Urânia Tourinho Peres
Macunaína o herói sem pai*
*> Texto apresentado no II Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e VIII Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, realizados de 7 a 10 de setembro de 2006, em Belém, PA.
pulsional > revista de psicanálise >
ano XIX, n. 188, dezembro/2006
Mário de Andrade was an important figure in Brazilian modernism, and his
masterpiece, Macunaíma – the Hero without character, is one of the most emblematic
works in Brazilian literature.
Is Macunaíma its authors dream, or his delirium? Macunaíma is said to be the
mythical Brazilian man, since, for the author, the book is a rhapsody portraying
contemporary man.
Macunaíma, the son of fear of the night, was an ugly child born to the Indian woman
Tapanhumas. No reference is made to his father.
We do not presume to psychoanalyze either hero or his creator, as that would not
be a psychoanalytic approach to a literary text. Rather, in essence, we allow ourselves
to be questioned by this hero, “the prototype of Brazilian virtues,” and we emphasize
the absence of the father figure in relation to the absence of character.
> Key words: Character, father, identity
artigos > p. 65-73
Macunaíma o herói sem nenhum caráter é um dos livros mais representativos da
literatura brasileira. Obra-prima de Mário de Andrade, figura importante do
modernismo brasileiro.
Macunaíma é sonho ou delírio de seu autor? Macunaíma é dito como sendo um mito
do homem brasileiro; para o autor, ele é uma rapsódia e retrata o homem da
contemporaneidade.
Macunaíma, filho do medo da noite, uma criança feia que nasce da índia
Tapanhumas. Não há referência ao pai.
Não temos a pretensão de psicanalisar o herói ou seu autor. Esse não é o caminho
da psicanálise frente ao texto literário, mas, antes de tudo, nos deixar interrogar
por esse personagem, “protótipo das virtudes brasileiras”, enfatizando a ausência da
figura paterna na sua relação com a ausência de caráter.
> Palavras-chave: Caráter, pai, identidade.
>65
Desta Vossa Ilha de Vera Cruz... é já outro Portugal!
Carta de Pero Vaz de Caminha, Azevedo, 2000
pulsional > revista de psicanálise > artigos
ano XIX, n. 188, dezembro/2006
Macunaíma é considerado por muitos autores um dos livros mais importantes e representativos da literatura brasileira no século
XX. Se nem todos estão de acordo com essa
classificação não restam, contudo, dúvidas
quanto à certeza de ter sido o trabalho mais
criativo de Mário de Andrade. Obra-prima do
modernismo brasileiro apresenta uma nova
visão da cultura brasileira através de “uma
linguagem sem nenhum caráter”, multiplicando estilos, fazendo apropriações, mesclando o erudito e o popular. O movimento
de reinventar a história do Brasil, característico do projeto cultural modernista, encontra aí uma expressão máxima de liberdade
de criação.
Escrito em um só fôlego, em seis dias passados em casa de um tio em Araraquara, a produção espanta o seu próprio autor. Ele a
considera de todas as suas obras a mais “sarapantadora”, e diz que ela o assustou, e
que se sente incapaz, diante dela, de julgar
qualquer coisa.
>66
Às vezes tenho a impressão de que é a única
obra-de-arte, de deveras artística, isto é desinteressada que fiz na minha vida (Fernandes,
s./d., p. 31)
(...) não tive intenção de fazer de Macunaíma
um símbolo do brasileiro. Mas si ele não é o
Brasileiro ninguém não poderá negar que ele é
um brasileiro e bem brasileiro por sinal. (Andrade, 1968, p. 58)
(...) Sempre imaginei fazer um poema se ocupando dos homens sem caráter nenhum, produto mesmo do caos humano, mexendo-se no
abismo brasileiro, reflexo de elementos disparatados na arritmia gostosa a indicar o maravilhoso destino da nossa gente. Poema-síntese
que teve alongamentos além de minha vontade diretora. (Lopez, 1978a)
Em prefácio, que não chegou a ser publicado junto com o texto, Mário explicita o que
considera caráter.
