lança as agremiaçõesnoempirismo eleitoralegovernamental, pois osplanos, para serem eficazes, precisariam possuir forças anteriores (justamente a dos partidos) que por eles lutassem, especialmente quando se trata de fis-
Urgente, urgentíssimo
O governo alega que segue o modelo inglês, mas lá o clínico geral é médico
de família. Aqui, nos hospitais públicos, a prática é fragmentária e lotérica
Entre
as manifestações de rua
das últimas semanas e as
respostasqueogoverno(ExecutivoeLegislativo)lhes está dando há um descompasso
imenso. Os manifestantes exigiram uma
coisa e o governo está dando outra. As reivindicações eram quanto à qualidade da
medicina oferecida à população, e também
quanto à qualidade da educação, da segurança, da vida (e da própria política, nos
protestos contra a corrupção).
A resposta de presumível maior impacto
foinoâmbitoda medicina,resposta quantitativa: mais médicos. Quantitativa, também, no demorado tempo para surtir efeito: 2023. Muitos dos que carecem já de qualidade na assistência médica estarão mortos, como estarão mortos vários dos que
decidem sobre os carecimentos do povo,
insuficientemente interpretados.
Os pobres e famélicos não foram os principais protagonistas das ruas: foi predominantemente a classe média, mesmo aquela
forjada nos recursos de arredondamento
dos dados estatísticos. Além disso, foram
as grandes e médias cidades que gritaram,
não os lugarejos do Brasil profundo, o que
não quer dizer que não haja ali carências
graves e até absolutas. Assim como a sociedade do governo não está batendo com a
sociedade do povo, também a geografia do
governo não está batendo com a geografia
dopovo. O Brasil dagovernação, nos embatesdeagora,revela-seumBrasildeestereótipos, ficção de livro, longe do real.
O governo entendeu que a rua queria o
mais, quando queria o melhor: melhores
serviços sociais, melhor governo, reconhecimento de direitos e não favores. Um despiste geral do Executivo e do Legislativo
levou a decisões necessárias, sem dúvida,
mas não suficientes, bloqueadas durante
longotempopelonegocismopolíticooportunista, que começam a ser desbloqueadas
pelo medo oportunista aos manifestantes.
Ninguém pode deixar de temer a solução
quantitativa para a questão da assistência
médica, anunciada no improviso das pressões derua, mesmo quese digaqueestavam
sendo preparadas havia um ano. Acrescentar dois anos de permanência do estudante
de medicina na faculdade, como servidão
parareceberodiploma,nãoresolvenecessariamenteacarênciaatualeurgentedemédicos nem a qualidade dos serviços médicos.
O governo alega seguir o modelo inglês.
Pode ser. Mas no modelo inglês a formação
de médicos tem como destinatária a boa
medicina social inglesa, baseada na precedência da clínica vicinal e do clínico geral
como primeira instância da assistência médica. Aqui, o hospital acaba sendo a primeira instância, e o atendimento do clínico ge-
Ética torpe.
Políticos
julgam-se
superiores
ao cidadão
✽
ROBERTO ROMANO É FILÓSOFO, PROFESSOR
DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNICAMP
E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE
O CALDEIRÃO DE MEDEIA (PERSPECTIVA)
Na terça, o Ministério da Saúde publicou editais para médicos
(brasileiros e estrangeiros) para as áreas prioritárias. “As medidas do
Plano Mais Médicos são emergenciais”, disse Alexandre Padilha, que
defendeu ainda o estágio obrigatório dos estudantes da área no SUS.
Medicina de padiola
José de Souza Martins
desse defeito básico, nossos partidos não possuem democracia interna. Eles são dirigidos por grupos oligárquicos ou mesmo por indivíduos que se consideram seus donos. Eles permanecem na liderança partidária por décadas, assim adquirindo todos os controles: das finanças,
das alianças, dos candidatos, da propaganda. E além disso, tais direções nunca escutam de fato os militantes que, na base do
partido, por ele combatem. Unindo-se semelhanteautoritarismo aoempirismo programático, o resultado só poderia ser a balbúrdia percebida no dia a dia dos poderes.
Nada é programado, tudo se improvisa segundo os interesses dos dirigentes, os
quais, como é de praxe, têm seguidores de
menor relevância, mas que dão votos aos
projetosde leiepermitemsua implementação atabalhoada pelo Executivo.
