Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
O art. 68 do ADCT : A questão da regularização fundiária nas terras ocupadas por
remanescentes das comunidades quilombolas.
Olenka Lins e Silva Martins Rocha
Rio de Janeiro
2012
OLENKA LINS E SILVA MARTINS ROCHA
O art. 68 do ADCT: A questão da regularização fundiária nas terras ocupadas por
remanescentes das comunidades quilombolas.
Artigo Científico apresentado como exigência
de conclusão de Curso de Pós-Graduação Lato
Sensu da Escola de Magistratura do Estado do
Rio de Janeiro.
Professores Orientadores:
Profª. Mônica Areal
Profª. Néli Luiza C. Fetzner
Prof. Nelson C. Tavares Junior
Rio de Janeiro
2012
2
O ART. 68 DO ADCT: A QUESTÃO DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NAS
TERRAS OCUPADAS POR REMANESCENTES DAS COMUNIDADES
QUILOMBOLAS.
Olenka Lins e Silva Martins Rocha
Graduada
pela
Universidade
Federal
Fluminense. Advogada. Pós-graduada em
Direito Civil, Empresarial e Processo Civil
pela Universidade Veiga de Almeida.
Resumo: As comunidades remanescentes de Quilombos receberam tratamento especial da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que lhes conferiu, em seu art. 68 do
ADCT, o direito de propriedade das terras ocupadas, cabendo ao Poder Público, conceder-lhes
a respectiva titulação. O presente trabalho tem por objetivo a análise dos diversos aspectos
relacionados ao mencionado dispositivo constitucional, sua real aplicação, a relação com o
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, da função social da propriedade, do
direito à moradia e importância para a efetivação da justiça social em nosso País.
Palavras-chave: Comunidades Remanescentes de Quilombos. Território Ocupado.
Reconhecimento de Propriedade. Função Social da Propriedade. Direito fundamental à
moradia.
Sumário: Introdução. 1. Evolução histórica do reconhecimento dos direitos das comunidades
quilombolas no ordenamento jurídico pátrio. 2. O art. 68 do ADCT como forma de
implementação do princípio da função social da propriedade. 3. O art. 68 do ADCT e o direito
constitucional à moradia. 4.A situação atual da regularização fundiária nos territórios
ocupados pelas comunidades remanescentes de quilombos no Brasil e no Estado do Rio de
Janeiro. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho aborda a questão da regularização fundiária nos territórios
ocupados pelas comunidades remanescentes de Quilombos, prevista no art. 68 do ADCT,
perquirindo-se sua efetiva aplicação e importância para a efetivação da função social da
propriedade, do direito à moradia e da justiça social no País.
3
Para tanto, será feita detida análise sobre evolução histórica, legislativa, doutrinária e
jurisprudencial do tratamento dado a tais comunidades bem como a intenção do legislador
constituinte brasileiro ao estabelecer o mencionado dispositivo constitucional.
A partir dessas reflexões poder-se-á concluir se, de fato, os princípios constitucionais
da função social da propriedade e da dignidade da pessoa humana - do qual indissociável o
direito à moradia -, estão sendo concretizados por meio do previsto no art. 68 do ADCT.
A função social da propriedade é princípio fundamental previsto no art. 5º, caput e
inciso XXIII da CRFB/88 que ainda encontra muita resistência em sua efetiva aplicação. O
que inicialmente era tido como direito absoluto, como resposta da burguesia às arbitrariedades
das Monarquias absolutistas, hoje tem ênfase em seu aspecto social. Exige-se, portanto, uma
postura ativa do Estado para se evitar que o direito de propriedade, também previsto no art. 5ª,
XXII da CRFB/88, seja um fim em si mesmo.
O art. 68 do ADCT, objeto deste trabalho, tem íntima ligação com tal primado, na
medida em que traz novo enfoque sobre a análise do cumprimento da função social de
determinadas propriedades, quais sejam, as ocupadas por comunidades remanescentes dos
quilombos, como se verá.
Outro direito constitucionalmente previsto relacionado ao art. 68 do ADCT é o
direito social à moradia. O art. 5ª da CRFB/88 ao trazer o rol dos direitos e deveres
individuais e coletivos, não o fez de maneira taxativa, conforme expresso em seu parágrafo 2º.
Destarte, por força da emenda constitucional 26/2000, estabeleceu-se a redação do art. 6º em
que se incluíram os direitos sociais à educação, à saúde, o trabalho, à moradia, o lazer, à
segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância, e à assistência aos
desamparados.
Tais direitos, pertencentes ao grupo de direitos conhecidos como de segunda geração,
de acordo com a melhor doutrina, são considerados direitos fundamentais que devem ter
4
especial proteção por parte do Estado, pois que indispensáveis para a consecução do próprio
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
O art. 68 do ADCT, sem sombra de dúvidas, é um dos instrumentos previstos pela
CRFB/88 para a concretização do mencionado direito fundamental à moradia, na medida em
que, ao estabelecer o dever do Estado em conceder títulos de propriedade definitiva aos
remanescentes das comunidades de quilombos, faz com que aquele volte seus olhos a esta
parcela da população brasileira, renegada por tantos anos, possibilitando-lhe, a partir de então,
seu reconhecimento como legítimos proprietários das terras por ela ocupada.
A região eleita como parâmetro empírico deste trabalho é a que compreende o
Estado do Rio de Janeiro que tem papel crucial nesse processo, na medida em que, não
obstante a recente titulação da Comunidade Preto Forro situada na cidade de Cabo Frio, nele
se encontram atualmente, ainda sem titulação, cerca de 35 quilombos, conforme se tem
notícia.
1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO RECONHECIMENTO DOS DIREITOS DAS
COMUNIDADES QUILOMBOLAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO
A CRFB/88 trouxe significativas inovações ao ordenamento jurídico pátrio, ao tratar
em três de seus artigos – 215 e 216 do texto definitivo e 68 do ADCT – dos direitos a serem
atribuídos aos antigos quilombos e às comunidades deles remanescentes.
