Sentidos de violência contra as mulheres nas narrativas de homens denunciados por violência conjugal Senses of violence against women in narratives of men accused of domestic violence Paloma Silva Silveira1, Benedito Medrado2, Laís Oliveira Rodrigues3 Resumo A partir da década de 1980, a violência contra as mulheres começa a se configurar como um problema social e de saúde pública no Brasil. Entendendo a complexidade que envolve as situações de violência contra as mulheres, este artigo teve como objetivo estudar os sentidos de violência contra as mulheres nas narrativas de homens denunciados por violência conjugal. Para isso, privilegiou-se o uso de pesquisa qualitativa, na qual foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com dez homens denunciados na Delegacia da Mulher de Recife, no primeiro semestre de 2008. Na organização dos resultados foram formuladas duas categorias analíticas. Na primeira, reuniram-se os resultados nos quais as situações de violência contra as mulheres são justificadas a partir de mudanças nos comportamentos das mulheres. Parece que a construção do relacionamento conjugal se dá dentro dos padrões hegemônicos de gênero e quando estes são, de alguma maneira, desestabilizados, instalam-se os conflitos. Na segunda categoria, as situações de violência constituem-se como padrão relacional, ou seja, a violência é o sentido da relação conjugal. Deste modo, as análises construídas nesse estudo pretendem enfatizar a complexidade que envolve a questão da violência contra as mulheres, compreendendo-a como uma problemática que abrange questões políticas, sociais, educacionais e de saúde. Palavras-chave Violência contra as mulheres, saúde pública, gênero e masculinidade. Abstract In the 1980s, violence against women came to be recognized as a societal and public health problem in Brazil. In an effort to contemplate the complexity involved in domestic abuse situations, this article aims to study the violent sentiment against women through the first-hand accounts of men who have been accused of domestic violence. To accomplish this, a qualitative research methodology was employed, using semi-structured interviews involving ten men who had been accused of domestic violence at the Delegacia da Mulher (women’s justice department), in Recife, Brazil, from January to July, 2008. Results were organized into two analytical categories: firstly, results which demonstrated that violent situations against women were justifiable due to changes in women’s behavior. In these cases, it appears that the conjugal Mestre em Psicologia. Professor Substituto da Universidade Federal da Bahia. End: Avenida Paulo VI, 2240, apt: 1303, edifício Pedra Nova, Pituba - Salvador / BA CEP: 41810-001 Email: [email protected] 2 Doutor em Psicologia Social pela PUC/SP. Universidade Federal de Pernambuco 3 Mestre em Psicologia pela UFPE. Assistente de Pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco. 1 Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 951 - 970, 2009 – 951 P a l o m a S i lv a S i lv e i r a , B e n e d i t o M e d r a d o , L a í s O l i v e i r a R o d r i g u e s relationship is constructed around hegemonic standards of gender, and when these are, in some way, destabilized, conflicts arise. In the second category, violent situations were observed to be part of a relationship pattern; or, violence appeared to be the main sentiment of the conjugal relationship. In sum, the analyses carried out in this study aimed to emphasize the complexity surrounding the issue of violence against women, attempting to comprehend this issue as a problematic one with political, social, educational and health implications. Key words Violence against women, public health, gender and masculinity. 1. Breve panorama histórico Apesar de ser recente o processo de visibilidade e reconhecimento da violência contra as mulheres como um problema social e de saúde pública, no Brasil, existem muitas pesquisas realizadas sobre a temática, com diversas filiações teóricas, que dão ênfase a diferentes aspectos (Grossi & Porto, 2005; Azambuja & Nogueira, 2008). Portanto, apresentar uma contextualização do tema, ainda que breve, é uma tarefa complexa. Santos e Izumino (2005) afirmam que existem pelo menos três correntes teóricas que caracterizam os estudos sobre a violência contra as mulheres realizados no Brasil, na área das ciências sociais: 1. Denominada pelas autoras como dominação masculina, identifica-se com as noções de vitimização da mulher e culpabilização do homem. Assim, trabalha com as proposições da mulher-vítima e do homem-agressor.14 2. Chamada de dominação patriarcal, essa corrente sofre influências das perspectivas feminista e marxista, que entendem a violência como expressão do patriarcado. No Brasil, destaca-se Saffioti (2004) como maior expoente.25 3. A terceira corrente teórica é nomeada de relacional. De acordo com as autoras, essa perspectiva relativiza as noções de dominação masculina e vitimização feminina, colocando a violência como uma forma de comunicação e um jogo relacional. Como exemplo, pode-se citar o trabalho realizado por Gregori (1993).36 Essa caracterização dos estudos acadêmicos realizada por Santos e Izumino (2005) nos auxilia a conhecer quais as ideias teóricas e analíticas que foram, e ainda 14 Como exemplo, existe o estudo realizado por Maria Amélia Azevedo – Mulheres Espancadas: a violência denunciada – publicado em 1985. 25 Dentre as diversas publicações da autora destaca-se SAFFIOTI, H. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. 151p. 36 Gregori, M. F. Cenas e Queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. 1ed. São Paulo: Paz e Terra, 1993. 