Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014, ISSN 2316-266X, n.3, v. 18, p. 269-279 MEMÓRIA E PRISÃO SOUZA, José Paulo de Morais Estudante de doutorado do Programa de Memória Social E-mail: [email protected] 269 RESUMO: O apresente trabalho tem como proposta analisar a função da memória implícita na ideologia da “ressocialização” de pessoas em instituição prisional do Estado do Rio de Janeiro e submetidas ao ensino de regras e normas para transformá-las em pessoas dóceis. Essa proposta de “ressocialização” e de transformação pressupõe alguma tentativa de apagamento, uma vez que transformar significa deixar algo de lado em detrimento do novo, ou seja, deixar de ser essa pessoa “perigosa” para, através de ações provenientes do Estado, adquirir novos hábitos. O artigo foi elaborado a partir de uma revisão bibliográfica, tendo como principais referenciais teóricos FOUCAULT (2009), GONDAR (2000), POLLAK (1992) e THOMPSON (1980); propondo a realizar reflexões e questionamentos, como: O Estado pode e consegue transformar alguém? De que maneira o Estado busca a transformação da pessoa presa? O apagamento de memórias de fato é utilizado nesse processo? Palavras chave: Preso, Memória Social. Apagamento. Ressocialização e Prisão ABSTRACT: The present paper aims to analyze the role of implicit memory in the ideology of "resocialization" of people in prison institution of the State of Rio de Janeiro and subjected to the school rules and standards to transform them into docile people. This proposed "rehabilitation" and transformation presupposes some attempt to delete, since transforming means leaving something aside at the expense of the new, ie, stop being such a "dangerous" person to through actions from the State to acquire new habits. The article was developed from a literature review, the main theoretical frameworks Foucault (2009), GONDAR (2000), Pollak (1992) and Thompson (1980); propose to do reflections and questions, such as: The state can and can transform someone? How does the State seeks the transformation of the prisoner? Erasing memories is actually used in the process? Key words: Prison; Social Memory; Deletion; Resocialization and Prisoner MEMÕRIA E PRISÃO – SOUZA, José Paulo. Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014, ISSN 2316-266X, n.3, v. 18, p. 269-279 1- Introdução A memória é ao mesmo tempo natural e complexa, complexa e ao mesmo tempo natural, a Memória nasce com o homem e esse, por motivos diversos, em alguns momentos de sua vida, tenta livrar-se de algumas memórias que o incomodam, criando um paradoxo inexorável sobre lembrar e esquecer, armazenar e descartar memórias. Alguns interesses sociais e políticos são os condutores dessa engendrada trama que nos leva a essa discussão sobre o recalcamento e o apagamento que percebido, em alguns momentos, por meio de uma observação mais atenta das relações político-sociais, nos remete a reflexões. Pretendemos trazer contribuições para tais reflexões em um contexto mais específico, que é o prisional, um campo espinhoso para estudo, repleto de contradições, inversões, falácias e inconclusões. Um campo muito amplo e fértil para estudo, mas há poucos trabalhos conclusivos sobre ele. Estamos em época de reality show televisivos, onde um pequeno grupo fica recluso observado por todos através de câmeras de TV, nesse observar, os telespectadores querem “dar seus palpites” sobre aquelas vidas expostas naquela imagem de televisão. A prisão é uma reclusão semelhante, sem o glamour televisivo, mas que restringe as pessoas a um confinamento e, portanto, a choques de personalidades, vivências, classes e valores. Além de levar o indivíduo a separar-se de seus familiares e amigos. No entanto, a sociedade preocupase em resolver, ou pelo menos, discutir os problemas de convívio dos realities show, enquanto que os presos ficam relegados ao esquecimento e simples confinamento sem o glamour da mídia, de fato, esquecido por ela. Partimos então para o preso que chega a seu confinamento. Ao ser preso a pessoa é conduzida a uma casa de Custódia, local esse que faz a vez das antigas delegacias, onde agora preso fica aguardando o julgamento pelo possível delito cometido e fica separado conforme localidade onde mora e, portanto da facção criminosa que atua naquela área de moradia dele. Caso condenado, o preso é encaminhado, conforme determinação do Juiz da Vara de Execuções Penais a uma pena específica, conforme a sua condenação. Podendo ir para uma penitenciária ou para uma unidade semiaberta ou aberta, dependendo do tempo a ser cumprido. MEMÕRIA E PRISÃO – SOUZA, José Paulo. 