Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 18, p. 269-279
MEMÓRIA E PRISÃO
SOUZA, José Paulo de Morais
Estudante de doutorado do Programa de Memória Social
E-mail: [email protected]
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RESUMO:
O apresente trabalho tem como proposta analisar a função da memória implícita na ideologia da
“ressocialização” de pessoas em instituição prisional do Estado do Rio de Janeiro e submetidas ao
ensino de regras e normas para transformá-las em pessoas dóceis. Essa proposta de “ressocialização” e
de transformação pressupõe alguma tentativa de apagamento, uma vez que transformar significa
deixar algo de lado em detrimento do novo, ou seja, deixar de ser essa pessoa “perigosa” para, através
de ações provenientes do Estado, adquirir novos hábitos. O artigo foi elaborado a partir de uma revisão
bibliográfica, tendo como principais referenciais teóricos FOUCAULT (2009), GONDAR (2000),
POLLAK (1992) e THOMPSON (1980); propondo a realizar reflexões e questionamentos, como: O
Estado pode e consegue transformar alguém? De que maneira o Estado busca a transformação da
pessoa presa? O apagamento de memórias de fato é utilizado nesse processo?
Palavras chave: Preso, Memória Social. Apagamento. Ressocialização e Prisão
ABSTRACT:
The present paper aims to analyze the role of implicit memory in the ideology of "resocialization" of
people in prison institution of the State of Rio de Janeiro and subjected to the school rules and
standards to transform them into docile people. This proposed "rehabilitation" and transformation
presupposes some attempt to delete, since transforming means leaving something aside at the expense
of the new, ie, stop being such a "dangerous" person to through actions from the State to acquire new
habits. The article was developed from a literature review, the main theoretical frameworks Foucault
(2009), GONDAR (2000), Pollak (1992) and Thompson (1980); propose to do reflections and
questions, such as: The state can and can transform someone? How does the State seeks the
transformation of the prisoner? Erasing memories is actually used in the process?
Key words: Prison; Social Memory; Deletion; Resocialization and Prisoner
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1- Introdução
A memória é ao mesmo tempo natural e complexa, complexa e ao mesmo tempo
natural, a Memória nasce com o homem e esse, por motivos diversos, em alguns momentos de
sua vida, tenta livrar-se de algumas memórias que o incomodam, criando um paradoxo
inexorável sobre lembrar e esquecer, armazenar e descartar memórias. Alguns interesses
sociais e políticos são os condutores dessa engendrada trama que nos leva a essa discussão
sobre o recalcamento e o apagamento que percebido, em alguns momentos, por meio de uma
observação mais atenta das relações político-sociais, nos remete a reflexões.
Pretendemos trazer contribuições para tais reflexões em um contexto mais específico,
que é o prisional, um campo espinhoso para estudo, repleto de contradições, inversões,
falácias e inconclusões. Um campo muito amplo e fértil para estudo, mas há poucos trabalhos
conclusivos sobre ele.
Estamos em época de reality show televisivos, onde um pequeno grupo fica recluso
observado por todos através de câmeras de TV, nesse observar, os telespectadores querem
“dar seus palpites” sobre aquelas vidas expostas naquela imagem de televisão. A prisão é uma
reclusão semelhante, sem o glamour televisivo, mas que restringe as pessoas a um
confinamento e, portanto, a choques de personalidades, vivências, classes e valores. Além de
levar o indivíduo a separar-se de seus familiares e amigos. No entanto, a sociedade preocupase em resolver, ou pelo menos, discutir os problemas de convívio dos realities show, enquanto
que os presos ficam relegados ao esquecimento e simples confinamento sem o glamour da
mídia, de fato, esquecido por ela.
Partimos então para o preso que chega a seu confinamento. Ao ser preso a pessoa é
conduzida a uma casa de Custódia, local esse que faz a vez das antigas delegacias, onde agora
preso fica aguardando o julgamento pelo possível delito cometido e fica separado conforme
localidade onde mora e, portanto da facção criminosa que atua naquela área de moradia dele.