O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de
trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora, depois de
pelejar muito verifiquei uma coisa que me parece certa: o brasileiro não tem caráter. (...) E
com a palavra caráter não determino apenas
uma realidade moral não, em vez entendo a
realidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes, na ação exterior,
na língua, na História, na andadura tanto no
bem como no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria
nem consciência tradicional. (Turino, 2005,
p. 189)1
Por que trazer o Macunaíma de Mário de
Andrade para este Congresso, cujo tema
central é Psicopatologia e Cultura? No que se
refere à cultura a resposta é fácil: nosso autor pretende uma sátira do brasileiro, uma
sátira da constituição de nossa cultura.
Quanto à psicopatologia, vamos pensá-la em
1> Prefácio preparado por Mário de Andrade mas não publicado. Ver “Apêndice” da 32a edição de Macu-
naíma: o herói sem nenhum caráter , 2001, p. 169.
Pouco importa, si muito sorri escrevendo certas páginas do livro: importa mais, pelo menos
para mim mesmo lembrar que quando o herói
desiste dos combates da terra e resolve ir viver “o brilho inútil das estrelas”, eu chorei.
Tudo nos capítulos finais foi escrito numa comoção enorme, numa tristeza, por várias vezes
senti os olhos umedecidos [grafia do autor]
porque eu não queria que fosse assim! E até
hoje ( é o livro meu que nunca pego, não porque ache ruim, mas porque detesto sentimentalmente ele), as duas ou três vezes que reli o
final, a mesma comoção, a mesma tristeza, o
mesmo desejo amoroso de que não fosse assim
me convulsionaram. (Fernandes, 1968, p. 43-4)
Vou restringir minha fala ao texto de Mário.
Não tenho a pretensão de caminhar por
estudos sobre a formação do homem
brasileiro. Macunaíma é, para mim, uma jóia,
um talismã, muiraquitã a nos ajudar, a nos
revelar e revelar nossa gente. O difícil
mesmo será a síntese prevista para os vinte
minutos.
Mário foi leitor de Freud em uma época em
que o psicanalista de Viena transitava pouco entre os intelectuais brasileiros, e não
esconde a sua admiração pela psicanálise.
De Macunaíma interessa-lhe, pois, não apenas a “realidade moral”, como também a
“realidade psíquica permanente”, determinantes do caráter.
Admiro profundamente Freud e tirando a generalização sexualista, mais dos seguidores dele
do que dele próprio (Freud que nem Darwin
está sendo vítima dos que não o leram, ou o
tresleram, você já reparou?) é incontestável que
ele deu um passo imenso na psicologia. Ele
cientificou o sherlokismo, foi o Sherlok da
alma... (Fernandes, s/d., p. 71)
Sobre seu livro Amar, verbo intransitivo, rica
descrição da alma feminina não esconde a
influência freudiana:
De Freud acho que me utilizei sempre que se
trate de psicologia. O que reconheço é que a
influência de Freud foi muito grande nas especulações do Amar, falei disso mesmo no livro, e
caçoei um bocado. Caçoar é mais uma autodefesa do que um abandono de veneração. (ibid.)
Pesquisador profundo da fala brasileira, sempre buscou a integração dessa fala na literatura, evitando os limites regionais. Macunaíma
apresenta, sem nenhuma dúvida, uma nova visão da cultura brasileira. A língua foi uma das
preocupações maiores de nosso escritor: “sair
da língua falada e chegar afinal na língua escrita”. (Lopes, 1978, p. 263)
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termos de sintomática do nosso povo, e nesse sentido o herói a que vamos nos dedicar
será lido como uma síntese de características que nos afetam. Macunaíma é um herói
patético, tomando essa palavra na sua significação que vem do latim patheticus, ou
seja: o sensível e que impressiona, que é
capaz de mover e agitar o ânimo, infundindo-lhe afetos veementes e, particularmente, dor, tristeza e melancolia. Ouso então
dizer que Macunaíma é um herói patético e
sua vida uma sucessão de perdas. Podemos
pensar uma neurose macunaímica, uma loucura macunaímica ou ainda uma perversão
macunaímica, melancólica sem dúvida, que
nos acometeu, e ainda acomete? Enfim, de
um autor e personagem plural uma patologia
plural, aliás como todas. Mário de Andrade
antecipa uma questão tão atual para nós
psicanalistas: a dificuldade da etiqueta diagnóstica de características médicas.
