Pró-Reitoria de Graduação Curso de Direito Trabalho de Conclusão de Curso DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA DANILO DE SOUSA BARBOSA Autor: Danilo de Sousa Barbosa Orientador: Profa. Msc. Maria de Fátima Martins da Silva dos Santos DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA Brasília - DF 2010 DANILO DE SOUSA BARBOSA DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientadora: Profa. Msc. Maria de Fátima Martins da Silva dos Santos Brasília 2010 Monografia de autoria de Danilo de Sousa Barbosa, intitulada DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA, apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito da Universidade Católica de Brasília, em (data de aprovação), defendida e aprovada pela banca examinadora abaixo assinada: _________________________________________________________ Profa. Msc. Maria de Fátima Martins da Silva dos Santos Orientadora Direito – UCB __________________________________________________________ Prof. (titulação). (Nome do membro da banca) (Curso/programa) – (sigla da instituição) __________________________________________________________ Prof. (titulação). (Nome do membro da banca) (Curso/programa) – (sigla da instituição) Brasília 2010 RESUMO BARBOSA, Danilo de Sousa. Da desconsideração inversa da personalidade jurídica. 2010. (XX) f. Monografia (Bacharel) – Curso de Direito, Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2010. Este trabalho tem como objetivo analisar a desconsideração inversa da personalidade jurídica. Para isso, foi realizada abordagem de diversos temas relativos. Pode-se perceber, por meio da análise dos conceitos de pessoa e formas de aquisição da personalidade, que a personalidade conferida às sociedades é uma forma de possibilitar o livre exercício da atividade empresarial, tendo em vista que objetiva reduzir os riscos de seu exercício. Porém, percebeu-se que a personalização da sociedade poderia gerar uma proteção àqueles que a usam de maneira inadequada. Para isso, foi criada a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que, tempos depois, passou a ter previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro. A desconsideração, de uma forma geral, significa a possibilidade de atingir o patrimônio do sócio no intuito de responder por dívidas sociais. Porém, verificou-se que apenas a desconsideração não estava sendo suficiente para coibir as fraudes, pois algumas pessoas transferiam bens pessoais para o nome da empresa no intuito de frustrar direito alheio. Dessa forma, vem crescendo na doutrina e jurisprudência a possibilidade de se realizar a desconsideração da personalidade jurídica na forma inversa, que é o objeto do presente estudo. Palavras-chave: Personalidade. personalidade jurídica. Sociedade. Desconsideração inversa da ABSTRACT BARBOSA, Danilo de Sousa. Da desconsideração inversa da personalidade jurídica. 2010. (XX) f. Monografia (Bacharel) – Curso de Direito, Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2010. This work aims to analyse the inverse disregard of legal entity. For that, a several themes approach was realized. It can be noticed, through person concept analysis and the forms of personality acquisition, that the personality given to companies is a way to enable the free exercise of business activity, considering that it aims to reduce its exercise risks. However, it was noticed that company personalization could generate a protection to those who use it inappropriately. For that, it was created the inverse disregard of legal entity, which, some time later, acquired legal prevision in the Brazilian legal system. Disregard, in general, means the possibility to reach the business associate’s patrimony in order to respond for social debts. But it was verified that only the disregard wasn’t sufficient to refrain frauds, for some people transferred personal goods to their company name in order to frustrate the rights of other. Thus, it grows in doctrine and jurisprudence the possibility of realizing the juridical entity disregard in the inverse form, which is the object of the present study. Keywords: personality, society, inverse disregard of legal entity. SUMÁRIO INTRODUÇÃO CAPÍTULO I 1. A SOCIEDADE EMPRESÁRIA – Aspectos Relevantes ..................................... 12 1.1. Conceito de Pessoa no Direito Brasileiro ....................................................... 12 1.1.1. Pessoa Física ....................................................................................... 13 1.1.2. Pessoa Jurídica .................................................................................... 14 1.1.2.1. Espécies de Pessoa Jurídica ................................................... 14 1.1.2.2. A Sociedade Empresária .......................................................... 16 1.2. Teorias Sobre a Pessoa Jurídica ................................................................... 17 1.2.1. Teoria Individualista .............................................................................. 17 1.2.2. Teoria da Ficção ................................................................................... 18 1.2.3. Teoria da Vontade ................................................................................ 18 1.2.4. Teoria do Patrimônio da Afetação......................................................... 18 1.2.5. Teoria da Instituição.............................................................................. 19 1.2.6. Teoria da Realidade Objetiva ou Orgânica ........................................... 19 1.2.7. Teoria da Realidade Técnica ................................................................ 20 1.3. Aquisição da Personalidade e da Capacidade da Sociedade Empresária ..... 20 1.3.1. O Registro da Sociedade Empresária................................................... 21 1.3.2. O Nome e a Responsabilidade dos Sócios ........................................... 22 1.4. As Sociedades Personificadas e Não Personificadas .................................... 25 1.4.1. As Consequências Legais da Não Personificação................................ 27 1.4.2. Os Benefícios Legais da Sociedade Personificada............................... 30 1.5. Aspectos Relevantes das Sociedades Empresárias ...................................... 31 1.5.1. Elementos do Contrato de Sociedade Empresária ............................... 31 1.5.1.1. Elementos Gerais ...................................................................... 31 1.5.1.1.1. Consenso................................................................... 31 1.5.1.1.2. Objeto lícito ................................................................ 31 1.5.1.1.3. Forma Prescrita em Lei.............................................. 32 1.5.1.2. Elementos Específicos .............................................................. 32 1.5.1.2.1. Pluralidade de Sócios ................................................ 32 1.5.1.2.2. Contribuição para o Capital Social ............................. 33 1.5.1.2.3. Participação nos Lucros e nas Perdas ...................... 33 1.5.1.2.4. Affectio Societatis ...................................................... 34 1.5.2. As Sociedades de Pessoas e as Sociedades de Capital ...................... 34 1.5.3. O Princípio da Autonomia Patrimonial .................................................. 35 CAPÍTULO II 2. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA .......................................................................................................... 38 2.1. Conceito de Desconsideração da Personalidade ........................................... 38 2.2. Evolução Histórica da Teoria da Desconsideração ........................................ 40 2.3. A “Disregard Doctrine” no Direito Comparado................................................ 41 2.3.1. O Direito Anglo Saxônico ...................................................................... 41 2.3.2. O Direito Romano-Germânico .............................................................. 42 2.3.3. No Direito Inglês ................................................................................... 42 2.3.4. No Direito Norte-Americano .................................................................. 42 2.3.5. No Direito Alemão ................................................................................. 43 2.3.6. No Direito Francês ................................................................................ 44 2.4. A Previsão Legal da Teoria da Desconsideração no Direito Brasileiro .......... 44 2.4.1. Posicionamento Constitucional ............................................................. 44 2.4.2. A Teoria da Desconsideração no Código Civil Brasileiro ...................... 45 2.4.3. A Teoria da Desconsideração no Código de Defesa do Consumidor.. 45 2.4.4. Outras Leis Aplicáveis .......................................................................... 46 2.5. A Finalidade da Desconsideração da Personalidade Jurídica....................... 47 2.6. Conseqüências da Desconsideração da Personalidade Jurídica ................... 47 2.7. Teoria Maior e Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica........ 48 2.7.1. Teoria Maior .......................................................................................... 48 2.7.2. Teoria Menor ........................................................................................ 49 2.8. A Desconsideração e os Direitos da Personalidade ...................................... 50 2.9. Requisitos para a Aplicação da Teoria da Desconsideração......................... 51 2.9.1. Personificação ...................................................................................... 51 2.9.2. A fraude e o abuso de direito relacionados à autonomia patrimonial....52 2.9.2.1. Fraude ...................................................................................... 53 2.9.2.2. O Abuso de Direito ................................................................... 53 2.9.3 Imputação dos Atos Praticados pela Pessoa Jurídica ........................... 54 2.10. Critérios para o Deferimento do Pedido de Desconsideração...................... 56 2.11. A Desconsideração da Personalidade Jurídica e a sua Função Social ....... 58 CAPÍTULO III 3. A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA ............. 60 3.1. O Conceito da Desconsideração Inversa ....................................................... 60 3.2. Evolução da Teoria no Direito Brasileiro ........................................................ 61 3.3. Pressupostos de Aplicação da Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica.................................................................................................................. 62 3.4. Aplicação dos Princípios da Desconsideração da Personalidade Jurídica .... 63 3.5. Efeitos da Desconsideração Inversa .............................................................. 65 3.5.1. Quebra da Autonomia Patrimonial da Sociedade ................................. 65 3.5.2. Alcance dos Bens Patrimoniais da Sociedade ...................................... 66 3.6. A Desconsideração Inversa no Direito de Família ......................................... 67 3.7. A Desconsideração da Justiça do Trabalho............................................ 68 3.8. O Posicionamento da Jurisprudência ............................................................. 69 3.9. Opinião de profissionais da área................................................................... 77 CONCLUSÃO............................................................................................................ 80 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 82 10 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como tema a desconsideração da personalidade jurídica, em sua forma inversa, com abordagem em suas peculiaridades. O objetivo geral do presente estudo é analisar a desconsideração inversa da personalidade jurídica e sua aplicabilidade no sistema jurídico brasileiro. O motivo da escolha desse tema foi em razão da análise do informativo de jurisprudência nº 400 do Superior Tribunal de Justiça, o qual estava explicando o julgamento do Recurso Especial nº 948117, que trata da desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa. Em estudos anteriormente realizados, vimos a desconsideração da personalidade jurídica em sua forma convencional, porém a sua forma inversa infelizmente ainda é pouco tratada pelos estudiosos, na maior parte das vezes colocada apenas como uma pequena observação dentro do estudo da desconsideração. A desconsideração inversa da personalidade jurídica é o afastamento temporário da personalidade jurídica da sociedade para, diversamente do que ocorre na desconsideração propriamente dita, atingir o patrimônio social para cumprir obrigações do sócio. Deve-se lembrar que a desconsideração na forma inversa não responde por toda e qualquer dívida contraída pelo sócio, mas apenas por aquela situação em que ele propositadamente criou, ou seja, o pedido de desconsideração inversa deve ser específico para aquela situação. Por exemplo: o cônjuge sócio que está em processo de separação e partilha de bens, no intuito de evitar a venda de um automóvel, transfere a propriedade deste para a pessoa jurídica, mas continua o usando para fins particulares. A relevância desse tema é grande, pois, assim como a desconsideração convencional, é mais uma importante forma de se preservar a sociedade, e objetiva, principalmente, sua proteção. Tanto assim é, que o egrégio Superior Tribunal de Justiça a aplicou para proteger o credor de boa fé contra o sócio mal intencionado. A pesquisa utilizada para realização deste trabalho foi do tipo bibliográfica, que é aquela que analisa um problema a partir de referências teóricas publicadas 11 em documentos. Os referenciais teóricos auxiliam a reforçar, justificar, demonstrar, esclarecer, explicar o fenômeno estudado; deve-se explorá-lo a fim de que se dê credibilidade ao que está sendo produzido em termos de produção acadêmicocientífica. A pesquisa se dará a partir da análise de leis, doutrinas, jurisprudências e toda e qualquer fonte sobre o tema. A análise da lei é indispensável, tendo em vista que ela regula a sociedade. A doutrina é igualmente importante, pois é a fonte na qual os estudiosos interpretam a lei. Por fim, indispensável ainda a análise da jurisprudência, que é a interpretação dada pelos tribunais, compostos pelas pessoas que atuam efetivamente no Direito. No primeiro capítulo serão abordados alguns aspectos relevantes acerca da sociedade empresária, dentre os quais o conceito geral de pessoa, bem como de pessoa física e jurídica; as teorias a respeito da pessoa jurídica; a aquisição da personalidade e da capacidade pela sociedade, bem como o registro da sociedade empresária e o nome e a responsabilidade dos sócios; as sociedades personificadas e não personificadas; as consequências legais da não personificação e benefícios da personificação; aspectos gerais acerca das sociedades empresárias, como os elementos de contrato das sociedades empresárias, as sociedades de pessoas e de capital, a relação entre os sócios e as sociedades de capital e o princípio da autonomia patrimonial. No segundo capítulo, analisaremos a Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade Empresária. Veremos seu conceito; a evolução histórica; a desconsideração no Direito Comparado; a previsão legal da Teoria da Desconsideração no Direito Brasileiro; a finalidade da desconsideração da personalidade jurídica; suas consequências; a Teoria Maior e Menor da Desconsideração; a desconsideração e os direitos da personalidade; requisitos para sua aplicação; critérios para deferimento do pedido; e a sua função social. Por fim, no terceiro capítulo, abordaremos a Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica e alguns temas relativos, como: seu conceito; evolução no direito brasileiro; pressupostos para sua aplicação; aplicação dos princípios da 12 desconsideração da personalidade jurídica; efeitos da desconsideração inversa; sua aplicação no direito de família e no direito do trabalho; o posicionamento da Jurisprudência e, por fim, a opinião de um profissional da área. Importante ressaltar que não se tem o objetivo de esgotar o tema, mas principalmente apresentá-lo de uma forma ampla, sobretudo em razão de ser algo bastante recente no ordenamento jurídico brasileiro. 13 CAPÍTULO I 1. A SOCIEDADE EMPRESÁRIA – ASPECTOS RELEVANTES 1.1. Conceito de Pessoa no Direito Brasileiro De acordo com Washington de Barros Monteiro1 a palavra pessoa vem do latim persona que era uma máscara usada no teatro. Persona era derivação do verbo personare, que significava o ato de ecoar, fazer ressoar, isso porque a máscara tinha um dispositivo que fazia ressoar mais intensamente a voz do artista. Tempos depois, persona passou a significar o papel representado por aquele ator e, por fim, passou a indicar a própria pessoa que representava o papel. Para o citado autor, o Direito foi criado pela sociedade para regular as relações entre as pessoas que a compõe. Em uma ilha, composta apenas por um ser humano, não seria necessário que este se sujeitasse a nenhuma regra. A partir do momento que surge outro ser humano é necessário que entre eles existam regras para que haja um mínimo de convivência harmônica. É por isso que não existe sociedade sem Direito e nem Direito fora da sociedade. Ainda de acordo com o autor acima citado, os objetos e animais não são concebidos como sujeitos de direito. No máximo são considerados como coisas. Apenas as pessoas podem ser sujeitos de direitos. Observe-se que nem sempre todo ser humano foi sujeito de direitos. Antigamente os escravos eram considerados como coisas, ou seja, objetos que pertenciam a seus donos. Pela doutrina tradicional2 e pelo Código Civil em seu artigo 1º, pessoa é o “ser ao qual se atribuem direitos e obrigações”. o Art. 1 – Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. 1 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito Civil. v.1. São Paulo: Saraiva, 2006. p.58 e 59. 2 VENOSA, Silvo de Salvo. Direito Civil. v.1. São Paulo: Atlas, 2010. p. 133. 14 Fábio Ulhoa3 distingue pessoa de sujeito de direito. Para ele, “sujeito de direito é gênero do qual pessoa é espécie”. A pessoa pode realizar qualquer ato que não seja legalmente proibido. Por outro lado, conforme o autor acima citado, os sujeitos de direito despersonalizados só podem praticar os atos jurídicos autorizados legalmente e que são essenciais ao cumprimento de sua função. Ele cita como exemplos de sujeitos de direito despersonalizados a massa falida, o condomínio horizontal, o nascituro, o espólio etc. Ainda de acordo com o citado autor, é necessário distinguir os sujeitos de direito entre “humanos”, tendo como elementos a pessoa física e o nascituro, e inanimados, que são as pessoas jurídicas e outras entidades despersonalizadas. 