Kuma&Transculturazione Shirley de Souza Gomes Carreira - ABEU – Centro Universitário Imigrantes libaneses no Brasil: a representação literária do processo de aculturação Questo articolo esamina la rappresentazione letteraria degli immigrati libanesi all'interno della letteratura brasiliana. L'autrice mette in evidenza come la letteratura abbia giocato un ruolo fondamentale non solo nel testimoniare il processo di acculturazione, ma anche nel tramandare la memoria etnica. L'articolo ripercorre le molteplici fasi che gli immigrati libanesi hanno dovuto attraversare in vista di una completa integrazione e fornisce una vivida rappresentazione dell'interazione sociale e dell'iniziale scontro tra culture diverse. A cultura permite ao homem não somente adaptar-se ao seu meio, mas também adaptar esse meio ao próprio homem, a suas necessidades e seus projetos. (CUCHE, 1999, p. 10) Introdução A migração é um fenômeno tão antigo quanto a origem do homem e, conforme afirma Goldberg (1997, p.21), é uma condição natural da experiência humana. No entanto, o deslocamento implica a perda de referentes identitários, ou seja, do lugar antropológico (AUGÈ, 1994) e traz como consequência a necessidade de adaptação a uma outra cultura. Segundo o Memorandum on the study of acculturation, de 1936, «Acculturation comprehends those phenomena which result when groups of individuals having different cultures come into continuous first-hand contact, with subsequent changes in the original cultural patterns of either or both groups»1. No entanto, Berry (1997, p. 7) afirma que, na prática, a aculturação tende a induzir maior mudança em um dos grupos do que no outro e, embora seja a princípio uma mudança de ordem cultural, acaba por tornar-se uma mudança psicológica do indivíduo. A aculturação é, portanto, um processo que envolve tanto o grupo dominante quanto o grupo minoritário, tendo um impacto maior neste último. O contato cultural atinge dois aspectos básicos: o grau de envolvimento de um grupo com o outro e o grau de manutenção da cultura manifestada por cada grupo. Deste modo, um grupo pode assimilar o outro, ambos podem permanecer culturalmente distintos ou misturarem-se entre si. O processo de aculturação do imigrante implica etapas que refletem, em maior ou menor grau, a ansiedade resultante da desorientação experimentada ao se entrar em uma nova cultura, ou seja, do choque cultural. Este artigo consiste em uma análise da representação literária da aculturação de imigrantes libaneses na literatura brasileira, bem como uma reflexão sobre as variáveis sociais que afetam a integração social do imigrante. Para tanto, examinaremos três obras que contextualizam a imigração libanesa no Brasil: Amrik, de Ana Miranda, Nur na escuridão, de Salim Miguel, e Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum. Amrik é um romance histórico, fruto de minuciosa pesquisa da autora, que não apenas utilizou como matéria prima os relatos de imigrantes, denominados mahjar, como também dados extraídos da literatura árabe, bem como registros históricos relativos à imigração. A narradora é uma imigrante libanesa, que rememora a sua saga pessoal, desde a infância no Líbano, passando por uma frustrada experiência na América do Norte, até a sua chegada ao Brasil, onde, finalmente, se estabelece. Em Nur na escuridão, de Salim Miguel, um imigrante libanês nos leva a conhecer a sua saga familiar e as relações complexas dos estrangeiros com o país de adoção. Liderada pelo pai, Youssef, uma família percorre alguns lugares do Brasil à procura de um local onde possa se estabelecer e de uma oportunidade para recomeçar. Embora entrecortada pela autobiografia do pai, quem nos conta toda essa história, desde a chegada à Praça Mauá, no Rio de Janeiro, é Salim, o filho mais novo, que reflete sobre a formação da família e as muitas viagens, mesmo as involuntárias, que acabam fazendo. Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, constitui um mosaico de relatos de membros e amigos de uma família libanesa, ordenado pela narradora não nomeada na forma de uma carta enviada ao irmão, que está em Barcelona. O texto é resultado de múltiplas informações amealhadas durante a viagem de regresso a Manaus, sua terra natal, para rever a mãe de criação e matriarca da família, que, no entanto, falece antes do reencontro. Os três textos têm o deslocamento e a memória como molas propulsoras da narrativa e, em proporções diferentes, exploram a temática do choque entre culturas, bem como relatam a árdua experiência dos imigrantes na nova terra. 