Uma reforma política realista, portanto,
deve começar com a democratização dos
partidos que reduza o tempo em que um
dirigentepodepermanecernotopopartidário. Além disso, eleições primárias devem
servir para que os militantes definam as escolhas das alianças, dos candidatos, etc. As
questões técnicas de eleição, se proporcional,distrital,ouqualqueroutroencaminhamento, dependem, para seu sucesso, da ordem oligárquica a continuar, ou da democracia a imperar nos partidos. Caso contrário, seguiremos com o improviso, a truculênciados poderosos cartolas partidários, a
falta de rumos programados para o Estado
e a sociedade. Com a democracia interna,
os dirigentes aprenderiam as primeiras letrasdo que,emoutrassociedades,é chamado de accountability. Prestando contas aos
militantes, os políticos podem adquirir a
ética da responsabilidade madura e não populista. Algo muito distante, hoje, tanto
das ruas quanto dos palácios em que se encastelaram, nos últimos 500 anos, os mandatários no poder. Insisto: a ética aprendida pelos nossos políticos, que a repetem
automaticamente,éaque favorecealegislaçãoemcausaprópria.Desaprendertalcomportamento sob pressão das ruas é bom,
mas insuficiente para mudar a face de um
país submetido à truculência dos que deveriam apenas representar o povo soberano.
Além
Uma reforma política realista deve começar com a democratização dos
partidos que reduza o tempo de permanência de um dirigente em seu topo
Roberto Romano
Aliás E9
É igualmente inútil comparar a medicina
queestá sendopropostaaqui coma medicina social inglesa. Lá, o serviço médico e
outrosserviçossociais sãopensados eorganizados com base na premissa comunitária
de sua oferta e funcionamento. Não temos
essa cultura no Brasil. Aqui, aliás, nada é
menos comunitário do que tudo que é
anunciado como comunitário.
Provavelmente, um complicador dos
serviços de medicina pública no Brasil está na própria má organização dos serviços
e má utilização dos médicos e dos recursos disponíveis. Nos anos 1970, o professor Walter Leser, secretário de Saúde do
Estado de São Paulo e um precursor da
medicina preventiva entre nós, mandou
publicar um estudo sobre doenças tratáveis e até curáveis que, no entanto, eram
causa de mortalidade em São Paulo. Em
alguns casos, o índice de mortalidade era
alto. O tratamento e a cura estavam disponíveis; no entanto, não chegavam aos que
deles precisavam. Aqui, hospital, como escola, sempre foi motivo de demagogia política: construir prédios, antes de construir soluções. Prédio pode ser eleitoralmente visto. O tratamento e a cura de
doenças, não.
Em
ral é mero mediador de
triagem.Lá,o clínicogeral
émédicodefamíliaeésempre o mesmo médico. Aqui,
noshospitaispúblicos,amedicina tende a ser fragmentária e
lotérica,mesmoquepraticada por excelentes profissionais. As demoras entre
uma consulta e outra podem estender-se por meses e,
não raro, resultados de exames ficam por
meses à espera da leitura pelo médico que
os pediu. A medicina corre o risco de virar
engenharia, não mais regulada pelo tempo
da vida, mas pelo tempo da produção. O
médico convertido em mão de obra, a boa e
artesanal intuição do clínico geral perdendo prestígio.
vez de valorização de polos de
diagnóstico e tratamento, aqui
se centraliza. Basta visitar em qualquer
dia de semana a Rua Dr. Eneas Carvalho de
Aguiar, que atravessa o complexo do Hospital das Clínicas, da Universidade de São
Paulo, para constatar o congestionamento de ambulâncias procedentes do interiordo Estado, de lugares que têm ou poderiam ter seus adequados serviços médicos. Até do Paraná e de Minas Gerais chegam ambulâncias diariamente. Ao que parece, politicamente, o melhor hospital é a
ambulância e o melhor médico, seu motorista. A política de saúde pública de muitos lugares é uma política de transportes.
Já se disse, até, que o melhor hospital de
Brasília é o aeroporto.
✽
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA
USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE A POLÍTICA DO
BRASIL LÚMPEN E MÍSTICO (CONTEXTO)
Download

José de Souza Martins