Não foi por acaso, que ao concluir o livro, o
autor diz em carta a Álvaro Lins:
>67
Possuidor de uma escuta apurada, aliada a
uma curiosidade criativa, e essa capacidade
de espantar-se que estabelece uma aliança
entre a criança e o criador, ao vislumbrar o
novo no já conhecido.
Macunaíma é sonho ou delírio de seu autor?
Macunaíma é um mito. Para ele uma rapsódia ou ainda uma sátira perversa.
Acusado de plágio por ter gestado seu Macunaíma nas pegadas do Makunaíma de
Theodor Koch-Grünberg, de seu livro Vom
Roroima zum Orinoco, Mário não omite que
seu texto é produto de muitas leituras, muitos autores, e, acrescentamos, muita observação e escuta da alma humana. Para
Manoel Cavalcante Proença, Macunaíma é a
síntese
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da fusão das personagens de pouco caráter oferecidas pelo lendário recolhido pelo etnólogo
alemão: o deus Makunaíma, o mentiroso
Kalavunseg, Konevo que é um Malazarte indígena, e o cunhado de Étetó. (Lopes, 1988, p. 311)
>68
O que importa, na verdade, é que o herói
mitológico do deus Makunaíma de alguma
maneira afetou o nosso autor, tocou-o em
profundidade, e funcionando como um catalisador potente o fez criador de uma das
mais belas peças de nossa literatura. A acusação de plagiário não o incomodou, na medida em que a traição da memória
transforma-se em instrumento de recriação,
e franqueamento da barreira entre o que é
próprio e o que é estrangeiro. Apropriação
podemos dizer, mais do que isso, porque ele
sabe que na verdade tudo está aí, aberto à
nossa criação. Antropofagia? Mário recusou
essa palavra, provavelmente pelas suas querelas com Oswald de Andrade. Na verdade
esse “desrespeito” pela produção alheia é,
antes de tudo, um respeito pela sua própria
produção. É, antes de tudo, uma posição política de derrubar fronteiras e avançar territórios. De poder tomar a palavra sobre o que
quer que seja. Ante colonização e alienação.
Mário não omite seu entusiasmo pela leitura do etnólogo alemão, porém não inibiu a
sua produção.
Si eu guardasse na memória pelo menos um
décimo de tudo quanto tenho lido... e compreendido, acho que seria um assombro de
erudição neste País. Não de inteligência, mas
de erudição, coisas diferentes. Mas não guardo nem a milésima parte do que aprendo! Eu
sou o tipo de sujeito que “não sabe”. (Fernandes, s/d.[a])
... o meu principal defeito intelectual, falha espantosa pela sua enormidade, é a falta de memória. Não tenho absolutamente memória
nenhuma, mas absolutamente nenhuma. (...)
Mas toda a minha erudição está nas fichas ou
dorme nos volumes. Em mim só conservo melancolicamente como que um salão depois do
baile. Pelos riscos no chão, pelas migalhas,
pela desordem das cadeiras, a gente percebe
que muita coisa se passou ali. (Fernandes,
1968a, p. 162)
Essa falta de memória, ou, ainda, uma outra
maneira de lidar com o saber e a rememoração o leva a sentir que a criação pressupõe o esquecimento de modelos, e nos
acena com um saber calcado no “não saber”
tão conhecido de nós psicanalistas. Ousaríamos dizer que a memória Andradina assume feições tão compatíveis com o agir
inconsciente, que o seu Macunaíma escrito
em um só fôlego de seis dias, chega-nos
como uma dessas manifestações do inconsciente prodigiosas de múltiplos sentidos. Se
não quisermos tomar a obra de arte como
... ele vive por si, porém possui um caráter que
é justamente o de não ter caráter. (Moraes,
2000, p. 363)
... Macunaíma é uma contradição de si mesmo.