Caso condenado, o preso é encaminhado, conforme determinação do Juiz da Vara de
Execuções Penais a uma pena específica, conforme a sua condenação. Podendo ir para uma
penitenciária ou para uma unidade semiaberta ou aberta, dependendo do tempo a ser
cumprido.
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Caso seja encaminhado para uma unidade de regime fechado que pode ser uma
Penitenciária, cumprirá parte da pena até obter o benefício para a progressão da pena, que irá
levá-lo provavelmente a uma unidade semiaberta que deveria ter um regime mais brando e
posteriormente, encaminhado a uma unidade aberta.
Esse cumprimento da pena poderá variar, há casos em que o Juiz pode condenar direto
a regime aberto ou semiaberto, ou encaminhar direto do regime fechado para o aberto;
dependerá muito de cada caso, de cada crime, de cada preso e de seu comportamento.
Ao ingressar em uma unidade prisional, o preso leva com ele suas memórias,
vivências de seus familiares e experiências próprias,estas geralmente rechaçadas pelo estado
por não fazer parte do padrão social desejado. Nesse sentido o Estado, na verdade, identifica o
sujeito com a infração, reduzindo-o ao seu ato, condenando-o como ser e não por ser.
Foucault (2003).
Geralmente sobre a bandeira da “ressocialização”, esta usada como lema da Secretaria
de Estado de Administração Penitenciária do estado do Rio de Janeiro, na verdade busca-se
um apagamento de algo, como se o estado pudesse mudar alguém, apagar vestígios de um
passado tortuoso, reflexo de uma minoria esquecida.
O próprio termo ressocializar, que é um verbo transitivo direto e que dessa forma
entendemos tornar a socializar (-se), uma ação de re fazer algo e, por tanto, perpassa por uma
significação extremamente complexa e contraditória, uma vez que nos leva a ideia de que o
preso está à margem da sociedade, portanto fora dela, quando na verdade ele é fruto dessa
sociedade, ele não precisa ser reconduzido de um lugar de onde ele não saiu; na verdade,
precisa ser esclarecido, dar ao preso a oportunidade de pensar sua subjetividade.
Entendemos assim que a socialização foi indigna da condição de sujeito e da condição
de cidadão, que é preciso ser reconhecido antes de se oferecer uma nova possibilidade. Isso
implica não trata-lo como tábula rasa, sujeito ausente de impressões anteriores. Implica,
portanto, considerar e reconhecer suas memórias antes de qualquer coisa.
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2- Breve olhar sobre a prisão:
O preso ao chegar a uma unidade prisional, após a identificação de praxe, é posto em
“isolamento preventivo” e, segundo as autoridades, teria o cunho meramente de observação e
adaptação, para que seja percebido se há algum problema entre o preso e o coletivo. No
entanto, podemos pensar esse isolamento como forma de adaptação àquela nova realidade.
Mesmo que o preso venha de outra unidade prisional ele passa por esse procedimento; cada
prisão tem a sua particularidade, cada indivíduo cria sua rotina, mesmo com a imposição de
uma única rotina através de normas e determinações, a criação humana acontece em qualquer
momento ou circunstância.
Pensando a memória como processo de construção, o conceito de memória trazido por
GONDAR (2005), é bem iiluistrativo quando observado que a memória no presente é uma
forma de pensar o passado a partir do futuro que se almeja. Isso nos leva à reflexão sobre o
presente trabalho, que pretende contribuir para refletir sobre o tema prisão e a transformação
do homem.
Para analisar a memória da instituição social “prisão”, ressaltaremos inicialmente à
questão do ingresso do preso, que é regulamentado por duas legislações, a Portaria número
758, de 18 de setembro de 1997- que dispõe sobre a conferência do efetivo carcerário das
unidades prisionais e hospitalares do DESIPE -; e a Resolução SEAP número 338, de 29 de
janeiro de 2010 – que dispõe sobre o ingresso, reingresso e transferência de presos no âmbito
das distintas unidades prisionais da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária e dá
outras providências.