Destarte, estabelece o art. 215, da Carta Magna, em seu parágrafo primeiro que,
[...] O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e
das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” [...]e segue em seu art.
216, parágrafo 5º, fixando que [...] “Ficam tombados todos os documentos e os sítios
detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos [...]1.
1
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: www .planalto.gov.br. Acesso em
29.abr.2012.
5
Já nas disposições transitórias, dispõe a CRFB/88, em seu art. 68, objeto do presente
trabalho, que [...] “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando
suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos [...].
O mencionado dispositivo, como se verá no decorrer do presente trabalho, é objeto
de discussão entre os doutrinadores, acerca de sua eficácia e forma de aplicação.
Por ora, no entanto, convém que se tracem, antecipadamente, algumas linhas sobre
outra discussão, não menos importante, que se refere à natureza ou não de direito fundamental
do que estabelece o artigo, objeto deste estudo.
Assim é que quanto a esse último aspecto, parece ser a melhor doutrina a que o inclui
no rol dos direitos fundamentais, na medida em que, conforme ensina Ingo Wolfgang Sarlet2,
o critério para identificação de tais direitos é a sua ligação ao princípio da dignidade da pessoa
humana.
Sobre o referido tema, inclusive, também já se manifestou Daniel Sarmento3
afirmando que:
[...]Para comunidades tradicionais, a terra possui um significado completamente
diferente da que ela apresenta para a cultura ocidental hegemônica. Não se trata
apenas da moradia, que pode ser trocada pelo indivíduo sem maiores traumas, mas
sim do elo que mantém a união do grupo, e que permite a sua continuidade no tempo
através de sucessivas gerações, possibilitando a preservação da cultura, dos valores e
do modo peculiar de vida da comunidade étnica. [...]
A verdade é que as disposições constitucionais até aqui apontadas, dentre outras
aplicáveis às denominadas “minorias”, como os índios, as mulheres etc, - das quais apenas se
mencionará superficialmente, pois que não são objeto específico do presente trabalho –
tiveram, ainda, o condão de positivar, com status constitucional, ações afirmativas, das quais,
2
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2001, p. 97-107.
3
SARMENTO, Daniel. A garantia do direito à posse dos remanescentes de quilombos antes da desapropriação.
Disponívelem:<http://www.cpisp.org.br/acoes/upload/arquivos/AGarantiadoDireitoaPosse_DanielSarmento.pdf
>. Acesso em: 02.mai.12, p. 5.
6
há muito, necessitava a sociedade brasileira e que vêm sendo referendadas, inclusive, pelo
Supremo Tribunal Federal que, à guisa de exemplo, julgou recentemente, na ADPF 186, por
unanimidade, constitucionais as regras que estabelecem sistemas de cotas para negros nas
Universidades Públicas.
Não é por outra razão que vários estados brasileiros seguiram, expressamente, o
previsto na CRFB/88 e, em suas Constituições reproduziram a regra prevista no art. 68 do
ADCT.
Assim é que a Constituição da Bahia no art. 51 de suas Disposições Transitórias
determina que: [...] “O Estado executará, no prazo de um ano após a promulgação desta
Constituição, a identificação, discriminação, e titulação das suas terras ocupadas pelos
remanescentes das comunidades dos quilombos.” [...]4. Também a Constituição do Estado de
Goiás, no art. 16 de seu ADCT, fixa que [...] “Aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo
o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”. [...]5. No mesmo sentido, seguiram as
Constituições do Estado do Maranhão (art. 229), Mato Grosso (art. 33 do ADCT) e Pará (art.
322).
De acordo com o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa Gomes6,
a justificativa para as ações afirmativas, - das quais é exemplo o artigo 68 do ADCT, como
dito - que, por sua vez, instituem regimes jurídicos diferenciados, é a de efetivar a igualdade,
[...] “ devendo as situações desiguais ser tratadas de maneira dessemelhante, evitando-se
assim o aprofundamento e a perpetuação de desigualdade engendradas pela própria
sociedade” [...].
4
5
BRASIL. Constituição do Estado da Bahia. Disponível em: www.mp.ba.gov.br. Acesso em 29.abr.2012.
BRASIL. Constituição do Estado de Goiás. Disponível em: www.gabinetecivil.goias.gov.br. Acesso em
29.abr.12
6
GOMES apud ROTHENBURG, Walter Claudius. Direitos dos descendentes de escravos (remanescentes das
comunidades quilombolas). Revista Internacional de direito e cidadania, Rio de Janeiro, n. 2, p.194, out. 2008.
7
No Brasil, as definições e regulamentações sobre o tema previsto no art. 68 do
ADCT são fixadas pelo Decreto n. 4.887/2003 que “Regulamenta o procedimento para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos”7 e que é objeto da ADI 3239, ainda pendente
de julgamento pelo STF, em que tem questionada, basicamente, sua constitucionalidade
formal.
O mencionado Decreto elucida o destinatário final da norma prevista no art. 68 do
ADCT, ao conceituar, em seu art. 2º que:
Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste
Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com
trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com
presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica
sofrida.
Com definições mais genéricas, editou-se o Decreto n. 6.040 de fevereiro de 20078
que “Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais” e que, em seu art. 3º, I, esclarece:
Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se
reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que
ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos,
inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
Tais conceitos, inobstante trazerem parâmetros para identificação dos beneficiários
das normas previstas no art. 68 do ADCT, não devem ser tidos como fechados ou taxativos,
permitindo-se assim, uma interpretação que mais se adeque à realidade contemporânea, sob
7
BRASIL. Decreto n. 4887 de 2003. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em 02.mai.2012.
BRASIL. Decreto n. 6.040 de fevereiro de 2007. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em
02.mai.2012.
