Simpósio Internacional sobre Interdisciplinaridade no Ensino,
na Pesquisa e na Extensão – Região Sul
PRÁTICA INTERDISCIPLINAR E O ATO CRIATIVO
Wellington Lima Amorim
(Prof. Dr. Wellington Lima Amorim – Universidade Federal do Maranhão – E-mail: [email protected])
Everaldo da Silva
(Prof. Dr. Everaldo da Silva - Centro Universitário de Brusque – E-mail: [email protected])
Todo ato criativo se dá, inicialmente, por meio de uma prática interdisciplinar. No entanto, ela não
pode ser definida, para que não se corra o risco de se criar uma nova disciplina, com a função única de
controlar o conhecimento produzido. Não se pode falar sobre uma educação criativa sem ter a
interdisciplinaridade como condição prévia para o seu desenvolvimento. É a cooperação entre as disciplinas
que proporciona intercâmbios e possibilita reciprocidades e enriquecimentos mútuos, possíveis de estimular
a transdisciplinaridade. No desafio de buscar uma estrutura transdisciplinar, portanto, deve-se ter como
aliado o diálogo, possível instrumento de transformação do real. Sem querer correr o risco de definir o
conceito de interdisciplinaridade e o ato criativo, a própria interdisciplinaridade talvez consista na promoção
do diálogo entre as diversas disciplinas. Para isso é preciso demonstrar que não há um método, ou uma
dialética na educação, mas existe apenas o diálogo, que é a fala entre duas pessoas; conversação entre muitas
pessoas. No diálogo não há um método definido, há apenas um jogo. O diálogo pode ocorrer em várias
direções e sentidos, criando agenciamentos diversos. A dialética é uma técnica (techné), ou melhor, um
método preciso e teleológico, que busca um fim, uma resposta. É por intermediação da dialética, que é arte
de raciocinar, da lógica – dialektiké (techné) discussão, em um constante processo de racionalização – que
somos levados a viver em um mundo dominado pela técnica moderna, o filho perverso da techné.
Precisa-se, entretanto, cada vez mais de diálogos, de jogos de linguagem, de relações amorosas
solidárias e carismáticas, e não de dialética, que é estéril, castrada por si mesma. A prática interdisciplinar
entre a Sociologia e a Antropologia consiste neste diálogo, nesse jogo de ilusões, entre as diversas
disciplinas disponíveis, nesse caso, a Sociologia e a Antropologia. Desde a antiguidade clássica, tendo como
ponto partida o pensamento platônico-aristotélico, o homem apresenta um prazer praticamente solitário em
classificar, organizar e delimitar espaços e territórios. No entanto, o progresso trazido por este pensamento,
nada mais é do que um acréscimo dessa racionalidade, que tem origem nos primórdios da civilização
ocidental. Contudo, aos poucos foi se percebendo que esta dita racionalidade disciplinadora é geradora de
realidades irracionalizantes. Hoje, razão é designada apenas pelo „cálculo utilitário das consequências‟,
organizando-se de forma a levar a um objetivo previamente definido. Essa racionalidade funcional não se
pergunta pelos seus pressupostos e nem pelo seu sentido, agindo na esfera do como, sem se perguntar pelo
porquê. Isso determina um nível de ação teleológica exclusivamente técnica, interesseira, em que predomina
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a dominação do sujeito sobre o real; ao sujeito cabe estabelecer os fins e eleger os meios de toda a ação.
Weber descreve a burocracia como empenhada em funções racionais, no contexto peculiar de uma sociedade
capitalista, centrada no mercado e cuja racionalidade é funcional (Silva, 2005).