218 p. 952 – Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 951 - 970, 2009 Sentidos d e v i o l ê n c i a c o n t r a a s m u l h e r e s n a s n a rr a t i v a s d e h o m e n s d e n u n c i a d o s p o r violência conjugal são, usadas para a compreensão desse problema no Brasil. Neste cenário, a violência contra as mulheres começa a ser configurada como um problema social, localizado no campo da saúde pública, a partir da década de 1980 (Azambuja & Nogueira, 2008). Inserida como pauta no processo histórico então iniciado de discussão e formulação de convenções e tratados de direitos humanos, ganha mais destaque nos debates políticos e sociais. Neste período, o Brasil passava por mudanças sociais e políticas vinculadas ao processo de redemocratização que foram acompanhadas de perto pelos movimentos feministas e de mulheres do país (Santos & Izumino, 2005). Vale a pena destacar que, desde meados da década de 1970 e, principalmente, da década de 1990, o Brasil participa de diversas conferências no âmbito das Nações Unidas que visam, de alguma maneira, dar visibilidade à questão da violência contra as mulheres (Azambuja & Nogueira, 2008). Dentre alguns tratados, declarações, pactos, planos de ação e convenções internacionais de proteção aos direitos humanos que têm relação com a problemática da violência contra as mulheres e são ratificados pelo Brasil, destacamos: a Convenção para eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW), 1984; o Programa de ação da Conferência Mundial de Direitos Humanos, 1993; a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher (Convenção de Belém do Pará), 1995; e a Conferência Mundial da Mulher, 1995 (Cordeiro, 2008). As manifestações do movimento feminista brasileiro, especialmente na segunda metade da década de 1970, foram fundamentais para exigir a execução das ações previstas nesses instrumentos internacionais. As reivindicações do movimento feminista concentravam-se nas denúncias dos homicídios cometidos pelos maridos contra suas esposas e nas práticas da jurisprudência impregnadas por valores culturais misóginos e discriminatórios (Machado, 2002). Pode-se afirmar que tais reivindicações ganham força com a inclusão da violência contra as mulheres na arena dos direitos humanos e da saúde, tornandose assunto pertencente ao domínio público e, por conseguinte, considerado um problema social (Azambuja & Nogueira, 2008). Na Convenção de Belém do Pará (Barsted, 1994, p. 8), por exemplo, tem-se a definição do que é a violência contra as mulheres como: “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”.47Tal convenção ainda prevê que os países signatários formulem ações que visem erradicar o problema da violência contra 47 Para ter acesso à íntegra do texto da Convenção, acessar: http://www.violenciamulher.org.br Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 951 - 970, 2009 – 953 P a l o m a S i lv a S i lv e i r a , B e n e d i t o M e d r a d o , L a í s O l i v e i r a R o d r i g u e s as mulheres, bem como garantam o direito da mulher a uma vida sem violência (Cordeiro, 2008). Assim, diversas ações foram articuladas para publicizar à violência que ocorria dentro dos relacionamentos ditos conjugais (Machado, 2002). Houve uma crescente produção acadêmica ao longo do percurso de construção da violência contra as mulheres como um problema social e de saúde pública. O problema constitui-se como um tema privilegiado pelo movimento feminista brasileiro, servindo como articulador do campo militante com o campo das pesquisas acadêmicas (Grossi & Porto, 2005). Os primeiros estudos começaram a ser realizados, também, na década de 1980. Tinham como principal objetivo dar visibilidade à denúncia da violência por meio da identificação dos perfis das queixas, das vítimas e dos agressores (Santos & Izumino, 2005). No que tange à implantação de serviços, em 1985, sob a pressão dos movimentos feministas e de mulheres, tem-se a criação da primeira Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM), em São Paulo (Grossi & Porto, 2005). As delegacias de atendimento a mulheres em situação de violência caracterizam-se como órgãos especializados da Polícia Civil, que procuram dar um atendimento mais adequado a essas mulheres (Machado, 2002). Para Debert e Oliveira (2007), a criação das delegacias expressa a politização da justiça na garantia dos direitos da mulher e representa uma forma de pressionar o sistema de justiça na criminalização de assuntos que eram tidos como do âmbito privado. Dessa maneira, as DEAM são formuladas para defender a mulher como titular de direitos e são, ao mesmo tempo, uma resposta às reivindicações dos movimentos feministas e de mulheres empenhados em evidenciar as relações de poder e de dominação que permeiam a vida familiar. Deste modo, as reivindicações dos movimentos não pararam com a criação das delegacias. Exigiu-se a construção de uma rede de serviços específica, centros de referência, casas abrigos, etc., voltada para a questão da violência contra as mulheres. Concomitantemente, discussões sobre os Códigos Civil e Penal foram realizadas (Cordeiro, 2008). Em 1995, foram criados os Juizados Especiais Criminais (JECrim), previstos na Lei 9.099/95. Os juizados foram orientados pelos princípios da busca de conciliação, cujo foco é os casos de contravenção e os crimes considerados como de menor potencial ofensivo, sendo a pena máxima de até dois anos de reclusão (Debert & Gregori, 2008). Já em 2002, cria-se uma medida cautelar penal, prevista na Lei 10.455, que coloca a possibilidade de o(a) juiz(a) pedir o afastamento do homem autor de violência, em casos de violência doméstica (Cordeiro, 2008). Em 2003, o novo 954 – Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 951 - 970, 2009 Sentidos d e v i o l ê n c i a c o n t r a a s m u l h e r e s n a s n a rr a t i v a s d e h o m e n s d e n u n c i a d o s p o r violência conjugal Código Civil finalmente eliminou todas as discriminações legais contra as mulheres que ainda vigoravam (Azambuja & Nogueira, 2008). No ano de 2004, foi lançado o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), no qual há um capítulo exclusivo para a questão da violência contra as mulheres denominado: “Enfrentamento à violência contra as mulheres”. O PNPM reconhece que, para se ter uma ação efetiva de enfrentamento à violência contra as mulheres, é necessária a elaboração de uma política sistemática e continuada em diferentes áreas, que promova e implemente políticas públicas