1. O imigrante libanês no Brasil A emigração libanesa para o Brasil iniciou-se oficialmente após a visita de D. Pedro II ao Líbano, muito embora haja registros históricos da presença de libaneses desde 1808. No século XIX, o governo brasileiro adotara uma política de branqueamento que levou, por sua vez, ao estímulo à emigração de europeus, cuja vinda para o Brasil era subsidiada. No entanto, o mesmo não aconteceu com emigrantes de outras regiões, como os japoneses, sírios e libaneses. Desvinculados da política de imigração oficial, que dirigia os imigrantes europeus às lavouras do interior paulista e dos estados do sul, os imigrantes libaneses tiveram que custear a viagem e a manutenção na nova terra, o que os levou a procurar apoio na rede de familiares já estabelecida no país, ligando-se aos ofícios urbanos e comerciais – sobretudo o de mascate, ocupação importante num país ainda essencialmente rural. Apesar da ausência de incentivos governamentais, o Brasil foi o país que recebeu o maior número de imigrantes libaneses. O sucesso dos pioneiros estimulou o processo migratório, pois aqueles que conseguiam se estabelecer convidavam seus parentes e amigos para que também viessem tentar a sorte no Brasil, formando uma corrente volumosa de imigrantes que se estendeu dos anos 1880 até o presente, com breves períodos de interrupção (especialmente durante as guerras mundiais). Vários foram os fatores que colaboraram para a emigração libanesa, dentre eles a violência no tratamento dado aos soldados cristãos durante o alistamento militar, que se tornou obrigatório em 1909; a pressão demográfica, pobreza do solo, doenças endêmicas, declínio das indústrias tradicionais e a falta de oportunidades econômicas. Roberto Khatlab (2007) afirma que foram três as ondas migratórias sírio-libanesas para o Brasil: de 1880 a 1900, 1900 a 1950 e de 1975 em diante. Os integrantes da primeira onda migratória tinham em mente fazer fortuna para poder retornar à terra natal, caracterizando uma imigração de ordem econômica. Sua atividade principal no país era o comércio e logo ficaram conhecidos como “mascates”. A experiência bem-sucedida de alguns pioneiros fez com que a emigração se tornasse uma verdadeira febre, estimulada cada vez mais pela crença de que alguns anos nas Américas seriam suficientes para garantir a aquisição de terras e a prosperidade dos membros da família que ficaram. O modelo de existência para esses primeiros imigrantes ainda era o da terra natal, para onde ambicionavam retornar. É difícil precisar o contingente de imigrantes nessa fase, pois não existem estatísticas sobre a distribuição de libaneses no Brasil do início do século 20. No entanto, conforme Truzzi (2005, p. 15) registra, “nos primeiros anos de 1900, havia três centros de atração principais no Brasil para essa etnia: a Amazônia, São Paulo e Rio de Janeiro”. Diferentemente de europeus e asiáticos, os árabes não se fixaram de maneira concentrada em um único lugar, mas se espalharam de Norte a Sul do Brasil, com alguma predominância no Norte. Os mascates tiraram proveito do surto de prosperidade da borracha que atraía grandes levas de brasileiros para a região do Amazonas. Com o tempo, a decadência da borracha determinou a transferência de muitos libaneses para São Paulo e para o Rio Janeiro, contribuindo para a eclosão de grandes artérias comerciais (KHATLAB, 2007). O espírito de clã, trazido por imigrantes que tinham na aldeia o horizonte máximo, beneficiou a comunidade. A rede de favorecimentos começava na acolhida aos recém-chegados e se estendia depois até as relações entre industriais e grandes comerciantes, com facilidades de crédito e de fornecimento. Os mascates, em geral, abasteciam-se com patrícios, comerciantes que já haviam passado pela fase da maleta debaixo do braço e conseguiram abrir uma lojinha. Muitos sírios e libaneses vieram para o Brasil enganados pelas companhias de navegação. Esses imigrantes eram levados para Santos ou Rio de Janeiro e só quando desembarcavam