A razão, com o advento da modernidade, não consegue possuir tudo o que se propõe, e “[...] a própria
razão técnica, longe de garantir um domínio cada vez maior sobre a natureza [...] tinha perdido a capacidade
de guiar com competência e responsabilidade o progresso histórico” (Bruseke, 2001, p. 9). Surge então uma
instabilidade na sociedade moderna em meio a surtos irracionalizantes. A razão que se propõe a ser
constituidora de felicidade, na verdade, gera o oposto: medo e incerteza. “A falta de critério é que aflige o
homem livre da alta modernidade.” (op. cit., p. 15). Então, buscam-se estruturas mais sólidas, uma vez que
muitas haviam desmoronado, “[...] uma ciência experimental nunca poderá ter como tarefa a descoberta de
normas e ideais de caráter imperativo, dos quais pudessem deduzir-se algumas receitas para a práxis”
(Weber, 2003, p. 5). Outra marca da modernidade, que Max Weber apresenta, é o processo de
desencantamento do mundo, “Entzauberung der Welt”, que integra o processo de racionalização. Nele o
mundo é visto “nu”, e o ser humano, nessa perspectiva, não vê mais o mundo como dominado por forças
impessoais:
Significa principalmente, portanto, que não há forças misteriosas incalculáveis, mas que
podemos, em princípio, dominar todas as coisas pelo cálculo. Isto significa que o mundo foi
desencantado. Já não precisamos recorrer aos meios mágicos para dominar ou implorar aos
espíritos, como fazia o selvagem, para quem esses poderes misteriosos existiam. Os meios
técnicos e os cálculos realizam o serviço. (WEBER, 1982, p. 165).
Assim, o véu de mistério que cobria a realidade é retirado. Pois, o saber científico avança sem confiar
em qualquer valor misterioso ou transcendental, uma vez que tudo pode ser dominado pelo cálculo e, assim,
a ciência procura libertar a humanidade de qualquer elemento religioso, e
[...] deixa de ver a vida como algo dominado por forças impessoais e divinas para enxergar a
natureza e a sociedade como passíveis de completo domínio pelo homem. Antes, eram os
deuses que controlavam a vida do homem. Agora é o homem, através da ciência e da técnica,
que desdiviniza a natureza e a sociedade e passa a controlá-las. (Op. cit., p. 128).
Por esse mister, a técnica parece querer substituir as certezas religiosas. Dessa maneira, a hegemonia
nessa área do conhecimento perde espaço: “Cada esfera de valor, ao se racionalizar, se justifica por si
mesma: encontra em si sua própria lógica interna – uma legalidade própria” (Pierucci, 2003, p. 138). Mas
essa fragmentação pode produzir um Dândi, que tem como símbolos a superioridade aristocrática, com certa
originalidade, possuindo um caráter de oposição e revolta contra a trivialidade, a banalidade, o tédio:
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O dandismo surge, sobretudo nas épocas transitórias em que a democracia não é ainda
todo-poderosa, em que a aristocracia está enfraquecida e desvalorizada apenas
parcialmente. Na confusão dessas épocas, alguns homens, deslocados de sua classe,
descontentes, destituídos de uma ocupação, mas todos ricos de uma força inata, são capazes
de conceber o projeto de fundar uma nova espécie de aristocracia, tanto mais difícil de
abater quanto estará baseada nas mais preciosas, nas mais indestrutíveis faculdades, e nos
dons celestes que nem o trabalho nem o dinheiro podem conferir. O dandismo é o último
rasgo de heroísmo nas decadências, e o tipo do dândi encontrado pelo viajante na América
do Norte não invalida, de maneira alguma, essa ideia: pois nada impede que se pense que as
tribos que denominamos selvagens sejam os resquícios de grandes civilizações
desaparecidas. O dandismo é um sol poente, como o astro que declina, é soberbo, sem calor
e pleno de melancolia. Mas desgraçadamente, a maré montante da democracia – que invade
tudo e tudo nivela – afunda diariamente esses últimos representantes do orgulho humano e
lança vagas de olvido sobre os traços desses prodigiosos mirmidões. (BAUDELAIRE,
2008, p.68).
Paradoxalmente, é diante de uma sociedade cada vez mais técnica e disciplinada que emerge
a contingência e, por conseguinte a liberdade, nascendo o pesquisador interdisciplinar, que está a princípio
fortemente desligado de toda forma de institucionalização, uma vez que esses são independentes de qualquer
mecanismo regular de organização, diante de uma sociedade composta de especialistas. a
contemporaneidade é marcada por uma sinergia entre o antigo, ou melhor, aquilo que é considerado arcaico,
e o desenvolvimento tecnológico e esse fenômeno é identificado em diversas leituras, que podem ser
consideradas anacrônicas, que quer dizer fora de contexto, no entanto, ele as adapta, contextualizando-as
(Maffesoli, 2004). Mas o que é sinergia para Maffesoli? Cabe lembrar que a palavra sinergia tem origem
grega que quer dizer synergía, ou melhor, cooperação (sýn), conjuntamente com a ideia de trabalho (ergon).
