DINÂMICA SOCIAL DAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO: processos de
fragmentação e reaglutinação das identidades culturais
Demócrito Reinaldo Filho1
1. Da modernidade à sociedade da informação
Não é de hoje que se discutem as transformações que caracterizam o estágio
atual da evolução social. Podemos perceber claramente os contornos de uma ordem
nova e diferente de todo estilo de vida, costume ou organização social antecedente.
Estamos no limiar de uma nova era, que está nos levando para além da própria
“modernidade”. O estilo de vida ou estágio social que se convencionou chamar de
“modernidade” compreende o período de mudanças ocorridas nos três ou quatro últimos
séculos, que emergiu na Europa (a partir do século XVII) e depois se disseminou pelo
resto do mundo, devido à sua influência e os benefícios que fomentou. Como efeito,
algumas formas sociais modernas (a exemplo do sistema político do estado-nação, a
diversificação das fontes e produção por atacado de energia, a produção massificada de
produtos para consumo, o trabalho assalariado e os modernos assentamentos urbanos)
criaram oportunidades bem maiores para os seres humanos gozarem de uma existência
segura e gratificante que qualquer tipo de sistema pré-moderno2. Mas a trajetória do
desenvolvimento social está nos retirando das instituições da modernidade e nos
1
2
Doutorando do curso de Direito da Universidade Estácio de Sá.
GIDDENS. Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Editora UNESP. p. 16.
levando a um novo e diferente tipo de ordem social. Realmente, temos um sentido geral
de estarmos vivendo uma nítida disparidade do passado, quando o avanço das
tecnologias da informação faz surgir nascentes espaços virtuais, propiciando um novo
estilo de vida e novas formas de relacionamento interpessoal, diferentes do padrão a que
estamos acostumados. A informática contemporânea, ou seja, a informática em rede,
que tem na Internet a concretização de um espaço ou mundo virtual (ciberespaço) está
gerando profundas modificações na forma do relacionamento humano e dando novo
impulso ao fenômeno conhecido como “globalização”3.
Uma grande variedade de termos tem sido cunhada para definir essa nova era ou
novo período evolutivo, como “pós-modernidade”, “pós-modernismo”, “sociedade da
informação”, “sociedade do conhecimento”, “nova economia”, apenas para citar alguns.
Particularmente, preferimos o termo “sociedade da informação”, que indica uma
mudança de um sistema social baseado na manufatura de bens materiais para outro
voltado para um bem atualmente mais valioso – a informação. Este novo modelo ou
sistema de organização social se assenta num modo de desenvolvimento econômico
“onde a informação, como meio de criação de conhecimento, desempenha um papel
fundamental na produção de riqueza e na contribuição para o bem-estar e qualidade de
vida dos cidadãos”. Para alguns, ainda não entramos definitivamente na “pósmodernidade” ou nesse novo tipo de sociedade, que ainda se encontra em processo de
formação e expansão. Seria mais precisamente uma fase de transição, de transformações
institucionais, mas ainda não completamente concluída e estabelecida. Nesse lado se
posiciona Anthony Giddens, para quem vivenciamos períodos de “alta modernidade” ou
“modernidade radicalizada”, mas sem um distanciamento absoluto ou aniquilamento das
instituições e modo de vida que caracterizaram a modernidade4. Já para outros
pensadores e sociólogos, a revolução da tecnologia da informação e a reestruturação do
3
A globalização é um dos processos de aprofundamento da integração econômica, social, cultural e
política, que teria sido impulsionado pelo barateamento dos meios de transporte e comunicação dos países
no final do século XX e início do século XXI. Representa uma fase da expansão capitalista, pela
necessidade dos países centrais (democracias ocidentais) expandirem seus mercados, em razão da
saturação dos mercados internos. Com a facilitação e desenvolvimento dos meios de transporte e
comunicação, é possível realizar transações financeiras e expandir negócios para mercados distantes e
emergentes, sem elevados custos. A comunicação no mundo globalizados permite tal expansão, porém
traz como consequência o aumento da concorrência (conceito retirado da Wikipedia).
4
Diz ele, defendendo apenas a existência de uma fase social de transição: “Devo analisar a pósmodernidade como uma série de transições imanentes afastadas – ou “além” – dos diversos feixes
institucionais da modernidade que serão distinguidos ulteriormente. Não vivemos ainda num universo
social pós-moderno, mas podemos ver mais do que uns poucos relances da emergência dos modos de vida
e formas de organização social que divergem daquelas criadas pelas instituições modernas” (ob. cit., p.
58).
capitalismo foram suficientes para introduzir uma nova forma social. É o caso de
Manuel Castells, para quem a “cultura da virtualidade real construída a partir de um
sistema de mídia onipresente, interligado e altamente diversificado”, que terminou por
transformar as “bases materiais da vida – o tempo e o espaço – mediante a criação de
um espaço de fluxos e de um tempo intemporal”, caracteriza um novo sistema social,
que chama de a sociedade em rede5. Castells argumenta que a Internet é muito mais do
que simples tecnologia, é o meio de comunicação que constitui a forma organizativa de
nossas sociedades6.
A sociedade, realmente, não é um elemento estático, mas um corpo em constante
mutação. A história humana é marcada por certas “descontinuidades” e não tem uma
forma homogênea de desenvolvimento. Existiram e podem ser identificadas certas
“descontinuidades” ou pontos de transição em várias fases do processo evolutivo social,
como, por exemplo, na transição entre sociedades tribais e a emergência de estados
agrários7. Talvez ainda não dispomos de elementos suficientes para identificar uma
“descontinuidade” capaz de separar as novas instituições sociais (pós-modernas) da
ordem social anterior. Os modos de vida produzidos pelas tecnologias da informação
não nos desvencilharam de todos os tipos de relacionamentos sociais preexistentes. Mas
as mudanças ocorridas nas últimas décadas foram tão dramáticas e tão abrangentes que
não podem ser comparadas a qualquer outro período compreendido na modernidade. As
formas de interconexão social que cobrem o globo promoveram ondas de transformação
social em ritmo e escopo diferentes de outros períodos históricos precedentes. A
sociedade contemporânea está inserida em um processo de mudança, em que as
tecnologias são as principais responsáveis, criando novos paradigmas sociais. Assim, de
certo modo não é tão relevante identificar um momento exato de transição, se já saímos
de uma fase histórica para outra ou se houve um deslocamento definitivo das
instituições sociais modernas. Parece-nos ter maior importância compreender as
consequências dessas transformações sócio-institucionais promovidas pela revolução
tecnoeconômica. Com o nascimento e desenvolvimento de novas estruturas sociais, a
5
CASTELLS. Manuel. O Poder da Identidade. Volume II, 6ª. edição. Editora Paz e Terra, p. 17.