1.1.1. Pessoa Física A pessoa física é o ser humano sujeito de direitos e obrigações. Porém não basta apenas que seja ser humano. Para adquirir a personalidade é necessário que esse ser humano nasça com vida. Dessa forma, o ser humano, ao nascer com vida, adquire a personalidade, conforme dispõe o artigo 2° do Código Civil: o Art. 2 A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Segundo Venosa4, a personalidade é uma “qualidade ou atributo do ser humano” que é essa aptidão de adquirir direitos e contrair obrigações ou deveres na ordem civil. No mesmo sentido, Carlos Roberto Gonçalves5 ensina que personalidade é a “possibilidade de figurar nos pólos da relação jurídica”. 3 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 09. 4 VENOSA., op. cit. p. 134. 5 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 71. 15 1.1.2. Pessoa Jurídica Segundo Carlos Roberto Gonçalves6, o ser humano é um ser social, pois não vive sozinho, mas sim, em grupos. Muitas vezes as necessidades e desejos dos indivíduos não podem ser supridos sem a ajuda de outras pessoas, em razão das limitações individuais de cada um. Tendo em vista que esta necessidade de união de esforços é uma necessidade humana, não há como ser ignorada pelo Direito, que, então, passou a regulá-las. O autor acima citado define as pessoas jurídicas como “entidades a que a lei confere personalidade, capacitando-as a serem sujeitos de direitos e obrigações”. De acordo com Fábio Ulhoa7, diante de seu posicionamento anteriormente exposto, vê-se que a pessoa jurídica é o “sujeito de direito inanimado personalizado”. O Mestre Luiz Otávio de Oliveira Amaral8 ensina que “pessoa jurídica é a existência jurídica de uma sociedade, associação ou instituição, que aferiu o direito de ter vida própria e isolada das pessoas físicas que a constituíram”. 1.1.2.1. Espécies de Pessoa Jurídica As pessoas jurídicas são divididas em dois grupos: as de direito público e as de direito privado, conforme se verifica no artigo 40 do Código Civil: Art. 40. As pessoas jurídicas são de direito público, interno ou externo, e de direito privado. Fábio Ulhoa9 esclarece que a distinção entre pessoa jurídica de direito público e de direito privado não se refere à origem dos recursos utilizados na formação, visto que existem pessoas jurídicas de direito privado formadas apenas com dinheiro 6 GONÇALVES. op cit. p. 181-182. COELHO, op cit., p. 11. 8 AMARAL, Luiz Otávio de Oliveira. Teoria geral do direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 276. 9 COELHO, op. cit., p. 11 7 16 público, bem como pessoas jurídicas de direito público formadas apenas com dinheiro de particulares. As pessoas jurídicas de direito público têm privilégios maiores dos que as de direito privado, notadamente pelo fato de que os interesses públicos têm mais importância do que os interesses privados. O citado autor leciona que de fato, o que diferencia as pessoas jurídicas de direito privado das de direito público é o regime jurídico a que estão submetidas. Existe uma prioridade maior em relação aos serviços de maior interesse, dessa forma, o interesse público tem uma valoração maior, e, portanto, tem uma maior importância, enquanto que os serviços realizados pelas pessoas jurídicas de direito privado, de regra, apenas interessa a um determinado grupo de pessoas, razão pela qual tem uma menor relevância. Conclui o autor acima referido que há ainda, a distinção, dentro do grupo de pessoas jurídicas de direito privado, entre as estatais e as particulares. Desta vez, a origem dos recursos é o que diferencia uma da outra. As estatais são aquelas nas quais têm colaboração do poder público, enquanto as particulares são formadas apenas por recursos particulares. Interessa, para este estudo, as pessoas jurídicas de direito privado constituídas por recursos particulares, tendo em vista que é onde se localiza a sociedade empresária. No artigo 44 do Código Civil estão presentes as pessoas jurídicas de direito privado: Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado: I – as associações; II – as sociedades; III – as fundações; IV – as organizações religiosas; V – os partidos políticos. Fábio Ulhoa10 explica que dentre as pessoas expostas no artigo 44 do Código Civil, apenas a fundação, a associação e a sociedade são pessoas jurídicas de direito privado particular. A fundação é resultante da “afetação de um patrimônio a determinadas finalidades, reputadas relevantes pelo instituidor”. Na associação e na 10 COELHO, op. cit. p. 13. 17 sociedade há a união de pessoas com objetivos iguais que se unem para alcançálos. A diferença entre elas é que na associação os objetivos podem ser filantrópicos, sociais, ou qualquer outro não econômico. Na sociedade o fim é econômico, ou seja, a união de esforços se dá com o objetivo de ganhar dinheiro. Segundo Rubens Requião11, a palavra sociedade é destinada para “designar a entidade constituída por várias pessoas, com objetivos econômicos”. O artigo 981 do Código Civil dispõe: Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados. Carlos Roberto Gonçalves12 ensina que dentro do conceito das sociedades, é importante destacar que existem as simples e as empresárias. A sociedade simples, em geral, é formada por profissionais de uma mesma área (médicos, dentistas, engenheiros, advogados etc.) que objetivam se unir para aferir lucro. Apesar de eventualmente poderem realizar atos próprios de empresário, o essencial é a atividade principal exercida por estes. A sociedade empresária será mais bem explicada em um tópico específico. 1.1.2.2. A Sociedade Empresária Fábio Ulhoa13, em análise sobre a necessidade de surgimento das sociedades, explica que a exploração de atividades econômicas de pequeno porte pode ser realizada apenas por uma pessoa natural. Quando essa atividade começa a crescer e se tornar mais complexa, surge a necessidade de aglutinar mais esforços de pessoas interessadas nos lucros que a atividade propicia. Tal aglutinação pode ter várias formas, dentre elas, a de uma sociedade. 11 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 28. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 387. 12 GONÇALVES, op. cit. p. 206. 13 COELHO, op. cit. p. 03. 18 Segundo Waldo Fazzio Júnior14, sociedade empresária é (...) a pessoa jurídica de direito privado, implementada por um contrato, cujo objeto social é a exploração de atividade empresarial, ou que, independentemente de seu objeto, adota a forma societária por ações. Fábio Ulhoa15 define a sociedade empresária como sendo “pessoa jurídica que explora uma empresa”. O citado autor ensina que não são os sócios que são empresários, mas sim a sociedade que é empresária, tendo em vista que é uma pessoa jurídica e tem existência própria, independente das pessoas que a constituiu. 1.2. Teorias Sobre a Pessoa Jurídica De acordo com Marlon Tomazette16, desde quando se iniciou o reconhecimento da existência das pessoas jurídicas como sujeitos distintos dos membros que a constituíram, surgiram diversas teorias que tentaram explicá-la. 1.2.1. Teoria Individualista De acordo com o citado autor, essa teoria foi formulada por Rudolf Von Ihering17, que acreditava que não existia personalidade jurídica própria para as pessoas jurídicas. De acordo com essa teoria, quem tinha a personalidade seriam as pessoas que compõe a sociedade e não a sociedade como ser autônomo. Essa teoria encontra-se superada. 14 JÚNIOR, Waldo Fazzio. Manual de direito comercial. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 110. COELHO, op. cit. p. 05. 16 TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. 2. ed. atual. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. p. 48. 17 Rudolf Von Ihering - Jurista e romancista alemão nascido em Aurich, Frísia, pioneiro na defesa da concepção do direito como produto social e fundador do método teleológico no campo jurídico e cuja obra influenciou diversas outras em todo o mundo ocidental. Iniciou o estudo do direito na famosa cidade universitária de Heidelberg, completando-o em Göttingen, e doutorou-se em direito na Universidade de Berlim (1842). No campo jurídico logo adquiriu renome e foi convidado para lecionar como professor universitário na Basiléia, Suíça (1845). Depois, lecionou sucessivamente nas universidades de Kiel (1849), de Giessen (1852), onde escreveu seu principal trabalho sobre Direito Romano e, finalmente, em Viena (1862-1872), onde se notabilizou como professor de Direito Romano. Estabeleceu seu pensamento jurídico, baseado no estudo das relações entre o direito e as mudanças sociais. Expôs seu trabalho em uma obra de quatro volumes Der Geist des römischen Rechts auf den verschiedenen Stufen seiner Entwicklung (1852-1865). A seguir passou a ensinar na Universidade de Göttingen, onde ficou por mais de 20 anos e escreveu outra importante obra: Der Zweck im Recht, 2 Vol (1877-1883). Figura ímpar na história do direito alemão, morreu em Göttingen, Alemanha. Outras obras de destaque suas foram Ueber den Grund des Besitzesschutzes (1869), Der Kampf ums Recht (1872), Das Trinkgeld (1882), Scherz und Ernst in der Jurisprudenz (1884) e Der Besitzwille (1889). 15 19 1.2.2. Teoria da Ficção Ainda conforme o referido autor, essa teoria foi criada por Savigny18, e afirmava que a pessoa jurídica era um ser fictício e sua personalidade era artificial, tendo em vista que a expressão da vontade é inerente apenas aos seres humanos. A principal crítica dessa teoria é que vê a sociedade apenas como um ente fictício. 1.2.3. Teoria da Vontade Da mesma forma, o supracitado autor explica que essa teoria, assim como a da ficção, acredita que a vontade é personificada. A vontade do ser humano é que teria personalidade, e nas sociedades, a vontade que a criou é que tem personalidade. Comete, também, o mesmo erro da teoria da ficção, pois vê a sociedade como um ente fictício. 1.2.4. Teoria do Patrimônio de Afetação Continuando, o citado autor explica que, segundo essa teoria, a personalidade pertencia ao patrimônio separado para a constituição da sociedade. Tal teoria não prosperou pelo fato que o patrimônio não é fundamental para constituição da sociedade, pois há pessoas jurídicas que existem independentemente de terem um patrimônio. 18 Friedrich Karl von Savigny - Jurista alemão nascido em Frankfurt am Main, um dos fundadores da chamada escola histórica da jurisprudência. De origem nobre, fez o curso de direito nas universidades de Marburg e Göttingen, Alemanha, e firmou sua reputação ao publicar Das Recht des Besitzes(1803). Professor de direito romano na Baviera (1808), assumiu a cadeira dessa matéria na Universidade de Berlim (1810). Como professor de direito em Heidelberg (1814), em oposição a idéia de um código civil único para todos os estados alemães, escreveu o panfletoVom Beruf unserer Zeit für Gesetzgebung und Rechtswissenschaft (1814), em que defendeu, como pré-requisito para elaboração de leis, a apreciação do espírito de cada comunidade em particular. Fundou (1815), juntamente com outros colaboradores, o Zeitschrift für geschichtliche Rechtswissenschaft, o Jornal de Jurisprudência Histórica, que se tornou o órgão de divulgação da nova escola. Foi nomeado para integrar a comissão de revisão do código prussiano (1826) e abandonou a carreira universitária (1842) para assumir o cargo ministerial de chefe do recém-criado Departamento de Revisão de Estatutos e encerrou sua carreira oficial com a revolução (1848). Faleceu em Berlim, Prússia, e entre suas mais importantes obras figuraram a monumental Geschichte des römischen Rechts im Mittelalter (1815-1831), a base do estudo moderno do direito medieval, e System des heutigen römischen Rechts (1840-1849), sobre o direito romano na Europa moderna. 20 1.2.5. Teoria da Instituição Marlon Tomazette19, citando Maurice Hauriou, afirmou que as pessoas jurídicas eram “instituições destinadas a execução de um serviço público ou privado, construções destinadas ao atendimento de uma finalidade. Nem toda instituição seria uma pessoa moral, mas toda pessoa moral seria uma instituição”. Silvio Rodrigues20, discorrendo sobre a Teoria da Instituição assim explica: (...) A constituição de uma instituição envolve: uma idéia que cria um vínculo social, unindo indivíduos que visam a um mesmo fim; e uma organização, ou seja, um conjunto de meios destinados à consecução do fim comum. A instituição tem uma vida interior representada pelas atividades de seus membros, que se reflete numa posição hierárquica estabelecida entre os órgãos diretores e os demais componentes, fazendo, assim, com que apareça uma estrutura orgânica. Sua vida exterior, por outro lado, manifesta-se através de sua atuação no mundo do direito, com o escopo de realizar a idéia comum. Segundo Tomazette21, diante desse conceito do que é a instituição, não seria possível se adaptar às sociedades e associações, tendo em vista que “suprime a realidade dos associados que são o elemento dominante em tais pessoas jurídicas”. 1.2.5. Teoria da Realidade Objetiva ou Orgânica Essa teoria, de acordo com o autor citado acima, vê a pessoa jurídica como uma realidade que preexiste a lei. As pessoas jurídicas possuíam uma vontade própria, manifestando ainda um direito exercido por um sujeito de direito. Desta forma, pode-se ver que essa teoria vê a pessoa jurídica como um “organismo natural”, assim como os seres humanos, “possuindo uma vontade própria, interesses próprios e patrimônio próprio”. Porém, de acordo com o referido autor, o erro desta teoria é identificar a vontade da pessoa jurídica com a da pessoa física, tendo em vista que a realidade orgânica existe apenas nos seres humanos. 19 Tomazette, op. cit. p. 51. – apud -– HAURIOU, Maurice. La teoría de la institución y de la fundación. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1968, p. 41. 20 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 30. ed., São Paulo: Saraiva, 2000, v.1, p. 66-67. 21 TOMAZETTE, op. cit. p. 52. 21 1.2.6. Teoria da Realidade Técnica Essa é a teoria mais aceita pela doutrina. Tomazette22 explica que a existência da pessoa jurídica é reconhecida pelo direito, porém essa realidade não se confunde com a realidade do ser humano. A realidade conferida às pessoas jurídicas é meramente técnica. Essa é a posição sofre críticas pelo fato de ser extremamente positivista, mas é a mais aceita. 1.3. Aquisição da Personalidade e da Capacidade da Sociedade Empresária Segundo Rubens Requião23, após a formação da sociedade comercial pela união das vontades individuais, a principal consequência é o surgimento de sua personalidade jurídica. Essa sociedade passa a ter existência independente da de seus sócios, possuindo um patrimônio próprio, órgãos de deliberação e execução que ditam e fazem cumprir a sua vontade. Seu patrimônio, em relação às obrigações, assegura sua responsabilidade direta em relação a terceiros. No direito brasileiro, às sociedades foi conferida ampla personalidade. Para Fábio Ulhoa24, isso significa dizer que em razão de ser “sujeito de direito inanimado personalizado”, pode praticar qualquer ato ou negócio jurídico que a lei não proíba. Dessa forma, tendo em vista que a sociedade é sujeito de direito personalizado, é também, nos termos do artigo 1º do Código Civil, capaz de direitos e deveres na ordem civil. Waldo Fazzio Júnior25 explica que “a personalidade jurídica da sociedade empresária começa com o registro, cujos efeitos retroagem à data do ato constitutivo”. Dessa forma, a partir do arquivamento do ato na junta comercial, é quando de fato, a sociedade adquire sua personalidade jurídica. 22 TOMAZETTE, op. cit. p. 54. REQUIÃO, op. cit. p. 402-403. 24 COELHO, op. cit. p. 11. 25 JÚNIOR, op. cit. p. 112-113. 23 22 Rubens Requião26 explica que os principais efeitos da personalidade jurídica são os seguintes: 1. Será considerada como uma pessoa, ou seja, sujeito capaz de direitos e deveres. E, conforme o artigo 1.022 do Código Civil: Art. 1.022. A sociedade adquire direitos, assume obrigações e procede judicialmente, por meio de administradores com poderes especiais, ou, não os havendo, por intermédio de qualquer administrador. 2. Tendo em vista que a sociedade tem personalidade jurídica própria, independente da existência dos sócios que a constituíram, estes não adquirem qualidade de comerciantes. 3. Possui patrimônio próprio, que responde pelas obrigações por ela assumidas. 4. Pode modificar sua estrutura, jurídica e economicamente, ou apenas substituindo as pessoas pela cessão ou transferência de parte do capital. 1.3.1. O Registro da Sociedade Empresária O artigo 45 do Código Civil dispõe: Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. Da mesma forma, a sociedade também adquire sua personalidade jurídica a partir do registro: Art. 985. A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos (arts. 45 e 1.150). Gladston Mamede27 afirma que o ato constitutivo é o primeiro documento escrito que compõe a pessoa jurídica. Na sociedade simples comum, na sociedade 26 REQUIÃO, op. cit. p. 413. MAMEDE, Gladston. Direito societário: sociedades simples e empresárias. V. 2. São Paulo: Atlas, 2004. p. 62. 27 23 em nome coletivo, na sociedade em comandita simples e na sociedade limitada, o ato constitutivo será um contrato social. Já na associação, na fundação, na sociedade cooperativa, na sociedade anônima ou na sociedade em comandita por ações, o ato constitutivo será o estatuto. Explica ainda o referido autor que o ato constitutivo é um acordo de vontades, registrado no documento próprio e que rege a relação entre os membros da sociedade, definindo como aquelas pessoas irão administrar a sociedade. O autor acima citado ensina que, internamente, entre os sócios, não existe personificação, e, inclusive, compara a sociedade a um dragão chinês: no lado externo, todos vêem um dragão, mas internamente existem as pessoas que devem realizar atos ordenados para movimentarem corretamente o dragão. De acordo com Fábio Ulhoa28, basta a união de vontades para que exista a nova pessoa, ou seja, basta o contrato, mesmo que verbal. Certamente, caso não seja efetuado o registro, a situação dela estará irregular. Mas, mesmo assim já deve ser considerada uma pessoa, “tendo em vista o conceito de personalização, que é o de atribuição genérica de aptidão para os atos jurídicos”. Diante do exposto, conclui-se que o início da personalidade da sociedade empresária se dá com o registro de seu ato constitutivo (contrato social) na respectiva junta comercial, iniciando-se assim os efeitos de sua personalidade. 1.3.2. O Nome e a Responsabilidade dos Sócios O artigo 16 do Código Civil, assim determina: Art. 16. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome. Já o artigo 52 prevê expressamente: Art. 52. Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade. 28 COELHO, op. cit. p. 24 Gladston Mamede29 ensina que o nome é um: (...) sinal linguístico que permite a determinação de sua identidade e de sua individualidade, regra que não se limita às pessoas naturais, que têm prenome e sobrenome, estendendo-se às pessoas jurídicas. O nome é um direito da personalidade e serve para identificar e individualizar as pessoas. Existem duas formas de nome para a sociedade: a firma social ou razão social, ou a denominação. De acordo com o referido autor, a firma é composta pelo nome pessoal do empresário ou dos sócios, no caso da sociedade. A firma social deve-se submeter ao principio da veracidade, pois é preciso refletir verdadeiramente a composição societária. Por essa razão, caso um sócio venha a falecer, for excluído ou se retirar da sociedade, seu nome não poderá mais fazer parte da firma social. Continua o citado autor que o uso da firma social é obrigatório em sociedades em que os sócios respondem com seu patrimônio pessoal pelas obrigações da sociedade. Porém, não é necessário que a firma seja composta pelo nome de todos os sócios. Pode-se usar o nome de apenas um, acrescido da expressão e companhia, ou sua forma abreviada e Cia ou & Cia. Por exemplo, caso haja uma sociedade composta com os sócios José Nilson, Carlos Roberto e João da Silva, poder-se-ia usar José Nilson & Cia, mas usar o nome José Nilson, Carlos Roberto e João da Silva & Cia não seria possível, pois iria ferir o Princípio da Veracidade. Ainda de acordo com Mamede, importante observar que apenas o uso da firma não significa necessariamente que a responsabilidade dos sócios é ilimitada. A sociedade limitada, em que os sócios não respondem com seu patrimônio pelas obrigações da sociedade, pode utilizar a firma, porém deve usar a expressão limitada ou sua abreviatura ltda. Explica ainda o autor supracitado que o uso da denominação confere ao sócio uma liberdade maior, tendo em vista que não precisa respeitar o Princípio da Veracidade, ou seja, pode utilizar qualquer palavra na composição de seu nome, 29 MAMEDE, op. cit. p. 93. 25 devendo respeito apenas ao Princípio da Novidade, o que significar dizer que no uso da denominação, o nome deve ser único para que não haja confusão. Porém, o de acordo com o autor supracitado, não se admite uso de “palavrões, palavras que firam o pudor, nomes ou apelidos de pessoas naturais que não tenham expressamente admitido a sua utilização, termos ou expressões que possam enganar ou confundir o público”, dentre outras hipóteses. Ou seja, uso dos termos não pode contrariar a moral pública. Ainda de acordo com os ensinamentos do citado autor, analisemos como se compõe o nome de acordo com o tipo da sociedade: 1. Sociedade em nome coletivo: deve-se se usar a firma, respeitando o Princípio da Veracidade. Caso use o nome de apenas um, devese acrescentar a expressão e companhia ou sua abreviatura e Cia ou & Cia. 2. Sociedade em comandita simples: tendo em vista que neste tipo societário existem sócios tanto de responsabilidade limitada como ilimitada, usará firma, composta com o(s) nome(s) do(s) sócio(s) de responsabilidade ilimitada. 3. Sociedade limitada: pode usar firma ou denominação, porém é obrigatório o acréscimo da expressão limitada ou a abreviatura ltda. 4. Sociedade cooperativa: usa-se denominação, acrescentando-se, obrigatoriamente, a palavra cooperativa e a descrição de seu objeto social. 5. Sociedade anônima: usará denominação, além de especificar o tipo de sociedade, através da expressão sociedade anônima ou suas formas abreviadas: S.A ou S/A, colocando-se em qualquer local do nome, ou da palavra companhia ou suas abreviações, colocadas no 26 início ou no meio do nome. Deve-se acrescentar a designação do objeto social. 6. Sociedade em comandita por ações: pode ser usada tanto a firma como denominação. Se for usada a firma, deve conter apenas o nome do sócio que responde ilimitadamente, no caso, diretores ou gerentes. Deve constar ainda a expressão comandita por ações no nome empresarial. Caso seja utilizada a denominação, além da expressão comandita por ações, deve-se designar o objeto social. 7. Microempresa e empresa de pequeno porte: deve-se usar, ao final do nome empresarial, a expressão microempresa ou empresa de pequeno porte, ou suas abreviações, respectivamente, ME ou EPP. Por fim, o autor acima referido ressalta que não se deve confundir nome empresarial com titulo do estabelecimento. O nome é a identificação da sociedade, já o título do estabelecimento é um nome fantasia dado ao estabelecimento. Temos como exemplo a Companhia Brasileira de Distribuição que tem como título do estabelecimento EXTRA. 1.4. As Sociedades Personificadas e Não Personificadas São personificadas as seguintes sociedades: 1) Sociedade Simples – A sociedade simples, conforme visto acima, é a união de profissionais de uma mesma área, que se unem com o objetivo de auferir lucro. 2) Sociedade em Nome Coletivo – De acordo com Mamede30, pode ser simples ou empresária e só pode ter como sócios pessoas físicas, tendo em vista que é “sociedade intuito personae cuja presença na coletividade social é fruto de mútuo reconhecimento e aceitação”. 30 MAMEDE, op. cit. p. 102. 27 3) Sociedade em Comandita Simples – o supracitado autor explica que comanditar “traduz a ideia de prover fundos para uma atividade negocial, simples ou empresária, que será gerida por terceiros”. Existem dois tipos de sócios: os comanditários que provém os fundos; e o comanditado, que administra a atividade negocial. 4) Sociedade Limitada – Este tipo societário é explicado no artigo 1.052 do Código Civil, que assim dispõe: Art. 1.052. Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social. 5) Sociedade Anônima – Na sociedade anônima, que também é chamada de companhia, há a divisão do capital em ações, e cada sócio responde apenas pelo preço de emissão das ações que subscrever ou adquirir. Nesse sentido, dispõe o artigo 1.088 do Código Civil: Art. 1.088. Na sociedade anônima ou companhia, o capital divide-se em ações, obrigando-se cada sócio ou acionista somente pelo preço de emissão das ações que subscrever ou adquirir. 6) Sociedade em Comandita por Ações – O autor acima citado31 explica que a sociedade por ações pode adquirir a forma de sociedade em comandita por ações, que é a sociedade na qual “o capital está igualmente dividido em ações e que se rege pelas normas aplicáveis à sociedade anônima”. 7) Sociedade Cooperativa – Ainda de acordo com Mamede, são sociedades simples que têm finalidade econômica, mas não têm finalidade lucrativa. “O objeto social de uma sociedade cooperativa será um gênero de serviço, operação ou atividade, prestados diretamente a seus cooperados”. 31 MAMEDE, op. cit. p. 194. 28 Não personificadas: 1) Sociedade em comum – De acordo com Fran Martins32, são conhecidas também como sociedades de fato, e são aquelas que desempenham suas atividades sem organização legal, ou seja, sem registro na junta comercial, e, portanto, não têm personalidade. 2) Sociedade em conta de participação – De acordo com o autor acima citado, é a união de duas ou mais pessoas, “com identidade de propósitos, e qualidade comum, sendo uma delas empresária, desenvolve uma ou mais atividades, cuja responsabilidade cabe ao sócio ostensivo”. 1.4.1. As Consequências Legais da Não Personificação O arquivamento dos atos constitutivos da empresa é uma das obrigações dos sócios. Como já visto anteriormente, a aquisição da personalidade jurídica da sociedade se dá com o registro da empresa, que acontece com o arquivamento dos atos constitutivos na junta comercial. De acordo com João Glicério de Oliveira Filho33, caso o sócio assim não proceda, será considerado empresário irregular ou de fato, e sofrerá diversas consequências, dentre as quais: 1. Não poderá requerer recuperação judicial – a Lei 11.101/2005 exige, em seu artigo 48, que para requerer o benefício da recuperação judicial deve-se exercer regularmente sua atividade há pelo menos 2 (dois) anos, dentre outros requisitos; 2. Não poderá requerer falência de um devedor seu – o artigo 97, § 1°, da Lei 11.101/2005 assim dispõe: 32 MARTINS, Fran. Curso de direito comercial. 33. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 219. 33 FILHO, João Glicério de Oliveira. Do registro de empresa: Uma análise dos dez anos da Lei nº 8934/1994 diante do Código Civil Brasileiro de 2002. Disponível em: http://www.juspodivm.com.br/i/a/%7BDB3FFC04-9CFD-47AF-A092A130966268BC%7D_DO%20REGISTRO%20DE%20EMPRESA,%20UMA%20AN%C3%81LISE%20 DOS%20DEZ%20ANOS%20DA%20LEI%20N%5B1%5D.doc. Acesso em: 12 de setembro de 2010 às 08h30m. 29 Art. 97. Podem requerer a falência do devedor: (...) o § 1 O credor empresário apresentará certidão do Registro Público de Empresas que comprove a regularidade de suas atividades. 3. Seus livros comerciais não poderão ser autenticados – dentre as atividades das juntas comerciais, umas delas é o ato de autenticação. Essa autenticação se refere à escrituração dos empresários. As sociedades devem autenticar seus livros, pois é uma condição de regularidade. Essa autenticação está prevista no artigo 39 da Lei 8.934/94. Art. 39. As juntas comerciais autenticarão: I - os instrumentos de escrituração das empresas mercantis e dos agentes auxiliares do comércio; II - as cópias dos documentos assentados. Parágrafo único. Os instrumentos autenticados, não retirados no prazo de 30 (trinta) dias, contados da sua apresentação, poderão ser eliminados. O parágrafo único do artigo 1.181 do Código Civil assim dispõe: Art. 1.181. (...) Parágrafo único. A autenticação não se fará sem que esteja inscrito o empresário, ou a sociedade empresária, que poderá fazer autenticar livros não obrigatórios. 4. Não poderá se habilitar nas licitações – a licitação é a forma de contratar com o poder público. Para se habilitar, o artigo 28, inciso III, assim exige: Art. 28. A documentação relativa à habilitação jurídica, conforme o caso, consistirá em: (...) III – ato constitutivo, estatuto ou contrato social em vigor, devidamente registrado, em se tratando de sociedades comerciais, e, no caso de sociedades por ações, acompanhado de documentos de eleição de seus administradores; (...) (grifo nosso). 5. Responsabilidade solidária e ilimitada – o artigo 990 do Código Civil assim determina: Art. 990. Todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais, excluído do benefício de ordem, previsto no art. 1.024, aquele que contratou pela sociedade. 30 Isto se dá pelo fato de que, tendo em vista que esta sociedade não tem personalidade, não há o que se falar em autonomia patrimonial. 6. Os bens e as dívidas são patrimônio comum dos sócios – O artigo 988 do Código Civil assim determina: Art. 988. Os bens e dívidas sociais constituem patrimônio especial, do qual os sócios são titulares em comum. Esta consequência se dá também pelo fato da inexistência de autonomia patrimonial da sociedade não personificada. 7. Só poderá provar as relações entre si e com terceiros por escrito, conforme determina o artigo 987 do Código Civil: Art. 987. Os sócios, nas relações entre si ou com terceiros, somente por escrito podem provar a existência da sociedade, mas os terceiros podem prová-la de qualquer modo. 8. A sociedade também não possuirá CNPJ e, portanto, terá que arcar com as consequências legais, em especial, tributárias. 9. Não possuirão cadastro junto ao INSS e, portanto, arcará com os prejuízos, inclusive penais, dependendo do caso, diante desta irregularidade. 10. Por fim, não será possível adotar a forma de microempresa, não podendo usufruir dos benefícios desta condição. 31 1.4.2. Os Benefícios Legais da Sociedade Personificada De acordo com Waldo Fazzio Júnior34, os efeitos da aquisição da personalidade jurídica são os seguintes: 1. Titularidade Jurídica Negocial: é a realização de negócios pela pessoa jurídica. No caso, o sócio atua representando a pessoa jurídica e, dessa forma, quem realiza o negocio é esta; 2. Titularidade Jurídica Processual: é a possibilidade de figurar em um dos pólos da relação jurídica; possibilidade de demandar e ser demandada juridicamente; e 3. Titularidade Jurídica Patrimonial: tem patrimônio próprio, que não se confunde com os bens de seus sócios e esses bens respondem pelas obrigações que a pessoa jurídica assumir. Como já analisado anteriormente, a partir do conceito de Fábio Ulhoa 35, ao adquirir personalidade, a nova pessoa jurídica goza de ampla capacidade. Isso é, pode fazer tudo o que a lei não proíbe. Comparativamente ao explicado anteriormente, vê-se que a pessoa jurídica pode requerer recuperação judicial (caso esteja em funcionamento regular a pelo menos dois anos e preencha outros requisitos); pode requerer a falência de um devedor seu; seus livros podem ser autenticados; podem se habilitar em processo licitatório e, portanto, contratar com o poder público; em decorrência da autonomia patrimonial, o patrimônio pessoal do sócio não responde pelas obrigações da sociedade, e mesmo quando este sócio tiver responsabilidade ilimitada, sua responsabilização será subsidiária, ou seja, primeiro deverá esgotar todo o patrimônio social; dentre várias outras vantagens. 34 35 JÚNIOR, op. cit. p. 114. COELHO, op. cit. p. 09. 32 1.5. Aspectos Relevantes das Sociedades Empresárias Nesta parte, serão analisados alguns aspectos relevantes acerca das sociedades empresárias. 1.5.1. Elementos do Contrato de Sociedade Empresária 1.5.1.1. Elementos Gerais De acordo com Marlon Tomazette36, Os elementos gerais que compõe a sociedade são o consenso, objeto lícito e a forma prescrita ou não defesa em lei. Passemos a analisar cada um deles. 1.5.1.1.1. Consenso O consenso é abordado por Rubens Requião37 e significa uma livre manifestação da vontade de se associar. O consenso se refere ainda à capacidade do agente que deseja se associar. 1.5.1.1.2. Objeto Lícito Segundo Tomazette38, deve haver licitude do objeto social. As atividades sociais não podem violar a lei nem os bons costumes. Caso haja presença de contrato que fere a lei ou os bons costumes, as juntas comerciais não arquivam seus atos constitutivos. Nesse sentido, determina a Lei 8.934/94, em seu artigo 35, I: Art. 35. Não podem ser arquivados: I - os documentos que não obedecerem às prescrições legais ou regulamentares ou que contiverem matéria contrária aos bons costumes ou à ordem pública, bem como os que colidirem com o respectivo estatuto ou contrato não modificado anteriormente; 36 TOMAZETTE, op. cit. p. 33. REQUIÃO, op cit. p. 416. 38 TOMAZETTE, op. cit. p. 35. 37 33 1.5.1.1.3. Forma Prescrita em Lei Rubens Requião39 afirma que, no direito brasileiro, a lei não exige forma especial para a formação da sociedade. Nesse mesmo sentido Tomazette40 ensina que basta a manifestação de vontade de duas ou mais pessoas para a formação da sociedade. Porém, conforme o autor acima citado, para se adquirir personalidade jurídica e gozar de vantagens concedidas pelas leis mercantis e tributárias, deve-se arquivar seus atos na junta comercial, tema já abordado anteriormente. Desta forma, de acordo com o referido autor, pode-se ver que a forma das sociedades empresárias é livre, e para que obtenham algumas vantagens, deve ser realizada de forma escrita e o consequente arquivamento dos atos constitutivos na Junta Comercial. 1.5.1.2. Elementos Específicos Conforme ensina o autor supracitado, os elementos específicos do contrato de sociedade empresária são a pluralidade de sócios; a contribuição para o capital social; a participação nos lucros e nas perdas; e a affectio societatis. 1.5.1.2.1. Pluralidade de Sócios O referido autor nos lembra que contrato é o acordo de vontades entre duas ou mais pessoas. Desta forma, é inegável que no contrato social também exista essa exigência. Pode-se ver que em alguns dispositivos do Código Civil exige-se a presença de duas ou mais pessoas. No artigo 997, I do Código Civil que trata dos elementos do contrato social da sociedade simples, exige-se: nome, nacionalidade, estado civil, profissão e residência dos sócios. Desta forma, por estar escrito no plural, vê-se que a sociedade, em regra, não pode ser composta por apenas uma 39 40 REQUIÃO, op. cit. p. 417. TOMAZETTE, op. cit. p. 22. 34 pessoa. O artigo 981 estabelece que celebram contrato de sociedade as pessoas, igualmente escrito no plural. Diante no exposto, vemos que a presença de duas ou mais pessoas é uma exigência legal. 1.5.1.2.2. Contribuição para o Capital Social O capital social, de acordo com Tomazette41, é o patrimônio inicial da sociedade, que é formado no momento de sua constituição. É conhecido também como fundo inicial. Todos os sócios devem contribuir para o capital social. Em regra, esta contribuição se dá por dinheiro, porém pode ser feita ainda com bens ou trabalho. O capital social não se confunde com o patrimônio social, visto que o capital social é a base econômica que garante o funcionamento da sociedade, enquanto o patrimônio está oscilando a todo o momento. A integralização de patrimônio ao capital social se dá em regra no começo da sociedade, mas pode ser realizado a qualquer momento. 1.5.1.2.3. Participação nos Lucros e nas Perdas O artigo 1.008 do Código Civil assim determina: Art. 1.008. É nula a estipulação contratual que exclua qualquer sócio de participar dos lucros e das perdas. Apesar de essa estipulação estar prevista no capítulo referente à sociedade simples, Tomazette42 lembra que “se aplica subsidiariamente aos demais tipos societários”. De acordo com o autor supracitado, a participação nos lucros e nas perdas pode não se dar de forma igualitária, como muitas vezes acontece, porém em maior ou menor proporção, ela deve estar presente. A forma dessa divisão desigual deve estar prevista nos atos constitutivos destas sociedades, e caso não haja estipulação 41 42 TOMAZETTE, op. cit. p. 38. TOMAZETTE, op. cit. p. 40. 35 expressa, se dará de forma proporcional à participação no capital social. Nesse sentindo, dispõe o Art. 1.007 do Código Civil: Art. 1.007. Salvo estipulação em contrário, o sócio participa dos lucros e das perdas, na proporção das respectivas quotas, mas aquele, cuja contribuição consiste em serviços, somente participa dos lucros na proporção da média do valor das quotas. 1.5.1.2.4. Affectio Societatis É a característica mais específica da sociedade. Não significa apenas o acordo de vontade. Quer dizer, conforme explica o citado autor, a “vontade de cooperação ativa dos sócios, a vontade de atingir um bem comum”. E, de acordo com Rubens Requião43, a affectio societatis é o que distingue a sociedade dos demais tipos de contratos. 1.5.2. As Sociedades de Pessoas e as Sociedades de Capital De acordo com Fábio Ulhoa44, este critério busca analisar “o grau de dependência da sociedade em relação às qualidades subjetivas dos sócios”. Certamente, é impossível a existência de uma sociedade sem algum destes elementos (sócios e capital). Porém, tal classificação visa averiguar a maior ou menor relevância de cada um destes elementos, a depender da sociedade. Isso quer dizer que em alguns tipos de sociedade depende-se das características dos sócios, ou seja, de suas qualidades como pessoas, enquanto que em outros tipos de sociedades tais atributos não têm importância. Como exemplo, temos a situação de duas amigas que resolvem se associar e abrir um salão de beleza feminino. Neste caso, é necessário observar os atributos pessoais de cada um delas, sua qualidade como manicure ou cabeleireira, seu grau de comprometimento com as clientes, sua organização na realização dos serviços, dentre outros atributos. 43 44 REQUIÃO, op. cit. p. 427. COELHO, op. cit. p.24. 