A primeira (Portaria 758) trata a conferência diária dos presos nas unidades prisionais,
essa prática é realizada para o controle de ocorrência de fuga e ou se o preso está em boas
condições físicas e mentais. A segunda (Resolução 338) determina como devem ocorrer as
transferências no âmbito da Secretaria. Cabe ressaltar que não há nenhuma legislação que
regulamente a rotina desse ingresso, ou seja, essa prática de como a pessoa presa deve
ingressar em uma unidade prisional ocorre através de uma rotina perpassada de funcionário
para funcionário durante gerações e, em muitos casos, não há uma explicação lógica. Um
exemplo é a raspagem da cabeça do indivíduo que ingressa, em seus primórdios, justificavase pela infestação de parasitas. Atualmente, não existem dados e informações da SEAP que
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constatem a incidência de uma epidemia ou evidência de parasitas e, mesmo existindo casos
de contaminação, a mesma é facilmente controlada por medicamentos de uso tópico. Porém, o
uso da raspagem continua sendo reproduzido automaticamente, sem justificativas ou
questionamentos.
A instituição social prisão se constitui e se reproduz como um espaço de uma rotina
não escrita trata-se de um mundo de mergulhado na memória oral. Outro exemplo desse
processo de mecanização de rotinas é a submissão do preso – no seu processo de ingresso no
sistema prisional – nesse momento, há um período de isolamento preventivo de 5 dias antes
de ir para o convívio com os outros presos. A explicação vigente seria a de que ao ingressar,
o preso precisa de um tempo para saber se tem algum tipo de problema de convívio com outro
interno daquela unidade, antes de ser direcionado à carceragem. Essa prática é naturalizada
tanto para os presos quanto para os funcionários que a reproduzem há gerações sem qualquer
questionamento ou reflexão de seu uso.
Entendemos essa prática de isolamento do preso como uma tentativa de provocar o
esquecimento de seu passado, este visto como equivocado. Nesta forma o Estado coloca-se
em uma posição superior de detentor da verdade, no intuito de que preso repense seu futuro.
Segundo GONDAR (2000), esquecemos não somente a segregação, mas a maneira pelas
quais segregamos, e desta forma, o esquecimento torna-se um fenômeno natural e ainda,
segundo a autora, o tempo passa a ser visto como um caminho na direção do idêntico, da
mesmidade e da homogeneidade. Essa suposição nos trás a questão: O Estado tenta apagar
esse traço subjetivo do preso?
O ingresso do preso no sistema prisional está de certa forma, vinculado à legislação
que, por sua vez, tem um papel importante na prática de uniformidade. Temos na portaria
758, e mais específico em seu Artigo 2ºo seguinte:
Art 2º - A conferênciaprocessar-se-á da seguinte forma:
-nas unidades que possuam cubículos individuais, o interno apresentar-se-á
de pé, na porta do cubículo, trajando bermuda ou calça, camisa ou
camiseta.
II- nas unidades que possuam celas coletivas, o interno deverá ficar de pé, ao
lado de sua respectiva cama, trajando como descrito acima;
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III-nos hospitais, o interno responderá à chamada postada de pé, ao lado do
leito, ou deitado, se assim o exigir o seu estado de saúde.
Fica nítida na portaria a prática da mesmidade, da ideia de massa através da rotina que
ocorre no mínimo duas vezes ao dia através da conferência, quando todos devem estar
vestidos de maneira semelhante, colocando-se com uma mesma postura em lugar prédeterminado. Foucault (2009) observa-nos que a reclusão do século XIX é constituída de uma
combinação de controle moral e social. Percebemos no confere realizado ainda nos dias de
hoje a submissão do preso quando o Estado determina a roupa, uma camisa que identifica e,
sendo assim, uma homogeneização a ser cumprida, uma falta de respeito ao indivíduo e,
também pelo fato da grande maioria dos presos serem de classes mais humildes. Nesse
sentido, fica evidente a ocorrência de um controle social naquele espaço de confinamento.