8
8
pena de se atribuir às regras mencionadas, sentido meramente histórico e de pouca utilidade
prática, ou, nas palavras de Walter Claudius Rothenburg9:
Parece-me que o aspecto mais relevante de um conceito adequado, tendo em vista as
possibilidades de aplicação eficiente da norma do art. 68 do ADCT (uma perspectiva
jurídico-pragmática, portanto), seja a projeção presente e futura: os quilombos em
sua contemporaneidade. Isso significa ampliar o campo de aplicação das normas
jurídicas que se referem direta ou indiretamente a quilombos, para reconhecer e
proteger realidades atuais e não apenas a memória do passado.
Ante o exposto, tem-se que não há dúvidas de que toda a evolução legislativa,
doutrinária e jurisprudencial aqui explicitada, deu-se, nas palavras de Joaquim Nabuco10,
[...] Por esses sacrifícios sem número, por esses sofrimentos, cuja terrível
concatenação com o progresso lento do país faz da história do Brasil um dos mais
tristes episódios do povoamento da América, a raça negra fundou, para outros, uma
pátria que ela pode, com muito mais direito, chamar sua [...].
Em outros termos, o que se busca com o reconhecimento de tais direitos às
comunidades remanescentes de quilombos é “quitar uma dívida” há muito assumida pelos
desbravadores deste país, devolvendo àqueles, a identidade, a auto-estima e, mais que tudo, a
dignidade.
2. O ART. 68 DO ADCT COMO FORMA DE IMPLEMENTAÇÃO DO PRINCÍPIO
DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE:
O princípio da função social da propriedade, hoje, tem previsão expressa na
CRFB/88, em seu art. 5º, XXIII e art. 182, parágrafo 2º, dentre outros.
No entanto, tal primado nem sempre esteve presente no ordenamento jurídico pátrio
e é na verdade, fruto de muita luta entre as classes sociais que aqui se estabeleceram ao longo
dos séculos.
9
ROTHENBURG, Op. Cit., p.189-206, out. 2008.
NABUCO apud ROTHENBURG, Ibidem, p. 193-194.
10
9
O território brasileiro, por ocasião de sua ocupação pelos europeus, oriundos, como
se sabe da península ibérica, teve como primeira divisão significativa a instituída pelo sistema
das sesmarias, em que, notadamente, estabelecia-se o predomínio do domínio público sobre o
privado, por meio das concessões administrativas, o que veio a configurar o que se
convencionou chamar de “capitalismo oligárquico brasileiro”.
Com o surgimento do Estado Liberal, incentivado pelas Revoluções Americana e
Francesa e que teve como maior resultado a Constituição Napoleônica de 1804, passou-se a se
encarar a propriedade privada como objeto de proteção absoluta do ordenamento jurídico,
evitando-se, assim, as arbitrariedades estatais que, no mais das vezes, acabava por legitimar o
confisco de tais terras.
Nesse contexto, paulatinamente, o Estado Absolutista, após as vitórias da classe
burguesa, passava a dar lugar ao Estado constitucionalista que, por sua vez, trazia o ideal do
direito de propriedade privada como absoluto.
Tal direito se insere no grupo de direitos fundamentais que os constitucionalistas
denominam de primeira geração ou dimensão e equivalem àqueles direitos básicos dos
indivíduos relacionados à sua liberdade, considerada em seus vários aspectos. Têm por
escopo restringir os desmandos do Poder Público, para que se valorizem as liberdades
individuais da pessoa humana. Traduzem, assim, uma forma de limitação do Estado, um não
fazer, uma prestação negativa em relação ao indivíduo.
No Brasil, o direito absoluto de propriedade privada da terra, teve sua gênese na
chamada Lei de Terras (Lei nº 601 de 1850), que dispunha,
[...] sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por titulo de
sesmaria sem preenchimento das condições legais. bem como por simples titulo de
posse mansa e pacifica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas
cedidas a titulo oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento
de colonias de nacionaes e de extrangeiros, autorizado o Governo a promover a
colonisação extrangeira na forma que se declara.11
11
BRASIL. Lei n. 601 de 1850. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em 12.ago.2012
10
Com a derrocada do modelo de Estado Liberal, seguida, no Brasil, pela abolição da
escravatura, em 1888, donde os escravos eram libertos sem que seus donos fossem
indenizados, novas idéias começaram a ter lugar, dentre elas, a da flexibilização do direito, até
então absoluto, de propriedade.
A primeira Constituição a garantir a função social da propriedade foi a mexicana em
1917, tendo sido acompanhada pela Constituição Alemã de 1919, conhecida como
“Constituição de Weimar”. A Carta Magna mexicana em seu art. 27, estabelece que “A Nação
terá, a todo tempo, o direito de impor à propriedade privada as determinações ditadas pelo
interesse público (...)”.12 Já a Constituição de Weimar em seu art. 153, determina que “A
propriedade obriga e o seu uso e exercício devem ao mesmo tempo representar uma função no
interesse social”. 13
No Brasil, a primeira Constituição a tratar do assunto de maneira expressa foi a de
1967, pois que a de 1934 apenas o trouxe de maneira indireta e a de 1946 utilizava o termo
“bem estar social” como requisito para o exercício do direito de propriedade. No entanto, o
Estatuto da Terra de 1964 já detalhava o tema em seu artigo 2º, ao estabelecer:
Art. 2° É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada
pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.
§ 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando,
simultaneamente:
a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim
como de suas famílias;
b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;
c) assegura a conservação dos recursos naturais;
d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a
possuem e a cultivem. [...]14
A CRFB/88, como dito, manteve a tradição e traçou contornos mais claros para a
função social da propriedade estabelecida em vários de seus dispositivos, explicitando um
12
MÉXICO. Constitucion Política De Los Estados Unidos Mexicanos. Disponível em: www.diputados.gob.mx.
Acesso em 12.ago.2012
13
ALEMANHA. Verfassung des Deutschen Reichs. Disponível em:<http//:www.zum.de/psm/weimar/weimar_v
ve.php>. Acesso em 12.ago.12
14
BRASIL. Lei 5.504 de 1964. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em 12.ago.2012.