Esse fenômeno pode ser considerado como vários agrupamentos que trabalham coordenadamente realizando
uma tarefa considerada complexa, onde vários dispositivos procuram executar determinadas funções e que
buscam um mesmo fim. Pode ser entendido como sendo uma forma de rompimento com o relato antigo ou
arcaico, atualizando-o para o atual contexto, inserindo-o no mundo técnico. Portanto, o paradoxo e um
cosmos belicoso se tornam as principais marcas do drama contemporâneo, criando condições para o
surgimento do pesquisador interdisciplinar, que é chamado para a decisão, reencantando o mundo. Contudo,
esse reencantamento patrocinado por essa nova modalidade de pesquisa pode apresentar-se ambivalente. Por
um lado, se têm a exaltação do tempo presente, abandonando a linearidade do tempo, na busca por êxtases
contemporâneos e efêmeros, seja de ordem técnica, afetiva, cultural ou musical, como forma de resistência
ao desencantamento do mundo, patrocinado pelas várias racionalizações do mundo ocidental:
É no quadro tribal que se vai sair de si, explodir-se e, através desse êxtase, comungar com
forças cósmicas ou, muito simplesmente, navegar nas redes da internet. Onde havia
separação, corte e diferenciação, e isso em que todos os domínios, renascem uma
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perspectiva global, dando ênfase a “religação” das pessoas e das coisas, da natureza e da
cultura, do corpo e da alma. (MAFFESOLLI, 2004, p.149).
Por outro lado, pode dar origem ao fenômeno fundamentalista dos diversos grupos de especialistas,
que pode ser interpretado como sendo uma forma de resistência à perda de prestígio dos diversos valores
éticos e a constante profanização das camadas consideradas tradicionais da sociedade, que implica a uma
recusa do que podemos chamar de modernidade líquida, ou reflexiva, ou ainda pós-modernidade. Por isso, o
pesquisador interdisciplinar deve se relacionar com a imagem de um peregrino, um nômade, um Dândi, um
ser que se abre à vida contingente. Portanto, de um ponto de vista antropológico, existem várias definições
para o peregrino, ou seja, é um conceito de múltiplas faces e não se pretende, aqui, neste momento, dar conta
de todas essas facetas. Pois bem, antes de qualquer coisa é bom deixar claro que a palavra peregrinação nos
remete à ideia de viagem, na andança por terras distantes, em uma romaria por lugares santos, ou seja, um
estrangeiro que possui uma bondade de beleza rara. É justamente esse aspecto que nos interessa analisar na
interdisciplinaridade, tendo como imagem, um Dândi, um filósofo, um místico, um líder que, com o seu
carisma, sustenta que a irracionalidade da vida, em que estamos imersos, pode promover a transformação da
vida humana:
Sua ociosidade é um trabalho e seu trabalho, um repouso, ele é, alternadamente, elegante e
desleixado, veste, a seu bel-prazer, a camisa do operário, e decide-se pelo fraque trajado
pelo homem da moda, não está sujeito a leis: ele as impõe... ele é a expressão de um grande
pensamento, ele tem elegância e vida própria, porque nele tudo reflete a sua inteligência e a
sua glória. (BALZAC, 2008, p.79)
O peregrino é um aventureiro, é um sujeito extremamente viciado, drogado pela vida, está sempre em
busca do desconhecido, se volta para o passado e quer parar para salvar os mortos, mas a todo o momento é
empurrado por uma tempestade em direção ao futuro, e essa tempestade é o que chamamos de progresso. E
assim podemos delinear o mundo do peregrino: “Em resumo, há uma confrontação com uma verdadeira
procura mística desempenhando de um modo mais amplo aquilo que foi, stricto sensu, a experiência mística
própria de alguns eleitos, ascetas e outros pesquisadores do absoluto que nos falam a história humana. Para
retomar aqui uma análise de Cioran, que é um tema recorrente em toda a sua obra, podem-se estabelecer
uma relação entre o espírito cavalheiroso, o amor da aventura e a aventura mística” (Maffesoli, 2004, p.151).