270 Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014, ISSN 2316-266X, n.3, v. 18, p. 269-279 Caso seja encaminhado para uma unidade de regime fechado que pode ser uma Penitenciária, cumprirá parte da pena até obter o benefício para a progressão da pena, que irá levá-lo provavelmente a uma unidade semiaberta que deveria ter um regime mais brando e posteriormente, encaminhado a uma unidade aberta. Esse cumprimento da pena poderá variar, há casos em que o Juiz pode condenar direto a regime aberto ou semiaberto, ou encaminhar direto do regime fechado para o aberto; dependerá muito de cada caso, de cada crime, de cada preso e de seu comportamento. Ao ingressar em uma unidade prisional, o preso leva com ele suas memórias, vivências de seus familiares e experiências próprias,estas geralmente rechaçadas pelo estado por não fazer parte do padrão social desejado. Nesse sentido o Estado, na verdade, identifica o sujeito com a infração, reduzindo-o ao seu ato, condenando-o como ser e não por ser. Foucault (2003). Geralmente sobre a bandeira da “ressocialização”, esta usada como lema da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do estado do Rio de Janeiro, na verdade busca-se um apagamento de algo, como se o estado pudesse mudar alguém, apagar vestígios de um passado tortuoso, reflexo de uma minoria esquecida. O próprio termo ressocializar, que é um verbo transitivo direto e que dessa forma entendemos tornar a socializar (-se), uma ação de re fazer algo e, por tanto, perpassa por uma significação extremamente complexa e contraditória, uma vez que nos leva a ideia de que o preso está à margem da sociedade, portanto fora dela, quando na verdade ele é fruto dessa sociedade, ele não precisa ser reconduzido de um lugar de onde ele não saiu; na verdade, precisa ser esclarecido, dar ao preso a oportunidade de pensar sua subjetividade. Entendemos assim que a socialização foi indigna da condição de sujeito e da condição de cidadão, que é preciso ser reconhecido antes de se oferecer uma nova possibilidade. Isso implica não trata-lo como tábula rasa, sujeito ausente de impressões anteriores. Implica, portanto, considerar e reconhecer suas memórias antes de qualquer coisa. MEMÕRIA E PRISÃO – SOUZA, José Paulo. 271 Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014, ISSN 2316-266X, n.3, v. 18, p. 269-279 2- Breve olhar sobre a prisão: O preso ao chegar a uma unidade prisional, após a identificação de praxe, é posto em “isolamento preventivo” e, segundo as autoridades, teria o cunho meramente de observação e adaptação, para que seja percebido se há algum problema entre o preso e o coletivo. No entanto, podemos pensar esse isolamento como forma de adaptação àquela nova realidade. Mesmo que o preso venha de outra unidade prisional ele passa por esse procedimento; cada prisão tem a sua particularidade, cada indivíduo cria sua rotina, mesmo com a imposição de uma única rotina através de normas e determinações, a criação humana acontece em qualquer momento ou circunstância. Pensando a memória como processo de construção, o conceito de memória trazido por GONDAR (2005), é bem iiluistrativo quando observado que a memória no presente é uma forma de pensar o passado a partir do futuro que se almeja. Isso nos leva à reflexão sobre o presente trabalho, que pretende contribuir para refletir sobre o tema prisão e a transformação do homem. Para analisar a memória da instituição social “prisão”, ressaltaremos inicialmente à questão do ingresso do preso, que é regulamentado por duas legislações, a Portaria número 758, de 18 de setembro de 1997- que dispõe sobre a conferência do efetivo carcerário das unidades prisionais e hospitalares do DESIPE -; e a Resolução SEAP número 338, de 29 de janeiro de 2010 – que dispõe sobre o