(Moraes, 2000a, p. 368)
Sua lógica é não ter lógica. Macunaíma é uma
sátira (Lopes, 1978b, p. 265)
(...) além de dirigível ao brasileiro em geral,
de que mostra alguns aspectos característicos,
escondendo os aspectos bons sistematicamente, o certo é que sempre me pareceu também
uma sátira mais universal ao homem contemporâneo, principalmente sob o ponto-de-vista desta sem-vontade itinerante, destas noções
morais criadas no momento de as realizar, que
sinto e vejo no homem de agora. (Moraes,
2000b, p. 473)
Mário leu “Totem e tabu”. O mito freudiano
nos fala do assassinato do pai, o mito andradino nos fala de um herói que nasceu do
medo da noite, sem referência ao pai. A vida
de Macunaíma transcorre, sobretudo, entre
mulheres que lhe propiciam um eterno tempo de brincadeiras, o gozo sexual.
Vamos trazer algumas passagens que permitam marcar a idéia que nos norteia nessa
comunicação.
No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto
e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia
tapanhumas pariu uma criança feia. Essa
criança é que chamaram de Macunaíma.
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De
primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:
Ai! Que preguiça!..
e não dizia mais nada.
Ficava (...) espiando o trabalho dos outros e
principalmente os dois manos que tinha,
Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem. (...) si alguma cunhatã se aproximava
(...) punha a mão na graça dela...
(...) Nem bem teve seis anos deram água
num chocalho para ele e Macunaíma principiou falando como todos.
Se não há referência a um pai, a mãe é metamorfoseada em viada (grafia do autor), e
morta pelo filho bem no início da narrativa.
— Mãe sonhei que caiu meu dente.
— Isso é morte de parente, comentou a velha.
— Bem que sei. A senhora vive mais uma sol
só. Isso mesmo porque me pariu.
... o herói flechou a viada parida (...) cantou
vitória. Chegou perto da viada olhou que
mais olhou e deu um grito desmaiando. Tinha
sido uma peça do Anhanga...
Esse “protótipo das virtudes nacionais brasileiras”, como a ele se refere Haroldo de
Campos, para quem a reivindicação ao ócio
e ao lazer é uma réplica constante (ai! que
preguiça!...) é retratado sem referência ao
pai e tendo assassinado a mãe. O que pretende Mário de Andrade nos dizer a partir
dessa constelação familiar?
Não havendo pai e tendo matado a mãe,
Macunaíma ganha o mundo com os irmãos.
Então Macunaíma deu a mão pra Iiriqui,
Iiriqui deu a mão pra Maanape, Maanape
deu a mão pra Jiguê e os quatro partiram por
esse mundo.
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manifestação do inconsciente, podemos, seguindo Lacan, considerá-la um sintoma híbrido do autor e do homem brasileiro.
Mário não restringe seu herói ao homem
brasileiro, mas ao homem da contemporaneidade que vive nesse caos do mundo moderno.
>69
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>70
Macunaíma, igual que uma psicanálise, não
é história para ser contada. É, sobretudo, a
riqueza no uso das palavras, a multiplicidade de sentidos que nos encantam, a liberdade de criação dentro de um espaço que é
dito ser de um outro na dimensão do plágio.
Aqui o literal se impõe, fala para ser lida, leitura para ser escutada. Macunaíma é fala
brasileira. Um mito a nos dizer a origem de
nossa gente. Macunaíma situa-se no limite
entre a natureza e a cultura, entre a civilização e a barbárie, o índio e o homem civilizado.