36 Nestes casos, onde se deve averiguar as características pessoais dos sócios, Fábio Ulhoa45 ensina que a “cessão da participação societária depende da anuência de outros sócios”, ou seja, para que se possa, no exemplo dado, contratar uma nova manicure, é preciso que as outras sócias concordem. Nas sociedades de capital, conforme o citado autor, os atributos dos sócios não influenciam em nada para o bom andamento do negócio. Basta apenas que o sócio empregue o capital na atividade. Como exemplo, temos uma grande empresa que tenha vários sócios acionistas. Basta apenas o investimento desse sócio para que tudo ocorra da melhor forma possível. Neste tipo de empresa, “o sócio pode alienar sua participação societária a quem quer que seja, independente da anuência dos demais”. 1.5.3. O Princípio da Autonomia Patrimonial De acordo com o supracitado autor, o princípio da autonomia patrimonial é decorrência da aquisição da personalidade jurídica da sociedade. Ou seja, para que exista a autonomia, é necessário que a sociedade seja personalizada. O referido autor ensina que a atividade empresária tem como característica ser muito arriscada. A empresa está exposta a muitos fatores que em alguns casos podem significar seu sucesso e outros que podem acarretar o seu fracasso. Os sócios, quando vão se “arriscar” nessa atividade, separaram um patrimônio especifico para investir na sociedade. O Princípio da Autonomia Patrimonial tem esse objetivo de motivar as pessoas a se associarem, pois, caso a atividade não dê certo por eventual erro dos sócios ou por razões alheias à vontade das pessoas, o patrimônio separado é que responderá pelos prejuízos advindos do fracasso da sociedade, e dependendo do tipo de sociedade, após a liquidação da empresa que o patrimônio dos sócios responderá pelas obrigações sociais. Além do mais, segundo o referido autor, caso não existisse a autonomia patrimonial, as pessoas apenas investiriam em empresas grandes, que seus lucros 45 COELHO, op. cit. p. 25. 37 permitiriam que o sócio formasse um grande patrimônio, que não se perdesse completamente no caso de responsabilização do sócio. Para que haja um lucro de tamanhas proporções, seria necessário que a empresa reduzisse os custos e praticasse preços elevados. O Princípio da Autonomia Patrimonial “socializa as perdas decorrentes do insucesso da empresa entre seus sócios e credores, propiciando o cálculo empresarial relativo ao retorno dos investimentos”. A autonomia patrimonial encontra-se descrita no artigo 1.023 do Código Civil: Art. 1.023. Se os bens da sociedade não lhe cobrirem as dívidas, respondem os sócios pelo saldo, na proporção em que participem das perdas sociais, salvo cláusula de responsabilidade solidária. O Desembargador Henrique Oswaldo Poeta Roenick, citado por Eduardo Lessa Bastos46, assim fundamentou: (...) A regra geral, em todos os domínios do ordenamento jurídico, continua sendo a da distinção entre o patrimônio da empresa e o dos seus sócios, princípio que somente cede diante das circunstâncias especiais em que se admite a desconsideração da personalidade. O Código Civil de 2002 não repetiu o artigo 20 do Código Civil de 1916, porém, de acordo com a jurisprudência, o artigo 1.023 do Código Civil de 2002 é equivalente: (...) Acontece que não se pode confundir a pessoa física com a pessoa jurídica. É o que dizia o art. 20, do Código Civil de 1916: “As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”. Embora esse dispositivo não tenha sido repetido no Código Civil de 2002, manteve-se essa característica, como se apanha, por exemplo, do art. 1.023 do novo Estatuto: “Se os bens da sociedade não lhe cobrirem as dívidas, respondem os sócios pelo saldo, na proporção em que participarem das perdas sociais, salvo cláusula de responsabilidade solidária”. Apelação Cível em Mandado de Segurança Processo: 2005.022620-7; Relator: Jaime Ramos; Data: 20/09/2005. 46 BASTOS, Eduardo Lessa. Desconsideração da personalidade jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 10. 38 A autonomia patrimonial pode ser verificada, ainda, na hipótese prevista no artigo 596 do Código de Processo Civil: Art. 596. Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade senão nos casos previstos em lei; o sócio, demandado pelo pagamento da dívida, tem direito a exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade. o § 1 Cumpre ao sócio, que alegar o benefício deste artigo, nomear bens da sociedade, sitos na mesma comarca, livres e desembargados, quantos bastem para pagar o débito. Neste capítulo, pôde-se concluir que o Direito conferiu personalidade às sociedades, com o objetivo de reduzir os riscos da atividade empresarial e trazer melhores estímulos para seu exercício. Porém, sabe-se que, infelizmente, existem pessoas mal intencionadas que buscam no ramo empresarial formas de praticar diversos atos inidôneos. É nestes casos que se aplica a desconsideração momentânea da personalidade jurídica, tema que será mais bem abordado no próximo capítulo. 39 CAPÍTULO II 2. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA 2.1. Conceito de Desconsideração da Personalidade A desconsideração da pessoa jurídica ou teoria da penetração também é conhecida como disregard of legal entity, disregard doctrine, lifting the corporate veil (Estados Unidos), superamento della personalitá guiridica (Itália) e durchgriff der juristichen person (Alemanha). De acordo com Fábio Ulhoa47, apesar das diversas vantagens advindas da personalidade jurídica, em muitos casos a autonomia patrimonial é utilizada de forma incorreta, pois pode-se usar a sociedade para se realizar fraude contra os credores, ou mesmo prática de abuso de direito. Muitas vezes, interesses de credores ou de terceiros, lembra o citado autor, “são indevidamente frustrados por manipulações na constituição de pessoas jurídicas, celebração dos mais variados contratos empresariais, ou mesmo realização de operações societárias...”. Todos esses artifícios são realizados por trás do “véu da personalidade jurídica”, ou seja, sob sua proteção. Tendo em vista que com a personalização fica difícil de corrigir a fraude ou o abuso, deve o juiz desconsiderar momentaneamente esta personalidade. Tal desconsideração se dá de forma excepcional e apenas para resolver determinada situação. O citado autor nos lembra que: (...) a teoria da desconsideração da pessoa jurídica, é necessário deixar bem claro esse aspecto, não é uma teoria contra a separação subjetiva entre a sociedade empresária e seus sócios. Muito ao contrário, ela visa preservar o instituto, em seus contornos fundamentais, diante da possibilidade de o desvirtuamento vir a comprometê-lo. 47 COELHO, op. cit. p. 34. 40 Ou seja, ela protege e defende o princípio da autonomia patrimonial pelo fato de que busca formas para protegê-la dos que estão mal intencionados. Marlon Tomazette48 define a desconsideração da personalidade jurídica da seguinte forma: (...) A desconsideração da personalidade jurídica é a retirada episódica, momentânea e excepcional da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a fim de estender os efeitos de suas obrigações à pessoa de seus sócios ou administradores, com o fim de coibir o desvio da função da pessoa jurídica, perpetrado por estes. Deve-se esclarecer que, conforme lembra o citado autor, a teoria da desconsideração não é contra a personalidade jurídica das sociedades, ao contrário, ela serve justamente para proteger as sociedades contra pessoas mal intencionadas que usam a personalidade jurídica da sociedade para concretizar suas atitudes maléficas à sociedade. Para a Ministra Nancy Andrighi: (...) A desconsideração da personalidade jurídica pode ser entendida como o afastamento episódico da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, com o intuito de, mediante a constrição do patrimônio de seus sócios ou administradores, possibilitar o adimplemento de dívidas assumidas pela sociedade.(REsp 948117 / MS RECURSO ESPECIAL 2007/0045262-5. Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI. Julgado em 22/06/2010) Da mesma forma, podemos ver pelos ensinamentos de Luiz Guilherme Marinoni e Lima Júnior49 que: (...) o afastamento da forma externa da pessoa moral permite que se busque no patrimônio pessoal dos sócios a satisfação dos créditos frustrados. Dessa forma, todos aqueles que, valendo-se do manto societário, agiram de modo fraudulento ou abusivo (...) responderão pelos créditos insatisfeitos dos credores sociais. 48 TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. 2. ed. atual. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. p. 70. MARINONI, Luiz Guilherme; LIMA JUNIOR, Marco Aurélio. Fraude Configuração Prova Desconsideração da Personalidade Jurídica. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 783, jan. 2001. p. 155. 49 41 2.2. Evolução Histórica da Teoria da Desconsideração Não existe consenso na doutrina sobre qual a origem do instituto da desconsideração da personalidade jurídica. De acordo com Koury50, o caso Bank of United States v. Deveaux foi o inicio da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito da jurisprudência, pois, segundo a autora, a disregard doctrine surgiu no âmbito da Common Law norte-americana. A citada autora nos lembra que, neste caso, o juiz Marshall manteve a jurisdição das cortes federais sobre as corporations, enquanto a Constituição Americana em seu artigo 3°, seção 2ª, determina que a tais órgãos judiciais compete julgar as lides entre cidadãos de diferentes Estados. Fixando a competência, acabou por desconsiderar a personalidade jurídica, sob o fundamento de que não se tratava de sociedade, mas sim de sócios contendores. Koury51, citando Wormser, afirmou que a decisão em si não era o principal objeto de análise pelo fato de que foi rejeitada pela doutrina, mas o que é importante destacar é que em 1809, “...as cortes levantaram o véu e consideraram as características dos sócios individuais”. Por outro lado, Eduardo Lessa Bastos52 entende que o caso Salomon vs. Salomon & Co. (Inglaterra) foi o que lançou mundialmente a teoria do “véu da personalidade jurídica”. De acordo com o supracitado autor, Aron Salomon era produtor de sapatos e botas. Exercia sua atividade através de uma empresa chamada A. Salomon & Co. Em um determinado momento, decidiu criar uma nova empresa, juntamente com cinco de seus filhos e mais a sua esposa. Aron constitui para si um crédito 50 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 1998. P. 63. 51 Koury, op. cit. p. 64. – apud – WORMSER, Maurice. Piercing the veil of corporate entity. Columbia Law Review, Columbia, 12:496-518, 1912, p. 498. 52 BASTOS, op. cit. p. 03. 42 privilegiado no valor de dez mil libras esterlinas, referente à compra de sua antiga companhia, tornando posteriormente insolvente a companhia. Como ele era credor privilegiado, nada restou aos outros credores. O juiz de primeiro grau decidiu pela desconsideração, porém a Câmara dos Lordes reformou a decisão, pois, segundo eles, a segunda sociedade havia sido criada de forma válida. No Brasil, a disregard doctrine foi utilizada de forma isolada por alguns juízes, porém somente ganhou força com o estudo dos doutrinadores. Rubens Requião53 foi o primeiro a tratar desse tema. Fábio Konder Comparato54 teve grande importância na aplicação da desconsideração pelo fato de que estabeleceu critérios objetos para aplicação pelos magistrados, retirando seu caráter subjetivo. 2.3. A “Disregard Doctrine” no Direito Comparado 2.3.1. O Direito Anglo Saxônico Para Osmar Vieira da Silva55, no direito inglês se desenvolveram duas correntes, quais sejam a do Common Law, pelos tribunais de Westminster; e o equity, pelo tribunal da chancelaria. A principal característica de ambas é o fato do Direito ter como base a jurisprudência. Segundo o mesmo autor: (...) O espírito desse sistema reside na idéia de que os litígios devem ser resolvidos com ajuda dos princípios obtidos, por indução, da experiência jurídica do passado – e não por dedução, das regras estabelecidas arbitrariamente por uma vontade soberana; a razão, e não a vontade soberana, deve ser a justificação profunda da decisão. 53 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos tribunais, 1979. v. 410, p. 17. 54 COMPARATO, Fábio Konder. O poder de Controle na sociedade anônima. 3. Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983. 55 SILVA, Osmar Vieira da. Desconsideração da personalidade jurídica: Aspectos processuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 124. 43 O sistema é conhecido ainda por ser consuetudinário, no qual as normas são reveladas pelos órgãos judiciais, e as decisões são mais ajustáveis aos casos concretos. 2.3.2. O Direito Romano-Germânico Segundo o citado autor, este é o sistema adotado no Brasil, que se caracteriza pelo fato de ter uma legislação escrita que deve reger tudo, permitindo a utilização da analogia, costumes e princípios gerais do direito apenas quando a lei for omissa. Ainda de acordo com o autor supracitado, esse sistema faz diferenciação entre direito público e privado, o que não ocorre no Common Law. O direito público trata das relações entre os indivíduos e o Estado, enquanto o direito privado rege as relações entre particulares. 2.3.3. No Direito Inglês Conforme lembra Fábio Ulhoa56, no direito Inglês foi onde surgiu a primeira norma acerca da desconsideração que é o Companies Act, de 1929, na Seção 279, que assim prescreve: (...) Se no curso da liquidação da sociedade constata-se que um seu negócio foi concluído com o objetivo de perpetrar fraude contra credores, dela ou de terceiros, ou mesmo uma fraude de outra natureza, a Corte, a pedido do liquidante, credor ou interessado, pode declarar, se considerar cabível, que toda pessoa que participou, de forma consciente, da referida operação fraudulenta será direta e ilimitadamente responsável pela obrigação, ou mesmo pela totalidade do passivo da sociedade. 2.3.4. No Direito Norte – Americano Alexandre Couto Silva57 ensina que na aplicação da desconsideração da pessoa jurídica no direito norte-americano, normalmente se usa as regras explicadas pelo juiz Sanborn, no caso United States v. Milwakee Refrigerator Transit Co.: 56 COELHO, op. cit. p. 51. 44 (...) Uma companhia será considerada jurídica como regra geral, e até que suficiente razão apareça; mas quando a noção de pessoa jurídica é usada para derrotar a ordem pública, justificar o injusto, proteger a fraude, ou amparar o crime, o direito irá considerar a companhia como uma associação de pessoas. De acordo com Osmar Vieira da Silva58, em razão de pertencer ao Common Law, várias são as razões que fundamentam as sentenças para desconsideração da personalidade jurídica nos Estados Unidos. Fábio Ulhoa59, citando Clark, leciona que nos Estados Unidos, a desobediência a algum dos postulados morais autoriza a desconsideração da personalidade, que são os seguintes: (...) veracidade (o devedor não pode enganar o credor acerca de suas reais intenções), primazia (os credores devem ser satisfeitos antes da distribuição de dividendos ou mesmo da remuneração do acionista-administrador), paridade (os credores devem ser tratados sem discriminação injustificada) e desobstrução (o credor não pode dificultar a execução da dívida pelo credor). 2.3.5. No Direito Alemão Gilberto Gomes Bruschi60 nos ensina que apesar do fato que a desconsideração nasceu na jurisprudência norte-americana e que o primeiro caso que se tem história ocorreu na Inglaterra, na Alemanha ela teve um bom desenvolvimento, justamente pelo fato de que na década de 20 já havia notícia da desconsideração na jurisprudência alemã. Suzy Elizabeth Cavalcante Koury61 explica que a Durchgriff alemã significa a própria desconsideração. A Durchgriff foi conceituada por Drobning da seguinte forma: 57 SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Direito Brasileiro. São Paulo: Ltr, 1999. p. 28. 58 SILVA, Osmar Vieira da. op. cit. p. 125. 59 COELHO, op. cit. p.51. 60 BRUSCHI, GILBERTO GOMES. Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 51. 61 KOURY, op. cit. p. 109 – apud – Ulrich Drobning. Nature et limites de La personalité morale em droit allemand, LGDJ: Paris, 1960. p.42. 45 (...) a possibilidade que existe de julgar uma sociedade, em um determinado caso, levando em consideração os homes que ela comporta ou bens que ela possui – seu substrato humano ou patrimonial – e considerando de algum modo transparente a personalidade jurídica da pessoa jurídica (...) 2.3.6. No Direito Francês De acordo com Gilberto Gomes Bruschi62, no direito Francês existem duas hipóteses para aplicações da teoria da desconsideração, que estão presentes na Lei nº. 67.563, de 13 de julho de 1967. “São os arts. 99 e 101, que permitem ao juiz, nos feitos que tratam de falências e concordatas, quando o sócio abusa em interesse próprio da sociedade deficitária, que se penetre no seu patrimônio”. 2.4. A Previsão Legal da Teoria da Desconsideração no Direito Brasileiro Serão analisadas algumas hipóteses da desconsideração da personalidade jurídica na legislação brasileira, conforme lembrado por Eduardo Lessa Bastos63. 2.4.1. Posicionamento Constitucional Os dispositivos Constitucionais abaixo citados, preveem sobre o bom uso das sociedades, descrevendo a forma correta do uso de recursos minerais, bem como trata sobre a propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão. Art. 176. ... § 1° A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas. Art. 222. A propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ou de pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no País. § 1° Em qualquer caso, pelo menos setenta por cento do capital total e do capital votante das empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens deverá pertencer, direta ou indiretamente, a brasileiros 62 63 BRUSCHI, op. cit. p. 53. BASTOS, op. cit. p. 27-51. 46 natos ou naturalizados há mais de dez anos, que exercerão obrigatoriamente a gestão das atividades e estabelecerão o conteúdo da programação. § 2° A responsabilidade editorial e as atividades de seleção e direção da programação veiculada são privativas de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, em qualquer meio de comunicação social. ... 2.4.2. A Teoria da Desconsideração no Código Civil Brasileiro O Código Civil contempla a principal disposição legal acerca da desconsideração da personalidade jurídica, prevendo em seu texto, a Teoria Maior, que é a mais bem aceita no ordenamento jurídico brasileiro. Artigo 50 do Novo Código Civil: Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. 2.4.3. A Teoria da Desconsideração no Código de Defesa do Consumidor No Código de Defesa do Consumidor está prevista a Desconsideração da Personalidade Jurídica, na sua forma menor. A teoria menor, conforme explicado anteriormente, não exige muitos requisitos para aplicação, devendo apenas o consumidor demonstrar seu prejuízo. Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. § 1°(Vetado). § 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. § 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. § 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa. § 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. 47 2.4.5. Outras Leis Aplicáveis Neste tópico apresentaremos alguns outros dispositivos legais que preveem a desconsideração da personalidade jurídica: Código Tributário Nacional: Art. 128. Sem prejuízo do disposto neste Capítulo, a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação. Art. 134. Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis: ... VII – os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas. ... Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos: I – as pessoas referidas no artigo anterior; ... III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado. Decreto 3.048/99: Art. 268. O titular da firma individual e os sócios das empresas por cotas de responsabilidade limitada respondem solidariamente, com seus bens pessoais, pelos débitos junto à seguridade social. Parágrafo único. Os acionistas controladores, os administradores, os gerentes e os diretores respondem solidariamente e subsidiariamente, com seus bens pessoais, quanto ao inadimplemento das obrigações para com a seguridade social, por dolo ou culpa. Lei de crimes ambientais: Art. 4º. Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente. 48 2.5. A Finalidade da Desconsideração da Personalidade Jurídica A jurisprudência explica a finalidade da desconsideração da seguinte maneira: SOCIEDADE POR COTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA Desconsideração da personalidade jurídica - Teoria que busca atingir a responsabilidade dos sócios por atos de malícia e prejuízo - Aplicabilidade quando a sociedade acoberta a figura do sócio, tornando-se instrumento de fraude. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ou doutrina da penetração, busca atingir a responsabilidade dos sócios por atos de malícia e prejuízo. A jurisprudência aplica essa teoria quando a sociedade acoberta a figura do sócio. A fraude não se presume. (1º TA Civ SP, RT, 708/116) (grifo nosso). Casillo64 afirma que “não foi a pessoa jurídica que teve a sua finalidade desvirtuada, não foi a pessoa jurídica como ser que foi manipulada, mas sim, o diretor, o gerente ou o sócio que, na sua atividade ligada à empresa, andou mal.” Desta forma, vemos que a finalidade da desconsideração não é “punir” a pessoa jurídica, mas sim protegê-la de sócios mal intencionados e, consequentemente, puni-los dos atos fraudulentos praticados por trás da “armadura” da personalidade jurídica. Segundo Osmar Vieira da Silva65, “os objetivos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica estão explícitos: coibir a fraude e o abuso do direito, garantir o direito de receber do credor e proteger o instituto da pessoa jurídica”. 2.6. Conseqüências da Desconsideração da Personalidade Jurídica De acordo com Fábio Ulhoa66, com a desconsideração, afasta-se temporariamente a autonomia patrimonial da sociedade quando for usada de forma abusiva ou fraudulenta. 64 CASILLO, João. Desconsideração da pessoa jurídica. São Paulo: Revista dos tribunais 528:2440, 1979. p. 35. 65 VIEIRA DA SILVA, op. cit. p. 123. 66 COELHO, op. cit. p. 45. 49 Segundo Daniel Eduardo Carnacchioni67, a desconsideração da personalidade jurídica tem um viés econômico, dessa forma, quem solicita a desconsideração objetiva vinculação de bens e valores. Desta forma, podemos concluir que a principal conseqüência da desconsideração da personalidade jurídica é o afastamento temporário da autonomia patrimonial, com o intuito de responsabilizar o sócio por dívida social. 2.7. Teoria Maior e Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica Segundo Fábio Ulhoa68, essa classificação entre teoria maior e menor, encontra-se ultrapassada, porém, tendo em vista que a sua relevância e utilização é ainda frequente, decidimos abordar esse tema. 2.7.1. Teoria Maior De acordo com o autor acima citado, a teoria maior é a mais bem aceita em razão de ser mais elaborada e consistente, tendo em vista que autoriza o afastamento da autonomia patrimonial apenas quando a personalidade jurídica é usada de forma abusiva ou fraudulenta. Rolf Madaleno69 ensina que na teoria maior da personalidade jurídica, também conhecida como teoria subjetiva, o magistrado pode afastar a autonomia patrimonial no intuito de impedir fraudes e abusos na condução da pessoa jurídica, bastando a verificação e constatação do prejuízo do credor. Conforme o autor acima citado, na forma subjetiva, não basta apenas que o credor tenha o prejuízo, não sendo possível presumir o mau uso da personalidade jurídica, haja vista que necessitam ser demonstrados. 67 CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de Direito Civil – Parte Geral: Institutos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 302. 68 COELHO, op. cit. p. 49. 69 MADALENO, Rolf. A desconsideração Judicial da Pessoa Jurídica e da Interposta Pessoa Física no Direito de Família e no Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 75. 50 Rolf Madaleno70 assim ensina: (...) Para a teoria da formulação maior, estaria sendo sufocado o direito constitucional do devido processo legal e invertido o ônus da prova, não havendo como desconsiderar a pessoa jurídica por sua mera insolvência no cumprimento de suas obrigações, sendo exigida, ainda, a prova do desvio de finalidade societária ou a demonstração de confusão patrimonial, tudo a ser debatido no devido processo judicial, com a citação e participação da pessoa jurídica e dos seus sócios. O artigo 50 do Código Civil, como principal dispositivo sobre a desconsideração, adota a teoria maior e exige que haja o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial. 2.7.2. Teoria Menor da Desconsideração Segundo ensinamentos de Rolf Madaleno71, a teoria menor da desconsideração é caracterizada por desprezar a forma jurídica, “sendo suficiente, tão somente a demonstração da insolvência da empresa e a não satisfação do crédito”. Ela tem como principal fundamento, o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, conforme já visto anteriormente, e é aceito por alguns doutrinadores como Fábio Konder Comparato72, que assim explica: (...) a desconsideração da personalidade jurídica é operada como consequência de uma desvio de função, ou disfunção, resultante sem dúvida, as mais das vezes de abuso ou fraude, mas que nem sempre constitui um ato ilícito. A aplicação da teoria menor da desconsideração da personalidade é aplicada de forma excepcional, conforme nos lembra a Ministra Nancy Andrighi: (...) incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo 70 MADALENO, op. cit. p.75. MADALENO, op. cit. p. 77. 72 COMPARATO, op. cit. p. 286. 71 51 que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica. A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. (REsp. n° 279.273/SP (2000/0097184-7), rel. Min. Ari Pargendler, Ministra redatora do acórdão Nancy Andrighi, j. em 14.02.2003, DJ de 29.03.2004) (grifo nosso) Para essa teoria, os riscos, por exemplo, da atividade empresarial devem ser suportados pela sociedade e não pelos consumidores. Essa regra não foi adotada pelo artigo 50 do Código Civil. 2.8. A Desconsideração e os Direitos da Personalidade O artigo 1° do Código Civil diz que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. Isso significa dizer que toda pessoa tem personalidade jurídica e, portanto, é sujeito de direitos. Já no artigo 52 do mesmo código, vemos que “aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”. Segundo Marlon Tomazette73, apesar da proteção dos direitos da personalidade, em qualquer das teorias que explicam a existência das pessoas jurídicas a desconsideração é perfeitamente cabível, pois serve “como uma forma de controle do privilégio que é a personalidade jurídica das sociedades”. Tendo em vista que a pessoa jurídica é uma realidade técnica, uma ficção jurídica, deve atingir os fins para os quais lhe foi concedida a personalidade, então vemos que a desconsideração é uma forma de controle do uso da pessoa jurídica e, desta forma, não se pode falar que há violação aos direitos da personalidade. De acordo com Gladston Mamede74, em interpretação aos artigos supracitados, é protegido o nome da pessoa jurídica e os sinais que a identifiquem, assim compreendidos o “título do estabelecimento, símbolos (incluindo marca), identidade de apresentação publicitária etc.” É protegido ainda “o bom nome da 73 74 TOMAZETTE, op. cit. p. 73 MAMEDE, op. cit. p. 65. 52 empresa, isto é, a boa avaliação que o mercado faz dela como devedora, parceira, fornecedora de bens ou serviços etc.” Dessa forma, qualquer manifestação que viole os direitos de personalidade da pessoa jurídica, deverá ser indenizado. 2.9. Requisitos para a Aplicação da Teoria da Desconsideração De acordo com Tomazette75, para que se possa desconsiderar a personalidade jurídica das sociedades e buscar no patrimônio do sócio os bens necessários para responder pelas obrigações, faz-se necessário a configuração da fraude ou abuso de direito relacionados à autonomia patrimonial. Discorrer-se-á agora sobre os principais requisitos. 2.9.1. Personificação O citado autor ensina que pela simples observação da terminologia usada, pode-se concluir que a desconsideração só tem cabimento quando a sociedade tem personalidade jurídica. Como já visto anteriormente, a personificação das sociedades se dá com o arquivamento de seu ato constitutivo na junta comercial. Sem esse procedimento não existe a personificação, mesmo que a sociedade possua ato constitutivo. Pelo que se analisa a partir do artigo 990 do Código Civil, os sócios da sociedade não personificada respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações assumidas. Além do mais, de acordo com Alexandre Couto Silva76, é necessário que na sociedade existam sócios com responsabilidade limitada. Conclui-se, então, que a desconsideração apenas é cabível quando o patrimônio social não é suficiente para adimplir as obrigações da sociedade. 75 76 TOMAZETTE, op. cit. p.76. COUTO SILVA, op. cit. p. 26. 53 Na visão de Tomazette77, nada impede que haja desconsideração em sociedade composta por sócios de responsabilidade ilimitada, tendo em vista que uma das funções da desconsideração da personalidade jurídica é de proteger a própria sociedade. 2.9.2. A Fraude e o Abuso de Direito Relacionados à autonomia Patrimonial Segundo Alexandre Couto Silva78, o principal pressuposto para aplicação da desconsideração é o desvio da função da pessoa jurídica, que está presente na fraude e no abuso de direito em razão da autonomia patrimonial, tendo em vista que a desconsideração é uma forma de restringir o uso da pessoa jurídica para os fins a que ela foi destinada. Porém, essa posição não é pacífica, pois Fábio Konder Comparato79 leciona que o principal requisito para que haja desconsideração é a confusão patrimonial. Marlon Tomazette80 discorda da posição adotada por Comparato81. Para ele, não resta dúvidas de que a confusão patrimonial pode levar à desconsideração da personalidade jurídica, porém, não é seu principal requisito. Continua o citado autor: (...) A confusão patrimonial não é por si só suficiente para coibir todos os casos de desvio da função da pessoa jurídica, pois há casos nos quais não há confusão de patrimônios, mas há o desvio da função da pessoa jurídica, autorizando a superação da autonomia patrimonial. Por essa razão, Tomazette82 entende “que a fraude e o abuso de direito relacionados à autonomia patrimonial são os fundamentos básicos da aplicação da desconsideração”. 77 TOMAZETTE, op. cit. p. 77. COUTO SILVA, op. cit. p. 34. 79 COMPARATO, Fábio Konder. O poder de Controle na sociedade anônima. 3. Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983. p. 283. 80 TOMAZETTE, op. cit. p. 78. 81 COMPARATO. op. cit. p. 283. 82 Idem. 78 54 2.9.2.1. Fraude De acordo com o autor supracitado, a autonomia patrimonial serve para resguardar o patrimônio do sócio dos eventuais insucessos da sociedade. Porém, o sócio que usa a autonomia patrimonial para se ocultar atrás dela e deixar de cumprir suas obrigações, está diante de uma fraude relacionada à autonomia patrimonial. De acordo com Alexandre Couto Silva83, fraude é “a distorção intencional da verdade com o intuito de prejudicar terceiros”. Um bom exemplo é apresentado por Fábio Ulhoa84, no qual conta a história de uma pessoa que, como empresário individual, explora atividade industrial. Tempos depois, decide constituir uma sociedade limitada com um parente seu. Ao invés de integralizar a outra empresa na nova sociedade, ele a vende para esta. Dessa forma, ele não tem apenas os direitos de sócios, mas também os de credor da sociedade. Note-se que a princípio, o negócio realizado por este sócio não tem qualquer ilegalidade. Porém, numa provável falência da sociedade, este sócio não sofreria qualquer prejuízo, ao passo que outros credores da sociedade viriam a sofrer. Assim, a fraude contra os credores se deu pela existência da autonomia patrimonial. Por fim, Tomazette85 lembra que não é necessária apenas a existência de uma fraude, pois essa fraude deve ter ligação com o uso da pessoa jurídica, mais especificamente com a autonomia patrimonial. 2.9.2.2. O Abuso de Direito De acordo com o autor acima citado, a personalidade jurídica é conferida pelo direito às sociedades cumprirem uma finalidade específica. Quando essa finalidade é desvirtuada, ocorre o desvio de finalidade. Nesse caso, não há uso do direito, mas sim o abuso, que não deve ser aceito. Ainda segundo o referido autor, a princípio, 83 COUTO SILVA, op. cit. p. 36. COELHO, op. cit. p.34-35 85 TOMAZETTE, op. cit. p. 80. 84 55 este ato é plenamente legal, porém, ao fugir de sua finalidade social, causa um mal estar dentro da sociedade e não pode assim prevalecer. Acerca do abuso de direito, podemos ver outra hipótese apresentada por Fábio Ulhoa86. Existe uma grande empresa próspera no ramo de mudanças. Ocorre que um motorista dessa empresa, dirigindo imprudentemente um caminhão com uma valiosa mudança, causa um grande acidente e gera danos irreparáveis na carga e atinge diversas vítimas. Observe que provavelmente o sócio perderia toda sua empresa para liquidar as dívidas. Para evitar esse prejuízo, ele decide criar uma nova sociedade, do mesmo ramo, adquire caminhões novos, contrata novos funcionários, enfim, constitui legalmente uma nova sociedade e deixa de investir na primeira. Os clientes da antiga sociedade decidem utilizar a nova, tendo em vista que estão vendo ela crescer mais do que a antiga. Enfim, tudo realizado de forma legal. Porém, como se vê, diante da autonomia patrimonial, os credores da antiga sociedade terão seus direitos prejudicados, pelo fato que seu patrimônio não será mais capaz de cumpri-los. De acordo com Ana Paula Santos Ceolin87 a constituição de uma nova sociedade com idêntico objeto social, sem a liquidação das dívidas da antiga, caracteriza o mau uso da sociedade. Enquanto na fraude existe o propósito de prejudicar, o abuso de direito revela-se pelo mau uso da personalidade jurídica. 2.9.3. Imputação dos Atos Praticados pela Pessoa Jurídica De acordo com Marlon Tomazette88, para que haja desconsideração da personalidade jurídica, os atos devem ser imputados à pessoa jurídica. Desconsiderada a personalidade, os sócios ou administradores serão responsabilizados. Porém, existem algumas hipóteses que não há o que falar em desconsideração. 86 COELHO, op. cit. p. 36-37. CEOLIN, Ana Paula Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 124. 88 TOMAZETTE, op. cit. p. 83. 87 56 Para o citado autor, existem situações nas quais os sócios violam a lei ou seu contrato social e, nesses casos, a lei os imputa responsabilização, porém, nesses casos não há que se falar em desconsideração, pois não foi uma ação atribuída à pessoa jurídica. Nesses casos, analisa-se a lição de José Lamartine Côrrea Oliveira89 (...) Em tal caso, há simplesmente uma questão de imputação. Quando o diretor ou gerente agiu com desobediência a determinadas normas legais ou estatutárias, pode seu ato, em determinadas circunstâncias, ser inimputável à pessoa jurídica, pois não agiu como órgão (salvo problema de aparência) – a responsabilidade será sua, por ato seu. Da mesma forma, quando pratique ato ilícito, doloso ou culposo: responderá por ilícito seu, por fato próprio. Conforme explica Tomazette90, nessas situações, não se desconsidera a personalidade jurídica, tendo em vista que ela não é obstáculo para ressarcimento dos prejuízos causados, razão pela qual a responsabilidade é diretamente do sócio. Vê-se, conforme explica Luciano Amaro91, que: (...) Portanto, quando a lei cuida de responsabilidade solidária, ou subsidiária, ou pessoal dos sócios, por obrigação da pessoa jurídica, ou quando ela proíbe certas operações, vedadas aos sócios, sejam praticadas pela pessoa jurídica, não é preciso desconsiderar a empresa, para imputar as obrigações aos sócios, pois, mesmo considerada a pessoa jurídica, a implicação ou responsabilidade do sócio já decorre do preceito legal. O mesmo se diga se a extensão da responsabilidade contratual. Por fim, conclui-se que para que haja a desconsideração da personalidade jurídica, deve haver fato praticado por esta, e não pelos seus sócios, já que, caso o ato seja realizado pelo sócio, a responsabilidade será diretamente dele. 89 OLIVEIRA, José Lamartine Côrrea. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979. p. 520. 90 TOMAZETTE, op cit. p. 83. 91 AMARO, Luciano. Desconsideração da pessoa jurídica no código de defesa do consumidor. Revista de direito do consumidor, São Paulo, n. 5 , jan-mar/1993. p. 172. 57 2.10. Critérios para o Deferimento do Pedido de Desconsideração Fábio Ulhoa92 explica que o pressuposto imprescindível para que haja a desconsideração da personalidade jurídica é o uso fraudulento ou abusivo dessa personalidade e o afastamento dessa autonomia objetiva coibir os ilícitos praticados por ela. Diante dessa relevante função da desconsideração, o citado autor afirma que não é possível que haja desconsideração se não for por meio de uma “ação judicial própria, de caráter cognitivo, movida pelo credor da sociedade contra os sócios ou seus controladores”. Em tal ação, deve estar presente o pressuposto da fraude. Vemos ainda que ao propor essa ação, não é a sociedade que se fará presente no pólo passivo, mas sim quem o autor deseja ver responsabilizado. O citado autor lembra ainda que não se pode se desconsiderar a personalidade jurídica por meio de um simples despacho em eventual processo de execução de sentença. De acordo com o citado autor, os juízes não podem negar o procedimento específico para autorizar a desconsideração, pois devem seguir o procedimento correto. Ainda que bastasse a mera insatisfação do credor, mesmo assim o procedimento para desconsideração não poderia ser realizado dessa maneira tão simples, razão pela qual se conclui que, para conseguir o deferimento do pedido de desconsideração, é necessário que haja o processo da forma acima explicado. Apesar dessa posição, tem se firmado no egrégio STJ opinião em sentido contrário, demonstrando ser possível a desconsideração no curso de processo de execução ou falimentar, forme podemos ver nos seguintes acórdãos: DIREITO PROCESSUAL CIVIL E COMERCIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA SUJEITA À LIQUIDAÇÃO EXTRAJUDICIAL NOS AUTOS DE SUA FALÊNCIA. POSSIBILIDADE. A CONSTRIÇÃO DOS BENS DO ADMINISTRADOR É POSSÍVEL QUANDO ESTE SE BENEFICIA DO ABUSO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. - A desconsideração não é regra de responsabilidade civil, não depende de prova da culpa, deve ser reconhecida nos autos da execução, individual ou coletiva, e, por fim, atinge aqueles indivíduos 92 COELHO, op. cit. p. 57-58. 