ingresso, reingresso e transferência de presos no âmbito das distintas unidades prisionais da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária e dá outras providências. A primeira (Portaria 758) trata a conferência diária dos presos nas unidades prisionais, essa prática é realizada para o controle de ocorrência de fuga e ou se o preso está em boas condições físicas e mentais. A segunda (Resolução 338) determina como devem ocorrer as transferências no âmbito da Secretaria. Cabe ressaltar que não há nenhuma legislação que regulamente a rotina desse ingresso, ou seja, essa prática de como a pessoa presa deve ingressar em uma unidade prisional ocorre através de uma rotina perpassada de funcionário para funcionário durante gerações e, em muitos casos, não há uma explicação lógica. Um exemplo é a raspagem da cabeça do indivíduo que ingressa, em seus primórdios, justificavase pela infestação de parasitas. Atualmente, não existem dados e informações da SEAP que MEMÕRIA E PRISÃO – SOUZA, José Paulo. 272 Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014, ISSN 2316-266X, n.3, v. 18, p. 269-279 constatem a incidência de uma epidemia ou evidência de parasitas e, mesmo existindo casos de contaminação, a mesma é facilmente controlada por medicamentos de uso tópico. Porém, o uso da raspagem continua sendo reproduzido automaticamente, sem justificativas ou questionamentos. A instituição social prisão se constitui e se reproduz como um espaço de uma rotina não escrita trata-se de um mundo de mergulhado na memória oral. Outro exemplo desse processo de mecanização de rotinas é a submissão do preso – no seu processo de ingresso no sistema prisional – nesse momento, há um período de isolamento preventivo de 5 dias antes de ir para o convívio com os outros presos. A explicação vigente seria a de que ao ingressar, o preso precisa de um tempo para saber se tem algum tipo de problema de convívio com outro interno daquela unidade, antes de ser direcionado à carceragem. Essa prática é naturalizada tanto para os presos quanto para os funcionários que a reproduzem há gerações sem qualquer questionamento ou reflexão de seu uso. Entendemos essa prática de isolamento do preso como uma tentativa de provocar o esquecimento de seu passado, este visto como equivocado. Nesta forma o Estado coloca-se em uma posição superior de detentor da verdade, no intuito de que preso repense seu futuro. Segundo GONDAR (2000), esquecemos não somente a segregação, mas a maneira pelas quais segregamos, e desta forma, o esquecimento torna-se um fenômeno natural e ainda, segundo a autora, o tempo passa a ser visto como um caminho na direção do idêntico, da mesmidade e da homogeneidade. Essa suposição nos trás a questão: O Estado tenta apagar esse traço subjetivo do preso? O ingresso do preso no sistema prisional está de certa forma, vinculado à legislação que, por sua vez, tem um papel importante na prática de uniformidade. Temos na portaria 758, e mais específico em seu Artigo 2ºo seguinte: Art 2º - A conferênciaprocessar-se-á da seguinte forma: -nas unidades que possuam cubículos individuais, o interno apresentar-se-á de pé, na porta do cubículo, trajando bermuda ou calça, camisa ou camiseta. II- nas unidades que possuam celas coletivas, o interno deverá ficar de pé, ao lado de sua respectiva cama, trajando como descrito acima; MEMÕRIA E PRISÃO – SOUZA, José Paulo. 273 Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014, ISSN 2316-266X, n.3, v. 18, p. 269-279 III-nos hospitais, o interno responderá à chamada postada de pé, ao lado do leito, ou deitado, se assim o exigir o seu estado de saúde. Fica nítida na portaria a prática da mesmidade, da ideia de massa através da rotina que ocorre no mínimo duas vezes ao dia através da conferência, quando todos devem estar vestidos de maneira semelhante, colocando-se com uma mesma postura em lugar prédeterminado. Foucault (2009) observa-nos que a reclusão do século XIX é constituída de uma combinação de controle moral e social. Percebemos no confere realizado ainda nos dias de hoje a submissão do preso quando o Estado determina a roupa, uma camisa que identifica e, sendo assim, uma homogeneização a ser cumprida, uma