percebiam que não estavam na América do Norte. O Brasil também foi a opção para aqueles que não conseguiram visto de entrada para os Estados Unidos devido ao seu estado de saúde ou analfabetismo. A segunda fase de migração foi marcada pelas consequências das duas grandes guerras mundiais, quando o Líbano atravessou uma das mais sombrias páginas da sua história e conheceu a fome, as doenças contagiosas, as disputas político-religiosas e o bloqueio marítimo. Nessa época, os emigrados tiveram um papel importante na vida de seus familiares, a quem enviavam ajuda. O fluxo migratório sírio-libanês atingiu seu auge entre 1920 e 1930. Esse período assinala a mudança de objetivo dos que aqui chegaram. Decepcionados com o rumo que seu país tomou após o fim da dominação política e econômica, os imigrantes optaram por fixar residência no Brasil, iniciando uma “imigração de assentamento”. Diferentemente da primeira onda migratória, quando o imigrante não considerava definitiva sua vinda para o Brasil e o retorno ainda permanecia no pensamento da maioria; o libanês da segunda onda migratória não via a si mesmo como parte de um grupo de expatriados, mas como membro de uma coletividade de emigrados que desejavam ter um lugar que pudessem considerar como seu em terras brasileiras. A terceira e última onda migratória, que teve lugar após a guerra civil libanesa, deveu-se à falta de perspectivas para os jovens que viviam em regiões rurais. Mais recentemente, a partir de 1995, começou uma evasão, em grande parte, de cidadãos libaneses qualificados, devido à recessão econômica e ao desemprego. A fim de que possamos analisar a representação literária da imigração libanesa no Brasil, examinaremos, a seguir, as variáveis de ordem social que afetam a integração do imigrante e que são, de certa forma, igualmente representadas, já que estão associadas à questão do choque cultural. 2. Variáveis que afetam a integração social do imigrante A aculturação é bidirecional, afetando os dois grupos envolvidos, e exige certos requisitos como o contato, a influência recíproca e a mudança. Em uma situação intercultural, o imigrante depara-se com dois aspectos fundamentais: o envolvimento com a cultura receptora e a manutenção da própria cultura. A partir do posicionamento do individuo ante a sociedade que o recebe, foi possível detectar estratégias de aculturação, que, na realidade, implicam escolhas pessoais. Berry (1997) distingue quatro estratégias aculturativas: 1-Integração: em que há o interesse em manter a cultura original e, ao mesmo tempo, há interação com outros grupos culturais. Ela só é possível em sociedades multiculturais baseadas em valores de aceitação da diversidade cultural e com baixo nível de preconceitos. 2- Assimilação: em que os indivíduos adquirem totalmente os traços da cultura de inserção, abrindo mão de sua identidade cultural. 3- Separação: quando o grupo não-dominante tenta manter sua cultura original e evita interagir com o novo ambiente cultural, significando o mínimo de desprendimento cultural combinada com o mínimo de aprendizado da nova cultura. 4- Marginalização, quando há pouca possibilidade em manter a cultura de origem, bem como de entrar em contato com outros grupos culturais. Em outras palavras, há o máximo desprendimento cultural vinculado a um mínimo aprendizado cultural. No caso específico dos imigrantes no Brasil, dada a natureza do processo migratório, associado ao desenvolvimento econômico do país, houve uma integração, com intensas trocas culturais (LESSER, 1999, p. 22). O idioma é, via de regra, um dos obstáculos à adaptação do imigrante ao país de adoção. Oliveira (2001, pp. 12-13) define o idioma como a primeira grande barreira a ser enfrentada pelo imigrante: o bilinguismo ou a competição entre a língua de origem e a nova definem a construção da identidade do imigrante, ou seja, a identidade nova e híbrida, que surge das trocas culturais. A identidade cultural pode ser compreendida como um conjunto de tradições, histórias e valores morais, espirituais e éticos deixados por gerações passadas. No entanto, no contexto da migração, essa identidade é forjada tanto por esse conjunto de tradições quanto pela apreciação que a sociedade inclusiva faz do grupo, ou melhor, em reação às demandas e valorações, positivas ou negativas, que essa sociedade exerce sobre o grupo (TRUZZI, 2005, p. 51). Esse critério de valoração construiu uma imagem do imigrante libanês que gerou o estereótipo do “turco”, bastante difundido na literatura brasileira. 