Além desses aspectos retratados na Lei, podemos exemplificar com prática do ofício,
que faz cumprir a determinação do silêncio e do uso da cabeça baixa para interno; práticas
essas sem o respaldo de nenhuma legislação, mas perpetuada pelos custodiadores através de
um discurso oral.
Após o isolamento preventivo, o preso é posto em convívio com os demais, este grupo
ao qual ele integrará é denominado de coletivo; o preso que chegou é imediatamente recebido
por um grupo, uma pequena comissão, que é proveniente desse coletivo. Essa comissão é
escolhida para obter informações sobre sua condenação, local de residência e o tempo de sua
condenação.
O preso que chega traz influências, novidades e contribuições ao coletivo, seja a
mesma oriunda de sua subjetividade ou das relações sociais vivenciadas no âmbito da vida
social ou em outra unidade prisional. O local de convívio - que pode ser uma cela, galeria ou
alojamento - muda a partir dessa nova influência, que pode ser a simples inclusão de seu
nome no confere ou por meio de uma nova visita que entra na lista de visitantes.
Há uma memória de resistência que é proveniente das facções que atuam dentro do
Sistema Prisional, principalmente, aqui no Rio de Janeiro, aquela denominada de Comando
Vermelho, essa possui regras rígidas que surgiram na década de 70 e persistem dentro das
prisões do Estado do Rio de Janeiro até o momento atual. Gognebim (2009) nos traz uma
contribuição de Benjamim no que diz respeito ao desmoronamento da tradição, que somente
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através do novo teremos uma retomada inventiva uma produção da mudança. Nesse sentido, o
preso está entre a facção e o Estado, aqueles que conseguem transpor essas duas barreiras
conseguem construir sua subjetividade de forma criativa, dar um destino diferente àquele préestabelecido pelo estado ou pelo crime, uma tarefa árdua tendo em vista serem Estado e
facção, dois entes fortes e de domínio extenso na sociedade onde o preso vive.
O Estado e as facções utilizam a coerção e a força como forma de reprimir o preso e
moldá-lo, cada um a seu interesse, isso demonstra um tipo de violência. Essa ocorrência é
ressaltada por Foucault (2003), quando este nos remete à existência de dois julgamentos: o
feito pelo Juiz e o produzido pelos funcionários da instituição prisional enquanto
custodiadores, levando o preso à dupla punição conforme seu comportamento. Foucault
denomina este julgamento de micro-tribunal, destacando àquele tipo de julgamento realizado
pelos funcionários, quando este decide punir ou inocentar o preso em ações do cotidiano.
O Estado negou a existência dessa memória da facção por muito tempo, depois
reconheceu sua existência e a definiu como destrutiva, na tentativa de que, relegando-a ao
esquecimento ou negação, ela simplesmente deixasse de existir.
Nietzsche (2003, pág. 7-8) nos traz ao entendimento de que “o homem não pode
esquecer e por sempre se ver novamente preso ao que passou; por mais longe e rápido que ele
corra, a corrente corre junto.” Com isso nos mostra que o homem está preso ao passado e este
se encontra no presente, junto com esse homem. Assim também a facção, o Estado e o preso
estão restritos e reclusos ao passado. O passado está sempre presente, por mais que o Estado
tente apagá-lo e negá-lo, essa lembrança não se esvai pura e simplesmente pelo querer do
homem.
Ao negar a existência da facção, o Estado traz à tona o que estava reprimido, o que ele
não quer mostrar: suas mazelas. Freud (1979) nos fornece subsídios quando trata da negação,
como um modo de tornar notícia do recalcado. Ou seja, o Estado por mais que tente esconder
o que o incomoda, suas mazelas, seus abusos, acaba expurgando e deixa transparecer. Quando
me refiro ao Estado, refiro-me as pessoas, governantes, dirigentes de órgão de alto-escalão
que o representam, e são afetadas pelo psiquismo como qualquer pessoa.