de responsabilidade no nível dos três governos: federal, estadual e municipal (Cordeiro, 2008). Em 2006, foi promulgada a Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha (Azambuja & Nogueira 2008; Cordeiro, 2008). A promulgação dessa lei também foi um produto das ações do movimento feminista, indignado com o modo pelo qual a violência contra as mulheres era tratada e acreditando que esse crime merece um tratamento diferenciado (Debert & Oliveira, 2007). A Lei Maria da Penha define uma política pública articulada, destinada à segurança das mulheres em situação de violência doméstica e familiar (Azambuja & Nogueira, 2008). Dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres, estabelecendo medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, conforme descrito no Artigo 1° (Debert & Gregori, 2008). A lei alterou o tratamento dado aos crimes de violência doméstica e familiar contra as mulheres no sistema judiciário. Dentre as alterações destacadas por Debert e Oliveira (2007) estão: o aumento da pena máxima, que passa a ser de três anos de detenção, o que retira essa violência da tipificação dos crimes de menor potencial ofensivo, não podendo, por conseguinte, ser mais enviada aos Juizados Especiais Criminais (JECrim); passa também a admitir a prisão em flagrante para os casos de violência doméstica contra as mulheres e impede a aplicação de pena de cesta básica, passando a exigir novamente - como antes da Lei 9.099/95 - a instauração do inquérito policial. Outros aspectos positivos relacionados com a lei são as medidas protetivas de urgência, que colocam como responsabilidade da polícia, da Justiça e do Ministério Público a segurança pessoal e patrimonial da mulher e de seus filhos. Além disso, a lei, no seu artigo 45, determina como sendo obrigatório o comparecimento do homem julgado como agressor a programas de “recuperação” e “reeducação” e considera importantes as penas restritivas, enfatizando a promoção da mudança de comportamento dos agressores e a necessidade da existência de tais programas para o cumprimento da determinação judicial (Cordeiro, 2008). Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 951 - 970, 2009 – 955 P a l o m a S i lv a S i lv e i r a , B e n e d i t o M e d r a d o , L a í s O l i v e i r a R o d r i g u e s Nesse percurso de construção da violência contra as mulheres como um problema social e de saúde pública, alguns estudos apontam para importância de estudos sobre os homens autores de violência (Gregori, 1993; Schraiber et al., 2005). Em consonância com essa ideia, o presente artigo traz os principais resultados de uma pesquisa cujo objetivo foi estudar os sentidos de violência contra as mulheres nas narrativas de homens denunciados por violência conjugal.58 Assim, para finalizar essa breve contextualização histórica, é necessário destacar que o percurso da construção da violência contra as mulheres como problema social e de saúde pública não é tão linear como foi apresentado. É marcado por conquistas e retrocessos. Por isso, considera-se fundamental reconhecer que a opção por apresentá-lo assim nesse artigo se deve a uma finalidade didática, com vista a oferecer aos/às leitores/as maior facilidade de compreensão. 2. Procedimentos metodológicos Em pesquisa mais ampla realizada pelo Núcleo de Pesquisas em Gênero e Masculinidades da UFPE (GEMA),69cujo objetivo inicial foi mapear os serviços voltados para os homens autores de violência contra as mulheres na Região Metropolitana de Recife, constatou-se a inexistência de tais serviços. No entanto, o mapeamento efetuado possibilitou conhecer a rede de enfretamento à violência contra as mulheres nesta região, bem como os principais serviços e redes voltados para a proteção de mulheres em situação de violência. Com base nas informações da pesquisa citada acima, foram identificadas as instituições em que os homens denunciados por violência conjugal poderiam ser localizados. Duas delas merecem destaque: a Delegacia da Mulher de Recife e o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. A Delegacia da Mulher de Recife foi escolhida como local privilegiado para a realização desta pesquisa, principalmente pelo fato de constituir, em linhas gerais, a porta de entrada para os encaminhamentos dos casos de denúncia de violência contra as mulheres. 58 Foi usado o termo homens denunciados por violência conjugal, já que, com a implementação em 2006 da Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, os homens só podem ser nomeados, legalmente, como autores de violência contra as mulheres, após o julgamento do processo. Essa pesquisa entrevistou homens que ainda não haviam sido julgados, por isso o termo denunciados. 69 A pesquisa desenvolvida pelo GEMA, iniciada em 2006, foi realizada em parceria com o Núcleo Margens da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e com a ONG Instituto PAPAI, tendo o apoio do CNPq. Essa pesquisa foi coordenada pelo prof. Dr. Benedito Medrado e contou com a participação de cerca de 20 pesquisadores, dentre esses as autoras do artigo. Abrangeu uma pesquisa bibliográfica exaustiva do tema, um mapeamento da rede de serviços do estado de Pernambuco de atendimento à violência contra as mulheres e análise de documentos de domínio público identificados a partir desse mapeamento. Foi finalizada no inicio de 2009. 