No entanto, o peregrino constata que o homem moderno e burguês perdeu essa capacidade de rememoração
e, nesse mundo em que está imerso, vive agora vegetando na mera presentificação da vivência. O homem se
tornou um autômato, sem memória, perdendo a sua história. Para o homem que peregrina, quem não pode
experienciar o passado, nunca poderá sonhar com o futuro, e não pode criticar o presente. É sob essa
perspectiva que o pesquisador interdisciplinar passa a ser visto como um peregrino que se coloca como
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crítico da noção dura de progresso, que disciplina, classifica, organiza, discrimina, o que é visto como uma
ação de decadência. Para o peregrino, é preciso citar os mortos, como se estivesse citando um texto e como
uma forma de trazer o passado para o presente, de dar uma nova vida aos diversos objetos que são retirados
de seu contexto, promovendo a sinergia entre o arcaico e o contemporâneo.
Na falta de um lugar seguro que o proteja, ele leva a casa nas costas. Como em um acampamento, ele
leva seus apetrechos, a sua barraca e o colchão de dormir; esse comportamento é o que fazem dele o ser
mais próximo de um caramujo. Ele tem inveja dos animais que, por sua irracionalidade, estão no paraíso,
enquanto o ele está no inferno da racionalização. Anda por longas distâncias à procura de novos ares ou
novas pastagens e, como na obra Quixotesca, ele avança, percorrendo vários territórios, como algumas
espécies viajantes das florestas que povoam a nossa imaginação. De vez em quando parece tentar voltar as
suas origens primitivas. O medo, para o peregrino, faz parte do processo, mas a sua principal virtude é a
coragem. Em toda parte a covardia é desprezada; em toda parte a bravura é estimada. As formas podem
variar, assim como os conteúdos: cada civilização tem seus medos, cada civilização suas coragens. Mas o
que não varia, ou quase não varia, é a coragem, que é compreendida como sendo a capacidade de superar o
medo. A coragem é a virtude dos heróis; e quem não admira os heróis? Com o seu espírito empreendedor,
como muita raiva do mundo, da realidade, e com baixíssimo medo, o peregrino, este Dândi, assume o real
com um sentimento verdadeiro, e uma atitude interdisciplinar. Sentimento esse que se equivale ao amor
direcionado à vida, embora muitas vezes necessite andar de quatro apoios para subir superfícies muito
íngremes.
O peregrino é um líder que assume o medo como parte de sua vida, assim como assumimos o
sofrimento como parte de nossa existência, possuindo a incrível capacidade de controlá-lo e de superá-lo.
Sua carapaça muda conforme o ambiente ou o terreno. São espécies andróginas, são híbridas. E por isso são
as mais interessantes. Eles possuem a capacidade de transformar qualquer objeto em extensão do seu corpo,
unindo o que se tem de mais arcaico no mundo com a alta tecnologia. Esse Ser, que peregrina longas
distâncias, quer apenas chegar a um determinando ponto, para simplesmente apreciar e contemplar. A
melhor forma de compreendermos o verdadeiro espírito interdisciplinar é a sua capacidade de vivenciar o
real não desprezando os mortos, pois os vivos, ou seja, os peregrinos se veem ao meio-dia, numa passagem,
numa travessia, em um caminho, onde são obrigados constantemente a oferecer um banquete ao passado,
convidando os mortos para a sua mesa (Maffesoli, 2004). Portanto, o conceito de recordação nos remete à
compreensão que se deve articular, lembrando constantemente do que se passou na historia e isso não
significa reconhecê-lo como ele de fato ocorreu mais se apropriar de uma reminiscência, atualizando-a
através de uma sinergia entre o arcaico e o novo.
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O homem moderno é um ser incapaz de recordar. A recordação possui a categoria de um organon
para o conhecimento histórico e a noção de História equivale ao papel exercido pela revolução copernicana.
O peregrino assume a recordação não como profecia, como é o caso da noção de progresso que possuímos
na atualidade. O peregrino assume uma historia materialista, imanente e panteísta, onde a sua arké está na
recordação. E como ele faria isso? Levando o niilismo a sério. A filosofia niilista é a desvalorização de todos
os valores, um verdadeiro movimento de desencantamento e desconstrução do conhecimento humano. O
pesquisador interdisciplinar assume a anarquia como projeto político, compreendendo a história enquanto
declínio, decadência, obedecendo à lógica do pior. O peregrino apenas aplaina o terreno. O caráter de
violência, que é imposto pela atitude interdisciplinar, quebra com todos os cânones e valores da civilização,
abrindo espaço para uma nova ordem.
