1 URI – UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA SANDRA DE FÁTIMA KALINOSKI AS CICATRIZES DA CENSURA: MEMÓRIA, MELANCOLIA E FRAGMENTAÇÃO NA FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64 Prof. Dr. LIZANDRO CARLOS CALEGARI Frederico Westphalen, RS, Brasil Agosto de 2011 2 SANDRA DE FÁTIMA KALINOSKI AS CICATRIZES DA CENSURA: MEMÓRIA, MELANCOLIA E FRAGMENTAÇÃO NA FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64 Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Letras na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, campus de Frederico Westphalen. Área de concentração: Literatura. Orientador: Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari Frederico Westphalen, RS, Brasil Agosto de 2011 3 UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕESPRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação de Mestrado AS CICATRIZES DA CENSURA: MEMÓRIA, MELANCOLIA E FRAGMENTAÇÃO NA FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64 Elaborada por SANDRA DE FÁTIMA KALINOSKI como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras COMISSÃO EXAMINADORA: ____________________________________________ Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari – URI (Presidente/Orientador) _____________________________________________ Profa. Dra. Márcia Ivana de Lima e Silva – UFRGS (1ª arguidora) ____________________________________________ Prof. Dr. Breno Antonio Sponchiado – URI (2º arguidor) Frederico Westphalen, 16 de agosto de 2011 4 A vida, prezado leitor, é uma sucessão de acontecimentos, monótonos, repetidos e sem imprevisto. Por isto, alguns homens de imaginação foram obrigados a inventar o romance. O homem na terra, nasce, vive e morre sem que lhe aconteça nenhuma dessas aventuras pitorescas de que os livros estão cheios. (Caminhos cruzados, Erico Verissimo) 5 Para minha mãe, por tudo que representa em minha vida. Para Sandro, por tudo que passou a representar. 6 AGRADECIMENTOS Primeiramente a Deus, por me possibilitar, através do dom da vida, a chegar até aqui e continuar sonhando com novas conquistas. A essa força invisível que me guia e que me dá coragem para lutar e vencer os obstáculos, mesmo quando eles parecem invencíveis, minha imensa gratidão; A Leonora, minha mãe, por ter me dado a vida e por ter me ensinado não a teoria dos livros, mas a prática dos valores morais e éticos, indispensáveis para a conquista de uma vida digna. Por tudo que fez por mim para que eu pudesse iniciar o longo caminho que me trouxe até aqui, meu eterno agradecimento; Ao Sandro, meu namorado, pelo grande incentivo, pela força, paciência e compreensão. Por ter vivenciado junto comigo cada etapa dessa conquista, por sorrir quando sorri, por enxugar minhas lágrimas quando elas insistiram em cair e por segurar minha mão quando me senti só. Por ter ficado ao meu lado nos momentos de angústia, pelas palavras de carinho e estímulo, pela dedicação e pelo afeto demonstrado, que me fizeram seguir em frente, meu reconhecimento e meu carinho. Sobretudo, pelas vezes que 7 acreditou muito mais em mim do que eu mesma, minha terna gratidão. Aos professores do curso de Mestrado em Letras da URI, pelos valiosos ensinamentos transmitidos; Ao Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari – de modo muito especial, por ter me apresentado a essa temática e apontado caminhos possíveis, pelo valoroso incentivo, pela orientação segura, pela inteligência, por seu exemplo de competência, pela plena confiança e compreensão diante de tantas inquietações e angústias. Sou imensamente grata por seu apoio, paciência e incansável trabalho de leitura, pela forma carinhosa com que me auxiliou a construir um texto em meio a tantas ideias truncadas e confusas. Mas, acima de tudo, agradeço pela amizade e confiança – pois isso não tem preço. Levo comigo esse grande exemplo de mestre e de amigo, mas, sobretudo, de humanidade. Por ter me auxiliado e dividido comigo uma parte de seu saber, minha gratidão, reconhecimento, carinho e amizade; À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pela bolsa concedida; 8 RESUMO Dissertação de Mestrado Curso de Mestrado em Letras Universidade Regional Integrada – Frederico Westphalen AS CICATRIZES DA CENSURA: MEMÓRIA, MELANCOLIA E FRAGMENTAÇÃO NA FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64 Autor: Sandra de Fátima Kalinoski Orientador: Lizandro Carlos Calegari Local e data da defesa: Frederico Westphalen, 16 de agosto de 2011 A presente pesquisa investiga como as práticas autoritárias do período ditatorial são representadas na Literatura Brasileira, verificando aspectos como a problemática da memória e do esquecimento, a melancolia dos protagonistas e, consequentemente, a fragmentação da narrativa. O corpus desse estudo é formado por duas narrativas surgidas em meio ao contexto histórico ditatorial: Quatro-olhos, de Renato Pompeu, publicada em 1976, e Em câmara lenta, de Renato Tapajós, lançada em 1977. A investigação se dá em torno da figura dos protagonistas das obras, principalmente no que se refere ao esforço de ambos na tentativa de narrar suas experiências em relação ao sistema opressor e a dificuldade encontrada para fazê-lo diante da problemática da memória e da perturbação psicológica. Para dar conta dos referidos elementos estudados, leva-se em conta textos da Teoria Literária, bem como busca-se respaldo em referenciais de outras áreas do saber, como as teorias dos consagrados estudiosos da Escola de Frankfurt, mais notadamente Walter Benjamin e Theodor Adorno. Pressupostos teóricos provindos da psicanálise, como os de Sigmund Freud, também são utilizados na compreensão da literatura de testemunho enquanto narrativa do trauma instaurado na memória dos sujeitos vitimados pela barbárie do período. Palavras-chave: Literatura de testemunho. Memória. Melancolia. Trauma. Fragmentação. 