956 – Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 951 - 970, 2009 Sentidos d e v i o l ê n c i a c o n t r a a s m u l h e r e s n a s n a rr a t i v a s d e h o m e n s d e n u n c i a d o s p o r violência conjugal Foram realizadas 13 visitas à Delegacia nos meses de abril, maio e junho de 2008. Nesse período, foram entrevistados dez homens denunciados por violência conjugal. As entrevistas, orientadas por um roteiro semi-estruturado, foram realizadas mediante leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.710Além disso, efetuaramse observações no cotidiano811registradas em diários de campo, também mediante autorização prévia da instituição e assinatura do documento correspondente. A opção pela realização de uma pesquisa qualitativa se deve, como salientado por Fonseca (1998), ao reconhecimento de que os sentidos expressos pelas pessoas são construídos coletivamente, tendo, portanto, nos valores, crenças, ideias e significados que circulam em seus contextos as principais fontes. Neste sentido, quando os contextos são bem delineados, é possível estabelecer generalizações que o comportem. Para o processo analítico, organizou-se um corpus textual, que consiste em desenvolver esquemas interpretativos. Trata-se da escolha de um tema ou foco de interesse relacionado aos objetivos da pesquisa (Meneghel & Iñiguez, 2007). Assim, após a leitura exaustiva das entrevistas foram produzidos, inicialmente, quadros tendo como base três questões centrais: 1. Como os homens denunciados por violência conjugal se percebem e como percebem a companheira, ou ex-companheira, no jogo do conflito conjugal? 2. O que os homens denunciados por violência conjugal nomeiam de violência contra as mulheres? 3. Como os homens denunciados por violência conjugal percebem a situação que desencadeou o conflito conjugal? A partir desses três eixos de análise, foram produzidos dez quadros individuais. Os quadros foram compostos por quatro colunas: a primeira com o nome fictício do entrevistado e as demais correlacionadas aos temas dos eixos analíticos, em formato inspirado nos mapas de associação de ideias, proposto por Spink e Lima (2004). Por meio da leitura repetitiva desses quadros, construíram-se duas categorias analíticas: 1. “Ela é muito agressiva como eu falei, ela saiu domando a mim, querendo arranhar meu rosto”: a mulher que provoca o conflito conjugal. 710 A realização da pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisas com seres humanos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foram garantidos aos entrevistados o direito a participação voluntária e o anonimato. 811 Spink (2007) faz uma diferenciação quando se pesquisa o e no cotidiano. Ao pesquisar o cotidiano, estabelece-se a dicotomia pesquisador – objeto de pesquisa; já pesquisar no cotidiano é ser partícipe das ações e construções de sentidos que acontecem nesse espaço. Segundo essa autora, baseada em Garfinkel (1967/1984), ao pesquisar no cotidiano, nos posicionamos como membros da comunidade discursiva, ou seja, nos tornamos capazes de interpretar as práticas que se desenrolam nos espaços e lugares em que acontece a pesquisa. Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 951 - 970, 2009 – 957 P a l o m a S i lv a S i lv e i r a , B e n e d i t o M e d r a d o , L a í s O l i v e i r a R o d r i g u e s 2. “Pra você ver rapaz, a gente nunca teve um relacionamento é, bem não”: a violência é o sentido da relação conjugal. A seguir os principais resultados da pesquisa, organizados nestas duas categorias analíticas. É importante ressaltar que tais categorias também não são estanques, nem excludentes. Elas podem, em alguns momentos, apresentar tensões e correlações entre si. 3. “Ela é muito agressiva como eu falei, ela saiu domando a mim, querendo arranhar meu rosto”: a mulher causadora do conflito conjugal A partir das leituras das narrativas de alguns homens, foi percebido que o conflito conjugal acontece por mudanças nos comportamentos das mulheres: Igor912: “Que pelo menos ela no começo não era assim, agora depois de uns 10 anos começou a perder o controle rapidamente, não sei se é questão também de idade, que a mulher tem a menopausa, o homem tem a andropausa, a mulher tem a menopausa, dizem, que não sou mulher pra saber isso, que quando chega certa idade começa a ter reações, troca de hormônios e tal”. Fernando: “Uns oito anos, nove anos, por aí. De três anos pra cá mais ou menos, foi só confusão, separando, voltando, separando, voltando. Aí muitas amizades com ela, eu chegava pra lá, eu dizia não quero você com fulana, quando eu chegar quero meu café pronto, e nada, quando eu chegava tava conversando com sicrana, porra tudo isso vai evoluindo, vai tendo raiva na mente do cara, bebida não controla ninguém, que bebida não leva ninguém pra frente. Daí chegava em casa muito bêbado, era um monte de discussão”. Ao que parece, as referidas mudanças das mulheres estão atreladas a uma “perda de controle” dos homens sobre seus comportamentos, dando origem a conflitos conjugais (Schraiber et al., 2005). O controle não é percebido como coerção ou violência, mas como parte dos atributos e direitos dos homens sobre as mulheres no contexto de uma relação conjugal. Nessa perceptiva, supõe-se que os homens produzem os sentidos sobre a relação conjugal a partir de um padrão hegemônico relacional de gênero. Para Louro (2003), o gênero se refere ao modo como as características sexuais são compreendidas e representadas ou, então, como são trazidas para a prática social e tornadas parte do processo histórico. Assim, as desigualdades presentes nas relações entre as pessoas não seriam justificadas a partir de diferenças biológicas, mas por meio dos diversos arranjos realizados nos contextos sócio-históricos nos quais são construídas. Os nomes atribuídos aqui aos homens participantes da pesquisa são fictícios. 912 958 – Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 951 - 970, 2009 Sentidos d e v i o l ê n c i a c o n t r a a s m u l h e r e s n a s n a rr a t i v a s d e h o m e n s d e n u n c i a d o s p o r violência conjugal Para uma melhor compreensão da construção desse padrão relacional de gênero, pode-se recuperar o conceito da masculinidade hegemônica. Connell (1997) o define como configurações de práticas genéricas que englobam uma posição dominante dos homens e uma subordinação das mulheres, legitimando as relações previstas no patriarcado.1013 No patriarcado, delineiam-se demarcações rígidas de posicionamentos relacionais. Tal padrão hegemônico veicula condutas com status de “única verdade”, engendrando os comportamentos em rígidos padrões relacionais. Parker (1991) compreende que o sistema patriarcal brasileiro construiu o masculino valorado a partir da ação e da virilidade, e o feminino é valorizado dentro das funções de esposa e mãe: Fernando: ”Uma dona de