Esquecer é inerente à natureza humana percebemos quando nos apoiamos na
suposição de Nietzsche (2003), para qual o esquecer é natural e inerente ao homem, no que “a
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todo agir liga-se um esquecer”, ou seja, vinculado a todo ato de lembrar, esquecemos algo,
um pressupõe o outro, um está intimamente atrelado ao outro.
Quanto ao lembrar, não escolhemos o que queremos lembrar, mas no simples ato de
lembrar trazemos embutido nele uma seleção, dentre tantas outras recordações apenas uma
pode ser escolhida e por isso, as outras que ficaram de lado e por isso, esquecidas.
A burocracia considera o preso um número ou um prontuário no arquivo,
representando uma tentativa de apagamento da subjetividade do preso pelos diversos agentes
do Estado, que tenta transformá-lo, reconduzi-lo, intimidá-lo. Percebemos na obra de,
Nietzsche (2003) a possibilidade de viver sem esquecimento, ou seja, o homem não teria
como armazenar tudo, sendo necessário esquecer. Na verdade, há uma busca pelo equilíbrio
de lembrar e esquecer. Nietzsche (2003, pág.11) entendeu: “que se saiba mesmo tão bem
esquecer no tempo certo quanto lembrar no tempo certo.” Mas no caso do preso ao ingressar
não se trata de esquecimento e sim de uma tentativa de apagamento de suas memórias por
parte do estado ou de algumas memórias que são consideradas perigosas.
O apagamento seria um esquecimento forçado, ou uma tentativa de forçar a esse
esquecimento, como uma censura. Lembramo-nos da censura psíquica dos sonhos
apresentada por Freud (2006), este relata que sonhamos sempre, mas que apenas uma pequena
parcela de sonhos é lembrada. Isso porque o nosso psiquismo escolhe, censura aquela parte do
sonho, que não nos interessa - sem que sejamos conscientes disso.
Apagar a subjetividade é apagar a memória porque a subjetividade se constrói a partir
do que se faz com os traços de memória. Se isso é feito como medida disciplinar o que está
sendo apagado não é a memória singular de um sujeito, mas a memória social dos
antecedentes da prisão. Esses antecedentes são constituídos por uma série de injunções ou
falhas do Estado quando, no âmbito das politicas públicas, não consegue garantir os direitos
de toda a população, deixando de lado grande parte do segmento de baixa renda e de certa
forma atinge a subjetividade e a memória social.
Quanto à memória, o homem não consegue dar conta de tudo, de todo conhecimento.
Ou seja, podemos esquecer aquilo que é trivial, a rotina, talvez, mas fatos marcantes de um
período permanecem como algo que não esquecemos. Esquecer é mais político do que natural
e mais Institucional do que social; há uma condução em certos tipos de esquecimento ou uma
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tentativa de apagamento realizado pelos órgãos Estatais como uma forma de controle, mas
esse controle nem sempre é efetivo, o homem reage a essas tentativas.
É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da
socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou identificação
com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase
que herdada... , podem existir acontecimentos regionais que traumatizaram
tanto, marcaram tanto uma região ou um grupo, que sua memória pode ser
transmitida ao longo dos séculos com altíssimo grau de identificação.
(Michael Pollak. pág. 201)
A prisão é algo marcante na vida de qualquer um, um traço agregado à subjetividade
do indivíduo, que passa a fazer parte de sua trajetória social e humana.
Por outro lado, precisamos renovar. Nietzsche (2003) traz à luz a questão da
historicidade, em que esta pretende a exatidão, à verdade e à objetividade e, por isso promove
um perigo ao crescimento da vida. É preciso renovar para inovar
3- Considerações finais
A subjetividade do preso passa pelo envolvimento das pelas malhas do Estado e pelo
poder da facção, mas o preso pode resistir a partir de sua subjetividade, de modo a influenciar
outros e mudar uma realidade marcada por fatores sociais precários.