58 que foram efetivamente beneficiados com o abuso da personalidade jurídica, sejam eles sócios ou meramente administradores. - O administrador, mesmo não sendo sócio da instituição financeira liquidada e falida, responde pelos eventos que tiver praticado ou omissões em que houver incorrido, nos termos do art. 39, Lei 6.024⁄74, e, solidariamente, pelas obrigações assumidas pela instituição financeira durante sua gestão até que estas se cumpram, conforme o art. 40, Lei 6.024⁄74. A responsabilidade dos administradores, nestas hipóteses, é subjetiva, com base em culpa ou culpa presumida, conforme os precedentes desta Corte, dependendo de ação própria para ser apurada. - A responsabilidade do administrador sob a Lei 6.024⁄74 não se confunde a desconsideração da personalidade jurídica. A desconsideração exige benefício daquele que será chamado a responder. A responsabilidade, ao contrário, não exige este benefício, mas culpa. Desta forma, o administrador que tenha contribuído culposamente, de forma ilícita, para lesar a coletividade de credores de uma instituição financeira, sem auferir benefício pessoal, sujeita-se à ação do art. 46, Lei 6.024⁄74, mas não pode ser atingido propriamente pela desconsideração da personalidade jurídica. Recurso Especial provido. (RECURSO ESPECIAL Nº 1.036.398 - RS (2008⁄0046677-9); Min. Rel. Nancy Andrighi) (grifo nosso) PROCESSO CIVIL - RECURSO ESPECIAL EM AUTOS DE AGRAVO DE INSTRUMENTO - RETENÇÃO LEGAL - AFASTAMENTO - DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO E FALTA DE PREQUESTIONAMENTO SÚMULAS 284 E 356 DO STF - PROCESSO EXECUTIVO - PEDIDO DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA EMPRESAEXECUTADA - POSSIBILIDADE - DISPENSÁVEL O AJUIZAMENTO DE AÇÃO AUTÔNOMA. 1 - Caracterizada está a excepcionalidade da situação de molde a afastar o regime de retenção previsto no art. 542, § 3º, do CPC, haja vista tratar-se de recurso especial proveniente de decisão interlocutória proferida no curso de execução de título extrajudicial (REsp nº 521.049⁄SP, de minha relatoria, DJ de 3.10.2005; REsp nº 598.111⁄AM, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, DJ de 21.6.2004). 2 - Se a parte recorrente não explica de que forma o acórdão recorrido teria violado determinado dispositivo, deficiente está o recurso em sua fundamentação, neste aspecto (Súmula 284⁄STF). 3 - Não enseja interposição de recurso especial matérias não ventiladas no julgado impugnado (Súmula 356⁄STF). 4 - Esta Corte Superior tem decidido pela possibilidade da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica nos próprios autos da ação de execução, sendo desnecessária a propositura de ação autônoma (RMS nº 16.274⁄SP, Rel. Ministra NANCYANDRIGHI, DJ de 2.8.2004; AgRg no REsp nº 798.095⁄SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, DJ de 1.8.2006; REsp nº 767.021⁄RJ, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, DJ de 12.9.2005). 5 - Recurso parcialmente conhecido e, nesta parte, provido para determinar a análise do pedido de desconsideração da personalidade jurídica da empresa-executada no curso do processo executivo. (RECURSO ESPECIAL Nº 331.478 - RJ (2001⁄0080829-0) Min. Rel. MINISTRO JORGE SCARTEZZINI) (grifo nosso) 59 2.11. A Desconsideração da Personalidade Jurídica e a sua Função Social Segundo Oksandro Gonçalves93, a pessoa jurídica, na forma de sociedade comercial, “tem como função social o desenvolvimento econômico”. Tendo em vista que é composta por bens e pessoas, passa a se sujeitar à função social da propriedade, da forma expressa na Constituição. Continua o citado autor: (...) A garantia de propriedade privada é mitigada por força do princípio segundo o qual mais que atender aos interesses egoísticos, deve atender aos interesses maiores da coletividade (...). Fábio Konder Comparato94 ensina que, caso não haja cumprimento da função social, a propriedade privada deve ser sancionada de forma mais adequada: (...) A destinação social dos bens de produção não deve estar submetida ao princípio da autonomia individual nem ao poder discricionário da Administração Pública. O abuso da não utilização de bens produtivos, ou de sua má utilização, deveria ser sancionado mais adequadamente. Em se tratando de propriedade privada, pela expropriação não condicionada ao pagamento de indenização integral, ou até sem indenização. Cuidando-se de propriedade pública, por meio de remédio judicial de efeito mandamental, que imponha ao Poder Público o cumprimento dos deveres sociais inerentes ao domínio. Finalmente, os deveres sociais do controlador de empresas, estabelecido em tese em algumas normas do direito positivo, somente poderão ser desempenhadas com clareza e cobrados com efetividade quando os objetivos sociais a serem atingidos forem impostos no quadro de uma planificação vinculante para o Estado e diretiva da atividade econômica privada. Oksandro95 citando Requião: (...) deve entender-se que com isso só se trata da desestimação da forma da pessoa jurídica no caso particular, sem negar sua personalidade de uma maneira geral. Com efeito, o que se pretende com a doutrina do disregard não é a anulação da personalidade jurídica em toda sua extensão, mas apenas a declaração de sua ineficácia para determinado efeito, em caso concreto, em virtude de o uso legítimo da personalidade ter sido desviado de sua legítima finalidade (abuso de direito) ou para prejudicar credores ou violar a lei (fraude). Se se abusa de uma sociedade para fins alheios a sua razão de ser, escreve o mesmo jurista, a disregard doctrine evita que o 93 GONÇALVES, Oksandro. Desconsideração da personalidade jurídica. Curitiba: Juruá, 2004. p. 49. 94 COMPARATO. op. cit. p. 285. 95 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos tribunais, 1979. v. 410, p. 17 – apud – Oksandro, op. cit. p. 54. 60 direito tenha que sancionar tão temerária empresa. Com isso, no fundo, não se nega a existência da pessoa, senão que se preserva na forma com que o ordenamento jurídico a tem concebido. De acordo com Oksandro96, a desconsideração nega o caráter absoluto da personificação. Por fim, conclui dizendo que “não observada a função para a qual foi criada a pessoa jurídica, justifica-se a desconsideração de sua personalidade”. Neste capítulo, pôde-se analisar a desconsideração da personalidade jurídica. Vimos que ela não é uma teoria contra a personalidade jurídica, mas, ao contrário, é uma forma de firmá-la e preservá-la contra pessoas mal intencionadas. A desconsideração afasta momentaneamente a autonomia da pessoa jurídica para responsabilizar o sócio por dívida contraída por este, de modo fraudulento, em nome da sociedade. Após a desconsideração, a sociedade continua da mesma forma, com sua autonomia e existência independentes das de seus membros. Porém, apesar dessa importante forma de controle das fraudes, a criatividade dos fraudulentos exigiu a criação de uma nova forma de freá-los, qual seja, a desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa. 96 GONÇALVES, Oksandro, op. cit. p. 50-51. 61 CAPÍTULO III 3. A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA 3.1. O Conceito da Desconsideração Inversa A desconsideração da personalidade jurídica é a responsabilização do sócio ou administrador por dívidas da sociedade, quando utilizada de forma abusiva. Porém, de acordo com André Luiz Santa Cruz Ramos97, a desconsideração inversa consiste na possibilidade de a sociedade ser responsabilizada por dívidas de seus integrantes. De acordo com Fábio Ulhoa98, a desconsideração inversa da personalidade jurídica, objetiva combater a fraude pelo desvio de bens. (...) Quando, porém, a pessoa jurídica reveste forma associativa ou fundacional, ao seu integrante ou instituidor não é atribuído nenhum bem correspondente à respectiva participação na constituição do novo sujeito de direito. Quer dizer, o sócio da associação ou o instituidor da fundação, desde que mantenham controle total sobre os seus órgãos administrativos, podem concretizar com maior eficácia a fraude do desvio de bens. Para a Ministra Nancy Andrighi99, desconsideração inversa da personalidade jurídica é a possibilidade de atingir o patrimônio da sociedade em razão de obrigação pessoal do sócio, através do afastamento da autonomia patrimonial. Ou seja, ocorre no caminho oposto ao da desconsideração propriamente dita. Importante salientar, ainda, que a finalidade da desconsideração da personalidade jurídica, de forma geral, é o combate da utilização indevida da sociedade pelos sócios, razão pela qual, apesar de o Código Civil prever apenas a desconsideração “normal”, não existe impedimento para o uso da desconsideração inversa da personalidade jurídica. Tanto é que o Enunciado n° 283 da 4ª Jornada da CJF, em interpretação do artigo 50 do Código Civil, assim dispõe: 97 RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de direito empresarial: o novo regime jurídico empresarial brasileiro. 4.ed. rev. atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2009. p. 340. 98 COELHO, op. cit. p. 47. 99 BRASIL.Superior Tribunal de Justiça. 3ª turma. REsp 948117 / MS RECURSO ESPECIAL 2007/0045262-5. Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI. Julgado em 22/06/2010. 62 283 – Art. 50. É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada “inversa” para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros. Fábio Konder Comparato100 também disciplina acerca da desconsideração inversa da personalidade jurídica: (...) Aliás, a desconsideração da personalidade jurídica não atua apenas no sentido da responsabilidade do controlador por dívidas da sociedade controlada, mas também em sentido inverso, ou seja, no da responsabilidade desta última por atos do seu controlador. A jurisprudência americana, por exemplo, já firmou o princípio de que os contratos celebrados pelo sócio único, ou pelo acionista largamente majoritário, em benefício da companhia, mesmo quando não foi a sociedade formalmente parte do negócio, obrigam o patrimônio social, uma vez demonstrada a confusão patrimonial de facto. Segundo André Pagani de Souza101, na desconsideração inversa, o bem é transferido para a sociedade e, mesmo sendo de sua propriedade, é usada para fins particulares do sócio ou administrador. Sob a ótica de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho 102, a desconsideração inversa ocorre quando o sócio coloca seus próprios bens no nome da empresa, objetivando prejudicar terceiros. Nestes casos, deve ocorrer a desconsideração inversa da personalidade jurídica da sociedade no intuito de se atingir o patrimônio social, que na verdade, pertence ao sócio. 3.2. Evolução da Teoria no Direito Brasileiro A desconsideração da personalidade jurídica, quando ainda era uma teoria, foi trazida para o Brasil por Rubens Requião, na década de 60. Em análise da obra, Fábio Ulhoa103 assim comentou: (...) Nela, a teoria é apresentada como a superação do conflito entre as soluções éticas, que questionam a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar sempre os sócios, e as técnicas, que se apegam inflexivelmente ao primado da separação subjetiva das sociedades. Requião 100 COMPARATO, op. cit. p. 464. SOUZA, André Pagani. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 61. 102 GAGLIANO, Pablo S. & PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de direito Civil. Vol. I. 10. Ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 238. 103 COELHO, op. cit. p. 39. 101 63 sustenta, também, a plena adequação ao direito brasileiro da teoria da desconsideração, defendendo a sua utilização pelos juízes, independentemente de específica previsão legal. Com o tempo, a teoria ganhou força, tanto na doutrina como na jurisprudência. Com o Código de Defesa do Consumidor, a desconsideração passou a ser normatizada. A desconsideração inversa é recente no Brasil. Conforme mostramos anteriormente, o STJ, mais precisamente no mês de junho deste ano, concluiu pela sua aplicação no sistema jurídico brasileiro. Apesar da disso, há algum tempo a teoria vem sendo aplicada pelos tribunais. Sua evolução e aplicação no direito brasileiro têm crescido notavelmente. Tanto é que esta decisão do STJ, bem como o enunciado 283, desmontam qualquer argumento que nega a desconsideração inversa no Brasil por falta de um dispositivo legal. 3.3. Pressupostos de Aplicação da Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica De acordo com Isaura Meira Cartaxo Filgueiras104, o bom emprego da desconsideração inversa da personalidade jurídica exige a caracterização do desvio de bens, a fraude ou abuso de direito pelos sócios que aproveitam da personalidade jurídica para transferir ou omitir bens, prejudicando assim os credores, ou ainda, em casos de separação judicial, onde se verifica o esvaziamento do patrimônio do casal como forma de burlar a meação. Vemos isso na Apelação Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em que foi argumentado no acórdão o seguinte: (...) A conveniência de sua utilização no âmbito do Direito de Família já foi abordado por Rolf Madaleno, em seu artigo intitulado A disregard no Direito de Família, publicado na Revista Ajuris 57/57-66: O usual, dentro da teoria da despersonalização, é equiparar o sócio à sociedade e que dentro dela se esconde, para desconsiderar seu ato ou negócio fraudulento ou abusivo e, destarte, alcançar seu patrimônio pessoal, por obrigação da sociedade. Já 104 FILGUEIRAS, Isaura Meira Cartxo. Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/26439. Acesso em: 28 de agosto de 2010. 64 no Direito de Família sua utilização dar-se-á de hábito, na via inversa, desconsiderando o ato, para alcançar bem da sociedade, para pagamento do cônjuge credor familial, principalmente frente à diuturna constatação nas disputas matrimoniais, de o cônjuge empresário esconder-se sob as vestes da sociedade, para a qual faz despejar, senão todo, ao menos o rol mais significativo dos bens comuns. (7ª Câmara. Ap. Cív. n. 598082162. Rel. Des. Maria Berenice Dias) Pelo exposto, diante do que fora explicado pela citada autora, vemos que para que haja a desconsideração inversa da personalidade jurídica, o ordenamento jurídico exige que se verifique a existência dos pressupostos essenciais da desconsideração “comum”. A aplicação dos princípios da desconsideração convencional será mais bem explicada posteriormente. Ainda de acordo com a citada autora, outra forma de aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica verifica-se nos casos em que o sócio possui o absoluto controle dos bens da sociedade, ou seja, constitui-se uma sociedade para a guarda do ativo, deixando o passivo sob a responsabilidade da pessoa do sócio. Nessa situação, terceiros que pretendem contratar com esse sócio, ao vê-lo andando em carros luxuosos e possuindo uma grande mansão, provavelmente o contratarão ao ver que, aparentemente possui uma boa condição financeira. Porém, conforme explica Marcio Souza Guimarães105, esses bens pertencem à pessoa jurídica. 3.4. Aplicação dos Princípios da Desconsideração da Personalidade Jurídica A aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica exige os mesmos pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica. A Ministra Nancy Andrighi106, em recente julgado do STJ acerca da desconsideração inversa da personalidade jurídica, assim fundamentou: 105 GUIMARÃES, Márcio Sousa. Aspectos modernos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3996, acesso em 29/09/10. 106 BRASIL.Superior Tribunal de Justiça. 3ª turma. REsp 948117 / MS RECURSO ESPECIAL 2007/0045262-5. Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI. Julgado em 22/06/2010. 65 (...) Feitas essas considerações, tem-se que a interpretação teleológica do art. 50 do CC/02 legitima a inferência de ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma. Ademais, ainda que não se considere o teor do art. 50 do CC/02 sob a ótica de uma interpretação teleológica, entendo que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em sua modalidade inversa encontra justificativa nos princípios éticos e jurídicos intrínsecos à própria disregard doctrine, que vedam o abuso de direito e a fraude contra credores. Outro não era o fundamento usado pelos nossos Tribunais para justificar a desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, quando, antes do advento do CC/02, não podiam se valer da regra contida no art. 50 do diploma atual. Nesse sentido, destacam-se os seguintes precedentes: REsp 86.502/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 26.08.1996 e REsp 158.051/RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ de 12.04.1999. Dessa forma, diante deste novo posicionamento que vem ganhando força no ordenamento jurídico brasileiro, vemos que apesar de não existir um dispositivo de lei autorizando expressamente a desconsideração inversa da personalidade jurídica, vemos que isso não é óbice para sua aplicação. De acordo com Isaura Meira Cartaxo Filgueiras107, a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica exige observância da existência de fraude, de simulação ou de abuso na utilização da personalidade jurídica pelos sócios. No julgamento do agravo de instrumento n° 70034165084 da 12ª Câmara Cível, o desembargador relator Cláudio Baldino Maciel, assim fundamentou: (...) Prosseguindo, insurgem-se quanto à desconsideração inversa da personalidade jurídica determinada na origem, ressaltando não ter sido garantido o contraditório. Por cautela, apontam a ausência dos requisitos indispensáveis à sobredita desconsideração, estes indicados no art. 50 do Código Civil, uma vez que não demonstrada a confusão patrimonial e o abuso da personalidade jurídica utilizados como fundamento para a decisão recorrida. (grifo nosso) Vemos então a possibilidade da aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica, pelas mesmas razões e diante dos mesmos requisitos da desconsideração “convencional”. 107 FILGUEIRAS, op. cit. 66 3.5. Efeitos da Desconsideração Inversa Diante do mau uso da pessoa jurídica, poderá ser aplicada a desconsideração inversa da personalidade jurídica, que terá os seguintes efeitos: a quebra da autonomia patrimonial da sociedade e o alcance dos bens patrimoniais da sociedade. 3.5.1. Quebra da Autonomia Patrimonial da Sociedade De acordo com Zilda Mara Consalter e Vinícius Dalazoana108, na desconsideração inversa da personalidade jurídica, assim como na desconsideração convencional, existe a quebra da autonomia patrimonial da personalidade jurídica. Na desconsideração, esse afastamento da autonomia patrimonial significa a possibilidade de se atingir o patrimônio social que pertence, na verdade, ao sócio. A grande parte da doutrina que defende a possibilidade da aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica fundamenta essa possibilidade com as mesmas palavras utilizadas por Rubens Requião109 quando ainda não havia previsão da desconsideração no ordenamento jurídico brasileiro: (...) Ora, diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos. Ou seja, não autorizar a desconsideração inversa, seria permitir que os sócios mal intencionados deixassem de cumprir com suas obrigações, transferindo seus bens para a pessoa jurídica e frustrando direito alheio. 