Para o pesquisador interdisciplinar é necessário assumir a vida como sendo uma grande viagem. Uma
forma de adquirir uma visão de conjunto desse processo, sem sacrificar a sua dinâmica, é tentar nos
aproximar com um breve resumo do movimento do real. Cabe lembrar que a interdisciplinaridade, que se
apresenta do ponto de vista antropológico, como sendo um peregrino, é antes de tudo uma passagem. Pois
bem, as passagens são como símbolos, arquétipos inconscientes, os quais não possuem nenhuma técnica.
Antes disso, são totalmente dominados pelo mito, pelos sonhos, pelo imaginário, pelas fantasias mais
inconfessáveis em que a realidade se transfigura e se transcendem na materialidade do mundo. É aí que
aparece a noção da utopia, da terra prometida, que se apropria do sonho. Mas cabe lembrar que, devido a sua
incapacidade de transformar o sonho em realidade, a utopia pode surgir como catástofre. Por isso, a
interdisciplinaridade possui duas formas de lidar com o real, que são ambíguas: o panorama, uma forma
alucinatória de trazer a história e a natureza para um mundo exilado da história e da natureza, como sendo
uma antecipação de uma reconquista real dessas duas dimensões perdidas, e a ciência, o conhecimento, que
são agentes desencantadores da realidade, da cultura e do símbolo, abolindo as promessas de um mundo
liberto.
O pesquisador interdisciplinar é dominado pelo fetichismo, em múltiplas figuras, contendo em si o
desastre e a redenção. O mundo se apresenta como uma residência ou um quarto mobiliado com objetos de
todos os séculos. O peregrino ou o pesquisador interdisciplinar se torna um colecionador, que mata os
objetos retirando-os do seu contexto, salvando-os, porque esse contexto era em si mortal. O pesquisador
interdisciplinar se torna um espectador da multidão condenado a ser um observador. O pesquisador que
peregrina, que assume o projeto dionisíaco, o projeto da ruína, no que ela tem de destrutivo e de construtivo,
percorre o espaço e o tempo e é nesse percurso que se percebe que o tempo se apresenta na forma de um
eterno retorno. Assim:
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“O peregrino vive o trágico no ponto mais alto, ponto em que a insatisfação jamais encontra
uma solução, um lugar, uma situação em que possa ser absorvida. Poder-se-ia dizer que a tensão
do peregrino sobre a terra é um estado, um estado de alma sem dúvida, uma sensibilidade
incitando a errar, a sucumbir, a viver o excesso e a escassez, mas, graças a isso, a reencontrar ou
encontrar uma plenitude do ser: plenitude que dá a intensidade vivida no presente, outra
maneira de dizer eternidade”. (Maffesolli, 2004, p.160).
Mas também se apresenta como um presente tenso, capaz de liberar o novo aprisionado, o arcaico,
momento em que o sonho se extingue e as fantasmagorias se dissipam, sem que o fim do sonho signifique a
rejeição do saber do sonho, e sem que o fim das fantasmagorias signifique a negação da verdade que elas
continham. No entanto, no diálogo que vem travando com a Educação, a partir dos estudos da hermenêutica
filosófica, as “ciências humanas” insistem em importar o referencial das ciências causais explicativas, como
única visão para deduzir a realidade, e como forma de “fazer progredir” o campo teórico humanístico.
Metaforicamente, a “ciência” é uma simples janela. Há muito a ser dito sobre o que vislumbramos por esta
janela, porém, fica ainda muito por ser dito. Esse pensamento remete-nos à ideia de binariedade, a separação
entre o que pode ser dito e o que não pode ser dito, ou seja, a binariedade é um pensamento nefasto que
percorre toda a História da Filosofia, na busca pela certeza e pela segurança metódica – pensamento esse que
se origina na Dialética e posteriormente na Ciência, mesmo crendo que o dito não esgota o tema pautado.
Diante desta última atitude, a hermenêutica é promissora, pois esclarece esses limites, mas ainda
permanece delimitando, organizando, e discriminando espaços. Dizer algo, em primeiro lugar, nunca esgota
o tema, ou seja, o diálogo, não termina – somente se interrompe. Quando dizemos algo, e esperamos a
interlocução, temos ainda um mundo de coisas a serem ditas. Esse é o radical limite da finitude. Tentar
cercar o ideal, atrás de uma suposta segurança de uma torrente de argumentos, não nos garante nada.