O isolamento do preso como prática não atinge um de seus objetivos que é o
esquecimento. O preso não esquece, na verdade aviva toda sua história e reafirma quem é. O
traço subjetivo do preso é afetado por uma prática antiga de isolamento preventivo que é sem
sentido, ressaltando mais o distanciamento do Estado.
O não entendimento da fragilidade do preso, como se esse sujeito fosse algo fora da
sociedade é uma ponte para a revolta e a ratificação do processo contínuo de agressão. Não é
por acaso que a questão é complexa e a partir de um olhar crítico sobre esse processo,
percebemos que o número de presídios aumenta assustadoramente no Brasil.
Conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), o Brasil é o
quarto país que mais encarcera no mundo, na ordem quantitativamente temos Estados Unidos,
China, Rússia e Brasil. A solução está longe de ser alcançada. Constroem-se presídios e cada
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vez o Estado precisa de mais unidades, o que evidencia que algo está errado nesse
planejamento da máquina pública de Estado. Segundo o Departamento Penitenciário
Nacional, são gastos por ano cerca de 20 mil reais por preso, o que nos leva a questionar, não
simplesmente esses gastos, mas aonde isso levará.
Qual a prioridade do Estado, investir na diminuição da violência e de presos ou
investir na ampliação da prisão, que cada vez são construídas mais com o objetivo de “limpar
a cidade”? Creio que a prioridade do Estado é a custodia de presos e não tratar a causa que
leva o indivíduo à prisão. A máquina pública é constituída de memórias de repressão, esta se
reproduz em todas as esferas em um presídio, principalmente com o objetivo de moldar o
preso em indivíduos dóceis para a sociedade.
Mesmo com a legislação em sua tentativa de engessar o preso, corrigi-lo e isso é bem
nítido desde o símbolo do antigo Departamento do Sistema Penitenciário do Estado do Rio de
Janeiro (DESIPE) que funcionou até o ano de 2003, data de inauguração da Secretaria de
Estado de Administração Penitenciária - que em sua flâmula constava em latim Fronde virere
nova, que significa podar a copa da árvore para que venha uma nova copa. O Estado pensou
desde tempos atrás em transformar, modificar o preso, mas não em esclarecê-lo, aprimorá-lo
para que dele seja a escolha do seu modo de vida. Ao desrespeitar a subjetividade do preso
acaba criando uma revolta, uma resistência, a qual podemos chamar de Memória de
Resistência.
Nas Resoluções, Portarias e Decretos até os dias de hoje, essa questão é bem nítida no
que diz respeito a tratar o preso como coisa, coisificá-lo, desta forma o respeito não precisa
ser total, pode ser parcial e por tanto o Estado pode definir por legislação o que o preso deve e
não deve fazer até mesmo o que ele deve esquecer, mas sua subjetividade é esquecida por
parte das autoridades, inclusive pelas normas não escritas, que são criadas verbalmente e
repassadas por gerações de funcionários.
Pensar a questão prisional não é fácil é complexa em sua forma de lidar com as
diferenças dos indivíduos e ao mesmo tempo da coletividade em um local de punição. O preso
encontra-se entre tensões contínuas, forças e embates que nunca terminam tanto políticas,
quanto sociais. Essa questão não se resolve rapidamente, mas o simples fato de questionarmos
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e apontarmos para a existência das de tais pontos que aqui tratamos, ocorre uma pequena
contribuição para a humanização desse sistema.
Bibliografia:
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FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 37. ed. Petrópolis,
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Madrid, 1979.
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GONDAR, J. Lembrar e esquecer: desejo de memória. In: COSTA, I.T.M. e GONDAR, J. (orgs.)
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GOGNEBIN, J.M. Não contar mais in História e narração em Walter Benjamim. São Paulo:
Perspectiva, 2009.
NIETZSCHE, F.W. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para
a vida / Friedrich Nietzsche; tradução Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2003 -(Conexões; 20).
POLLAK, M. Memória e Identidade Social. Estudos históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992, pp. 200212.
THOMPSON, A. F. G. A questão penitenciária. Petrópolis: Vozes, 1980.
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