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, vol.
1. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
7
Giddens, ob. cit., p. 13. Ele explica que “a história não pode ser vista como uma unidade, ou como
refletindo certos princípios unificadores de organização e transformação”, mas que isso “não implica que
tudo seja caos” ou resultado de “histórias” desconexas (p. 15).
6
partir das redes de comunicação em escala global, é mais interessante analisar as
transformações e suas conseqüências.
2. Desterritorialização x territorialização
As principais transformações sociais promovidas pela revolução tecnológica
devem ser analisadas sob o prisma da relação entre tempo e espaço, alterada pelas
comunicações em redes de alcance mundial. Essa questão está relacionada com as
condições nas quais o tempo e o espaço são organizados de forma a vincular situações
de presença e ausência. O cálculo do tempo que constituía a base da vida cotidiana
sempre foi vinculado a uma noção de lugar. Havia uma vinculação do tempo e do
espaço pelos sistemas sociais. As barreiras geográficas sempre serviram como limites
dos sistemas sociais, no sentido de que as pessoas se relacionavam umas com as outras
num cenário físico. O lugar ou a localidade em que as pessoas estavam situadas
geograficamente sempre esteve intimamente relacionado (e limitando) as atividades
sociais delas. A atividade social reservava seus “encaixes” nas particularidades dos
contextos de presença (física). Como explica Giddens, “nas sociedades pré-modernas,
espaço e tempo coincidem amplamente, na medida em que as dimensões espaciais da
vida social são, para a maioria da população, e para quase todos os efeitos, dominados
pela “presença” – por atividades localizadas. O advento da modernidade arranca
crescentemente o espaço do tempo fomentando relações entre outros “ausentes”,
localmente distantes de qualquer situação dada ou interação face a face”8.
Com o dinamismo da sociedade em rede, marcada por interconexões
comunicativas que perpassam barreiras geográficas (e os limites naturais de sistemas
políticos e ordens culturais), esse processo do deslocamento da relação tempo-espaço
(lugar) vem a ser estimulado poderosamente. Na verdade, e como adverte Giddens, esse
processo de distanciamento entre as noções de tempo-espaço não é uma característica
original da sociedade da informação. A modernidade já conhecera, como ele diz, outros
8
Ob. cit., p. 27.
mecanismos de “desencaixe” dos sistemas sociais9. Por “desencaixe”, ele se refere ao
deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação
através de extensões indefinidas de tempo-espaço. Ao lado do desenvolvimento das
comunicações e dos sistemas de transporte, que possibilitaram a interação social além
dos contextos locais, ele cita o dinheiro como um mecanismo de desencaixe. Ele
explica: “O dinheiro é um modo de adiamento, proporcionando os meios de conectar
crédito e dívida em circunstâncias em que a troca imediata de produtos é impossível. O
dinheiro, pode-se dizer, é um meio de retardar o tempo e assim separar as transações de
um local particular de troca. Posto com mais acurácia, nos termos anteriormente
introduzidos, o dinheiro é um meio de distanciamento tempo-espaço. O dinheiro
possibilita a realização de transações entre agentes amplamente separados no tempo e
no espaço”10. Giddens tem razão nessa observação das consequências da utilização do
dinheiro como fator de deslocamento do tempo em função do local (espaço físico), nas
relações sociais, sobretudo agora em que o dinheiro é independente dos meios físicos
(papel ou moeda) pelos quais ele era representado, assumindo a forma de pura
informação armazenada em computadores de instituições financeiras. Mas nada é
comparável, em termos de recombinação da equação tempo-espaço, com as
transformações que são proporcionadas com a utilização das tecnologias da informação.
As comunicações em redes informáticas são capazes de conectar o local e o global de
forma que seria impensável tempos atrás, alterando a rotina e a vida de milhões de
pessoas e criando uma estrutura de ação e experiência genuinamente mundial.
As características peculiares das novas estruturas comunicativas das redes de
computadores, que têm na Internet o exemplo mais fidedigno e evoluído,
proporcionaram profundas transformações nas relações humanas, em especial no
modelo político-administrativo centralizador moderno, fortemente marcado pelo aspecto
geográfico na sua definição. A possibilidade de o usuário interagir com a informação, o
que não acontece em se tratando dos meios de mídia clássicos (como o rádio e a
televisão, que funcionam somente irradiando informações de um ponto central), bem
como o aumento da velocidade que as transmissões em rede vêm adquirindo a cada dia,
9
“O dinamismo da modernidade deriva da separação do tempo e do espaço e de sua recombinação em
formas que permitem o “zoneamento” tempo-espacial preciso da vida social; do desencaixe dos sistemas
sociais (um fenômeno intimamente vinculado aos fatores envolvidos na separação tempo-espaço);” (ob.
cit., p. 25).
10
Ob. cit., p. 32.
encurtando as distâncias geográficas a ponto de torná-las insignificantes, estariam nos
levando a um novo e abrangente processo de "desterritorialização"11.
Conceito cunhado por Deleuze e Guattari12, para quem ao longo da história o
homem teria sofrido três grandes processos de desterritorialização, essa nova fase seria
bem mais profunda e não identificada a um simples deslocamento físico de um espaço
para outro, mas sobretudo mental. Primeiramente os selvagens ocupavam uma pequena
área circunscrita ao espaço geográfico onde viviam, depois os bárbaros habitaram
território mais amplo, até chegar aos povos civilizados organizados em Estados-nação.
O poder político e social sempre esteve vinculado a territórios geográficos, exercido por
um chefe de tribo, um rei, um parlamento, mas sempre circunscrito a um determinado
espaço geográfico, dentro do qual o poder do soberano era quase absoluto. Mesmo
numa democracia, o poder político central tem grande influência na vida dos cidadãos,
por meio do estabelecimento da estrutura social, do ordenamento legal, de normas
econômicas, de praticamente tudo, enfim. Dentro do ciberespaço, onde fronteiras
geográficas inexistem, isso tende a se modificar.