Voltemos ao mito. Seguiram os quatro mato
a dentro. Macunaíma encontra-se com Ci,
Mãe do Mato, rainha das Icamiabas, que fazia parte da tribo guerreira de mulheres sozinhas, celibatárias. A linda cunhã luta para
resistir ao ataque de nosso herói que, quase vencido, pede ajuda aos irmãos e a violenta. Ci é imobilizada e sobre ela o herói
brinca.
Macunaíma se aproximou e brincou com a
Mãe do Mato. Vieram então muitas
jandaias, muitas araras vermelhas, tuins corica, periquitos, muitos papagaios saudar
Macunaíma, o novo Imperador do Mato-virgem (...) Quando todas as estrelas incendiadas derramavam sobre a terra um óleo
calorento que ninguém não suportava de
tão quente, corria pelo mato uma presença
de incêndio (...) E agora despertados inteiramente pelo gozo inventavam artes novas
de brincar.
E os três manos seguiram com a companheira nova. A saída da natureza a caminho da
civilização é lindamente descrita: Atravessaram a cidade das Flores evitaram o rio das
Amarguras passando por debaixo do salto da
Felicidade, tomaram a estrada dos Prazeres
e chegaram no capão de Meu bem que fica
nos cerros da Venezuela.
Nasce o filho de Macunaíma com Ci. O pecurrucho tinha cabeça chata e Macunaíma
inda a achatava mais batendo nela todos os
dias e falando pro guri:
— Meu filho, cresce depressa pra você ir pra
São Paulo ganhar muito dinheiro... Mas o filho morre envenenado pela Cobra Preta,
que chupa o seio de Ci e contamina o leite.
Morrem mãe e filho. A Mãe sobe ao céu, vira
estrela: a Bela do Centauro. Do corpo do filho nasce o guaraná. A paternidade não se
constitui, a mãe volta a ser assassinada.
Antes de morrer, Ci dá para o seu companheiro uma pedra, uma muiraquitã famosa,
mas a pedra é perdida e passa para as mãos
de um peruano, que enriquecera em São Paulo, o regatão que a tudo ou todos transforma em mercadoria, Venceslau Pietro Pietra.
Recuperar o talismã perdido torna-se o objetivo central de Macunaíma, e ele parte
para São Paulo, a grande cidade, “a cidade
macota, lambida pelo igarapé Tietê”.
No outro dia Macunaíma pulou cedo na ubá
e deu uma chegada até a foz do rio Negro
para deixar a consciência na ilha de Maratapá. Deixou-a bem na ponta dum mandacaru de dez metros, pra não ser comida pelas
saúvas. Voltou pro lugar onde os manos esperavam e no pino do dia os três rumaram
para margem esquerda da Sol.
Sem a consciência, e estabelecendo uma
aliança fraterna, Macunaíma deixa o mato e
segue rumo à civilização.
Os irmãos se reúnem para continuar seu
destino. No meio da caminhada, maltratado
pela sol (aparece no feminino), decide Macunaíma tomar um banho, e encontra uma
cova.
do, e a transformação final de nosso herói
na Ursa Maior.
Não é sem dificuldade, pois a vontade, mesmo, era de parar a cada parágrafo.
O mito continua a nos falar de uma falta,
não apenas a da ausência do caráter, porém
a de um talismã, a pedra muiraquitã, agálma que fascina, e que poderia dar a ilusão
da completude. Um talismã existencial cuja
perda, no dizer de Haroldo de Campos,
transforma-se em “amuleto verbal”. Assim,
presenciamos essa conjunção entre a perda
e a palavra, tão rica em nossa teoria. Quem
se apodera da pedra? Primeiro um forasteiro, Venceslau Pietro Pietra, que outro não é
senão o feiticeiro Piaimã, bruxo comedor de
gentes. Macunaíma o vence pela astúcia.