3. A representação do imigrante libanês na literatura brasileira: uma deambulação A visão estereotipada do imigrante libanês pode ser encontrada em obras da literatura brasileira, quase sempre associada à imagem de comerciante, como podemos observar na seguinte passagem de Gabriela cravo e canela, de Jorge Amado: Era comum tratarem-no de árabe, e mesmo turco, fazendo-se assim necessário de logo deixar completamente livre de qualquer dúvida a condição de brasileiro, nato e não-naturalizado, de Nacib. [...] De turco ele não gostava que o chamassem, repelia irritado o apodo, por vezes chegava a se aborrecer: – Turco é a mãe! (AMADO, 1975, pp. 43-45). Embora não focalize em particular a questão da imigração, o romance recupera um dado histórico, uma vez que a denominação deveu-se ao fato de que os sírio-libaneses viajavam com documentos emitidos pela Turquia. Segundo Knowlton (1961), todos os imigrantes do Oriente Médio foram denominados “turcos” até 1892, quando os sírios passaram a ser listados separadamente. Por essa época, os libaneses eram incluídos nessa lista, porque faziam parte da Grande Síria, que hoje compreende os estados da Síria e do Líbano. O rótulo funcionava como uma espécie de umbrella term, uma vez que eliminava distinções entre os grupos que agregava. Conforme Oswaldo Truzzi nos faz recordar: Embora a região territorialmente pertença ao chamado mundo árabe moderno, e seus habitantes efetivamente sejam falantes da língua árabe, os sírios e libaneses identificam-se, sobretudo, com a religião professada e com a região ou aldeia de origem, elementos fundadores de suas identidades, muito mais que com um estado-nação, inexistente para eles na época (TRUZZI, 2005, p. 2). Em Nur na escuridão, Salim Miguel relata a indignação de Youssef ao ser chamado de “turco”: E de repente, sem qualquer explicação, sem lógica visível, sem nenhum fato aparente que justificasse ou provocasse, a reclamação dos demais comerciantes [...] esse estrangeiro, esse turco, chegou ontem e nos tomou a clientela, sem se lembrarem que também eles eram imigrantes, ou filhos ou netos de, passaram a chamar o pai de turco e gringo. Deslembravam-se de que eram chamados de galegos (MIGUEL, 2008, p. 118). Como é possível observar, a ideia de uma identidade ou cultura árabe unitária, que ignore as características particulares advindas de situações geográficas e históricas específicas, nunca foi totalmente aceita. A palavra “turco” assumiu, assim, um sentido pejorativo, advindo, em grande parte, pelo incômodo causado pelo sucesso econômico dos imigrantes. Em Amrik. Ana Miranda narra a trajetória dos imigrantes libaneses no Brasil: suas aspirações, seus sonhos, bem como a luta para superar o choque entre culturas. O romance incorpora dados históricos, como, por exemplo, o desvio do rio para fazer a rua 25 de março, assim como registra as dificuldades de aceitação na nova terra: No começo, disse tio Naim, vinham os italianos e os alemães à porta ver despejar de mais árabes, riam de nossos modos, contavam histórias engraçadas sobre nós e não tinham medo [...] mas o mascates foram prosperando e de miseráveis ambulantes descalços que vendiam cigarros em bandejas dependuradas no pescoço ou quibe frito em tabuleirinhos passaram a mascates de santos de madeira e escapulários depois a mascates de tecidos botões linhas arre, assim os mascates se tornaram perigosos sujos traiçoeiros ambiciosos usurários [...] mas não somos o que eles pensam, libaneses são limpos, cultos, temos a Université dos jesuítas e a Universidade Americana, sabemos falar inglês grego francês, sabemos ler escrever, inventamos álgebra astronomia matemática, os algarismos arábicos o alfabeto, disse tio Naim, trouxemos para ocidentais a laranjeira o limoeiro o arroz, ensinamos ocidentais a melhor cultivar a alfarrobeira e a oliveira, a criar cavalos, a plantar uvas, figos e imensas maças, a regar, pintar as unhas, fazer hortas de verduras e talhões de legumes, mais de seiscentas palavras à língua dos lusis (MIRANDA, 1997, p. 52). O ofício de mascate