Pierre Lévy delineia uma quarta desterritorialização13, sendo esta uma mudança
para o que ele chama de espaço do saber. Em outras palavras, a Internet criou um
espaço alternativo de comunicação, livre da ingerência dos governos territoriais, que
perderam o poder de determinar o que as pessoas devem estudar, o que fazer e pensar e
a quem devem se associar. Dentro do ciberespaço, formam-se grupos auto-organizados,
que realizam o ideal de democracia direta, sem necessidade de delegação de poder a
representantes. As pessoas se relacionam cada vez mais de acordo com os seus
interesses específicos, deixando de se identificar como deste ou daquele país; passam a
ser integrantes desta ou daquela comunidade, cujos membros podem estar espalhados
pelo mundo afora. Esse fenômeno, inclusive, já começa a ser denominado por alguns
pensadores e filósofos como o "neomedievalismo", numa alusão à organização social da
Europa medieval, onde o poder político e a autoridade não eram geograficamente
definidos.
11
REINALDO FILHO, Demócrito. As comunidades virtuais: o desaparecimento dos limites geográficos
na organização político-social e os riscos de surgimento de novas formas de dominação. Artigo publicado
no site Infojus, em 2001. Disponível:< http:www.infojus.com.br/area/democritofilho6.html>
12
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.1. Rio de Janeiro: Ed.
34. 1995.
13
LÉVY, Pierre (1996). O Que é Virtual?. Rio: Editora 34.
O ciberespaço é realmente desterritorializante, no sentido de que permite o
acesso à informação ilimitada e propicia interação social além de fronteiras físicas. Um
internauta que acessa a rede mundial e navega no espaço informacional infinito,
vivencia um processo desterritorializante, sem sair do lugar. Mas não devemos ter a
idéia do ciberespaço apenas como instrumento do desencaixe físico e da compressão
espaço-tempo ou como portador de processos desterritorializantes. A dinâmica social
propiciada pelas tecnologias da informação é mais complexa. Em meio ao processo
mais
amplo
de desterritorialização,
podem
ser visualizados
fenômenos
de
territorialização14 no ciberespaço. “Desterritorializado, o homem se vale de meios
técnicos e simbólicos para reterritorializar-se, construindo seu habitat”15. O ciberespaço
nasce como espaço estriado, instrumento da sociabilidade coletiva, e vai sendo, pouco a
pouco, reterritorializado por “novos agenciamentos da sociedade”16.
O que possibilita a formação de novos “territórios” é o controle dos fluxos
informacionais, em determinadas sub-áreas do ciberespaço. Como já afirmava Raffestin,
“o acesso ou o não-acesso à informação comanda o processo de territorialização,
desterritorialização da sociedade”17. Com efeito, existem certas áreas no ciberespaço
que são controladas efetivamente por algumas pessoas, que limitam o acesso à
determinada informação. As pessoas que constroem um site, que moderam um chat, que
gerenciam uma plataforma de rede P2P ou que monitoram um blog, promovem
reterritorializações, na medida em que controlam, nesses subespaços, o fluxo de
informações. Todo espaço, físico ou eletrônico, apropriado por alguma força de forma
exclusiva, se transforma em um território. Em resposta aos múltiplos engajamentos que
propiciados pela utilização das tecnologias da informação, os controladores dessas
subáreas marcam no ciberespaço a sua territorialidade.
14
Deleuze e Guattari explicam que a humanidade vivencia historicamente processos de
desterritorialização, seguidos por territorializações. São processos indissociáveis. Se há um movimento de
desterritorialização, teremos também uma iniciativa de reterritorialização. A desterritorialização “é a
operação da linha de fuga”, o movimento pelo qual se abandona o território original, e a
reterritorialização é o movimento de construção ou criação do território; no primeiro movimento, os
agenciamentos se desterritorializam e no segundo eles se reterritorializam como novos agenciamentos
(ob. cit., p. 224).
15
LEMOS, André. Ciberespaço e Tecnologias Móveis. Processos de Territorialização e
Desterritorialização na Cibercultura. Artigo integrante da pesquisa do Grupo de Pesquisa em Cibercidades
(GPC/CNPq), do Centro Internacional de Estudos e Pesquisa em Cibercultura (Ciberpequisa), da
Facom/UFBA.
16
Ob. cit.
17
RAFFESTIN, C., Repères pour une théorie de la territorialité humaine. In, Dupuy, G (dir.)., Réseaux
Territoriaux, Caen, Paradigme, 1988. Apud André Lemos, ob. cit.
Essa interferência de múltiplos agentes controladores do fluxo informacional,
modificando a estrutura nascente do ciberespaço, “territorializando-o”, deu margem ao
surgimento de agrupamentos humanos em redes de relacionamentos de interesses
específicos e comuns (sejam religiosos, sociais, profissionais etc.). Esses agrupamentos,
identificados por outros elementos, como p.ex. o sentimento de pertencimento18, podem
assumir características de verdadeiras comunidades virtuais. Rheingold, um dos
primeiros autores a utilizar esse termo, diz que:
“As comunidades virtuais são agregados sociais que surgem na
Rede (Internet) quando uma quantidade significativa de pessoas
promove discussões públicas num período de tempo suficiente,
com emoções suficientes, para formar teias de relações pessoais no
espaço cibernético (ciberespaço)”19.
As subáreas ou “novos territórios” servem como locos para o estabelecimento
das comunidades virtuais. As listas de discussão, os chats, os blogs e outros “lugares”
de “assentamento” no ciberespaço não são propriamente as comunidades, não podendo
ser confundidos com estas. Servem como suporte da comunidade ou, no dizer de
Jones20, de virtual settlement. Como explica Raquel da Cunha Recuero, sobre a
concepção do virtual settlement:
“As idéias de Jones trazem alguns pontos que podem ajudar-nos a
esclarecer um pouco a idéia de “comunidade virtual”. Se
agregarmos, como o próprio autor determina, ao conceito de
comunidade virtual o de virtual settlement, veremos que também
existe como condição para a comunidade virtual, a existência de
um espaço público, onde a maior parte da interação da comunidade
18
O sentimento de pertencimento ou “pertença” seria a noção de que o indivíduo é parte de um todo e
coopera para uma finalidade comum com os demais membros.
19
RHEINGOLD. Howard. La Communidad Virtual: Una Sociedad sin Fronteras. Gedisa Editorial.
Colección Limites da Ciência. Barcelona.