Precisamos falar, mas precisamos também ouvir, para que o acontecer da vida aconteça. Porém, nessa linha
de raciocínio, abrem-se clareiras, onde no encontro de questões essenciais, já podemos vislumbrar, no caso
da educação, a indissociabilidade entre projeto social e projeto pedagógico. No entanto, não se pode
esquecer que a realidade é una e indivisível, e o pensamento obedece ainda a binariedade que é herdada da
tradição filosófica ocidental. Por isso, a manifestação de tais projetos, no mundo da vida, vem permeada por
racionalidades que engessam e dominam a realidade social.
Pensar a questão da interdisciplinaridade é um desafio que a Educação vem se esforçando para fazer.
Tal afirmação é possível graças a educadores e educandos que se aventuram em desafiar e transgredir a
miopia, a ditadura do método e do pensamento binário. Portanto, interdisciplinaridade, numa primeira
aproximação conceitual, podemos dizer que é um esforço de promover uma sinergia entre diversas
disciplinas, em um único momento de convergência, em uma total imersão na presentificação do Ser. Tal
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cooperação
entre
essas
disciplinas
proporciona
intercâmbios,
possibilitando
reciprocidades
e
enriquecimentos mútuos. Com esse esforço, pode-se aspirar a transdisciplinaridade como etapa posterior,
com vistas à construção de um sistema, que incorpore as várias diferenças. Nesse sentido, podemos chegar a
uma teoria geral de sistemas ou de estruturas generalíssimas, que inclua estruturas operacionais, estruturas
de regulamentação e sistemas probabilísticos. Nesse desafio de buscar uma estrutura transdisciplinar, devese ter como aliado o diálogo, pois este provoca e consegue ainda formular autênticas e pertinentes perguntas,
tendo em vista sua conexão com o mundo, que não pode ser negado pela visão maniqueísta e dicotômica.
Assim, o diálogo pode ser um instrumento de transformação do real.
A interdisciplinaridade exige uma postura que não seja apenas dialógica; exige um espaço de
abertura, onde possam ocorrer diversos encontros e agenciamentos. Para que isto ocorra é necessária a
democratização do conhecimento, mas em completa sinergia com a “técnica”; porém, cabe lembrar que o
conhecimento não pode passar de um movimento meramente instrumental. Na busca pela compreensão, se
faz abrir possibilidades promissoras para a Educação, pois o compreender vai além da “entrega” do
conhecimento. O acontecer da compreensão não pode ser mapeado epistemologicamente. Mas se entende
que a retomada da Bildung (formação) é um dos caminhos de acesso para a recuperação da compreensão
como categoria fundamental para a Educação. A compreensão abre o caminho para a articulação do
conhecimento, que só pode ocorrer com a pergunta sendo constantemente posta em evidência. A pergunta
indica sentido, coerência, caminho, abertura, possibilidades, nos move, gera enfrentamento, questiona, tiranos da inércia, rompe com a massificação, só para citar algumas consequências deste processo. A pergunta
move o diálogo e este nos transforma. Depois do diálogo, já não seguimos sendo quem éramos. Os pretensos
intelectuais partem do princípio de que o mundo divide-se em generalistas e especialistas; e que estamos
diante de uma escolha entre um e outro, tornando-nos reféns de suas consequências. Tal questão – um
suposto embate entre o generalista e o especialista – pode ser um falso problema, enquanto criação de um
modo banalizado de pensar a vida, orquestrada pela visão binária da realidade. Mas se estamos diante de um
falso problema, então por que tratar dessa querela entre generalistas e especialistas? Para se pensar além
deste dualismo é necessário analisar os acontecimentos catastróficos advindos dessa visão de mundo.
No processo de fragmentação do conhecimento, as “ciências da administração” tornaram-se a voz
recorrente no debate entre as “vantagens” ou “desvantagens” de tornar-se um especialista ou generalista.
Descartes ofereceu o arcabouço filosófico para o desenvolvimento da “nova ciência”, e a visão de “domínio
da natureza”, promovida por Francis Bacon, alastrou-se de forma a tornar-se uma referência para o
desenvolvimento e o progresso da humanidade. A título de alerta, não se deve confundir a visão grega de
técnica (teckne) com a visão de técnica que foi difundida na modernidade ocidental. Enquanto na Grécia se
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pensava a técnica como possibilidade restritiva de se produzir algo, a partir de um método que podia ser
ensinado e repetido, na modernidade, a técnica torna-se a representação e o desvelamento do mundo. No
horizonte da técnica pautada pela modernidade, esta se tornou a única via de acesso por onde toda a
realidade poderia ser deduzida. A humanidade, seduzida pela possibilidade de ser redimida do pecado
original, rende-se sem reservas à técnica moderna, acreditando que o homem será reconduzido ao jardim
encantado.