falta de respeito ao indivíduo e, também pelo fato da grande maioria dos presos serem de classes mais humildes. Nesse sentido, fica evidente a ocorrência de um controle social naquele espaço de confinamento. Além desses aspectos retratados na Lei, podemos exemplificar com prática do ofício, que faz cumprir a determinação do silêncio e do uso da cabeça baixa para interno; práticas essas sem o respaldo de nenhuma legislação, mas perpetuada pelos custodiadores através de um discurso oral. Após o isolamento preventivo, o preso é posto em convívio com os demais, este grupo ao qual ele integrará é denominado de coletivo; o preso que chegou é imediatamente recebido por um grupo, uma pequena comissão, que é proveniente desse coletivo. Essa comissão é escolhida para obter informações sobre sua condenação, local de residência e o tempo de sua condenação. O preso que chega traz influências, novidades e contribuições ao coletivo, seja a mesma oriunda de sua subjetividade ou das relações sociais vivenciadas no âmbito da vida social ou em outra unidade prisional. O local de convívio - que pode ser uma cela, galeria ou alojamento - muda a partir dessa nova influência, que pode ser a simples inclusão de seu nome no confere ou por meio de uma nova visita que entra na lista de visitantes. Há uma memória de resistência que é proveniente das facções que atuam dentro do Sistema Prisional, principalmente, aqui no Rio de Janeiro, aquela denominada de Comando Vermelho, essa possui regras rígidas que surgiram na década de 70 e persistem dentro das prisões do Estado do Rio de Janeiro até o momento atual. Gognebim (2009) nos traz uma contribuição de Benjamim no que diz respeito ao desmoronamento da tradição, que somente MEMÕRIA E PRISÃO – SOUZA, José Paulo. 274 Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014, ISSN 2316-266X, n.3, v. 18, p. 269-279 através do novo teremos uma retomada inventiva uma produção da mudança. Nesse sentido, o preso está entre a facção e o Estado, aqueles que conseguem transpor essas duas barreiras conseguem construir sua subjetividade de forma criativa, dar um destino diferente àquele préestabelecido pelo estado ou pelo crime, uma tarefa árdua tendo em vista serem Estado e facção, dois entes fortes e de domínio extenso na sociedade onde o preso vive. O Estado e as facções utilizam a coerção e a força como forma de reprimir o preso e moldá-lo, cada um a seu interesse, isso demonstra um tipo de violência. Essa ocorrência é ressaltada por Foucault (2003), quando este nos remete à existência de dois julgamentos: o feito pelo Juiz e o produzido pelos funcionários da instituição prisional enquanto custodiadores, levando o preso à dupla punição conforme seu comportamento. Foucault denomina este julgamento de micro-tribunal, destacando àquele tipo de julgamento realizado pelos funcionários, quando este decide punir ou inocentar o preso em ações do cotidiano. O Estado negou a existência dessa memória da facção por muito tempo, depois reconheceu sua existência e a definiu como destrutiva, na tentativa de que, relegando-a ao esquecimento ou negação, ela simplesmente deixasse de existir. Nietzsche (2003, pág. 7-8) nos traz ao entendimento de que “o homem não pode esquecer e por sempre se ver novamente preso ao que passou; por mais longe e rápido que ele corra, a corrente corre junto.” Com isso nos mostra que o homem está preso ao passado e este se encontra no presente, junto com esse homem. Assim também a facção, o Estado e o preso estão restritos e reclusos ao passado. O passado está sempre presente, por mais que o Estado tente apagá-lo e negá-lo, essa lembrança não se esvai pura e simplesmente pelo querer do homem. Ao negar a existência da facção, o Estado traz à tona o que estava reprimido, o que ele não quer mostrar: suas mazelas. Freud (1979) nos fornece subsídios quando trata da negação, como um modo de tornar notícia do recalcado. Ou seja, o Estado por mais que tente esconder o que o incomoda, suas mazelas, seus abusos, acaba expurgando e deixa transparecer. Quando me refiro ao Estado, refiro-me as pessoas, governantes, dirigentes de órgão de alto-escalão que o representam, e são afetadas pelo psiquismo como qualquer pessoa. Esquecer é inerente à natureza humana percebemos quando nos apoiamos na suposição de Nietzsche (2003), para qual o esquecer é natural e inerente ao homem, no que “a MEMÕRIA E PRISÃO – SOUZA, José Paulo. 