20
JONES, Quentim. Virtual-Communities, Virtual Settlements & Cyber-Archeology – A Theoretical
Outline. In Journal of Computer Mediated Communication, vol. 3 issue 3. December, 1997. Apud Raquel
da Cunha Recuero.
se desenrole. Este espaço, por si só não constitui a comunidade,
mas a completa. A comunidade precisa, portanto, de uma base no
ciberespaço: um lugar público onde a maior parte da interação se
desenrole. A comunidade virtual possui, deste modo, uma base no
ciberespaço, um senso de lugar, um locus virtual. Este espaço pode
ser abstrato, mas é “limitado”, seja ele um canal de IRC, um tópico
de interesse, uma determinada lista de discussão ou mesmo um
determinado MUD. São fronteiras simbólicas, não concretas21.
Cada comunidade virtual, portanto, se desenvolve a partir de um “local” no
ciberespaço que serve como referência para o estabelecimento das comunicações de
interesse de seus membros. É o suporte tecnológico da comunidade; não é a verdadeira
comunidade, pois o que identifica realmente esta é o senso de traço comum, de
identificação de interesses. A comunidade virtual pode ocupar um “lugar” no
ciberespaço (virtual settlement), que pode ser um site, um blog, um canal de chat, uma
lista de discussão (no Yahoo Groups, p.ex), um determinado espaço em um site que
gerencia rede de relações sociais (como, p.ex., no Orkut), só para citar alguns. Mas o
que a caracteriza é a identificação de interesses comuns, é a união de pessoas para a
realização de objetivos comuns22. Para se formar, a comunidade pressupõe, portanto, a
interatividade na relação entre seus membros, que se unem movidos por um sentimento
de pertencimento. Este é o sentido de ligação, a sensação ou consciência que as pessoas
têm de que “são partes de um mesmo corpo” e sentem-se responsáveis por ele.
3. Sociabilização no ciberespaço
21
RECUERO, Raquel da Cunha. Comunidades Virtuais – Uma abordagem teórica. Trabalho apresentado
no V Seminário Internacional de Comunicação, no GT de Comunicação e Tecnologias das Mídias,
promovido pela PUC/RS.
22
JUCÁ, Diego. Virtual x Real: o ciberespaço e as transformações da vida cotidiana. Artigo publicado no
site UOL.
A existência das comunidades virtuais faz solapar de uma só vez dois tabus que
insistiam em permanecer no que diz respeito às relações sociais nas redes informáticas.
O primeiro, de que não poderia ser transportado para o ciberespaço o conceito
tradicional de comunidade, relacionado à idéia de uma base territorial (física). A
existência de uma base territorial sempre fora, até então, um dos requisitos do conceito
de comunidade defendido pela sociologia clássica. Muitos autores criticavam a idéia de
uma comunidade virtual justamente por não conseguirem conceber comunidade sem um
território físico delimitado, um lugar que propiciasse a interação das pessoas. Agora se
sabe que ciberespaço (a exemplo de um lugar físico, como a vizinhança, a cidade, o
bairro) permite que as pessoas, mesmo que não vivam em um mesmo lugar,
estabeleçam relações entre si e obedeçam a convenções comuns. As tecnologias da
informação, ao alterarem a equação espaço-tempo, possibilitaram as condições para a
existência de relações entre pessoas separadas fisicamente. Território físico, portanto,
não é mais condição para a formação de uma comunidade ou grupo social.
O segundo tabu tinha a ver com as previsões sombrias feitas por alguns
pensadores, em relação às modificações na forma de relacionamento humano nos
espaços
virtuais.
Alguns
pensadores,
considerados
"apocalípticos",
viam
na
virtualização das relações por meio telemático um caminho para a degeneração dos
valores humanos e para a perda de referências físicas e psíquicas. Baudrillard, por
exemplo, chegava a alertar para os perigos das novas tecnologias da informação23, que
podem proporcionar o fim da cultura, das artes etc. Lucien Sfez, por sua vez, aponta o
tautismo (que seria uma síntese de tautologia + autismo), para definir o estado de
alheamento do homem do mundo exterior, na realização de tarefas repetidas e troca de
informações no espaço virtual, como paradigma da nova sociedade da informação24.
Realmente, não podemos deixar de concordar que as novas tecnologias de
comunicação estão proporcionando o aparecimento de um estilo de vida diferente de
tudo o que estamos acostumados a vivenciar. O que não nos parece seguro é afirmar que
as relações humanas estão sendo enfraquecidas pelas relações tecnológicas; melhor seria
dizer que as relações humanas encontraram nova forma de expressão e
desenvolvimento, completamente distintos do padrão a que estamos acostumados. De
23
BAUDRILLARD, Jean. Televisão/revolução: O caso Romênia. In: PARENTE, A (org.). Imagem
máquina: A era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
24
SFEZ, Lucien. Crítica da Comunicação. Editora Instituto Piaget, Portugal. 1994.
fato, computadores operando em rede estão produzindo uma transformação tão
fantástica e assustadoramente veloz na forma como as coisas se processam na
sociedade, que o melhor seria tentar compreender como a Internet funciona e como se
transforma25, antes de se anunciar qualquer catástrofe do tipo da massificação e
homogeneização do homem.
Como tivemos oportunidade de enfatizar26, as novas tecnologias da informação,
sintetizadas no acesso à internet, constituem meios admiráveis para o descobrimento, a
invenção e a criação humanas. As transformações que permitem são imensamente
favoráveis aos indivíduos. A cultura e as artes ou qualquer outra forma de expressão da
inteligência e sensibilidade humanas tendem a se desenvolver nesse novo mundo
virtual, e não ao contrário. Nem tampouco iremos caminhar em direção a um futuro em
que os homens passarão a viver num isolacionismo cada vez maior, alheado às relações
com seus semelhantes mais próximos. Em primeiro lugar porque é um engano pensar
que com o surgimento do ciberespaço o ambiente natural vai ser alterado. O ciberespaço
preserva os espaços antecedentes, do mundo concreto e físico, onde as atividades
tradicionais irão permanecer. As relações interpessoais, sem a mediação dos meios
eletrônicos de comunicação, continuarão a ser estabelecidas nas formas com que
estamos acostumados27. Em segundo lugar porque a marca mais acentuada da Internet é
o cooperativismo, e não o isolamento. Isso tem explicação na própria origem da
internet, nascida em meios acadêmicos, utilizada para troca de informações entre
pesquisadores, mas também retrata a imensidão da rede, que ninguém, sozinho,
consegue dominar e conhecer todo o seu funcionamento, daí porque necessita ser
construída coletivamente, com o predomínio de uma ética que valoriza a troca de
informações. Por fim, é preciso atentar que a internet é uma mídia totalmente diferente
dos "classics media", ou seja, da mídia tradicional - o rádio e a televisão-, que
25
REINALDO FILHO, Demócrito. Tecnologias da Informação: novas linguagens do conhecimento.