casa exemplar, assim que espera o marido chegar do trabalho, ou que teja na rua, mas quando tiver perto do marido chegar volte pra casa, apronte o café do marido, o almoço. Você acredita cara, eu trabalhei seis anos numa empresa, nesses seis anos ela nunca levantou pra fazer meu café da manhã, tem vezes que eu saía, saía às vezes nem café eu tomava”. Emanuel: “Porque, quando nós nos separamos, eu fiquei com a criança, eu disse a ela, que ela não tinha condição moral de criar uma criança, não financeira, porque financeira é comigo né, que sou o pai, não é com ela”. Nos trechos acima, podemos perceber a destinação do âmbito privado para a mulher, que deve cuidar da casa, dos filhos e dar suporte ao companheiro para a efetivação de suas funções de trabalhador e provedor, localizadas no âmbito público. Trata-se da proposição de uma relação de complementaridade, na qual há a tentativa de estabelecimento de pólos onde são negociadas posições de poder e subordinação. Assim como Parker (1991), Machado (2004) destaca que, no Brasil, a construção hegemônica dos padrões de gênero se dá dentro da retórica do patriarcado. Vale ressaltar que o patriarcado é, aqui, tido como um padrão hegemônico legitimado socialmente, que posiciona as relações de gênero e define condutas historicamente desiguais. É preciso destacar que tal padrão deve ser compreendido como construção, referências compostas e adotadas de maneira bastante complexa, pouco linear e nada fixa (Debert & Gregori, 2008). Como o próprio Connel (1997) discorre sobre a masculinidade hegemônica: um padrão relacional historicamente móvel Ressalta-se, que tal padrão hegemônico é construído não apenas em relação às mulheres, mas também às outras formas de masculinidade referentes a grupos dominados. Essas outras masculinidades não são necessariamente bem delineadas. A masculinidade hegemônica as oculta e as subordina, embora não as elimine por completo. 1013 Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 951 - 970, 2009 – 959 P a l o m a S i lv a S i lv e i r a , B e n e d i t o M e d r a d o , L a í s O l i v e i r a R o d r i g u e s e fluido e que tem fissuras. Desta maneira, ao analisarmos nas narrativas de alguns homens denunciados por violência conjugal, os sentidos sobre a violência contra as mulheres, percebemos que quando há desestabilização do padrão hegemônico relacional ocorrem os conflitos conjugais que compõe as cenas de violência contra as mulheres. Pesquisas realizadas no Brasil sugerem que a violência cometida por um homem contra uma mulher aparece, frequentemente, em situações nas quais o uso da violência é considerado “justificável” pelos homens como, por exemplo, quando as mulheres mantêm “relação extraconjugal” ou quando não cumprem com o que é reputado socialmente como suas responsabilidades domésticas (Acosta & Barker, 2003): Tarcisio: “Outra, eu trabalhava no canto, ela também trabalhava, aí eu deixei de trabalhar, ela ficava no mesmo lugar lá no meio do pessoal, dos funcionários, que a gente trabalhava tudo junto, eu trabalhava em outro canto agora, e também, o que me fez também me separar foi mentiras também, que ela fazia um curso, eu fui pegar ela no curso, o curso, as luzes se apagaram, e ela não saiu do curso. Cheguei em casa, perguntei: tava aonde? Tava no curso, mentira que ela não tava no curso. Quer dizer, mentiras que me fez me separar, eu não sei se ela me traiu, traiu eu não sei”. Nessa perspectiva, as mulheres aparecem como provocadoras dos conflitos, já que toda situação de violência é circunscrita a partir de justificativas que “culpabilizam” as mulheres pelo conflito, ora por mudanças no seu comportamento, ora pela caracterização da mulher como “agressiva”: Fernando: “Aí muitas amizades com ela, eu chegava pra lá, eu dizia não quero você com fulana, quando eu chegar quero meu café pronto, e nada, quando eu chegava tava conversando com sicrana, porra tudo isso vai evoluindo, vai tendo raiva na mente do cara, bebida não controla ninguém, que bebida não leva ninguém pra frente. Daí chegava em casa muito bêbado, era um monte de discussão”. Tarcisio: “(...) eu conheço ela muito bem, ela gosta de arranhar cara, gosta de arranhar tudo, onde ela pegar ela arranha, ela humilha. Quer dizer, se você não dominar ela, ela é muito, muito agressiva”. Nestes casos, a denúncia é percebida pelos homens como mais uma forma de violência praticada pelas mulheres, um artifício que as mulheres utilizam para prejudicá-los: Tarcisio: “(...) ela, eu acho que foi uma covardia que ela armou, eu acho que ela quis me denunciar, porque todo tempo ela disse, que se a gente se separasse ela ia me 960 – Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 951 - 970, 2009 Sentidos d e v i o l ê n c i a c o n t r a a s m u l h e r e s n a s n a rr a t i v a s d e h o m e n s d e n u n c i a d o s p o r violência conjugal prejudicar, de um jeito ou de outro ia me prejudicar, eu acho que ela queria me prejudicar no trabalho, tentar me fichar, eu acho que é isso né? É isso aí”. De maneira geral, nas situações de conflito, os homens se posicionaram como apaziguadores e/ou reativos às agressões das mulheres, o que contrasta com os posicionamentos previstos no patriarcado: Samuel: “Não discute, a gente discute, mas quando ela começa a discutir, ela bate em mim, eu vou me embora, eu não dou nela não”. Fernando: “Não, já aconteceu já, até que, até ela me bater também cara, e eu não suportar e também ir pra cima entendeu, e os meus filhos começava a chorar, daí eu parava, entendeu? Mas, não era porque eu queria, porque primeiro eu era agredido”. De acordo com Scott (1988), os significados das diferenças de gênero são sempre relativos a certas construções particulares, em contextos específicos. Há uma variedade de posições que se pode assumir, a depender dos contextos nos quais interagimos. Esta proposição enfatiza a proposição de que ninguém faz o gênero sozinho. Ele implica uma relação, uma socialidade (Debert & Gregori, 2008). Assim, para Costa (1998), adotar uma perspectiva relacional de gênero é levar em consideração que o gênero não se refere unicamente a homens e mulheres e que as associações entre homem – masculino e mulher – feminino não são naturais, nem óbvias, são construções sociais implicadas no contexto históricopolítico-cultural em que são constituídas e constituintes. Outro aspecto que gostaríamos de destacar é que os homens reconhecem apenas a agressão física como violência contra as mulheres, a agressão verbal, geralmente, não foi reconhecida como situação de violência: Tarcisio: “Não, não só assim discussão, bate boca de marido e mulher, mas negócio de agressão não. Primeira vez agora, quer dizer, eu não agredi ela, ela que fez tudo (...)”