Disfarça-se de francesa, seduz e sai vencedor. Retorna a “querência” amazônica.
Vamos por um momento deixar Mário-Macunaíma e ir a Freud – “Totem e tabu”, o texto sobre o qual o autor declarou ser um dos
seus preferidos, mas que criou polêmica entre os antropólogos pela sua arbitrariedade,
que eu diria criatividade.
Depois tentar responder a questão que seguramente é central: Por que trazer esse
mito a um Congresso de Psicopatologia Fundamental?
O que se passa no mito “Totem e tabu” considerado o mais importante da modernidade?
Os irmãos se reúnem e matam o pai tirano,
que gozava de todas as mulheres. Sobrevém
a perda da inserção na natureza e a entrada no mundo da cultura. O sentimento de
culpabilidade é o passaporte que faz trânsito de um universo ao outro. Com a culpa, a
consciência e o supereu o homem se humaniza e entra no universo da linguagem.
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E a cova era que nem a marca dum pé gigante (...) Mas a água era encantada porque
aquele buraco na lapa era marca do pezão
do Sumé, do tempo em que andava pregando o evangelho de Jesus para a indiada brasileira. Quando o herói saiu do banho estava
branco louro e de olhos azuizinho, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria
capaz mais de indicar nele um filho da tribo
retinta dos Tapanhumas.
Macunaíma perde sua identidade indígena.
Se não lhe fora dada uma origem-identidade paterna, agora fica sem a materna. Mas
de onde surge a diferença? De um pegada,
traço significante, de um pai feiticeiro. O
nosso herói ganha nova identidade?
Os irmãos invejosos do acontecido resolvem
banhar-se. Jiguê lança-se na água, porém a
sujeira deixada impede-lhe de ficar branco e
limpinho. Jiguê fica vermelho. Maanape não
mais encontrando água, apenas consegue
lavar a sola do pé e da mão. Permanece preto com pés e mãos de solas vermelhas.
Maanape continua Tapanhumas. Prosseguem então o branco, o vermelho e o negro.
As três raças que constituem o nosso povo.
Apenas o negro, já velhinho, com sua identidade de origem.
A cidade perturba sua inteligência.
As onças pardas não eram onças pardas, se
chamavam fordes hupmobiles, chevrolés,
dodges marronse eram máquinas (...) A máquina era que matava os homens, porém os
homens é que mandavam nas máquinas (...)
Os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens.
Do restante dessa rapsódia, como qualifica
seu autor, vamos abandonar a riqueza de
seus detalhes, o seu enredo mágico realista,
e apenas destacar a busca do talismã perdi-
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No mito freudiano não há referência à mãe.
No mito andradino não há referência ao pai,
e o assassinato recai sobre a mãe, mãe natureza, mãe índia, mãe terra de cujo ventre,
após a morte, brota um cerro macio.
Se Macunaíma não é o brasileiro, pelo menos ele é um brasileiro inteligente, astuto,
ganancioso, cupido, sensual, lascivo, guloso,
indolente, preguiçoso, covarde, mentiroso e
muitos outros atributos “à procura de uma
identidade que, de tão plural que é, beira
surpresa e a indeterminação” (Bosi, 1988, p.
171-81), e talvez por isso dele é dito ser o herói sem nenhum caráter. Como seu autor,
ele é plural.
Mas podemos dizer também que Macunaíma
é o herói da perda. Perde a mãe, perde Ci o
amor, perde Vei o Sol e sua proteção, e perde a muiraquitã o talismã que evoca o possível encanto do preenchimento do desejo.
E por que perde a proteção de Vei? Porque
se encanta e brinca com uma portuguesa, a
estrangeira, desobedecendo a imposição de
casar-se com uma das filhas de Sol.
Enquanto no mito freudiano a consciência é
o ganho, no mito de Andrade a consciência
é abandonada quando decide deixar sua origem e sair em busca do estrangeiro, que lhe
roubou a identidade de Imperador do Mato
a ele conferida por Ci.