Artigo publicado no site Infojus, em 26.10.99.
26
Ob. cit.
27
Também para Diego Jucá não se deve ver nos agenciamentos virtuais uma eliminação das relações
interpessoais travadas nos ambientes físicos. Diz ele sobre os novos ambientes virtuais: “É nesse contexto
que surgem as ciber-cidades. Estas não devem ser pensadas como fatos isolados e substitutivos das
cidades. São uma extensão, um complemento da vida urbana, instrumento do fluxo de informações e da
interação entre pessoas. Diminuem as distâncias físicas, promovem o encontro de culturas diferentes e
ainda criam uma nova cultura, baseada em toda essa mistura, velocidade e perda dos contatos físicos.
Essa dissociação entre relações físicas e virtuais não pode ser interpretada, no entanto, como provocadora
de um esvaziamento das cidades. Na verdade, as relações do ciberespaço permitem às pessoas uma maior
liberdade de movimentação, já que não têm mais de ficar presas em escritórios ou bancos, por exemplo”
(ob. cit.).
funcionam pela irradiação das informações de uma fonte centralizada. Em razão de sua
estrutura toda baseada no padrão de rede - ponto a ponto -, permite estabelecer um
processo de comunicação interativo28.
De um modo geral, portanto, a vida em rede não acarreta problemas para o
processo de sociabilização. A rede de computadores não é um agente desumanizador ou
de isolamento do ser humano. A vida em rede, como já previa Pierre Levy, traz mais
vantagens do que desvantagens, porquanto possibilita contatos mais frequentes e
produtivos, aproximando os atores sociais. Abre o caminho para acompanharmos "as
tendências mais positivas da evolução em curso e criarmos um projeto de civilização
centrado sobre os coletivos inteligentes: recriação do vínculo social mediante trocas de
saber, reconhecimento, escuta e valorização das singularidades, democracia mais direta,
mais participativa, enriquecimento das vidas individuais, invenção de formas novas de
cooperação aberta para resolver os terríveis problemas que a humanidade deve
enfrentar, disposição das infra-estruturas informáticas e culturais da inteligência
coletiva"29.
4. Pluralidade ou fragmentação das identidades culturais na pós-modernidade
Como estágio final desse trabalho, abordaremos as conseqüências sócio-culturais
decorrentes do surgimento das comunidades virtuais, em termos de formação de
identidades individuais. A partir do momento em que as pessoas se reúnem em grupos
sociais, através de um suporte tecnológico que lhes possibilite compartilhar interesses
comuns (comunicação interativa), experimentam práticas culturais específicas que
constitui a chamada cibercultura30. As comunidades virtuais, ao mesmo tempo em que
permitem uma maior aproximação entre as pessoas de todo o mundo, propiciam a que
elas encontrem satisfações individualizadoras, focando suas relações com outros
28
Demócrito Reinaldo Filho. Ob. cit.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 118.
30
A cibercultura é a cultura contemporânea fortermente marcada pelas tecnologias digitais, mas é
também um termo utilizado na definição dos agenciamentos sociais das comunidades no espaço
eletrônico.
29
indivíduos com quem guardem vocações identitárias. Como descreve Cynthia H.
Watanabe Corrêa:
“O fato curioso e até paradoxal desse período é que, embora a
sociedade esteja conectada mundialmente via redes de computador
e o próprio contato ou interação social possa acontecer em
intervalos de segundos, o homem cada vez mais sente a
necessidade de se integrar a grupos sociais, de se envolver com
pessoas que compartilhem algo comum, com as quais tenha certa
identificação, enfim, há um retorno à busca de características que
lhe forneçam uma identidade, uma forma de se fazer reconhecer
diante de outros”31.
Guattari já analisava o processo de subjetivação operado pelas novas tecnologias
de comunicação. Para ele, elas apontam para um movimento duplo e simultâneo, de
"homogeneização universalizante e reducionista da subjetividade e uma tendência
heterogenética, quer dizer, um reforço da heterogeneidade e da singularização de seus
componentes"32. Bauman destacou que esse paradoxo é um dos efeitos do processo de
globalização, que produz “guerras de identificação”:
“A busca frenética por identidade não é um resíduo dos tempos
pré-globalização que ainda não foi totalmente extirpado, que tende
a se tornar extinto conforme a globalização avança; ele é, pelo
contrário, o efeito colateral e o subproduto da combinação das
pressões globalizantes e individualizadoras e das tensões que elas
geram. As guerras de identificação não são nem contrárias nem
estão no caminho da tendência globalizante: são crias legítimas e
31
CORRÊA, Cynthia Harumy Watanabe. Comunidades Virtuais gerando identidades na sociedade em
rede. Artigo publicado na Revista eletrônica Ciberlegenda, Número 13, 2004, do Programa de PósGraduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense. Disponível em: <
http://www.uff.br/mestcii/cyntia1.htm>
32
Ob. cit., p. 15.
companhias naturais da globalização, e, longe de deter sua marcha,
lubrificam suas rodas”33.
Esse paradoxo de forças de aglutinação cultural com bases cada vez mais
“locais” em um mundo estruturado por processos cada vez mais globais, também foi
observado por Manuel Castells. Segundo ele, esse retorno à identificação cultural34
singular pode ser explicado como um movimento defensivo, de reação à
homogeneização cultural provocada pela globalização. A formação de redes e
flexibilidade nos contatos interpessoais, “tornam praticamente indistintas as fronteiras
da participação de envolvimento”, atomizando os vínculos pessoais, daí a necessidade
de as pessoas se agarrarem a suas referências culturais, “recorrendo à sua memória
histórica”. A construção da identidade na sociedade em rede, segundo Castells, passa
pela formação das “comunas culturais da era da informação”, que têm forte cunho
religioso ou apelo a significados de nacionalidade, como “reações defensivas contra as
condições impostas pela desordem global e pelas transformações, incontroláveis e em
ritmo acelerado”. Abaixo segue trecho do que ele diz sobre esse aspecto da formação
cultural defensiva:
“Para os atores sociais excluídos ou que tenham oferecido
resistência à individualização da identidade relacionada à vida nas
redes globais de riqueza e poder, as comunas culturais de cunho
religioso, nacional ou territorial parecem ser a principal alternativa
para a construção de significados em nossa sociedade. Essas
comunas culturais são caracterizadas por três principais traços
distintivos.