275 Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014, ISSN 2316-266X, n.3, v. 18, p. 269-279 todo agir liga-se um esquecer”, ou seja, vinculado a todo ato de lembrar, esquecemos algo, um pressupõe o outro, um está intimamente atrelado ao outro. Quanto ao lembrar, não escolhemos o que queremos lembrar, mas no simples ato de lembrar trazemos embutido nele uma seleção, dentre tantas outras recordações apenas uma pode ser escolhida e por isso, as outras que ficaram de lado e por isso, esquecidas. A burocracia considera o preso um número ou um prontuário no arquivo, representando uma tentativa de apagamento da subjetividade do preso pelos diversos agentes do Estado, que tenta transformá-lo, reconduzi-lo, intimidá-lo. Percebemos na obra de, Nietzsche (2003) a possibilidade de viver sem esquecimento, ou seja, o homem não teria como armazenar tudo, sendo necessário esquecer. Na verdade, há uma busca pelo equilíbrio de lembrar e esquecer. Nietzsche (2003, pág.11) entendeu: “que se saiba mesmo tão bem esquecer no tempo certo quanto lembrar no tempo certo.” Mas no caso do preso ao ingressar não se trata de esquecimento e sim de uma tentativa de apagamento de suas memórias por parte do estado ou de algumas memórias que são consideradas perigosas. O apagamento seria um esquecimento forçado, ou uma tentativa de forçar a esse esquecimento, como uma censura. Lembramo-nos da censura psíquica dos sonhos apresentada por Freud (2006), este relata que sonhamos sempre, mas que apenas uma pequena parcela de sonhos é lembrada. Isso porque o nosso psiquismo escolhe, censura aquela parte do sonho, que não nos interessa - sem que sejamos conscientes disso. Apagar a subjetividade é apagar a memória porque a subjetividade se constrói a partir do que se faz com os traços de memória. Se isso é feito como medida disciplinar o que está sendo apagado não é a memória singular de um sujeito, mas a memória social dos antecedentes da prisão. Esses antecedentes são constituídos por uma série de injunções ou falhas do Estado quando, no âmbito das politicas públicas, não consegue garantir os direitos de toda a população, deixando de lado grande parte do segmento de baixa renda e de certa forma atinge a subjetividade e a memória social. Quanto à memória, o homem não consegue dar conta de tudo, de todo conhecimento. Ou seja, podemos esquecer aquilo que é trivial, a rotina, talvez, mas fatos marcantes de um período permanecem como algo que não esquecemos. Esquecer é mais político do que natural e mais Institucional do que social; há uma condução em certos tipos de esquecimento ou uma MEMÕRIA E PRISÃO – SOUZA, José Paulo. 276 Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014, ISSN 2316-266X, n.3, v. 18, p. 269-279 tentativa de apagamento realizado pelos órgãos Estatais como uma forma de controle, mas esse controle nem sempre é efetivo, o homem reage a essas tentativas. É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada... , podem existir acontecimentos regionais que traumatizaram tanto, marcaram tanto uma região ou um grupo, que sua memória pode ser transmitida ao longo dos séculos com altíssimo grau de identificação. (Michael Pollak. pág. 201) A prisão é algo marcante na vida de qualquer um, um traço agregado à subjetividade do indivíduo, que passa a fazer parte de sua trajetória social e humana. Por outro lado, precisamos renovar. Nietzsche (2003) traz à luz a questão da historicidade, em que esta pretende a exatidão, à verdade e à objetividade e, por isso promove um perigo ao crescimento da vida. É preciso renovar para inovar 3- Considerações finais A subjetividade do preso passa pelo envolvimento das pelas malhas do Estado e pelo poder da facção, mas o preso pode resistir a partir de sua subjetividade, de modo a influenciar outros e mudar uma realidade marcada por fatores sociais precários. O isolamento do preso como prática não atinge um de seus objetivos que é o esquecimento. O preso não esquece, na verdade aviva toda sua