. Jorge: “O motivo foi discussão como, como todo casal tem, e ela não aceita, eu não aceito algumas coisas, e ela achou no direito de prestar uma queixa sobre mim”. Isso pode ocorrer porque a naturalização da violência nas relações conjugais é ainda muito presente – a existência de interações violentas no âmbito do casal tem permissão social para acontecer (Gomes & Nascimento, 2006). Isto colabora para a dificuldade de percepção sobre o que seja violência, tanto de quem pratica quanto de quem sofre (Saffioti, 2004; Kronbauer & Meneghel, 2005). Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 951 - 970, 2009 – 961 P a l o m a S i lv a S i lv e i r a , B e n e d i t o M e d r a d o , L a í s O l i v e i r a R o d r i g u e s Todavia, vale a pena destacar que, as situações de conflito também aparecem permeadas por sentidos contraditórios. Ao mesmo tempo que “culpabilizam” as mulheres pelos conflitos conjugais, posicionando-as como “provocadoras” e “agressivas”, os homens, nas suas narrativas, relataram ocasiões que explicitam a construção relacional dos conflitos. O conflito conjugal, então, não aparece apenas como “provocado” pelas mulheres, mas faz parte de um jogo relacional conflituoso do qual ele é partícipe: Igor: “Porque se teve testemunha de discussão, era os meninos dentro de casa, infelizmente era na frente dos meninos, aquela história, como a discussão era na frente dos meninos, talvez ela queria que eu batesse nela, eu acho que ela queria isso, como não conseguiu me tirar do sério esse tempo todinho, aí achou de, o que eu disse para ela foi: Você pare de tá me desacatando, ela eu não tenho medo de você não, isso eu digo toda a hora a ela: Pare de ficar me desacatando, se você pensa que pode comigo, você não pode (risos)”. Essa variabilidade observada nas narrativas dos homens enfatiza o reconhecimento do caráter relacional das situações de conflito conjugal, embora, ao mesmo tempo, identifiquem que tais situações foram provocadas exclusivamente pelas mulheres. Para Meneghel e Iñiguez (2007), os aspectos contraditórios dos discursos podem apontar para possibilidades de mudanças. No caso de práticas violentas nas relações conjugais, pode-se pensar em possibilidades de mudanças na resolução dos conflitos: Juliano: “O que eu tenho mais é de falar mal, é porque ela é muito temperamental, tem um temperamento ói explosivo, que às vezes, se eu fosse um cabra, se eu usasse a cabeça um pouquinho mais, deveria ter dado as costas, e eu acho que eu tinha saído, ia na rua, dava um volta até ela se acalmar. Quando se acalmasse, eu ia chegar na minha casa normal, não ia acontecer nada disso que tá acontecendo hoje”. Percebe-se, também, que quando idealizam o relacionamento conjugal, os homens, em sua maioria, trouxeram o respeito, o diálogo e a compreensão como aspectos ideais. Esses ideais podem ser interpretados de dois modos: um primeiro, quando tais aspectos compõem uma possibilidade de reafirmação dos padrões hegemônicos relacionais de gênero, como, por exemplo, de controle da mulher, quando os mesmos são desestabilizados, cabe à mulher mudanças no seu comportamento (Couto et al., 2006): Tarcisio: “Sentimento de respeito, um casal tem que respeitar um ao outro, depois que não se respeita mais, ela quer fazer o quer, nenhum homem gosta disso, entendeu?”. 962 – Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 951 - 970, 2009 Sentidos d e v i o l ê n c i a c o n t r a a s m u l h e r e s n a s n a rr a t i v a s d e h o m e n s d e n u n c i a d o s p o r violência conjugal Fernando: “(...) Relacionamento bom que eu acho, é um respeitar o outro cara, não respeito de traição, não nesse ponto, assim, respeito de várias maneiras né? De compreensão, de moral. Porque um não pode perder moral pro outro também né? É esse termo aí, e eu não tava mais conseguindo ter moral pra ela, entendeu?”. E o outro modo seria esses aspectos compondo um cenário para uma possível flexibilização das relações de gênero: Paloma: “Não, não tem nenhum problema seu Josildo, e assim o senhor, pra o senhor o que seria um relacionamento ideal, um relacionamento afetivo ideal?”. Josildo: “Acho que ela me respeitasse, e eu também né, respeitar ela né, que isso que não tá acontecendo entre nós dois, da minha parte eu tou fazendo o que posso”. Assim, parece que existe uma abertura por parte de alguns homens quanto a outras maneiras de se relacionar. Para isso, são de fundamental importância a reflexão e a reinvenção das relações de gênero e, consequentemente, de outras formas de relações conjugais (Machado, 2004). 