Aparecem
como
reações
a
tendências
sociais
predominantes, às quais opõem resistência em defesa de fontes
autônomas de significado. Desde o princípio, constituem
identidades defensivas que servem de refúgio e são fontes de
33
BAUMAN, Zygmunt. A Sociedade Individualizada. Vidas contadas e histórias vividas. Editora Zahar.
Rio de Janeiro. p. 193.
34
Identidade cultural pode ser definida como o aspecto de nossa identidade que surge de nossa ligação
(“pertencimento”) a culturas étnicas, raciais, liguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais.
solidariedade, como forma de proteção contra um mundo externo
hostil. São construídas culturalmente, isto é, organizadas em torno
de um conjunto específico de valores cujo significado e uso
compartilhado são marcados por códigos específicos de autoidentificação: a comunidade de fiéis, os ícones do nacionalismo, a
geografia do local”.
E continua mais adiante:
“Tais reações defensivas tornam-se fontes de significado e
identidade ao construírem novos códigos culturais a partir da
matéria-prima fornecida pela história. Devido ao fato de que os
novos processos de dominação aos quais as pessoas reagem estão
embutidos nos fluxos de informação, a construção da autonomia
tem de se fundamentar nos fluxos reversos de informação. Deus, a
nação, a família e a comunidade fornecerão códigos eternos,
inquebrantáveis, em torno dos quais uma contra-ofensiva será
lançada contra a cultura da realidade virtual. A verdade eterna não
pode ser virtualizada. Ela está incorporada em nós. Assim, contra a
informacionalização da cultura, os corpos são informacionalizados.
Quer dizer, os indivíduos carregam os seus deuses no coração. Não
raciocinam, acreditam. São a manifestação corpórea dos valores
eternos de Deus e, como tal, não podem ser dissolvidos, perdidos
em meio ao turbilhão dos fluxos de informação e das redes interorganizacionais”35.
Stuart Hall, da mesma maneira, enxergou esse antagonismo da construção de
identidades singulares num mundo pós-globalização, mas alertando que se trata de um
35
O Poder da Identidade, p. 84 e 85.
fenômeno típico da pós-modernidade, em que as identidades estão sendo fragmentadas
ou “descentradas”36. A globalização, que produz a extração das relações sociais dos
contextos locais de interação e sua reestruturação ao longo de escalas indefinidas de
espaço-tempo, teria promovido um impacto sobre a identidade cultural, desarticulando
as identidades estáveis do passado e abrindo possibilidades para novas articulações
sociais: a criação de novas identidades. Na nova sociedade, as pessoas não passariam a
ser identificadas por apenas uma categoria identitária, ligada à classe social ou ao
sentimento de nacionalidade. As identidades culturais nacionais, explica ele, é que estão
sendo mais duramente afetadas ou “deslocadas” pelo processo de globalização. As
culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma das principais fontes de
identidade cultural. “A nação não é apenas uma entidade política mas algo que produz
sentidos – um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs
legais de uma nação; elas participam da idéia da nação tal como representada em sua
cultura nacional. As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a “nação”, sentidos
com os quais podemos nos identificar, constroem identidades”37. As identidades
nacionais, que foram uma vez centradas, coerentes e inteiras, estão sendo agora
deslocadas pelo processo de globalização. As culturas nacionais, que dominaram o
período da modernidade como expressão de uma identidade unificada (cultura de “um
único povo”), estão perdendo a importância diante de outras fontes, mais particularistas,
de identificação cultural. “Uma maior interdependência global está levando ao colapso
de todas as identidades culturais fortes” e está produzindo a fragmentação de códigos
culturais, uma multiplicidade de estilos, o “pluralismo cultural”. “À medida em que as
culturas nacionais tornam-se mais expostas a influências externas, é difícil conservar as
identidades culturais intactas ou impedir que elas se tornem enfraquecidas através do
bombardeamento e da infiltração cultural”38.
Além de evidenciar a diminuição do sentimento de nacionalidade como base
única (ou principal) da construção identitária, Hall também enfatiza, como fizeram
outros autores, a tensão entre o “global” e o “local” na transformação das identidades.
Se, por um lado, há uma tendência em direção à homogeneização cultural (global), “há
também uma fascinação com a diferença e com a mercantilização da etnia e da
36
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 11ª. edição. DP & A editora. 2006.
Ob. cit., p. 51.
38
Ob. cit., p. 74.
37
alteridade”39. Ele explica que a “globalização” é sobretudo um fenômeno ocidental, um
processo de “ocidentalização”, consistente na exportação dos produtos e valores
ocidentais para o restante do mundo. O processo de homogeneização cultural é
produzido, portanto, pelas “indústrias culturais das sociedades ocidentais”40. Mas ao
lado da homogeneização cultural, também se verifica um fortalecimento das identidades
“locais” (comunitárias). Embora possa ser aparentemente contraditório, a globalização
promove da mesma forma uma produção de novas identidades. Na verdade, não é
propriamente um processo de formação de novas identidades, mas de re-identificação
com as culturas de origem, com sentimentos religiosos e outras formas de
particularismos. Conquanto o processo de “globalização” indicasse inicialmente que o
apego ao local e ao particular daria gradualmente vez a valores e identidades mais
universalistas e cosmopolitas ou universais, ocorreu uma virada bastante inesperada dos
acontecimentos. A globalização resulta na produção de novas identidades “globais” e
novas identificações “locais”, de forma simultânea.
A exemplo de Castells, Stuart Hall também aponta no ressurgimento ou reforço
das identidades particularistas uma forma de resistência ao processo de globalização. Só
que, como a globalização nada mais é do que uma “ocidentalização”, a reação ocorre
em relação aos valores da cultura capitalista ocidental. Ele não deixa de concluir, no
entanto, que, na pós-modernidade (que ele também chama de modernidade tardia), o
mundo caminha não para uma divisão estanque entre formas identitárias de conotações
e origens diferentes, mas para um hibridismo cultural, no sentido de que as pessoas
passam pertencer a diferentes culturas ou culturas híbridas. Sobre a globalização, ele
diz que “ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo variedade de
possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais
posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas, menos fixas, unificadas ou transhistóricas”41. O hibridismo, consistente na fusão entre diferentes tradições culturais,
produzindo novas formas de cultura, mais apropriadas à modernidade tardia, é fruto
“desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns
num mundo globalizante”42.
39
Aqui ele invoca argumento de Kevin Robin. Ob. cit., p. 77.
As economias ocidentais mais fortes, como EUA, Japão, Alemanha, Inglaterra etc.