história e reafirma quem é. O traço subjetivo do preso é afetado por uma prática antiga de isolamento preventivo que é sem sentido, ressaltando mais o distanciamento do Estado. O não entendimento da fragilidade do preso, como se esse sujeito fosse algo fora da sociedade é uma ponte para a revolta e a ratificação do processo contínuo de agressão. Não é por acaso que a questão é complexa e a partir de um olhar crítico sobre esse processo, percebemos que o número de presídios aumenta assustadoramente no Brasil. Conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), o Brasil é o quarto país que mais encarcera no mundo, na ordem quantitativamente temos Estados Unidos, China, Rússia e Brasil. A solução está longe de ser alcançada. Constroem-se presídios e cada MEMÕRIA E PRISÃO – SOUZA, José Paulo. 277 Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014, ISSN 2316-266X, n.3, v. 18, p. 269-279 vez o Estado precisa de mais unidades, o que evidencia que algo está errado nesse planejamento da máquina pública de Estado. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, são gastos por ano cerca de 20 mil reais por preso, o que nos leva a questionar, não simplesmente esses gastos, mas aonde isso levará. Qual a prioridade do Estado, investir na diminuição da violência e de presos ou investir na ampliação da prisão, que cada vez são construídas mais com o objetivo de “limpar a cidade”? Creio que a prioridade do Estado é a custodia de presos e não tratar a causa que leva o indivíduo à prisão. A máquina pública é constituída de memórias de repressão, esta se reproduz em todas as esferas em um presídio, principalmente com o objetivo de moldar o preso em indivíduos dóceis para a sociedade. Mesmo com a legislação em sua tentativa de engessar o preso, corrigi-lo e isso é bem nítido desde o símbolo do antigo Departamento do Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro (DESIPE) que funcionou até o ano de 2003, data de inauguração da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária - que em sua flâmula constava em latim Fronde virere nova, que significa podar a copa da árvore para que venha uma nova copa. O Estado pensou desde tempos atrás em transformar, modificar o preso, mas não em esclarecê-lo, aprimorá-lo para que dele seja a escolha do seu modo de vida. Ao desrespeitar a subjetividade do preso acaba criando uma revolta, uma resistência, a qual podemos chamar de Memória de Resistência. Nas Resoluções, Portarias e Decretos até os dias de hoje, essa questão é bem nítida no que diz respeito a tratar o preso como coisa, coisificá-lo, desta forma o respeito não precisa ser total, pode ser parcial e por tanto o Estado pode definir por legislação o que o preso deve e não deve fazer até mesmo o que ele deve esquecer, mas sua subjetividade é esquecida por parte das autoridades, inclusive pelas normas não escritas, que são criadas verbalmente e repassadas por gerações de funcionários. Pensar a questão prisional não é fácil é complexa em sua forma de lidar com as diferenças dos indivíduos e ao mesmo tempo da coletividade em um local de punição. O preso encontra-se entre tensões contínuas, forças e embates que nunca terminam tanto políticas, quanto sociais. Essa questão não se resolve rapidamente, mas o simples fato de questionarmos MEMÕRIA E PRISÃO – SOUZA, José Paulo. 278 Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014, ISSN 2316-266X, n.3, v. 18, p. 269-279 e apontarmos para a existência das de tais pontos que aqui tratamos, ocorre uma pequena contribuição para a humanização desse sistema. Bibliografia: 279 FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 37. ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2009. FREUD, S. Nota sobre lapizarra mágica. O.C. Tomo XIX El yo y outras obras (1923-1925). Buenos Aires/ Madrid, 1979. FREUD, S. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana vol 1.(A)O esquecimento dos sonhos. Imago, 2006. GONDAR, J. Lembrar e esquecer: desejo de memória. In: COSTA, I.T.M. e GONDAR, J. (orgs.) Memória e espaço. Rio de Janeiro: 7 letras,2000. GOGNEBIN, J.M. Não contar mais in História e narração em Walter Benjamim. 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