O homem no horizonte da especialização torna-se sagaz para as coisas próximas, ao lado de uma
grande miopia para o longínquo. O especialista está imerso no pântano da especialização e na
desimportância do pensamento e do conhecimento que ele produz. O especialista é o natural adversário do
gênio. Os livres-pensadores têm que lidar com empecilho dos cientistas que atrapalham seu caminho. O
termo “especialista”, vinculado à tradição metafísica, é o especialista que atrapalha Zaratustra em seu
caminho. Formar-se por uma teleologia metafísica é o trabalho que tem sido proposto pela maioria das
instituições e aceito pela maioria dos alunos. A decisão por uma formação interdisciplinar é a maneira de
romper contra com o utilitarismo das especializações. É interessante ainda ressaltar, que as diversas
“especializações” terão que ser pautadas por meio do diálogo. Como em tudo na vida, há os perigos dessa
iniciativa. Aquele que não estiver atento será tragado para o manto da “pretensa segurança metódica”,
transformando-se em consciência de rebanho, numa programação que rouba sua vida e humanidade. A
sedução do método estará a espreitá-lo com o doce discurso das “certezas das ciências causais explicativas”.
Por sua vez, o generalista, por definição, seria alguém que têm um o conhecimento interdisciplinar.
Pensar a mudança do especialista para o generalista esbarra em uma inexorável resistência do humano. Na
circularidade, ou no círculo hermenêutico – círculo deve ser entendido no sentido virtuoso e não vícios –
existe uma possibilidade positiva do conhecimento mais originário, que, evidentemente, só será
compreendido de modo adequado quando se compreende que sua tarefa primeira, constante e última,
permanece sendo a de não receber de antemão, por meio de uma feliz ideia ou por meio de conceitos
populares, nem a posição prévia, nem a visão prévia, nem a concepção prévia, mas em assegurar o tema
científico na elaboração desses conceitos, a partir da coisa, ela mesma. Em última análise, é preciso estar
circunscrito na dinâmica da compreensão, para que não percamos o foco. Assim, a regra da hermenêutica,
onde tudo deve ser entendido a partir do individual, e do individual ao todo, procede da retórica antiga. Em
ambos os casos nos encontramos com uma relação circular. O movimento da compreensão discorre assim,
do todo para a parte e novamente ao todo. A tarefa é ampliar, em círculos concêntricos, a unidade do sentido
compreendido. A confluência de todos os detalhes no todo é o critério para a correta compreensão. A falta da
confluência significa o fracasso da compreensão. Heidegger faz uma descrição fenomenológica plenamente
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correta, quando descobre, na suposta leitura que consta, a estrutura prévia da compreensão. Para explicitar a
situação hermenêutica da questão do ser com relação à intenção prévia, antecipação e pré-compreensão,
examina criticamente a pergunta que ele dirige à Metafísica em momentos decisivos de sua história.
A compreensão, guiada por uma intenção metodológica, não buscará confirmar simplesmente suas
antecipações, mas tentará tomar consciência delas para (controlá-las e) obter, assim, a reta compreensão a
partir das coisas mesmas. Isso seria a forma de assegurar o tema científico. A estrutura circular se manteve
dentro do quadro de uma relação formal entre o individual e o global ou seu reflexo subjetivo. A anterior
teoria da compreensão culminava no ato divinatório que dava acesso direto ao autor, e, a partir daí, dissolvia
tudo que era estranho e chocante no texto. Entretanto, é preciso entender que o sentido interno do círculo
entre o todo e a parte, que está na base de toda a compreensão, deve ser completado com uma determinação
ulterior que ele denomina “antecipação da completude”. Quando compreendemos, pressupomos a
completude e o sentido do objeto de nosso esforço compreensivo. A antecipação da completude, que dirige
toda a nossa compreensão, aparece, ela mesma, respaldada por um conteúdo. Não se pressupõe apenas uma
unidade de sentido imanente que orienta o leitor, mas que a compreensão deste é guiada constantemente por
expectativas transcendentes, que derivam da relação com a verdade do conteúdo intencionado.