41
Ob. cit., p. 87.
42
Ob. cit., p. 88.
40
5. A construção de identidades nas comunidades virtuais
O desenvolvimento de comunidades virtuais segue essa tendência da pósmodernidade, de deslocamento cultural, de fragmentação identitária, com abertura de
possibilidades de construção de novas e múltiplas identidades. Como as estruturas
comunicativas da rede permitem a uma pessoa relacionar-se com outras situadas a uma
grande distância, isso possibilita a que ela seja confrontada com uma diferente gama de
culturas e escolher aquelas com as quais mais se identifique. É nesse contexto de perda
das referências exclusivamente físicas, que os indivíduos buscam se relacionar com seus
semelhantes, selecionando suas marcas identitárias.
Historicamente, o homem sempre sentiu a necessidade de se integrar a grupos
sociais, de se envolver com pessoas com quem compartilhe algo em comum, com as
quais tenha certa identificação. Esse mecanismo de agregação social guiado pela busca
de afinidades permanece no âmbito do ciberespaço, apenas com algumas características
próprias decorrentes da natureza das interações nos ambientes desmaterializados.
Antecedentemente à introdução das tecnologias da informação no cotidiano da vida das
pessoas, a construção de identidades culturais ficava quase sempre presa a limitações
decorrentes dos fatores geográficos. Era uma espécie de “processo impositivo”, tendo
em vista que o indivíduo ficava preso a desenvolver laços sociais com as pessoas que
trabalhavam ou viviam na mesma localidade (território físico), tendo que aderir aos
símbolos sociais e significações culturais compartilhados pela comunidade geográfica.
Sem instrumentos tecnológicos que possibilitassem uma comunicação além dos limites
geográficos de sua comunidade original, terminava refém da localidade no processo de
formação da sua identidade cultural. Com a aproximação das pessoas por meio das
tecnologias comunicativas, elas passaram a poder desenvolver suas relações sociais e
construir suas identificações culturais seguindo o critério da eletividade, no sentido que
são livres para escolher a que comunidade virtual ou grupo de pessoas se vincular,
mesmo que estas estejam muito distantes do ponto de vista geográfico.
O professor Marcos Palácios já destacava a eletividade como sinal distintivo das
comunidades virtuais, em relação às comunidades tradicionais (de base territorial), ao
explicar que o sentimento de “pertencimento” no ciberespaço não está associado a um
território geográfico. Nas comunidades antecessoras ao processo de interconectividade
global, o sentimento de “pertencimento” estava indissoluvelmente associado ao
território concreto. No ciberespaço, esse sentimento se prende à própria comunidade em
si, aos interesses que os integrantes têm nos assuntos em comum. Segundo Palácios,
tratando-se de ambientes desmaterializados, existe uma eletividade do pertencimento,
no sentido de que é possível escolher a comunidade da qual se quer fazer parte. “O
indivíduo só pertence se, quando e por quanto tempo estiver, efetivamente, interessado
em fazê-lo”43.
O aspecto eletivo da busca de novas características identitárias na sociedade em
rede, a partir da formação de comunidades virtuais, constitui efetivamente uma das
notas distintivas em relação às comunidades tradicionais (desconectadas). Alguns
autores já qualificaram esse novo processo de integração social como “privatização da
sociabilidade”, que caracterizaria a integração social mais fortemente marcada pelo
elemento eletivo na aproximação das pessoas. Nas comunidades virtuais, os indivíduos
constroem laços sociais com base em identificações; fazem escolhas guiadas por
semelhanças de idéias e sentimentos com os demais membros da comunidade. Quem
destaca bem essa particularidade da “sociabilidade virtual” é Cynthia Watanabe Corrêa,
que aponta a circunstância de que as comunidades virtuais surgem de forma espontânea,
quando se estabelecem agrupamentos em torno de afinidades:
“O indivíduo não é obrigado a integrar determinada comunidade, a
motivação é individual, é eletiva, subjetiva. Essa possibilidade de
optar por traços de identificação é o que a diferencia do modelo
tradicional de atribuição de identidades culturais, como o caso da
identidade nacional, em que todo um povo era obrigado a aderir a
determinados símbolos nacionais, como hino e bandeira, e a manter
43
PALACIOS, Marcos. Cotidiano e Sociabilidade no Cyberespaço: Apontamentos para uma Discussão.
1998. Apud Raquel da Cunha Recuero, ob. cit.
vínculos a lugares, datas comemorativas, histórias e a tradições
específicas, por exemplo.
Na comunidade virtual, o indivíduo escolhe, elege qual
comunidade quer fazer parte, sendo a principal motivação seu
interesse particular em um ou mais assuntos em que percebe uma
identificação e encontra pessoas com quem possa compartilhar
idéias e promover discussões públicas, uma vez que a interação
mútua, relação recíproca que ocorre entre as pessoas mediadas pelo
computador, é fundamental para o estabelecimento e consolidação
de comunidades virtuais”44.
A tecnologia influencia as formas de sociabilidade, como se constata. A
utilização das tecnologias da informação provoca mudanças na interação entre as
pessoas, fazendo surgir novos meios de sociabilidade, diferentes em alguns aspectos,
porém semelhantes em outros, com os agrupamentos sociais antigos. Acima foram
evidenciadas duas marcas que distinguem as comunidades virtuais de seus antigos
padrões off-line, quais sejam, o deslocamento do sentimento de pertencimento do
espaço territorial (lugar físico) e a eletividade na formação dos grupos de interesses.
Mas ainda podemos citar uma terceira, consistente na pluralização das identidades nos
ambientes virtuais.
Sem estarem mais submetidas a limitações geográficas, em razão do
encurtamento das distâncias (noção de espaço-tempo) proporcionado pelas tecnologias
comunicativas, as pessoas optam por pertencer a uma ou outra comunidade, mas essa
facilidade também leva a que terminem por pertencer a diversas aglutinações sociais.
No ciberespaço, é comum a pessoa participar de várias comunidades, ligando-se a
vários e separados grupos ou movimentos sociais, dos mais diversos matizes
ideológicos, políticos ou econômicos. Trata-se de outra consequência ou desdobramento
da universalização da informação e facilidade de comunicação. Encontrando traços
identitários em mais de uma comunidade, pela existência de interesse em determinados
assuntos, o internauta tende a se aproximar e participar efetivamente de mais de um
44
Ob. cit.
desses novos agenciamentos da sociedade interconectada. “O indivíduo, ao se inserir em
comunidades virtuais, busca na realidade traços de identificação e não uma identidade
única. Assim, um mesmo indivíduo pode fazer parte de diversas comunidades,
dependendo de seu grau de interesse, adotando uma “pluralização” de identidades,
quando a hibridização cultural acontece na prática”45. Ocorre uma “potencialização” da
capacidade de relacionamentos que um sujeito pode estabelecer no ciberespaço, já que
pode se engajar em grupos sociais e fazer parte de quantas comunidades desejar.