11
modelo “protetista-garantidor”, fazendo com que, ao menos teórica e abstratamente, exista a
função social da propriedade.
Mas, o que, afinal, tem o art. 68 do ADCT a ver com a função social da propriedade
que seja digno de nota?
De um modo geral, para se concluir pelo cumprimento ou não da função social de
determinada propriedade, lança-se mão de alguns critérios objetivos previstos na CRFB/88 e
na legislação infraconstitucional que regulamentam o exercício do direito de propriedade,
como, por exemplo, o uso adequado dos recursos disponíveis, a preservação do meio
ambiente, o bem-estar dos trabalhadores etc.
Por outro lado, surgem vozes na doutrina pátria, como a de Daniel Sarmento, que
afirmam que, no caso do art. 68 do ADCT, houve uma prévia e implícita definição da função
social de determinadas propriedades, que seria, unicamente, a de servir de ocupação para as
comunidades quilombolas, com o escopo de preservar a etnia negra e sua cultura.
Em outras palavras, ainda que a propriedade seja produtiva e cumpra as demais
exigências constitucionais e legais para o atingimento, em tese, da sua função social, esta só
será realmente atingida se tiver como destinação a prevista no art. 68 do ADCT.
De acordo com Daniel Sarmento, em parecer sobre o tema, em que afirma
categoricamente trazer, em si mesmo, o art. 68 do ADCT, um direito fundamental que, como
tal, tem aplicabilidade imediata,
[...] o próprio texto constitucional operou a afetação das terras ocupadas pelos quilombolas a
uma finalidade pública de máxima relevância, eis que relacionada a direitos fundamentais de
uma minoria étnica vulnerável: o seu uso, pelas próprias comunidades, de acordo com os seus
costumes e tradições, de forma a garantir a reprodução física, social,econômica e cultural dos
grupos em questão.15
15
SARMENTO, Op. Cit., p. 3.
12
O instrumento utilizado pelo Estado para tal fim é o da desapropriação das terras
particulares que estejam sendo ocupadas por comunidades remanescentes dos quilombos,
matéria que será melhor analisada em outro capítulo do presente trabalho.
Mas o que é importante ser enfatizado neste momento é que, para o mencionado
autor, com o qual se concorda, deve-lhes ser garantida a posse mesmo antes do Poder Público
promover
a
desapropriação,
pois
que,
como
direito
fundamental
reconhecido
constitucionalmente, possui eficácia horizontal, vinculando a todos os particulares, dentre
eles, os proprietários das terras a serem futuramente expropriadas.
O acerto nas incontestáveis considerações trazidas por Daniel Sarmento encontra-se
no fato de que, quando se preocupa, o legislador constituinte, com a regularização fundiária
nas terras ocupadas pelas comunidades remanescentes dos Quilombos, criando o dever do
Estado em conceder-lhes a propriedade de tais terras, por via reflexa, está-se afirmando a
importância de tal parcela da população para a própria identidade nacional, reconhecendo-se
ainda que se não forem tomadas as providências necessárias a sua implementação efetiva, tais
comunidades serão extintas e, com elas, parte da cultura brasileira.
Destarte, seja por representar a efetivação do princípio fundamental da função social
da propriedade, seja por encerrar em si mesmo direito fundamental novo, vinculado ao direito
à moradia e, por via de consequência à própria dignidade da pessoa humana, como se verá no
próximo capítulo, a obediência célere ao previsto no art. 68 do ADCT é um objetivo dos mais
importantes a ser alcançado por um País que prime pela justiça social.
13
3. O ART. 68 DO ADCT E O DIREITO CONSTITUCIONAL À MORADIA
Como se sabe, o século XIX foi marcado por grande avanço para o crescimento
econômico mundial, com o desenvolvimento das chamadas “técnicas de produção”,
decorrente da Revolução Industrial, em período que ficara conhecido por “Belle Époque”16.
Tal progresso, no entanto, trouxe com ele grandes desigualdades sociais, nas quais os
donos dos meios de produção viviam luxuosamente enquanto os que alicerçavam o sistema
estabelecido estavam completamente excluídos dos benefícios trazidos pela “Bela Época”. As
maiores vítimas deste período foram os operários que trabalhavam sob condições
inconcebíveis e tinham como retorno, quando muito, a garantia de suas tristes subsistências.
Não é difícil se perceber que o passo seguinte dessa história foi a insatisfação dos
menos favorecidos com a ordem instalada e o início de seus protestos com relação a ela, tendo
como maior expressão deste momento, o “Manifesto Comunista” de Karl Marx e Friedrich
Engels, escrito em 1848, seguido pela própria Igreja Católica, até então neutra em relação aos
conflitos travados entre patrões e trabalhadores, que, em que pese refutar expressamente as
idéias de Marx, publicou a encíclica Rerum novarum, em 1891, em que se faziam duras
críticas à ausência de direitos dos trabalhadores.
Desses movimentos, surgiu o Estado do Bem-Estar social caracterizado pela
consolidação dos direitos trabalhistas e das garantias aos então chamados direitos sociais,
econômicos e culturais. De acordo com Daniel Sarmento17, tais direitos surgem da concepção
de que enquanto não houver condições básicas de subsistência, a liberdade é efetivamente,
fórmula vazia, pois que esta não pode ser considerada apenas a inexistência de
constrangimentos externos, mas a possibilidade de agir, escolher e viver de acordo com ela.
16
17
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas S.A., 2011, p. 49.
SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais: estudos de direito constitucional. São Paulo: Lumen Juris, 2006, p. 146
14
Após a quebra da Bolsa de Nova York nos Estados Unidos, em 1929, atribuída ao
modelo econômico liberal até então adotado, após longo período de resistência da Suprema
Corte, também lá, ainda que em grau menor, aderiu-se às idéias do Estado de Bem-Estar
social, incentivada pela política do New Deal de Presidente Franklin Delano Roosevelt.