Assim, as práticas interdisciplinares buscam ter uma visão unidimensional da condição do homem,
assumindo a postura de abertura, colocando-se à disposição do diálogo com as diversas disciplinas
existentes. Compreender algo através de uma disciplina tem relação com escolhas metodológicas. A
interdisciplinaridade implica em uma escolha em outra dimensão, não abandonando o horizonte
metodológico – ou seja, reconhecendo que ela também tem seus limites. Mas, se ampliarmos o círculo
concêntrico da compreensão, ao optarmos pela interdisciplinaridade, saímos do limite demarcado pela
disciplina para “ouvirmos” a outra disciplina, enfim, para dialogarmos. É necessário ficar claro que, para
que a interdisciplinaridade ocorra, é preciso que haja uma linguagem comum. Convém considerar que a
compreensão entre as pessoas criam uma linguagem, que possibilita a troca, o intercâmbio. O
distanciamento entre as pessoas manifestam-se no fato que elas não falam mais a mesma linguagem. Não
podemos escapar do fato de que o entendimento se torna difícil onde falta uma linguagem comum. É aqui
que a criatividade contribui para a interdisciplinaridade, pois tem a função de criar uma fantástica platônica,
ou um platonismo invertido. A interdisciplinaridade é uma criação fantástica, onde ela surge como
acontecimento.
Para que ocorra essa proposta, é preciso que se crie uma linguagem que seja ao mesmo tempo
referente e aberta, que seja necessária e contingente. Uma linguagem que tenha a capacidade de criar a todo
o momento “palavra-valise”. O que é “palavra-valise”? Para uma aproximação de entendimento do que seja
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uma palavra-valise, é interessante entender o que significa o conceito de complexidade. A linguagem
interdisciplinar, que precisa ser uma síntese disjuntiva entre as disciplinas, tem como tarefa criar espíritos
equilibrados. É aqui, que o pensamento interdisciplinar se aproxima da literatura, da poesia e por sua vez da
linguagem cinematográfica. O ato criativo nasce no esforço pelo diálogo, ou melhor, na busca por uma
linguagem comum, diante da fragmentação do pensamento científico, em uma busca constante por uma
linguagem interdisciplinar, e por que não dizer esotérica. Porém, cabe o alerta: ao criarmos uma linguagem
comum entre as disciplinas não podemos tirar toda e qualquer forma de dinamicidade e criatividade da ação
interdisciplinar, criando uma nova disciplina. Afinal, as palavras-valise são problemáticas e
problematizantes. O que isto significa?
Significa que as palavras-valise são respondidas sem serem resolvidas, ou seja, são determinadas
como problema, sem deixarem de serem problematizadas, ou melhor, são referentes e abertas, portanto,
esotéricas. Aqui, esoterismo deve ser compreendido como sendo aquele que guarda um segredo, certo
mistério, conferindo às palavras uma dimensão de profundidade, produzindo um reencantamento, sugerindo
que a compreensão de um mito ou do real se dá através do esforço da linguagem que produz um
acontecimento, uma espécie de hermenêutica. Talvez, a grande característica da linguagem esotérica e
interdisciplinar seja as correspondências simbólicas e reais entre todas as disciplinas das Ciências Humanas
e Naturais, em um princípio de interdependência universal. A linguagem que fala do real é o reflexo de um
universo como sendo um grande teatro de espelhos, tendo como referência o signo e o mistério. O princípio
do terceiro excluído, do pensamento linear, do princípio da causalidade, passa a ser uma visão incompleta do
real, onde a referência passa a ser a do terceiro incluído. O primeiro passo, para a interpretação do mundo, é
compreender que o real é um fenômeno linguístico. A prática interdisciplinar é a prática da concordância; é
possuir o ato de criar, ou de encontrar ou reencontrar denominadores comuns, palavras-valises, entre duas,
três ou todas as disciplinas possíveis, na busca por um conhecimento, de uma qualidade superior. Não se
trata de simplesmente tolerar ou respeitar os territórios disciplinares, mas trata-se de concordância criativa,
para adquirir um conhecimento que abrace e abrase as diversas disciplinas, em um conhecimento
verdadeiramente interdisciplinar.
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