Portanto, não é sem razão afirmar que a sociabilidade, nos ambientes das redes
informáticas, se apóia sobre múltiplas “identificações”.
6. Uma cultura pós-massiva?
Alguns autores, em face das peculiaridades das relações sociais nas redes
telemáticas, sustentam que a cibercultura contrapõe-se à cultura de massas que
caracterizou a modernidade. A massificação cultural que marcou a modernidade,
sobretudo pela difusão dos meios tradicionais de comunicação social (como o rádio, a
televisão e a mídia impressa), era caracterizada pela padronização de comportamentos e
estilo de vidas semelhantes. A noção de massa, para efeitos de estudos sociológicos,
remonta ao pensamento de Augusto Comte, do século 19, e “traz à tona a perda de um
senso do indivíduo para a coletividade, algo como um conjunto de pessoas
indissociáveis, indiferenciáveis, que passam a adotar padrões de comportamento e
estilos de vida semelhantes, mesmo vivendo em contextos culturais distintos”46. A
padronização comportamental ou cultura de massas pôde ser vivenciada a partir da
revolução industrial e da urbanização. Os meios de comunicação sociais da primeira
revolução tecnológica, como a televisão e o cinema, somaram-se à mídia impressa e ao
rádio, favorecendo a massificação cultural, pois permitiram a disseminação da
informação de forma simultânea para grandes camadas da população, tornando-se
conhecidos como “meios de comunicação de massa”. Hodiernamente (na pós45
Cynthia Watanabe Corrêa, ob. cit.
SOARES, Thiago. E quem diria, nós ainda somos a massa. Artigo publicado no Pernambuco,
suplemento cultural do Diário Oficial do Estado de PE, n. 43, setembro de 2009, editado pela CEPE –
Companhia Editora de PE.
46
modernidade), com grande parte da interação social acontecendo por meio da formação
de comunidades no ciberespaço, estaria havendo a superação do coletivismo, tal como a
cultura de massas o representava47. O produto cultural agora é personalizável. As
pessoas consumem o que querem, conforme suas vocações identitárias, filiando-se a
determinados nichos de fluxos informacionais (comunidades virtuais) existentes no
ciberespaço. Experiências comunicacionais na Internet através de blogs, sites, chats e
outros nichos ou ciberlocais representariam a perda do sentido coletivo, já que levam a
particularismos de identificações culturais.
Preferimos, no entanto, seguir com a visão dos que enxergam, na Internet,
possibilidades de compartilhamento de experiências de comunicação, sem uma
compartimentação entre meio de comunicação massivo ou não massivo. Existem
diversas ferramentas de comunicação, que nem sempre são experimentadas apenas por
alguém que está segregado em subespaços da rede, e que promovem efetivamente uma
disseminação da informação de forma massificada, atingindo um imenso número de
pessoas, que podem ser influenciadas em termos de aculturação. Veja-se, por exemplo,
o caso do Youtube, plataforma de edição instantânea de vídeos onde são colocados
produtos audiovisuais consumidos ao mesmo tempo por milhões de pessoas. Essa
ferramenta permite entrever, como lembra Thiago Soares48, que a Internet não eliminou
as instituições da indústria cultural de massa. Os meios de comunicação, hoje, são
complemento um do outro49. A Internet não acaba como os jornais e periódicos
mantidos por empresas jornalísticas (típicos meios de comunicação de massa), que
inclusive migram para os ambientes da rede, em versões eletrônicas.
A cibersociabilidade alimentada pelas tecnologias da informação é uma nova e
complexa realidade, multifacetária, que promove difusão da comunicação e relações de
sociabilidade virtual em diversos cenários. Esse processo disforme favorece muito mais
a “hibridização” do que a “massificação” ou o “particularismo” cultural. Como previra
Stuart Haal, parece improvável que a pós-modernidade vá simplesmente destruir as
identidades ou formas de interação tradicionais. “É mais provável que ela vá produzir,
simultaneamente, novas identificações “globais” e novas identificações “locais”. Uma
47
A cultura de massas também é vista sob um aspecto negativo, por representar o fim da cultura
“legítima”, além dos efeitos ideologizantes das mídias de massas.
48
Ob. cit.
49
Alguns programas de televisão no formato talkshow, nos EUA, elaboram sua pauta de entrevistas com
pessoas que ficaram mais em evidência nos vídeos divulgados no Youtube na semana anterior.
coisa é certa: o ciberespaço nunca será um ambiente controlado por poucas pessoas ou
um poder político único, que imponha o que devemos ler, o que devemos consumir, o
nosso modo de pensar ou de agir. A Internet é um corpo descentralizado, desprovido de
organização, que abre contínuas brechas para a interação social, sem obedecer a um
controle de poucos homens. Na verdade, trata-se da mais fantástica ferramenta de
comunicação interpessoal já vivenciada, com uma força libertadora muito superior à
qualquer outra invenção humana.
7. Conclusões:
1ª. A possibilidade de o usuário interagir com a informação e o aumento da velocidade
que as transmissões em rede vêm adquirindo a cada dia, encurtando as distâncias
geográficas a ponto de torná-las insignificantes, estão nos levando a um novo e
abrangente processo de "desterritorialização". Em meio ao processo mais amplo de
“desterritorialização”, podem ser visualizados fenômenos de “territorialização” no
ciberespaço, que nasce como espaço aberto, mas vai sendo, pouco a pouco,
reterritorializado pelo surgimento de comunidades virtuais.
2ª. O desenvolvimento de comunidades virtuais facilita a pluralização identitária do
cidadão do ciberespaço (internauta), já que, podendo relacionar-se com outras pessoas
situadas a uma grande distância, ele é confrontado com uma diferente gama de culturas
e termina escolhendo mais de uma com as quais compartilhe interesses e sentimentos
comuns.
3ª. A cibersociabilidade é uma nova e complexa realidade, multifacetária, que promove
difusão da comunicação e relações de trocas interpessoais em diversos cenários. Esse
processo disforme favorece a “hibridização” cultural.
Recife, 14.09.09
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