também encontra a sua representação no romance de Ana Miranda. Chafic e Abrahão são representações de duas fases vivenciadas pelo imigrante de primeira geração. O primeiro representa o comércio itinerante, ocupação inicial dos imigrantes. O segundo aponta para uma tendência que se perpetuaria na segunda geração, comércio fixo, que não só viria a formar uma rede de conterrâneos a dar suporte uns aos outros, como permitiria aos seus descendentes o privilégio de dedicar-se aos estudos. Os imigrantes da segunda geração encontraram os primeiros aqui fixados, muitos deles atacadistas, podendo assim lhes fornecer mercadoria e ensinar a língua e os conhecimentos básicos para o exercício das transações comerciais: Abraão abriu a canastra mostrou como vendia renda, bordado, retrós sabonete meia dentifrício coisas pequenas pesam pouco, vendem fácil, preço bom, crédito, lágrimas no olhos, Logo aprendes a língua e se sabes umas poucas palavras podes trabalhar por tua conta, sais de manhã cedo mesmo que chova levas pão farinha pudim de palmito bocajuva vais de casa em casa nos bairros da Sé Santa Ifigênia, havia um mapa da capital da província de São Paulo, Abraão tinha lista de fregueses (MIRANDA, 1997, p. 176). Em Nur na escuridão, de Salim Miguel, pode-se observar a dificuldade enfrentada pelos libaneses recém-chegados para se iniciarem na profissão de mascate: Não importa o que uma pessoa tenha sido ou queira ser [...] ao chegar ao Brasil, libaneses e sírios, árabes em geral, começam mascateando [...] Se estão se dando bem e o mascatear dá certo, vão deixar de ser trouxas, não demora adquirem um cavalo, uma carrocinha, depois podem ter uma vendola, um armazém, loja de tecidos, quem sabe uma fabriqueta (MIGUEL, 2008, p. 96). O processo de aprendizagem é quase sempre o mesmo: A primeira investida foi para Petrópolis, perto, acompanhado de um parente, que dominava os segredos da profissão, e não só dominava, gostava de mascatear, de conhecer novas gentes e novas regiões [...] explicou como o pai deveria agir. Cada país de origem pedia um modo, bom de perguntar logo a nacionalidade, indagar dos primeiros tempos deles ou dos antepassados, dos problemas de adaptação; ensinava, nunca dê o preço de uma mercadoria, para realizar a venda precisa pôr um preço sempre mais alto, depois ir cedendo, pechinchar se chama, faz parte de um jogo milenar (MIGUEL, 2008, p. 101). Essa atividade favorecia o enraizamento na nova terra, pois o mascate necessitava socializar-se e cativar a sua freguesia, muito embora não fosse essa a intenção inicial dos imigrantes, para quem aquela era uma condição passageira, a ser coroada com o retorno à terra natal. Com o passar do tempo, no entanto, este passava a ser algo cada vez mais distante, fazendo com que os imigrantes começassem a pensar em meios de melhorar a sua condição de vida. Assim é que Naim, tio da protagonista de Amrik, exorta os amigos libaneses à criação de estruturas sociais locais que lhes permitam ter uma vida próxima à da terra natal em solo brasileiro: «[...] um dia vão perceber que a vida passou, ficaram aqui fazendo fortuna e não voltaram nem ficaram ricos, só alguns, Entendam logo isso e façam os cemitérios clubes igrejas mâdrassas que nos dos outros não nos aceitam [...]» (MIRANDA, 1997, p. 64). O domínio do português foi, sem dúvida, a primeira grande barreira a transpor. Ao mesmo tempo em que necessitavam aprender o idioma para mascatear, os imigrantes libaneses buscavam manter vivo o idioma de seu país natal, mantendo contato com outros imigrantes da mesma origem. No entanto, aos poucos, assim como a terra natal, a interação apenas em árabe tornou-se algo distante. Em Amrik, a narradora relata essa tendência dos imigrantes a se agruparem com seus conterrâneos. O início do processo de intercâmbio cultural é também descrito no romance, bem como o desenvolvimento de uma interlíngua2, mistura de árabe e português: Tio Naim estudou na Université dos jesuítas Saint Joseph, escrevia para o ALK-Ahram e agora pediam para escrever sobre imigrantes, dinheiro, política, república, ele gostava de república porque trazia prosperidade, os escritos de tio Naim eram discutidos por libaneses nos mezzes as domingos, senhores de muitos espíritos contrários e dados a leis da imaginação, mais