No Brasil, como dito, os primeiros passos para o estabelecimento do Estado do Bem
-Estar Social se deram com a Constituição de 1934 e de 1946, em que se previam vários
direitos sociais, dentre os quais, no entanto, não figurava o direito à moradia.
Assim é que, nas palavras de George Marmelstein18,
[...] Os direito de primeira geração tinham como finalidade, sobretudo, possibilitar a limitação
do poder estatal e permitir a participação do povo nos negócios públicos. Já os direitos de
segunda geração possuem um objeto diferente. Eles impõem diretrizes, deveres e tarefas a
serem realizadas pelo Estado, no intuito de possibilitar aos seres humanos melhor qualidade de
vida e um nível razoável de dignidade como pressuposto do próprio exercício da liberdade.
Nessa acepção, os direitos fundamentais de segunda geração funcionam como uma alavanca ou
uma catapulta capaz de proporcionar o desenvolvimento do ser humano fornecendo-lhes as
condições básicas para gozar, de forma efetiva, a tão necessária liberdade”.[...].
A Constituição de 1988 foi, sem dúvidas, um marco para a consolidação dos direitos
fundamentais como um todo. Alguns constitucionalistas chegam a afirmar que a posição
topográfica de tais direitos da Carta Magna atual (arts. 5º a 17), representam, por um lado uma
quebra da tradição constitucional brasileira e, por outro, uma “simbólica demonstração de
prestígio”19,
Os direitos sociais se encontram, em sua maior parte, positivados no art. 6º da
Constituição de 1988 e, por sua estreita relação com o primado da Dignidade da pessoa
humana, são considerados direitos fundamentais, não só os sendo, portanto, os previstos no
art. 5º da Carta Magna, como pode parecer, numa primeira e superficial análise.
18
19
MARMELSTEIN, Op. Cit., p. 53.
Ibidem.
15
É bem verdade que o direito à moradia só foi acrescentado como direito social
expresso pela Emenda Constitucional nº 26/2000. No entanto, não se pode concluir que
somente a partir de então a moradia foi alçada à categoria de direito social e, portanto,
fundamental.
A Emenda Constitucional sob comento só fez positivar o que já era direito social
fundamental, pois que faceta do princípio maior da dignidade da pessoa humana.
Ulisses Guimarães, então Presidente da Assembleia Constituinte, em seu discurso
proferido no dia da promulgação do Constituição vigente, já demonstrava a preocupação com
a questão da moradia, afirmando que:
[...] O Homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem saúde, sem
casa, portanto sem cidadania. A Constituição luta contra os bolsões de miséria que
envergonham o país. Diferentemente das sete constituições anteriores, começa com o homem.
Graficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é
seu fim e sua esperança. É a Constituição cidadã.[...]20
Não restam dúvidas de que o art. 68 do ADCT trouxe a possibilidade da efetivação
do direito à moradia no que toca às comunidades remanescentes de Quilombos no país. O
Decreto 4887/2003 já mencionado, objeto de ADI perante o STF, em razão de possível
inconstitucionalidade formal, veio a dar força prática ao dispositivo constitucional objeto
deste trabalho.
Em entrevista ao site da Fundação Cultural Palmares21, Glória Moura, pesquisadora
da realidade quilombola, afirma que os locais habitados por esses afro-brasileiros, não
representam apenas simples espaços, pois que não garantem apenas a subsistência do grupo,
mas concretizam as transmissões dos valores éticos e morais dos conhecimentos definidos
20
GUIMARÃES apud MARMELSTEIN, Idem, p. 68.
MOURA apud SOUZA, Daiane. Comunidades Quilombolas: conceito, autodefinição e direitos. Disponível
em: http://www.palmares.gov.br/2012/04/comunidades-quilombolas-conceito-autodefinicao-e-direitos/. Acesso
em 29.ago.2012.
21
16
pelas manifestações, tradições e respeito à ancestralidade.
Destarte, esclarece Moura, ao comentar o Decreto nº 4887/2003, que:
[...] A legislação em defesa da população negra no Brasil ainda é insuficiente para reparar os
anos de abusos escravocratas. Ainda há a desvalorização da força de trabalho do negro que em
toda sua trajetória, desde sua chegada ao Brasil como africano escravizado, até os dias de hoje,
dá sua contribuição à nossa nação. [...]
[...] O Decreto 4887/2003 foi um avanço em relação à legislação anterior. O conceito foi
atualizado e ampliado reservando aos quilombolas o seu direito à história, à cidadania, à
cultura e ao direito étnico. Ter garantido seu direito a aspirar aquilo que o Estado deve
proporcionar a todos os brasileiros, o acesso à educação, à saúde, ao trabalho e à moradia foi
um sonho que deve ser realizado e não pode ser frustrado.[...] (Grifo nosso)
Da leitura da Constituição de 1988, chega-se à conclusão que o que buscou o
legislador constituinte originário, assim como os derivados, foi a concretização do Estado
Democrático de Direito. Sob este aspecto, ensina o professor Oscar Vilhena22, que:
[...] Em 1988, o Brasil promulgou uma nova Constituição, depois de mais de duas décadas de
um regime autoritário. Em reação à experiência do governo arbitrário e a um passado de
injustiças e desigualdades sociais, a nova Constituição foi tecida sob os princípios do devido
processo legal, da democracia e dos direitos fundamentais. Sua carta de direitos garante
direitos civis, políticos, sociais e econômicos, incluindo os direitos de grupos vulneráveis como
os indígenas, os negros, os idosos e as crianças. Esses direitos recebem uma proteção especial
e não podem ser abolidos nem por intermédio de emendas constitucionais. O Brasil é hoje
parte das principais convenções internacionais de direitos humanos, e essas têm um efeito
direto sobre o sistema jurídico brasileiro. Portanto, todas as garantias substantivas e
procedimentos da Carta Internacional de Direitos Humanos são parte do sistema jurídico
brasileiro. [...]