108 CONSALTER, Zilda Maria e DALAZOANA, Vinícius. Desconsideração da pessoa jurídica: uma análise sob três perspectivas. Disponível em http://seer.uscs.edu.br/index.php/revista_direito/article/viewFile/883/735. Acesso em 25/09/2010. 109 REQUIÃO, op.cit. p. 14. 67 Pelo que foi analisado, e conforme Zilda Mara Consalter e Vinícius Dalazoana110, o juiz, diante do mau uso da pessoa jurídica pelo sócio ou administrador, deve quebrar a autonomia patrimonial, retirando da sociedade os bens ocultados com o fim de prejudicar terceiros. Apesar da referência à busca do patrimônio da sociedade, tendo em vista que se exige os mesmos requisitos e sofre a mesma consequência em ambas as modalidades de desconsideração, na desconsideração inversa o bem da sociedade é que está sendo utilizado pelo sócio. 3.5.2. Alcance dos Bens Patrimoniais da Sociedade Outro efeito da desconsideração inversa da personalidade jurídica é a possibilidade de alcançar os bens da sociedade que foram ocultados pelo sócio ou administrador que a utilizou de forma incorreta. Nesse sentido, vide julgamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul111: (...) Descabe escudar-se o devedor na personalidade jurídica da sociedade comercial, em que está investido todo o seu patrimônio, para esquivar-se do pagamento da dívida alimentar. Impõe-se a adoção da disregard doctrine, admitindo-se a constrição de bens titulados em nome de pessoa jurídica para satisfazer débito. Neste mesmo sentido, Fábio Ulhoa112 entende que: (...) O devedor transfere seus bens para a pessoa jurídica sobre a qual detém absoluto controle. Desse modo, continua a usufruí-los, apesar de não serem de sua propriedade, mas da pessoa jurídica controlada. Os seus credores, em princípio, não podem responsabilizá-lo executando tais bens. Ë certo que, em se tratando de pessoa jurídica de uma sociedade, ao sócio é atribuída a participação societária, isto é, quotas ou ações representativas de parcelas do capital social. Essas são em regra penhoráveis para a garantia do cumprimento das obrigações do seu titular. Dessa forma, conclui-se que, diferentemente da desconsideração “normal”, aqui os bens da sociedade são alcançados, e não os dos sócios, haja vista que nesse caso a pessoa jurídica está sendo utilizada para esconder o patrimônio do sócio. 110 CONSALTER e DELAZOANA, op. cit. BRASIL.Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 7º Câmara. Apelação Cível nº 598082162. Relator Des. Maria Berenice Dias. 112 COELHO, op. cit. p. 47. 111 68 3.6. A Desconsideração Inversa no Direito de Família De acordo com Fábio Ulhoa113, a desconsideração inversa da personalidade jurídica “ampara, de forma especial, os direitos de família”. O citado autor exemplifica com o caso de um casal que está diante de um processo de separação e consequente partilha de bens. Se algum dos cônjuges ou companheiros adquirir bens de grande valor e registrá-los em nome da sociedade, a partilha poderá ser frustrada, tendo em vista que o bem – conforme deverá ser demonstrado no momento certo – está sendo utilizado para fins particulares de quem cometeu essa fraude. Ao desconsiderar inversamente a personalidade jurídica, será possível “penetrar” na sociedade e sanar essa fraude cometida pelo sócio ou administrador. Conforme lição de Rolf Madaleno114: (...) É larga e procedente a sua aplicação no processo familiar, principalmente frente à constatação nas disputas matrimoniais, do cônjuge empresário esconder-se sob as vestes da sociedade, para a qual faz despejar, se não todo, o rol mais significativo de seus bens (...) quando o marido transfere para a sua empresa o rol significativo de seus bens matrimoniais, sentença final de cunho declaratório haverá de desconsiderar esse negócio específico, flagrada a fraude ou o abuso, havendo, em consequência, como matrimoniais esses bens, para ordenar a sua partilha no ventre da separação judicial, na fase destinada a sua divisão, já considerados comuns e comunicáveis. A desconsideração inversa será aplicada no direito de família quando, por exemplo, o cônjuge empresário utiliza a proteção da pessoa jurídica, com o intuito de fraudar a partilha matrimonial e, por conseguinte, encobrir sua real capacidade econômica. Sobre a desconsideração inversa no direito de família, segue recém julgado da Justiça do Rio de Janeiro115: Agravo de Instrumento. Desconsideração da Personalidade Jurídica na modalidade inversa. Ex-cônjuge que simula a constituição de duas 113 COELHO, op. cit. p. 47. MADALENO, Rolf. Direito de Família: aspectos polêmicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 27. 115 o BRASIL.Tribunal de Justiça do Rio de Janeir01o. 3ª Câmara Cível. Processo N : 002486102.2010.8.19.0000. DES. EDUARDO GUSMAO ALVES DE BRITO. Data de julgamento: 29/09/2010. 114 69 sociedades para esvaziar o patrimônio daquela existente durante a relação conjugal. Primeira sociedade da qual constam nos autos duas alterações contratuais, uma delas assinada apenas pela cotista original, jamais levada a registro, apontando o agravante como cotista majoritário. Documento registrado que, a seu turno, aponta o agravante como o administrador da mesma empresa. Sociedade do ramo de autopeças, inusitadamente controlada por mulheres, mesmo ramo em que atuava a sociedade empresária existente no curso da relação conjugal. Segunda sociedade, também com patrimônio dividido entre mulheres, uma delas irmã do agravante, uma vez mais atuante no setor de autopeças. Declaração do próprio agravante de que o maquinário de sua antiga sociedade foi transferido gratuitamente à empresa de sua irmã. Sinais claros de esvaziamento patrimonial. Aplicação da teoria da disregard em sua modalidade inversa. Recurso ao qual se nega provimento. Neste caso específico, ficou clara a intenção de frustrar o direito da ex – cônjuge, razão pela qual foi desconsiderada inversamente a personalidade jurídica. 3.7. A Desconsideração da Justiça do Trabalho Alguns autores116 entendem que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica nasceu na Justiça do Trabalho, a partir do artigo 2°, § 2° da CLT, que assim determina: Art. 2° (...) § 2º - Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas. Segundo Suzy Elizabeth Cavalcante Koury117, o objetivo da desconsideração na Justiça do Trabalho é “evitar exatamente que a personalidade jurídica da empresa contratante seja abusivamente utilizada para encobrir a real vinculação do empregado com o grupo”. A Justiça do Trabalho118 recentemente passou a aceitar a teoria da desconsideração inversa, conforme se vê no julgado abaixo: 116 BRUSCHI, op. cit. p. 69. KOURY, op. cit. p. 171. 118 BRASIL.Tribunal regional do trabalho - 3ª região. 2ª turma. Processo n° 00642-2006-102-03-00-7 AP. Juiz Relator: Des. Luiz Ronan Neves Koury. 117 70 EMENTA: EXECUÇÃO. SÓCIO INSOLVENTE QUE INTEGRA SEU PATRIMÔNIO AO DE OUTRA EMPRESA. TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. RESPONSABILIDADE DA EMPRESA. Aplica-se ao caso a teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica da empresa, por se tratar de hipótese de sócio que se tornou insolvente e incorporou seu patrimônio a outra sociedade empresária, prejudicando o credor, caso em que se deve adentrar ao patrimônio da empresa a fim de que esta responda pela obrigação do sócio. Trata-se de técnica que visa a impedir que o devedor utilize o ente jurídico para, por meio da confusão patrimonial, burlar a lei, escondendo seu patrimônio. No voto, o excelentíssimo Desembargador Relator assim decidiu: (...) Aplica-se ao caso a teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica da "Amarq", por se tratar de hipótese de sócio que se tornou insolvente e incorporou seu patrimônio a outra sociedade empresária, prejudicando o credor, caso em que se deve adentrar ao patrimônio da empresa a fim de que esta responda pela obrigação do sócio. Trata-se, portanto, de técnica que visa impedir que o devedor utilize o ente jurídico para, por meio da confusão patrimonial, burlar a lei, escondendo seu patrimônio. 3.8. O Posicionamento da Jurisprudência Como já citado anteriormente, a desconsideração inversa da personalidade jurídica é recente no ordenamento jurídico brasileiro. Atualmente existe apenas um caso julgado no egrégio STJ, mencionado anteriormente, relatado pela Excelentíssima Ministra Nancy Andrighi: PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO JUDICIAL. ART. 50 DO CC/02. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA. POSSIBILIDADE. I – A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados como violados impede o conhecimento do recurso especial. Súmula 211/STJ. II – Os embargos declaratórios têm como objetivo sanear eventual obscuridade, contradição ou omissão existentes na decisão recorrida. Inexiste ofensa ao art. 535 do CPC, quando o Tribunal a quo pronuncia-se de forma clara e precisa sobre a questão posta nos autos, assentando-se em fundamentos suficientes para embasar a decisão, como ocorrido na espécie. III – A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador. IV – Considerando-se que a finalidade da disregard doctrine é combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica, conclui-se, de uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/02, ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir 71 bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma. V – A desconsideração da personalidade jurídica configura-se como medida excepcional. Sua adoção somente é recomendada quando forem atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02. Somente se forem verificados os requisitos de sua incidência, poderá o juiz, no próprio processo de execução, “levantar o véu” da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens da empresa. VI – À luz das provas produzidas, a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, entendeu, mediante minuciosa fundamentação, pela ocorrência de confusão patrimonial e abuso de direito por parte do recorrente, ao se utilizar indevidamente de sua empresa para adquirir bens de uso particular. VII – Em conclusão, a r. decisão atacada, ao manter a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, afigurou-se escorreita, merecendo assim ser mantida por seus próprios fundamentos. Recurso especial não provido. REsp 948117 / MS Relator Ministra NANCY ANDRIGHI. (grifo nosso) De se ver que a aplicação da desconsideração inversa é inegável, conforme explicitado pela Ministra relatora. Tendo em vista que este é o principal precedente acerca da desconsideração inversa da personalidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, transcreveremos parte do voto da Excelentíssima Ministra Relatora, no que tange a desconsideração inversa: (...) IV. a) Da desconsideração inversa da personalidade jurídica. Violação do art. 50 do CC/02 A insurgência do recorrente decorre da aplicação, na hipótese dos autos, da chamada desconsideração da personalidade jurídica em sua forma inversa. O recorrente sustenta que o acórdão impugnado teria violado a regra contida no art. 50 do CC/02, porquanto manteve a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, que desconsiderou a personalidade jurídica da empresa da qual o recorrente é sócio majoritário, e determinou como consequência, a penhora de automóvel de propriedade do ente societário. O recorrente aduz que o dispositivo de lei tido como ofendido não traz a previsão da desconsideração da personalidade jurídica inversa. De início, impende ressaltar que a desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio. Conquanto a consequência de sua aplicação seja inversa, sua razão de ser é a mesma da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita: combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios. Em sua forma inversa, mostra-se como um instrumento hábil para combater a prática de transferência de bens para a pessoa jurídica sobre o qual o devedor detém controle, evitando com isso a excussão de seu patrimônio pessoal. A interpretação literal do art. 50 do CC/02, de que esse preceito de lei somente serviria para atingir bens dos sócios em razão de dívidas da sociedade e não o inverso, não deve prevalecer. Há de se realizar uma exegese teleológica, finalística desse dispositivo, perquirindo os reais objetivos vislumbrados pelo legislador. Assim procedendo, verifica-se que a finalidade maior da disregard doctrine, contida no referido preceito legal, é combater a utilização 72 indevida do ente societário por seus sócios. A utilização indevida da personalidade jurídica da empresa pode, outrossim, compreender tanto a hipótese de o sócio esvaziar o patrimônio da pessoa jurídica para fraudar terceiros, quanto no caso de ele esvaziar o seu patrimônio pessoal, enquanto pessoa natural, e o integralizar na pessoa jurídica, ou seja, transferir seus bens ao ente societário, de modo a ocultá-los de terceiros. Feitas essas considerações, tem-se que a interpretação teleológica do art. 50 do CC/02 legitima a inferência de ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma. Ademais, ainda que não se considere o teor do art. 50 do CC/02 sob a ótica de uma interpretação teleológica, entendo que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em sua modalidade inversa encontra justificativa nos princípios éticos e jurídicos intrínsecos a própria disregard doctrine, que vedam o abuso de direito e a fraude contra credores. Outro não era o fundamento usado pelos nossos Tribunais para justificar a desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, quando, antes do advento do CC/02, não podiam se valer da regra contida no art. 50 do diploma atual. Nesse sentido, destacam-se os seguintes precedentes: REsp 86.502/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 26.08.1996 e REsp 158.051/RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ de 12.04.1999. Na seara doutrinária, quem primeiramente tratou do tema, foi o Prof. Fábio Konder Comparato, em sua clássica obra “O Poder de Controle na Sociedade Anônima” (Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008), da qual se extrai o seguinte ensinamento: Aliás, a desconsideração da personalidade jurídica não atua apenas no sentido da responsabilidade do controlador por dívidas da sociedade controlada, mas também em sentido inverso, ou seja, no da responsabilidade desta última por atos do seu controlador. A jurisprudência americana, por exemplo, já firmou o princípio de que os contratos celebrados pelo sócio único, ou pelo acionista largamente majoritário, em benefício da companhia, mesmo quando não foi a sociedade formalmente parte do negócio, obrigam o patrimônio social, uma vez demonstrada a confusão patrimonial de facto. (fl. 464) Na mesma senda de entendimento, a lição de Fábio Ulhoa Coelho: Em síntese, a desconsideração é utilizada como instrumento para responsabilizar sócio por dívida formalmente imputada à sociedade. Também é possível, contudo, o inverso: desconsiderar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizá-la por obrigação de sócio (Bastid-David-Luchaire, 1960:47). Por outro lado, a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica exige especial cautela do Juiz, sobretudo quando importa em aplicação inversa. Primeiramente, porque não se pode olvidar que o sentido operativo da teoria da desconsideração está intimamente ligado com o fomento à atividade econômica, porquanto o ente societário representa importante gerador de riquezas sociais e empregos. Se por um lado a distinção entre a responsabilidade da sociedade e de seus integrantes serve de estímulo à criação de novas empresas, por outro visa também preservar a pessoa jurídica e a manutenção de seu fim social, que seria fadada ao insucesso se fosse permitido, descriteriosamente, responsabilizá-la por dívidas de qualquer sócio, ainda que titular de uma parcela ínfima de quotas sociais. Por óbvio, somente em situações excepcionais em que o sócio controlador se vale da pessoa jurídica para ocultar bens pessoais em prejuízo de terceiros é que se deve admitir a desconsideração inversa. Por conseguinte, da análise do art. 50 do CC/02, depreende-se que o ordenamento jurídico pátrio adotou a chamada Teoria Maior da Desconsideração, segundo a qual se exige, para além da prova de 73 insolvência, a demonstração ou de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração) ou de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração). Nesse sentido, vejam-se os seguintes julgados: REsp 279.273/SP, 3ª Turma, Rel. Min Ari Pargendler, minha relatoria p/ acórdão, DJ de 29.03.2004; REsp 970.635/SP, 3ª Turma, minha relatoria, DJe de 01.12.2009; REsp 693.235/MT, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Dje de 30.11.2009. Dessa forma, em ambas as modalidades, a desconsideração da personalidade jurídica configura-se sempre como medida excepcional. O Juiz somente está autorizado a “levantar o véu” da personalidade jurídica quando forem atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02. À luz das provas produzidas, a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição concluiu, mediante minuciosa fundamentação, pela ocorrência de confusão patrimonial e abuso de direito por parte do recorrente, ao se utilizar indevidamente da empresa para adquirir bens de uso particular. Veja-se excerto desse decisum : O resultado da pesquisa realizada pelo exequente consta dos documentos de f. 364-419: certidões negativas de existência de bens; contrato de constituição da empresa TZ Leilões Rurais Ltda., que tem como sócio majoritário o exequente, a outra sócia é a sua esposa, sendo o capital social de cinco mil reais; bem registrado em nome da empresa TZ Leilões Rurais: camionete Nissan Frontier 4X2 SE. Pela análise das fotografias anexadas, percebe-se que o veículo não possui qualquer identificação da empresa e está sendo utilizado de forma particular: buscar o filho na escola e para passeios e compras, permanecendo o veículo em sua residência. O exequente juntou ainda cópia da decisão proferida em outro processo, que considerou fraudulenta a alienação pelo executado de um veículo Ford Ranger, bem como julgados dos tribunais a respeito da matéria. (...) Fora identificada infração à lei – constatada pela composição de sociedade, que tem como sócios o executado e sua esposa; pelo capital de apenas 5 mil reais; pelo veículo de alto valor comercial que se encontra em nome da sociedade, porém, utilizado apenas pelo executado para fins particulares, bem como lesão ao direito de terceiros, no caso, o exequente, por ocasião do não-recebimento do seu crédito e diante da inexistência de bens penhoráveis em nome do executado. Como, na verdade, a personalidade jurídica está atualmente servindo como um escudo para a defesa do executado frente à execução que lhe é movida, tenho-a como descaracterizada, confundindo-se, assim o patrimônio da sociedade com os bens pessoais do executado, sócio majoritário. (fls. 121/124) Desse modo, preenchidos os requisitos do art. 50 do CC/02 e considerandose que o recorrente é sócio majoritário e administrador da empresa TZ Leilões Rurais e Comércio de Carnes Ltda. – sem olvidar ainda que a ação quedou-se arquivada por longos 9 (nove) anos, ante a ausência de bens em nome do recorrente – tenho que impedir a desconsideração da personalidade jurídica na hipótese dos autos implicaria prestigiar a fraude à lei ou contra credores em detrimento da realização da execução. Em conclusão, o acórdão recorrido, ao manter a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, afigurou-se escorreita, merecendo assim ser mantido por seus próprios fundamentos. (grifo nosso) Diante do exposto através deste fantástico precedente, podemos concluir que é possível a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica. Conclui-se também que a desconsideração, em suas duas modalidades, deve ser aplicada com cautela por parte do julgador, visto que, se for usada 74 indiscriminadamente, criaria uma insegurança que certamente desestimularia as pessoas de se associarem. O TJDFT aplicou a desconsideração inversa em alguns de seus casos: AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO – DEVEDORES – CONFUSÃO PATRIMONIAL – BENS – SÓCIOS – EMPRESA – DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA – POSSIBILIDADE – AGRAVO DESPROVIDO. I – O direito pátrio admite a desconsideração da personalidade jurídica na forma inversa, para que a penhora recaia sobre os bens de propriedade da empresa, quando houver prova inconteste de fraude ou de prática de atos manifestamente ilícitos contra terceiros ou contra o fisco, por parte de seus sócios. II – Ante a dificuldade em dar seguimento à execução, ante a falta de bens em nome dos devedores, e configurada a ocorrência da confusão patrimonial, com vistas a frustrar a constrição, escorreita a r. decisão em declarar a desconsideração da personalidade jurídica, de forma inversa, uma vez que não pode o sócio da empresa se amparar na autonomia patrimonial da sociedade para se eximir de responsabilidades, obstando o processo executivo. (20100020055713AGI, Relator LECIR MANOEL DA LUZ, 5ª Turma Cível, julgado em 23/06/2010, DJ 30/06/2010 p. 102). (grifo nosso) Em outro caso julgado pelo egrégio TJDFT, ficou demonstrado que apesar da possibilidade da aplicação da desconsideração inversa, é uma medida excepcional e necessita que haja uma correta demonstração da aplicação da medida: DIREITO ADMINISTRATIVO. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO EXECUTIVA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA FORMA INVERSA. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. 1. Em face da excepcionalidade da medida, mostra-se correto o decisum que indefere pedido liminar de desconsideração da personalidade jurídica, na forma inversa, quando não demonstrada a relevância da fundamentação e da possibilidade de a parte agravante vir a experimentar danos irreparáveis ou de difícil reparação durante o regular prosseguimento da ação. 2. Recurso desprovido. (20090020086168AGI, Relator MARIO-ZAM BELMIRO, 3ª Turma Cível, julgado em 22/10/2009, DJ 09/11/2009 p. 135) No voto, o Excelentíssimo Desembargador assim fundamentou: (...) Como se vê, os fundamentos externados por ocasião da decisão que apreciou o pedido de antecipação dos efeitos da tutela recursal, por si sós, mostram-se suficientes a direcionar o julgamento da questão de fundo do presente agravo, mormente em se considerando que não vieram aos autos elementos outros aptos a me demoverem do raciocínio nela contido. 75 Nesse mesmo sentido, há outro precedente do TJDFT demonstrando a excepcionalidade: DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. MEDIDA EXCEPCIONAL. NECESSIDADE DE PROVAS. Admite-se a desconsideração inversa da personalidade jurídica para atingir os bens da sociedade utilizada como escudo para manobras fraudulentas dos seus sócios no intuito de prejudicar direitos de terceiros. No entanto, em face da excepcionalidade, tal medida somente é admitida ante a comprovação da fraude, simulação ou do abuso do direito por parte dos sócios.(20070020129032AGI, Relator NATANAEL CAETANO, 1ª Turma Cível, julgado em 30/01/2008, DJ 28/02/2008 p. 1810) No voto, ficou assim fundamentado: (...) Ocorre que, para demonstrar que o agravado está se escondendo sob o véu empresarial, a agravante deveria ter instruído os autos com provas mais robustas, pois a desconsideração da personalidade jurídica é medida excepcional, ainda mais quando acompanhada do imediato bloqueio de dinheiro da empresa, que é o que se pretende no caso dos autos. Note-se que a agravante sequer se deu ao trabalho de juntar aos autos do agravo as cópias dos depoimentos a que se refere o Parquet. A pretensão da agravante, portanto, não esbarra na impossibilidade jurídica do pedido, mas sim na escassez de provas a respeito da alegada fraude para prejudicar o direito de terceiros. Dessa forma, NEGO PROVIMENTO ao agravo, mantendo a r. decisão recorrida. Deve-se observar que em ambos os casos, a negativa da aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica se deu pelo fato da fragilidade das provas e não da inexistência deste instituto. Dentre as decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo, destacam-se ainda as seguintes: Propriedade comum - Hipótese clara de abuso de poder do ex-marido com a administração de coisas comuns, impedindo a ex-mulher do exercício dos direitos reais decorrentes do domínio - Ação que foi dirigida contra a empresa em que o ex-marido figura como sócio detentor de 98% do capital e contra ele, em litisconsórcio, sendo caso de aplicar a teoria da desconsideração jurídica inversa para atingir a ambos (sociedade e sócio) - Provimento, em parte, determinando que se promova a averbação das construções e para determinar que se pague indenização correspondente ao aluguel real devido, apurando-se em liquidação de sentença (arbitramento). Apelação 994093008738. Relator(a): Natan Zelinschi de Arruda. Data do julgamento: 07/10/2010. (grifo nosso). 76 Neste caso, ficou assim fundamentado no voto do Excelentíssimo Relator: A empresa Comercial Piratem figura como locatária do imóvel (contrato de 60 meses, por R$ 1.500,00) o que representa uma manobra do ex-marido de alijar a autora da administração, impondo-lhe sério prejuízo. Não foram impugnados os laudos que informam ter o prédio valor de mercado superior a R$ 600.000,00, o que incompatibiliza o modesto aluguel combinado entre o condômino e dono da empresa. Trata-se de evidente fraude contra o patrimônio da mulher separada, o que autoriza a aplicação da teoria da desconsideração jurídica inversa, ou seja, admitir que por detrás de toda a situação figura a pessoa física, Carlos Alberto Schievano. Segue outro julgado do referido tribunal paulista: AGRAVO DE INSTRUMENTO - MANDATO - EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL - TRANSAÇÃO - PROCESSO SUSPENSO - PRETENSÃO DE SEGUIMENTO DA EXECUÇÃO SOB A ALEGAÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DO ACORDO - PRETENSÃO À AMPLIAÇÃO DO POLO PASSIVO PARA INCLUSÃO DE EMPRESAS QUE TERIAM SUCEDIDO A DEVEDORA INADMISSIBILIDADE - IMPOSSIBILIDADE DE EXTENSÃO DOS EFEITOS DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE A QUEM NÃO É PARTE NO PROCESSO - CC ART. 50 - INTELIGÊNCIA - DECISÃO HOSTILIZADA - MANUTENÇÃO. A recorrente, insistindo na sua pretensão de receber os valores que afirma devidos pelo inadimplemento do acordo, pleiteou a ampliação do polo passivo da execução o que foi corretamente indeferido, pois não socorrem na hipótese as condições necessárias para se aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica de forma invertida. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ainda que aplicada de forma inversa, segue os mesmos princípios que autorizam a aplicação do artigo 50 do Código Civil e não se presta a destruir a útil ficção da pessoa jurídica. Não exauridas todas as possibilidades de se localizar bens penhoráveis dos sócios da empresa devedora, cuja personalidade jurídica foi desconsiderada, é precoce a pretensão do credor de inverter o instituto para alcançar o patrimônio de empresas que não figuraram no título em execução. A mera sucessão de empresas e alterações societárias decorrentes da dinâmica comum aos negócios não é causa que, por si só, enseja alteração do polo passivo de ações de execução em curso, o eqüivaleria a ensejar considerável instabilidade das lides, já centradas em seus eixos, como acontece no caso em espécie. Não há provas de que o débito em discussão foi negociado e, por sua vez, embora muito se lastime os fatos que ainda propulsionam a presente demanda, na verdade dissociados do acordo entabulado, a decisão que não permitiu a alteração do polo passivo está correta e deve ser mantida por seus próprios e jurídicos fundamentos. RECURSO DESPROVIDO. Agravo de Instrumento 990102971694. Relator(a): Amorim Cantuária. Data do julgamento: 05/10/2010. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul também trouxe grande contribuição para o tema: AGRAVO DE INSTRUMENTO. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. PRELIMINARES. CONFUSÃO PATRIMONIAL. TRANSFERÊNCIA DO PATRIMÔNIO DA PESSOA FÍSICA PARA A SOCIEDADE. DESCONSTITUIÇÃO INVERSA DA 77 PERSONALIDADE JURÍDICA. MANUTENÇÃO. Os embargos à execução encontram-se suspensos devido à necessidade de que se promova a garantia do juízo, o que é objeto do presente recurso, suspensão esta que não constitui ofensa aos princípios constitucionais do devido processo legal e do contraditório. O agravante Nestor Perini, além de executado, é detentor de parte das quotas que compõem a empresa Lupapar Negócios e Empreendimentos Ltda., sobre as quais recai a determinação de penhora destinada a garantir a execução, daí a legitimidade e o interesse do mesmo para promover o presente agravo de instrumento. Quanto aos demais recorrentes, não lhes pode ser furtado o eventual interesse de responder pela execução na parte do débito que lhes compete. A lei civil, ao tratar da cessão de crédito, em momento algum assegura ao devedor o direito de preferência na aquisição do crédito cedido. Diante das diversas e infrutíferas tentativas de localizar bens em nome dos executados capazes de garantir o juízo executório, bem como da confusão havida entre o patrimônio de um dos sócios e da sociedade que o mesmo integra e da transferência de patrimônio pessoal daquele em favor desta última, possível afigura-se a desconsideração inversa da personalidade jurídica determinada na origem. Logo, cabível a penhora da parte do patrimônio da empresa Lupapar Negócios e Empreendimentos Ltda. detida pelo sócio Nestor Perini e representada por ações da Lupatech S/A. O comportamento processual dos agravantes revela-se temerário e visa à oposição injustificada ao andamento do processo, o que o art. 17, II, IV e V do Código de Processo Civil reputa como conduta de má-fé, devendo, assim, os recorrentes responderem por multa correspondente a 1% sobre o valor atualizado da execução, nos termos do art. 18 do mesmo diploma legal. AFASTADAS AS PRELIMINARES SUSCITADAS PELAS PARTES E NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO. (Agravo de Instrumento Nº 70034165084, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Cláudio Baldino Maciel, Julgado em 06/05/2010) (grifo nosso) Porém, em alguns casos, negou-se a aplicação da teoria, diante da ausência de provas suficientes que caracterizem o abuso: EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. AUTORIZAÇÃO PARA OS DEVEDORES DEPOSITAREM QUANTIA MENSAL ATÉ O PAGAMENTO INTEGRAL DA DÍVIDA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. CONFUSÃO PATRIMONIAL NÃO VERIFICADA. A inexistência de bens particulares dos executados, capazes de garantir a execução, não caracteriza a confusão patrimonial, tampouco se mostra suficiente para autorizar a desconsideração inversa da personalidade jurídica de sociedade empresária por eles constituída, com a finalidade de penhorar seu faturamento bruto para saldar dívida não contraída pela empresa. Agravo desprovido, monocraticamente. (Agravo de Instrumento Nº 70035630649, Décima Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio dos Santos Caminha, Julgado em 09/04/2010) (grifo nosso). 78 3.9. Opinião de profissionais da área Neste tópico referente à opinião de profissionais da área, foi realizada entrevista com a Juíza de Direito Carla Patrícia Frade Nogueira Lopes119, e foram realizadas e respondidas as seguintes perguntas: Pergunta 1: Para a senhora, o que é a desconsideração inversa da personalidade jurídica? Resposta 1: É um instituto elaborado pela doutrina e seguido pela jurisprudência para permitir o afastamento da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, de modo a permitir que esta responda por atos do sócio. Pergunta 2: Qual é a importância deste instituto no sistema jurídico brasileiro? Resposta 2: Cuida-se de avanço do sistema jurídico em favor do atendimento e da satisfação do crédito. Pergunta 3: Quais são os pressupostos para a aplicação da desconsideração inversa? Resposta 3: Os mesmo da desconsideração tradicional da personalidade jurídica; desvio de bens, fraude ou abuso de direito, etc. Pergunta 4: A inexistência de um dispositivo legal que autoriza a desconsideração inversa impede sua aplicação? Resposta 4: Não impede, desde que haja – como há, nesse caso – um raciocínio construído com base nas fontes oficiais do Direito. É o caso, por exemplo, da objeção de pré executividade. 119 Carla Patrícia Frade Nogueira Lopes é Juíza de Direito titular da 3ª Vara Cível da Circunscrição Judiciária de Taguatinga-DF. 79 Pergunta 5: Para que haja a desconsideração da personalidade jurídica, tanto de forma convencional, como em sua modalidade inversa, é necessário um processo autônomo, ou basta apenas um despacho do juiz que irá autorizá-la? Resposta 5: Não é preciso um processo autônomo. Basta que o Judiciário seja provocado pela parte e, por meio de decisão interlocutória, o juiz poderá deferir ou indeferir o pedido. Pergunta 6: Quais são as vantagens e desvantagens da desconsideração inversa da personalidade jurídica? Resposta 6: As mesmas da desconsideração tradicional da personalidade jurídica. Sob o ponto de vista do credor, a satisfação de seu crédito; sob a ótica do devedor, a mais célere diminuição (ou comprometimento) de seu patrimônio. Pergunta 7: A senhora já julgou algum caso em que houve a desconsideração inversa, ou que provavelmente teria cabimento? Resposta 7: Houve um único pedido, mas não vislumbrei presentes os requisitos autorizadores. Neste capítulo, vimos alguns pontos da desconsideração inversa da personalidade jurídica, tais como os pressupostos para aplicação, conseqüências, aplicação em outras áreas no direito, posicionamento da jurisprudência de alguns tribunais do país, bem como a opinião de um profissional na área. Diante de tudo que fora exposto, podemos concluir que a ausência de um dispositivo legal que autorize a desconsideração inversa da personalidade jurídica não é impedimento para sua aplicação, pois, como exposto pela Ministra Nancy Andrighi, a razão da desconsideração da personalidade jurídica existir é a necessidade de coibir o abuso do direito e, pela mesma razão, não se pode negar a existência da desconsideração inversa. 80 Conclui – se, ainda, que a medida é excepcional, tendo em vista que a regra é a preservação da personalidade da sociedade. Por este motivo, é necessário que existam provas robustas da intenção do sócio de frustrar o direito da outra parte, e sem essa demonstração, não se pode falar em desconsideração da personalidade jurídica, em ambas as modalidades. 81 CONCLUSÃO A desconsideração inversa da personalidade jurídica é, conforme demonstrado, um importante instituto no direito societário, pois visa proteger a própria sociedade. Sua principal função é coibir os sócios mal intencionados que utilizam a pessoa jurídica para ocultar suas fraudes. Apesar de não existir um dispositivo legal acerca da desconsideração inversa, não autorizá-la seria o mesmo que aceitar a fraude no sistema jurídico brasileiro, o que não é desejável para as pessoas que utilizam a sociedade de forma correta. No primeiro capítulo, viu-se os aspectos relevantes relativos à sociedade empresária, desde o conceito de pessoa até o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Pode-se concluir que às sociedades foi concedida a possibilidade de ter existência independente da de seus membros, podendo realizar todos os atos que uma pessoa realiza, representada pelo sócio. Essa existência, independente da dos sócios, é essencial para o bom andamento da sociedade, pois visa diminuir os riscos da atividade empresária. No segundo capítulo, tratou-se acerca da desconsideração da personalidade jurídica. Viu-se seu conceito e, dentre outros estudos, as hipóteses e forma de aplicação. Apesar de aparentemente negar a personalidade jurídica, isso não ocorre, porque a desconsideração afasta apenas temporariamente os efeitos da personalização no intuito de coibir as fraudes perpetradas contra a pessoa jurídica. Dessa forma, contrariamente do que algumas pessoas afirmam, a desconsideração existe justamente para proteger e consequentemente, preservar a pessoa jurídica. Já no terceiro capítulo, tratou-se acerca da desconsideração inversa da personalidade jurídica. Essa modalidade é relativamente nova no sistema jurídico brasileiro e objetiva responsabilizar a sociedade por dívida pessoal do sócio que agiu fraudulentamente. Como exemplo, o sócio que está em processo de separação, transfere bens particulares para o nome da empresa com o objetivo de que ele não seja vendido e o valor dividido com a ex-cônjuge. Nessa situação, desconsidera-se temporariamente a personalidade para atingir o patrimônio social e retirá-lo da 82 propriedade da empresa e transferi-lo para a esposa que é quem tem direito efetivamente. Acreditamos que a desconsideração inversa da personalidade jurídica é, assim como a desconsideração tradicional, uma importante forma de proteger a sociedade de sócios mal intencionados. Desta forma, apesar da omissão do legislador relativamente a esta forma de desconsideração, acreditamos que é plenamente possível sua aplicação, pois o direito não pode proteger nenhum tipo de fraude. Obviamente que devido à gravidade de suas conseqüências, este instituto deve ser usado com a maior cautela e diante de provas robustas da fraude. A principal dificuldade em tratar desse tema é a existência de poucos autores que o explicam. Alguns que ainda explanam sobre a teoria, se limitam a tratá-lo como um pequeno tópico dentro da desconsideração. Diante da relevância desse tema, acredita-se que mereça ser objeto de uma análise mais aprofundada. Porém, conforme dito anteriormente, não se tem a intenção de esgotar o tema. O objetivo foi trazer algumas de suas possíveis aplicações no sistema jurídico brasileiro. 83 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARAL, Luiz Otávio de Oliveira. Teoria geral do direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. AMARO, Luciano. Desconsideração da pessoa jurídica no código de defesa do consumidor. Revista de direito do consumidor, São Paulo, n. 5 , jan-mar/1993. BASTOS, Eduardo Lessa. Desconsideração da personalidade jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. BERTOLDI, Marcelo M. e RIBEIRO, Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos tribunais, 2008. BRUSCHI, GILBERTO GOMES. Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2009. CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. 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