levados por seus sonhos do que pela realidade, cada qual vendo mais a distância que a proximidade, misturando árabe com português [...] (MIRANDA, 1997, p. 62). Néstor García Canclini, na introdução de seu Culturas híbridas, nos diz entender hibridização como os «processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas» (CANCLINI, 2003, p. XIX). A interlíngua é um idioma híbrido e uma das primeiras manifestações do hibridismo cultural. Quando Homi Bhabha (apud RUTHERFORD,1990, p. 211) desenvolveu o conceito de hibridismo, ele o definiu como o terceiro espaço, isto é, o lócus do surgimento de uma representação mútua e mutável da diferença cultural e produtor de uma nova configuração identitária, híbrida, porque não é fruto da assimilação nem da resistência à aculturação, mas fruto da tessitura de elementos provenientes de duas culturas diferentes. Em Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, Hakim, filho de imigrantes libaneses, nascido em Manaus, é iniciado na língua árabe pela própria mãe, aprendendo sem nenhum método a língua e a cultura de seus ancestrais: As primeiras lições foram passeios para desvendar os recantos desabitados da Parisiense, os quartos e cubículos iluminados parcialmente por clarabóias: o corpo morto da arquitetura. Sentia medo de entrar naqueles lugares, e não entendia porque o contato inicial com um idioma inaugurava-se com a visita a espaços recônditos. Depois de abrir as portas e acender a luz de cada quarto, ela apontava para um objeto e soletrava uma palavra que parecia estalar no fundo de sua garganta; as sílabas, de início embaralhadas, logo eram lapidadas para que eu as repetisse várias vezes. Nenhum objeto escapava dessa perquirição nominativa que incluía mercadorias e objetos pessoais [...]. Ela ensinava sem qualquer método, ordem ou seqüência. Ao longo dessa aprendizagem abalroada eu ia vislumbrando, talvez intuitivamente, o halo do “alifebata”, até desvendar a espinha dorsal do novo idioma [...] (HATOUM, 2006, p. 51). Esse aprendizado inscreve em Hakim uma memória ligada à família imigrante, à tradição de uma cultura que não conhece em sua raiz, mas como legado familiar e forma de resistência a uma homogeneização do estrangeiro na terra do outro, gerando um conflito em relação à própria identidade. Hakim é um sujeito cindido, diante de uma dualidade identitária: Desde pequeno convivi com um idioma na escola e nas ruas da cidade, e com outro na Parisiense. E às vezes tinha a impressão de viver vidas distintas. Sabia que tinha sido eleito o interlocutor número um entre os filhos de Emilie: por ter vindo ao mundo antes que os outros? Por encontrar-me ainda muito próximo às suas lembranças, ao seu mundo ancestral onde tudo ou quase tudo girava ao redor de Trípoli, das montanhas, dos cedros, das figueiras e parreiras, dos carneiros, Junieh e Ebrin? (HATOUM, 2006, p. 52). A angústia experimentada pela personagem reflete o dilema dos filhos de imigrantes, obrigados a conciliar dois sistemas de valores diferenciados. No romance, a complexa coexistência de culturas distintas é definida por Hakim como “as águas de dois rios tempestuosos que se misturam para originar um terceiro”. Esse terceiro rio é o “terceiro espaço”, onde a identidade híbrida é forjada. Identidade “transcultural”, posto que resulta de trocas culturais: O termo ‘transculturação’ define um modo de integração cultural em que há transformação dos grupos envolvidos, gerando novas configurações identitárias. Esse termo é mais preciso do que “aculturação”, uma vez que traz implícita a noção de ultrapassagem da própria cultura e da cultura do outro (CARREIRA, 2009, p. 177). Os imigrantes de primeira geração buscavam modos de revisitar as próprias origens, como é possível observar na seguinte passagem de Nur na escuridão: «Precisa não renegar a raça a que pertence, precisa conhecer a história da sua terra (tão rica em acontecimentos), precisa participar das reuniões da colônia, precisa se integrar, precisa entrar para o Clube Monte Líbano, precisa» (MIGUEL, 2008, p. 23). Os valores e a tradição eram mantidos e transmitidos através do núcleo básico que era a família. Embora a maior parte dos descendentes de libaneses tenha perdido contato com o idioma de seus antepassados, a memória histórica era transmitida