Inegável, portanto, que o art. 68 do ADCT e as legislações infraconstitucionais que o
seguiram, atribuindo-lhe maior eficácia, fizeram com que também as comunidades
remanescentes de Quilombos, excluídas historicamente de qualquer proteção estatal, vissem
ao menos um de seus direitos fundamentais protegido, qual seja, o de moradia.
Também sobre essa constatação, manifestou-se SARMENTO, nos seguintes termos:
22
VIEIRA, Oscar Vilhena. A desigualdade e a subversão do estado de direito. Disponível em:< http://www.sciel
o.br/scielo.php?pid=S1806-64452007000100003&script=sci_arttext>.Acesso em: 29.ago.12
17
[...] Ora, o vínculo entre a dignidade da pessoa humana dos quilombolas e a garantia do art. 68
do ADCT é inequívoca. Primeiramente, porque se trata de um meio para a garantia do direito à
moradia (art. 6º,CF) de pessoas carentes, que, na sua absoluta maioria, se desalojadas das terras
que ocupam, não teriam onde morar. E o direito à moradia integra o mínimo existencial, sendo
um componente importante do princípio da dignidade da pessoa humana.[..]. 23
Mais que isso, ao se tutelar tal direito, reconhece-se, pela primeira vez na história
brasileira, que esta população, indiscutivelmente carente de tudo, menos tradição, cultura e
importância nacional, integra a coletividade, fazendo jus a todos os direitos sociais a ela
atribuídos por expressa disposição constitucional.
4.
A
SITUAÇÃO
ATUAL
DOS
TERRITÓRIOS
OCUPADOS
PELAS
COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBOS NO BRASIL E NO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO
No Brasil, existem comunidades quilombolas em pelo menos 24 estados, quais
sejam: Amazonas, Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato
Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Paraná, Piauí, Rio de
Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo,
Sergipe e Tocantins.
No Pará, existem cerca de 240 comunidades quilombolas conhecidas. Apesar de não
ter sido expressiva a escravidão no local, como o foi em outros estados do país, atribui-se este
grande número, ao fato de que, lá, os escravos negros foram utilizados como mão-de-obra nas
atividades agrícolas e extrativistas, nos trabalhos domésticos e nas construções urbanas.
A história da escravidão no Pará foi marcada pela resistência de negros e índios que
buscaram a sua liberdade por meio da fuga, da construção dos quilombos e da participação na
23
SARMENTO, Op. Cit., p. 4.
18
Cabanagem.24
No Maranhão, conforme noticia o Centro de Cultura Negra do Maranhão, existem
527 comunidades estando todas distribuídas em 134 municípios, concentrando-se,
principalmente, nas regiões da Baixada Ocidental, da Baixada Oriental, do Munim, de
Itapecuru, do Mearim, de Gurupi e do Baixo Parnaíba.25
Em Pernambuco, informa a Comissão Estadual das Comunidades Quilombolas de
Pernambuco, que há cerca de 120 comunidades quilombolas no estado. Naquele estado, em
março de 2008, 80 destas comunidades quilombolas já constavam no Cadastro Geral de
Remanescentes de Comunidades de Quilombos do Governo Federal, o que, sem dúvidas,
representa significativo avanço para as demais comunidades existentes no País.
Comunidades quilombolas de diversas regiões de Pernambuco encontram-se representadas na
Comissão de Articulação Estadual das Comunidades Quilombolas de Pernambuco. Criada em
julho de 2003, a representação estadual encontra-se sediada em Conceição das Crioulas e atua
na luta pela garantia dos direitos dos quilombolas.26
Na Bahia, os levantamentos mais recentes realizados por pesquisadores e militantes
de organizações não governamentais apontam a existência de 300 a 500 comunidades
quilombolas no Estado da Bahia.27
De acordo com o site da Comissão Pró–Índio de São Paulo,
De acordo com o Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva - Cedefes, existem
aproximadamente 400 comunidades quilombolas no Estado de Minas Gerais distribuídas por
mais de 155 municípios. As regiões do estado com maior concentração de comunidades
quilombolas são a região norte e a nordeste, com destaque nesta última para o Vale do
Jequitinhonha. De acordo com dados apresentados pelo Cedefes, a maior parte das
24
Comunidades Quilombolas no Brasil. Disponível em:<http://www.cisp.org.br/comunidades/html/i_brasil_pa.
h tml>.Acesso em 12.set.2012.
25
Centro de Cultura Negra do Maranhã. Disponível em: <http://www.ccnma.org.br/>. Acesso em 12. set.2012.
26
Comunidades Quilombolas no Brasil. Disponível em:<http://www.cisp.org.br/comunidades/html/i_brasil_pa.h
tml>.Acesso em 12.set.2012.
27
Comunidades Quilombolas no Brasil. Disponível em:<http://www.cisp.org.br/comunidades/html/i_brasil_pa.h
tml>.Acesso em 12.set.2012.
19
comunidades quilombolas do estado apresenta-se em contexto rural. No entanto, Minas Gerais
se destaca pela presença significativa de quilombos em áreas urbanas.28
O Rio Grande do Sul é um estado, como se sabe, reduto de imigração européia e,
como tal, traz a falsa percepção de que pouco há que se falar sobre eventual população negra.
No entanto, o estado contou com a presença da população negra, desde o fim do século XVII ,
quando teve inicio a ocupação portuguesa no local.
Destarte, conforme o site da Comissão Pró–Índio de São Paulo sobre o tema:
A Federação das Associações das Comunidades Quilombolas do Rio Grande do Sul informa
que existem mais de 130 comunidades quilombolas em território gaúcho. O Cadastro Geral de
Remanescentes de Comunidades de Quilombos do governo federal já registrava, em dezembro
de 2007, a existência de 35 comunidades naquele estado. Atualmente, é possível identificar
algumas regiões com grande concentração de quilombos rurais no estado, tais como: o litoral
rio-grandense-do-sul (municípios de São José do Norte, Mostardas, Tavares e Palmares do
Sul); a região central (municípios de Restinga Seca, Formigueiro e entorno); e a Serra do
Sudeste, a oeste da Laguna dos Patos. A região metropolitana de Porto Alegre abriga pelo
menos seis quilombos urbanos. 29
Conforme aponta o já mencionado site, o estado de São Paulo conta com cerca de 35
comunidades Quilombolas, sendo certo que aproximadamente 30 delas encontram-se situadas
no Vale do Ribeira, enquanto as demais espalham-se entre no Litoral Norte, região de
Sorocaba e no município de Itapeva.