4. “Pra você ver rapaz, a gente nunca teve um relacionamento é, bem não”: a violência é o sentido da relação Nesta segunda leitura analítica, foram agrupadas as narrativas dos homens cuja violência é o sentido da relação conjugal: Jeferson: “(...) porque eu, quantas vezes ela se separou de mim, via eu bêbado aí pegava e ia pra casa da família, aí ficava nesse negocinho. Aí passava 15 dias, um mês na casa da família, ela e meus meninos, quando eu ia procurar ela, ia atrás dela. A família dela queria me espancar, me bater, chegaram até cortar meu rosto, levei ponto no rosto, botaram revólver no meu rosto, esse negócio, a gente vivia assim”. Algumas interpretações são possíveis quando a violência constitui-se como o “padrão” relacional. A esse respeito, Gregori (1993) argumenta que o uso da violência pode ser uma forma de realocação de homens e mulheres nos lugares dos padrões hegemônicos de gênero: Gustavo: “Porque também, a mulher também não pode tá agredindo o homem, porque vai terminar levando também, quem sabe dentro de casa o camarada perde a paciência né? A pessoa também não pode ser bom demais, porque a mulher quer fazer o que ela quer. Pra você ver, rapaz, a gente nunca teve um relacionamento é, bem não”. Nas palavras de Gregori (1993): Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 951 - 970, 2009 – 963 P a l o m a S i lv a S i lv e i r a , B e n e d i t o M e d r a d o , L a í s O l i v e i r a R o d r i g u e s “Ela vai apanhar e o marido vai bater. Neste, ela sairá como vítima e o marido como agressor. De uma maneira muito estranha, ela dá a “última palavra” para sair de uma cena em que é parceira e iniciar outra em que será vítima. Um perverso jogo de feminilidade e masculinidade, ou melhor, de imagens que desenham papéis de mulher e de homem em relações conjugais” (Gregori, 1993, p.180). Para Gregori (1993), a violência funciona como uma espécie de ato de comunicação do homem e da mulher na construção da relação conjugal. Pode constituir-se em meio de reivindicação de atenção, disputa, jogo erótico e/ou reafirmação do compromisso. A violência é configurada como um aspecto constituinte da conjugalidade: Jeferson: “Não, não, é, discutir, a gente discutia, até sem beber. Só que agressão jamais”. Paloma: “Só essa vez...” Jeferson: “Foi só essa vez, e faz muito tempo. Eu depois me arrependi muito, me arrependi muito, pedi desculpas a ela, perdão, tudo eu pedi a ela. Outro dia ela reconheceu que também ela errou por uma parte, e eu errei por outra, ter batido, que eu dei uma tapas nela né? Aí pronto, só foi isso, mas era mais boca, bate boca, quê não sei o que, que eu chegava bebo, vou fazer isso, vou fazer aquilo, mas na verdade eu não ia fazer é nada, eu falava, falava, e depois ali mesmo eu dormia”. Nas relações marcadas pela violência, supõe-se que a dificuldade em reconhecer a violência na relação conjugal não é apenas pela naturalização da violência nas relações conjugais, mas porque esta se constitui como padrão relacional. Parece acontecer a construção de uma relação conjugal, cujos parceiros se ligam de forma simbiótica e são enlaçados por práticas violentas que se repetem cotidianamente, em que há dificuldades no reconhecimento de tais interações como violentas (Gregori, 1993). Giddens (1993) traz uma ideia interessante para se pensar nas formas como essas relações são construídas: a noção de relação codependente: “Um relacionamento co-dependente é aquele em que um indivíduo está ligado psicologicamente a um parceiro, cujas atividades são dirigidas por algum tipo de compulsividade. Chamarei de relacionamento fixado aquele em que, o próprio relacionamento é objeto do vício (...) Nenhum dos participantes é nitidamente um viciado, mas ambos são dependentes de um elo que é uma questão de obrigação de rotina ou é realmente destrutivo para as partes interessadas” (Giddens, 1993, p.102). Deste modo, a denúncia, feita pela mulher ganha o significado de ruptura deste padrão relacional. Já que a violência é tida como um elo que sempre fez 964 – Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 951 - 970, 2009 Sentidos d e v i o l ê n c i a c o n t r a a s m u l h e r e s n a s n a rr a t i v a s d e h o m e n s d e n u n c i a d o s p o r violência conjugal parte da relação conjugal, a denúncia da mulher relacionada a essas práticas violentas parece inconcebível: Jeferson: “É que, a família dela, eu tenho pra mim que é a família dela né, que deu algum incentivo. Porque eu não acredito que ela, da cabeça dela que ela fosse fazer uma coisa dessa, até agora eu tou perplexo, tou arrasado, porque eu não esperava que ela fosse fazer uma coisa dessa, porque nada disso é verdade, a coisa é totalmente diferente, aí a palavra dela contra a minha né?” Assim sendo, a denúncia realizada pela mulher é vivenciada com sofrimento e decepção. Os homens se sentem “traídos” pelas mulheres: Paloma: “Você perguntou pra ela o porque da denúncia?” Gustavo: “Nada, nem vou perguntar mais”. Paloma: “Pra você chegou ao final o relacionamento de vocês?” Gustavo: “Oxe ... Com certeza, posso te falar uma verdade? Tá aí uma cobra...” Paloma: “Cobra”. Gustavo: “Traidora, cobra, cobra verdadeira mesmo, daquela perigosíssima ... (olhos marejados)”. Paloma: “Tá muito decepcionado é Gustavo?” Gustavo: “Oxe ... (começa a chorar) (Silêncio) Cidadão de bem, dentro de uma delegacia. Coisa, que eu nem bati nela, penso só nas minhas filhas. (silêncio). O homem não deve chorar não, homem que é homem não chora não, mas infelizmente eu não aguento não”. Contudo, é a partir da denúncia da mulher que os homens começam a configurar outras formas de relacionamento conjugal. A Delegacia da Mulher é permeada por significados que vão além dos papeis punitivo e criminalizante, se torna um lugar privilegiado para resolução dos conflitos conjugais (Brandão, 2006; Rifiotis, 2004). Ao acionar a delegacia, as mulheres estabelecem um modo peculiar de utilização do aparato policial. Mobilizam tal instituição para gerenciar a crise conjugal e familiar em que subjaz o delito denunciado (Brandão, 2006). A denúncia à polícia significa o rompimento com a dinâmica conjugal e motiva o desejo de novas configurações de relacionamentos: Gustavo: “Um amor como qualquer um homem pode ter por uma mulher, um amor verdadeiro”. Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 951 - 970, 2009 – 965 P a l o m a S i lv a S i lv e i r a , B e n e d i t o M e d r a d o , L a í s O l i v e i r a R o d r i g u e s Paloma: “Um amor verdadeiro...Como é assim esse amor verdadeiro?” Gustavo: “Um amor verdadeiro é respeitá-la, entendeu? É nunca maltratá-la, entendeu? Nunca pensei de maltratar ela, apesar do que vem acontecendo, infelizmente tá aí. Certo?! Espero que seja resolvido numa boa, e a partir de hoje mesmo, nem pra ela mais eu olho”. 