Perda e procura de identidade, perda e procura do objeto causa de seu desejo, abandono da consciência, ausência de pai, domínio
do gozo: eis o nosso herói.
Nós psicanalistas, na tentativa de compreender o dito homem da contemporaneidade, ou, se quisermos, de encontrar novas
formas de subjetividade, estamos sempre
nos confrontando com a ausência ou declínio da função paterna, com a supremacia do
gozo sobre a inserção desejante no mundo,
com a ilusão da completude, da globalização,
apagamento das diferenças, com essa fusão
homem-máquina, máquina-homem que atinge sobretudo nossa identidade multifacetada em infinitas identificações. Não foi
por acaso que Mário de Andrade disse que
queria referir-se sobretudo ao caos em que
se situa o homem atual.
Por um momento referimo-nos à síntese das
psicopatologias em nosso Macunaíma. Dele
pode ser dito que é um neurótico, um louco,
um perverso e, por fim, um melancólico que
desiste de lutar pela vida e se transforma
em brilho inútil de estrela. E o que é um brilho de estrela senão a ilusão de algo que aí
está sem mais estar?
É mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde com muita saúva, se
aborreceu de tudo, foi-se embora e banza
solitário no campo vasto do céu (...) Macunaíma é a Ursa maior.
O que entre nós restou foi o papagaio de
bico dourado, símbolo da repetição. Do nosso
papaguear.
E só o papagaio no silêncio do Uraricoera
preservava do esquecimento os casos e a
fala desaparecida. Só o papagaio conservava no silêncio as frases e feitos do herói.
E, para finalizar – porque é preciso – nossa
homenagem a Mário de Andrade, que magistralmente revelou a identidade sem identidade, o caráter sem caráter. Afinal, somos
todos macunaímas. E quem ainda não leu o
livro que vá fazê-lo correndo. É uma jóia.
Referências
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FERNANDES, Lygia (org.). Mário de Andrade escreve cartas a Alceu Meyer e outros. Carta a Mário Souza da Silveira, de São Paulo, 26 de abril
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(coord.). Edição crítica de Macunaíma o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Biblioteca Universitária de Literatura Brasileira,
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LOPES, Telê Porto Ancona (coord.). Edição crítica de Macunaíma o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Biblioteca Universitária de
Literatura Brasileira, 1978.
LOPES, Telê Porto Ancona (coord.). Edição crítica de Macunaíma o herói sem nenhum caráter. Carta de Mário de Andrade a Ademar Vidal,
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Universitária de Literatura Brasileira, 1978a.
LOPES, Telê Porto Ancona (coord.). Edição crítica de Macunaíma o herói sem nenhum caráter . Carta de Mário de Andrade a Carlos
Drumond de Andrade, São Paulo, outubro de
1928. São Paulo: Biblioteca Universitária de Literatura Brasileira, 1978b.
LOPES, Telê Porto Ancona (coord.). Edição crítica de Macunaíma o herói sem nenhum caráter. Brasília, 1988. (Arquivos).
MORAES, Marcos Antonio (org.). Correspondência: Mário de Andrade e Manoel Bandeira. Carta de 7 de novembro de 1927. São Paulo:
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MORAES, Marcos Antonio (org.). Correspondência: Mário de Andrade e Manoel Bandeira. Carta de 27 de novembro de 1927. São Paulo:
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SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
TURINO, Célio. Na trilha de Macunaíma – ócio e
trabalho na cidade. São Paulo: SESC, 2005.
Artigo recebido em setembro de 2006
Aprovado para publicação em novembro de 2006
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ano XIX, n. 188, dezembro/2006
AZEVEDO, Ana Maria. Desta vossa ilha de Vera
Cruz... é já outro Portugal! Camões Revista de
Letras e Culturas Lusófonas, Lisboa, n. 8, 2000.
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