No Rio de Janeiro, há aproximadamente 35 comunidades quilombolas reconhecidas.
De acordo com o ITERJ – Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro,
recentemente fora concedido o título definitivo de propriedade, aos quilombolas de Preto
Forro, em Cabo Frio, onde residem 13 famílias remanescentes de escravos, sendo certo que se
acham em estudo, no Incra, na forma da legislação pertinente, os procedimentos para futura
28
Comunidades Quilombolas no Brasil. Disponível em:<http://www.cisp.org.br/comunidades/html/i_brasil_pa.h
tml>.Acesso em 12.set.2012.
29
Comunidades Quilombolas no Brasil. Disponível em:<http://www.cisp.org.br/comunidades/html/i_brasil_pa.h
tml>. Acesso em 12.set.2012.
20
declaração da propriedade constitucional, da Pedra do Sal na Comunidade Fluminense.
Ainda foi declarada a propriedade constitucional da Comunidade Quilombola
Campinho da Independência, em Paraty, o que se deu mediante outorga de escritura pública.
Questão interessante envolve o procedimento utilizado para a, antes referida,
titulação da Comunidade Quilombola do Preto Forro. O tema é tão instigante que motivou, no
dia 26 de março de 2012, a realização, na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
- EMERJ, do Seminário denominado “Regularização Fundiária nas Favelas e Quilombos”, no
Fórum Permanente de Direito Constitucional, que contou com a participação dos
Desembargadores Nagib Slaibi Filho e Marco Aurélio Bezerra de Melo, da Juíza de Direito
Dra. Maria Cristina Barros Gutierrez Slaib, do Defensor Público Dr. Walter Elysio Borges
Tavares, do Tabelião Dr. Valestan Milhomem da Costa, além de representantes da
Comunidade titulada. 2014/2011/Lei/L12424.htm>.
Neste caso, dispensou-se, de maneira inédita no País, com aplicação analógica da
nova alternativa prevista na Lei Complementar Estadual 144/201230 - que permite a lavratura
de termo administrativo de doação de terra pública -, além da lei 12.424/201131 - que dá nova
redação ao inciso V do art. 221 da Lei 6015/1973, permitindo expressamente o registro de
termos administrativos derivados de regularização fundiária de interesse social -, a forma
pública até então exigida para doação (Lei Complementar Estadual nº 131/2009)32.
Conforme Parecer da Diretoria de Regularização Fundiária do Iterj33 ,
30
BRASIL. Lei Complementar estadual/RJ n. 144 de 2012. Disponível em:<http://alerj.rj.gov.br/processo2.htm>
.Acesso em 05.dez.2012.
31
BRASIL. Lei n. 12.424 de 2011. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2010/2011/L
ei/L12424.htm>. Acesso em 05.dez.2012.
32
BRASIL. Lei Complementar estadual/RJ n. 131 de 2012. Disponível em:<http://alerj.rj.gov.br/processo2.htm>
Acesso em 05.dez.2012.
33
Disponível em:<http://www.iterj.rj.gov.br/artigos.asp>. Acesso em 05.dez.2012.
21
[...] estando devidamente contextualizado o entendimento acerca da possível
qualificação do imóvel ocupado pela Comunidade Preto-Forro como terra
devoluta estadual, oportuno salientar o entendimento pela desarrazoabilidade de
se impor a necessidade de ser instaurado procedimento discriminatório
(administrativo ou judicial, seja sumário ou “ordinário”) para que fosse possível
o reconhecimento do domínio das famílias que compõem a Comunidade PretoForro sobre o imóvel por elas ocupado [...]
[...] Sendo assim, não se vislumbra interesse do Estado pelo imóvel ocupado pela
Comunidade denominada Preto-Forro, interesse este que existiria se se tratasse
de área a ser destinada para um processo de regularização fundiária de caráter
ordinário, ou seja, no qual o Estado objetivasse utilizar-se dos instrumentos
ordinários de regularização fundiária disponibilizados pelo ordenamento jurídico
nacional [...]
[...] a presente hipótese, cuida-se de regularização fundiária de interesse social,
permeada por outras questões que atravessam a aplicação da regularização
fundiária tradicional, como a continuidade da etnia e de suas tradições e
culturas, a preservação de valores fundamentais de natureza cultural e histórica
que envolve o tema em jogo, fato que permite a outorga de termo administrativo
de reconhecimento de domínio, que, nos termos do art. 17 do Decreto n.º
4.887/03 e do art. 221, V da Lei n.º 6.015/73, com redação dada pela Lei n.º
12.424/11, permite o seu respectivo registro imobiliário. [...]
Como resultado de todo esse processo, a área de terras com 90,5403 ha e perímetro
de 6.546,8530m, denominada, como dito, Quilombo Preto Forro, localizada no Bairro
Angelim, inserida na área da Fazenda Campos Novos, em zona rural do 2º Distrito de Cabo
Frio-RJ, foi registrada no Livro nº 2, do Cartório de Registro de Imóveis do 1º Ofício de Cabo
Frio sob o nº de matrícula 28660, em razão de Termo Administrativo de Atestação Coletiva
de Domínio34, garantindo-se, assim, a propriedade constitucional plena e intransferível da área
quilombola do Preto – Forro, terras sem matrícula anterior e sem que se tenha empreendido
demanda discriminatória, repise-se.