nos momentos de reuniões familiares; uma memória que era reconstruída, inclusive, através de hábitos alimentares (KEMMEL, 2000, pp. 1415): A família reunida. Tradição dos finais de semana. Pode ser aos sábados ou num domingo. De preferência na casa do pai. Eventualmente na de um dos filhos. Enquanto a mãe vivia, costumava-se levar amigos, não dispensavam a comida árabe, quibe em especial [...] a comida continuava a mesma. Só que agora, na cozinha, as duas filhas, ajudadas pelas empregadas. Noras relutavam, repetindo: não sei preparar comida árabe, por melhor que faça vocês vão dizer, a da mamãe era melhor. E era. Pratos preferidos: quibe cru (ou de forno, ou frito, com e sem recheio), tabule, esfiha, labnia, malfufe (melhor com folha novinha de parreira, pode ser também de repolho), mjadra (lentilha com arroz, a que não pode faltar cebola frita cortada fininha), grão-de-bico amassado com óleo de gergelim, zatar com azeite de oliva, por vezes uns goles de arak, quase sempre cerveja, mais raro vinho (MIGUEL, 2008, p. 185). Às vezes, os costumes causavam estranheza em seus descendentes, fazendo, curiosamente, do território familiar um espaço exótico e estrangeiro: No centro de um pátio iluminado pelo sol equatorial, homens e mulheres repetiam o hábito gastronômico milenar de comer com as mãos o fígado cru de carneiro. Não era a um ritual bárbaro ou ao sacrifício de um animal que eu assistia do quarto dos pais, mas sim a uma novidade assombrosa, a uma festa exótica que tanto contrastava com o ritmo habitual da casa (HATOUM, 2002, p. 58). A tentativa de manutenção de valores influenciou também a escolha dos cônjuges e a questão do casamento entre brasileiros e libaneses também é representada na literatura: Uns homens daqui mandavam buscar mulheres nas suas aldeias no Líbano, mulheres da sua mesma religião maronita e de virgindade virgindade sempre virgindade, alguns mascates logo que ganhavam um dinheiro voltavam a suas aldeias para escolher uma mulher, traziam a mulher para o Brasil ou deixavam a mulher lá e voltavam sozinhos, outros casavam com uma brasileira e voltavam com ela para sua aldeia no Líbano, uma mascate casou com uma brasileira e levou a brasileira para Beirute, lá estava outra mulher e a brasileira não aceitou a bigamia, o marido deixou a brasileira na rua, ela ficou perdida nas ruas e ia virar mendiga ou prostituta de turcos, na sala de tio Naim eles discutiram o destino da perdida [...] decidiram trazer de volta a brasileira ai que sacrifício pagar passagem assim para brasileiro tanto libanês precisava trazer mãe ou pai ou irmão, não ia custar tão caro, mais caro é ter boa reputação [...] (MIRANDA, 1997, p. 67). O tipo de situação descrita no romance de Ana Miranda se reporta a uma fase da imigração em que os casamentos mistos ainda não eram comuns. Segundo Oswaldo Truzzi (2005, p. 33), «o padrão de buscar a noiva na terra de origem» era uma prática rotineira entre os pioneiros, mas muitos imigrantes conheceram-se e casaram-se aqui no Brasil, como o casal de libaneses de Relato de um certo Oriente. Como observa Cecília Kemel (2000, p. 57), muitos foram os fatores que facilitaram o processo de aculturação do imigrante árabe; dentre eles a afinidade entre a prática religiosa dos árabes cristãos e o catolicismo praticado no Brasil. Os imigrantes muçulmanos, privados desse fator, tornaram-se menos acessíveis. Essa questão é bem delineada em Relato de um certo Oriente, principalmente, em relação à Emilie e seu marido. Emilie cultua seus santos com a liberdade de quem compartilha o lugar comum. Seu marido, no entanto, como afirma Dorner, o imigrante alemão que é amigo da família, «não era esquivo aos da terra, mas sempre foi imbuído de uma indiferença glacial para com todos»; era «um asceta mesmo cercado por pessoas». A negociação entre culturas, entretanto, nem sempre é bem-sucedida. Se a maioria dos imigrantes engendra uma estratégia de aculturação integrativa, ou mesmo de assimilação, alguns acabam optando pela marginalização. Em Relato de um certo Oriente, a falta de ancoragem e o sentimento de inadequação levam o irmão de Emilie, a matriarca da família libanesa, ao suicídio: Não, Emir não era como os outros imigrantes, não se embrenhava pelo interior enfrentando as feras e padecendo as febres, não