5. Considerações finais A violência contra as mulheres é uma problemática perpassada por uma série de aspectos que complexificam seu estudo. Há a coexistência de vários significados que se sobrepõem, se misturam e estão permanentemente em conflito nas situações que caracterizam a ocorrência de violência no âmbito das relações conjugais. Ocorre o emaranhamento de concepções sobre sexualidade, família, gênero, afetividade, educação, etc. Além disso, há posições definidas por outras categorias de diferenciação, geracionais ou etárias, marcadores raciais e de classe (Debert & Gregori, 2008). Assim, quando nos propomos a estudar os sentidos de violência contra as mulheres nas narrativas de homens denunciados por violência conjugal, nos deparamos com essa pluralidade. Uma leitura simplista sobre a questão é insuficiente e incoerente com a diversidade de situações, por isso aceitamos o desafio de realizar uma leitura que enfatiza as dinâmicas que revestem as relações socais. Para tanto, utilizamos nas nossas suposições analíticas a perspectiva de gênero. O gênero é um meio de interpretar o sentido e de compreender as relações complexas entre as diversas formas de interação humana (Scott, 1995). O foco fica voltado para as relações que são estabelecidas e as atribuições de masculino e feminino elaboradas nessas relações: “Enfatizar o caráter relacional do gênero não é afirmar que os estudos de gênero devam ser sempre e necessariamente com homens e mulheres simultaneamente, pois isso seria reforçar uma política identitária. Enfatizar o caráter relacional do gênero é dizer que os estudos sobre os sujeitos concretos devem considerar as percepções sobre masculino e feminino como dependentes, ao mesmo tempo que constitutivas, das relações sociais” (Costa, 1998, p.173-174). Nesta perspectiva, conseguimos construir duas leituras analíticas que tentam dar conta da complexidade que envolve o objetivo da pesquisa. Na primeira categoria observou-se que os homens significam a violência contra as mulheres a partir do padrão hegemônico relacional de gênero. Assim, a noção da violência contra as mulheres vem atrelada a desestabilização deste padrão, seja por mudanças nos comportamentos das mulheres e/ou pela caracterização das mulheres como “agressivas”. 966 – Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 951 - 970, 2009 Sentidos d e v i o l ê n c i a c o n t r a a s m u l h e r e s n a s n a rr a t i v a s d e h o m e n s d e n u n c i a d o s p o r violência conjugal No entanto, as situações de conflito aparecem permeadas por sentidos contraditórios. Ao mesmo tempo que “culpabilizam” as mulheres pelos conflitos conjugais, posicionando-as como “provocadoras” e “agressivas”, os homens, nas suas narrativas, relataram ocasiões que explicitam a construção relacional dos conflitos. As situações de violência contra as mulheres, então, não aparecem apenas como “provocadas” pelas mulheres, mas faz parte de um jogo relacional conflituoso do qual ele é partícipe. Do mesmo modo, existem dificuldades por parte dos homens em reconhecerem a violência circunscrita na relação conjugal. Isto pode estar relacionado à pelo menos duas suposições: a banalização da violência contra as mulheres e quando a violência se constitui como sentido da relação conjugal. A segunda leitura analítica procurou dar conta das situações em que a violência se constitui como sentido da relação conjugal, compondo-se como o “padrão” relacional. Para Gregori (1993), em determinados casos, a violência funciona como uma espécie de ato de comunicação do homem e da mulher, na construção da relação conjugal. A denúncia na delegacia representa, portanto, uma ruptura desse “padrão” relacional. A Delegacia da Mulher pretende, fundamentalmente, interpretar a violência contra as mulheres a partir de uma leitura criminalizante e estigmatizada contida na polaridade “vítima-agressor” ou na figura jurídica do “réu”. Este tipo de leitura apresenta uma série de obstáculos para a compreensão e intervenção nos conflitos interpessoais. Ela é teoricamente questionável, não corresponde às expectativas das pessoas atendidas nas Delegacias da Mulher, como demonstra estudo realizado por Brandão (2006), e tampouco aos serviços efetivamente realizados pelas policiais nessa instituição (Rifiotis, 2004). As proposições colocadas acima não são contrárias à existência das delegacias e/ou da implementação da Lei Maria da Penha, pretendem apontar que a leitura punitiva não pode ser exclusiva e que a criminalização de tais conflitos é problemática (Rifiotis, 2004). Desta maneira, espera-se enfatizar a complexidade que envolve a questão da violência contra as mulheres e que os caminhos para sua resolução são difíceis e nada simplistas. Envolvem questões políticas, sociais, educacionais e de saúde, exigindo novas diretrizes pautadas em um trabalho interdisciplinar que abranja, para além de aspectos punitivos, dimensões de promoção, prevenção e reorientação. Assim, é preciso compreender a violência contra as mulheres como um problema não apenas relacionado com os homens e as mulheres que vivenciam tal problemática, mas com a sociedade de maneira geral. Como argumenta Giffin (2005), qualquer estudo que englobe as relações de gênero precisa ir além da mera Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 951 - 970, 2009 – 967 P a l o m a S i lv a S i lv e i r a , B e n e d i t o M e d r a d o , L a í s O l i v e i r a R o d r i g u e s descrição das diferenças culturais, como, por exemplo, entre homens e mulheres, e da própria constatação da construção social das relações de gênero. É fundamental investigar os elementos da política econômica contemporânea implicados na dinâmica global de dominação de nações e classes sociais e de mercantilização da vida. É necessário avaliar com perspicácia as grandes reformulações que se estão processando nas ideologias e até nas práticas “de gênero”, para evitar conclusões baseadas na ideia de que qualquer mudança é positiva e sinal de transformação. Referências Acosta, F.; Barker, G. Revista: homens e violência de gênero e saúde sexual e reprodutiva: um estudo sobre homens no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Promundo/Noos, 2003. 40p. Azambuja, M. P.; Nogueira, C. 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