De acordo, ainda, com notícia veiculada no site do ITERJ, não há, no Rio de Janeiro,
uma simples preocupação com a questão da moradia de tais comunidades, mas também com a
dignidade e possibilidade de subsistência de tal parcela da população. Assim é que fora
apresentado projeto de “economia solidária”, pela Secretaria de Habitação do estado que:
34
Disponível em:<http://www.iterj.rj.gov.br/artigos.asp>. Acesso em 05.dez.2012.
22
[...] irá garantir a entrega de equipamentos como tratores e carretas para que eles possam escoar
a produção para o mercado consumidor. Os quilombolas vão receber insumos e capacitação
técnica
dos
técnicos
do
ITERJ.
Também estão previstas a implantação de uma mini granja de produção familiar; plantação de
milho para ração; produção de ovos caipiras e instalação de uma casa de farinha para a
produção
e
beneficiamento
da
mandioca
com
fins
comerciais.
Os produtos do Quilombo Preto Forro serão cultivados sob os princípios da cultura local, que
ainda preserva suas características etnográficas. A presidente do ITERJ, Mayumi Sone,
informou que será criada a identidade quilombola (um selo), para ressaltar a origem da
produção.
O projeto também privilegia ações sustentáveis, como instalação de rede coletora de águas
pluviais; aquecedor solar de baixo custo; reflorestamento de área de Mata Atlântica, além da
plantação de árvores frutíferas.35
Destarte, ao que parece, ao menos no estado do Rio de janeiro, há projetos que se
forem, de fato, implementados, em muito contribuirão para a retomada da dignidade desse
povo.
No entanto, muito ainda há que ser feito, pois, como dito, essa foi a primeira vez que
o Estado do Rio de Janeiro agiu para que fosse concretizada a regra prevista no art. 68 do
ADCT, concedendo título de propriedade definitiva a uma, dentre as dezenas de comunidades
quilombolas reconhecidas no Estado.
Mais que isso, de acordo com o referido site do ITERJ,
No Brasil estão registradas três mil comunidades quilombolas, mas só 110 (cerca de 4%) foram
tituladas até agora. O reconhecimento do Governo do Rio de Janeiro aos remanescentes de
Preto Forro é uma ação histórica que vai recuperar a esperança de milhares de quilombolas em
todo país.
Não se pode ignorar, portanto, que há uma longa caminhada, rumo à implementação
efetiva do que estabelece o art. 68 do ADCT.
CONCLUSÃO:
O art. 68 do ADCT é, hoje, um dos maiores instrumentos trazidos pelo Legislador
Constituinte para concretização do primado máximo da dignidade da pessoa humana, previsto
35
Notícias. Disponível em: < http://www.iterj.rj.gov.br/detalhe_noticia.asp?id=75>. Acesso em 13.set.2012
23
na CRFB/88 e, como se sabe, reconhecido internacionalmente como um núcleo em cujo
entorno giram os próprios direitos fundamentais.
Sem se ignorar que se trata de regra que se insere dentre as ações afirmativas e que
tem, por isso mesmo, o condão ainda de efetivar o princípio, também constitucional, da
igualdade, é exatamente por estar tão próximo do princípio da dignidade da pessoa humana,
como dito, que não se pode atribuir ao dispositivo objeto deste trabalho, natureza outra que
não a de direito fundamental, que por sua vez, tem aplicabilidade imediata.
Tal constatação, atualmente, é de suma importância, na medida em que,
lamentavelmente, o Decreto n. 4.887/2003 que “Regulamenta o procedimento para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos”36 , é objeto da ADI 3239, ainda pendente de
julgamento pelo STF, em que tem questionada, basicamente, sua constitucionalidade formal e
que caso seja julgada procedente, dificultará, sobremaneira, a efetivação dos direitos
decorrente do art. 68 do ADCT.
A situação atual das comunidades quilombolas no Brasil e, em especial, no estado do
Rio de Janeiro, nem de longe parece traduzir o que desejou o Legislador Constituinte ao
estabelecer os princípios já mencionados como norte a guiar todo o País.
A resistência à aplicação prática do princípio da função social da propriedade, nesta
matéria, é evidente e causada pelo individualismo característico das sociedades capitalistas,
ainda tão impregnadas pelos direitos de primeira geração e que, no mais das vezes, “viram as
costas” a tudo o que foi conquistado com o reconhecimento das demais gerações ou
dimensões de direitos.
36
BRASIL. Decreto n. 4887 de 2003. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em 02.mai.2012.
24
Foi
preciso,
sim,
obstar-se
as
arbitrariedades
dos
governos
totalitários,
estabelecendo-se regras garantidoras dos direitos fundamentais individuais e não é por outra
razão que o direito de propriedade se encontra elencado, hoje, no rol do art. 5º da CRFB/88.
No entanto, o referido direito se encontra limitado por sua função social, também
prevista no mesmo artigo, evitando-se, assim, que o tão desejado direito individual
fundamental, dê ensejo a outras injustiças, desta vez, perpetradas pelo particular.
O direito fundamental social à moradia é para todos, sem distinção. Tal assertiva
também se encontra implícita na regra que determina se concedam títulos de propriedades aos
remanescentes das comunidades quilombolas, como visto.
Talvez porque nosso país tenha se dado conta de que é impossível se reconhecer uma
existência digna a quem, além de ter sido visto e tratado, por infindáveis anos, como “coisa”
de propriedade dos que possuíam a pela mais clara e o “bolso mais cheio”, hoje, permanece à
margem de qualquer política social e não tem o seu direito à moradia respeitado.
Talvez porque, de fato, esse esforço legislativo na busca da efetivação da igualdade
material com o reconhecimento de tais direitos às comunidades remanescentes de quilombos,
tenha vindo mesmo para restituir àquele povo, a identidade, a auto-estima e, mais que tudo, a
dignidade.
Em outras palavras, o art. 68 do ADCT recupera a história perversa da distribuição
da propriedade no país, reinserindo o negro na formação histórica deste direito.
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