se entregava ao vaivém incessante entre Manaus e a teia de rios, não havia nele a sanha e a determinação dos que desembarcam jovens e pobres para no fim de uma vida atormentada ostentarem um império (HATOUM, 2004, p. 62). Jeffrey Lesser (1999, p. 22) chama a atenção para o fato de que a assimilação, na qual a cultura prémigratória da pessoa desaparece por completo, bem como a marginalização, em que há a impossibilidade de manutenção da cultura de origem e a incapacidade de interação com o meio, foram casos raros no Brasil, dando lugar às trocas culturais. À guisa de conclusão A nossa deambulação pelas obras de Milton Hatoum, Salim Miguel e Ana Miranda, embora não exaustiva, revela não apenas o registro da presença dos imigrantes libaneses em solo brasileiro, mas também o choque entre culturas e as estratégias de aculturação. A par disso, é possível observar, também, o papel da obra literária na manutenção de uma memória étnica, pois, através dela, torna-se possível o conhecimento dos valores e práticas sociais dos imigrantes por um viés que vai além do registro histórico, uma vez que resulta de impressões, ainda que ficcionalizadas, de imigrantes e de seus descendentes, e de sua forma de lidar com o passado. Em Nur na escuridão, Salim Miguel deixa claro o teor autobiográfico de seu romance. Ainda que haja alguma variação nos fatos narrados (no romance, por exemplo, é o tio Hanna que atrapalha a ida para os Estados Unidos por conta de uma inflamação nos olhos, mas, na realidade, foi o seu pai quem a teve), são as reminiscências de sua própria história que constituem o arcabouço do romance. Milton Hatoum sempre procurou esclarecer em suas entrevistas que Relato de um certo Oriente não é um livro autobiográfico, mas não nega que a sua elaboração é um kilt de memórias, suas e de outros, entremeadas a tal ponto pela ficção que nenhum membro de sua família reconhecer-se-ia no romance. Ao contrário de Nur na escuridão, o romance de Hatoum situa-se em um momento histórico em que os imigrantes já ultrapassaram o choque cultural. Amrik, por sua vez, constitui o resultado de uma minuciosa pesquisa. Ana Miranda, ao fim do romance, fornece uma lista bastante detalhada de suas fontes, que vão de relatos de viagens e registros da imigração a livros de culinária, bem como um glossário de termos em árabe e nomes de personagens ficcionais ou históricos citados no livro, desvelando ante o leitor a materialidade da obra. Os romances examinados sugerem uma intenção subjacente dos autores de vencerem as barreiras do estereótipo, que marcou boa parte da representação do imigrante na literatura brasileira, buscando, através da ficção, construir, cada um a seu modo, uma visão da saga dos imigrantes libaneses no Brasil. Os olhares que lançam à história são fruto das formas diferenciadas de lidar com a memória. Ao dialogar com a cultura árabe, os romances demonstram como a interpenetração de culturas permite uma ressignificação dos elementos culturais, proporcionando versões do Oriente cujos escopos e feições são sempre múltiplos e em mutação. n. 1 / marzo 2012 1 Em 1936, foi criado, nos Estados Unidos, um comitê encarregado de organizar as pesquisas sobre aculturação. Esse comitê, composto por Robert Redfield, Ralph Linton e Melville Herskovits, organizou o Memorando sobre o estudo da aculturação, que se tornou o primeiro referencial teórico sobre o assunto. REDFIELD ROBERT, LINTON RALPH, HERSKOVITS MELVILLE J. (1936), “Memorandum on the study of acculturation”, American Anthropologist, 38, 1, pp. 149-152. 2 Interlíngua é o sistema de transição criado pelo aprendiz, ao longo de seu processo de assimilação de uma língua estrangeira. É a linguagem produzida por um falante não nativo a partir do início do aprendizado, caracterizada pela interferência da língua materna, até o aprendiz ter alcançado seu teto na língua estrangeira, ou seja, seu potencial máximo de aprendizado. Referências bibliográficas AMADO JORGE, Gabriela cravo e canela, São Paulo, Círculo do Livro, 1975. AUGÉ MARC, Não- lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade, Rio de Janeiro, Bertrand Editora, 1994. BERKSON ISAAC BAER [1920], Theories of acculturation: A critical study, New York, Arno Press, 1969. 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