9 ABSTRACT Master’s Thesis Master’s Degree Program in Literature Universidade Regional Integrada – Frederico Westphalen SCARS FROM THE CENSORSHIP: MEMORY, MELANCHOLY, AND FRAGMENTATION IN THE POST-64 BRAZILIAN FICTION Author: Sandra de Fátima Kalinoski Chair: Lizandro Carlos Calegari Time and place of defense: Frederico Westphalen, 16th August, 2011 This thesis analyzes how the authoritarian practices carried out during the 1964-85 dictatorship in Brazil are represented in the literature, departing from some aspects like memory and forgetting, melancholy and fragmentation of the narratives. Renato Pompeu’s Quatro-olhos (1976) and Renato Tapajos’ Em câmara lenta (1977) constitute the corpus of the present research. The investigation centers on the protagonists of the two novels, especially with regard to the efforts of both to an attempt to narrate their experiences in relation to the system of oppression and the difficulty of doing so because of memory and psychological disturbances. Works from various areas of knowledge like literary theory and literary sociology, most notably Walter Benjamin and Theodor Adorno, ground this analysis. Theoretical issues from psychoanalysis are also used in the understanding of testimonial literature concerning the trauma established in the memory of individuals victimized by the barbarism of the period. Keywords: Testimonial literature. Memory. Melancholy. Trauma. Fragmentation. 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 11 1 A FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64: AUTORITARISMO E RESISTÊNCIA ............. 16 1.1 A produção cultural pós-64: ditadura, censura e literatura no Brasil ............... 16 1.2 Tendências da ficção brasileira pós-64: a busca pelo novo ............................ 25 1.3 As obras de Renato Pompeu e Renato Tapajós: estudos críticos acerca de Quatro-olhos e Em câmara lenta ...................................................... 36 2 A ESCRITA DA DOR: LINGUAGEM E SILÊNCIO NA NARRATIVA DOS ANOS 70 NO BRASIL ................................................................ 47 2.1 O romance no século XX ................................................................................. 47 2.2 Fronteiras da narrativa: ficção, história e testemunho ..................................... 58 2.3 As narrativas do trauma no século XX ............................................................ 68 3 MEMÓRIA, MELANCOLIA E FRAGMENTAÇÃO EM QUATRO-OLHOS E EM CÂMARA LENTA .......................................................................................... 79 3.1 Memória e esquecimento em Quatro-olhos e Em câmara lenta .................. 79 3.2 A melancolia nas obras de Pompeu e Tapajós ............................................. 101 3.3 Trauma e fragmentação em Quatro-olhos e Em câmara lenta .................. 125 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 146 REFERÊNCIAS ................................................................................................. ...... 152 ANEXOS .................................................................................................................. 158 Figura 1 – Angelus Novus, de Paul Klee .......................................................... 159 Figura 2 – Melancolia I, de Albrecht Dürer ........................................................ 160 11 INTRODUÇÃO Desvio-me do caminho. O verdadeiro caminho passa por uma corda que não está esticada a grande altura, mas muito próxima do chão. Parece estar ali para nos fazer tropeçar, e não para que se passe por cima dela. (Parábolas e fragmentos, Franz Kafka) As palavras de Franz Kafka aludem à necessidade de se desviar do caminho já conhecido e buscar olhar, através de um novo rumo, menos repisado, para aquilo que ainda permanece oculto e que anseia pelo reconhecimento. Parece que as palavras de Kafka mantêm uma estreita empatia com o interesse por histórias de um passado de sofrimento e de horror, que, ao permanecerem no desconhecimento, geram sensação de desconforto nos indivíduos. O século XX, tanto na Europa como na América Latina, foi cenário para as mais hediondas experiências de autoritarismo e de violência. Regimes políticos autoritários baniram das sociedades a liberdade e instituíram normas rígidas de comportamento reguladas pelo Estado, reprimindo, assim, qualquer manifestação adversa às normas do poder. Dentro desse contexto, destaca-se o caso do Brasil, que vivenciou, por duas décadas, o modelo governamental autoritário, decorrente do golpe militar de 1964. Sob outro olhar, convém não ignorar que a história da nação brasileira sempre esteve marcada pelo autoritarismo, dominação e violência. Inicialmente, no descobrimento, com a chegada dos portugueses e a dominação dos indígenas; depois, com os negros, que eram submetidos às mais desumanas condições de vida com a escravatura e, posteriormente, com as diversas lutas políticas por territórios e posses. Nesse cenário, o golpe militar de 1964 passa a integrar o palco dos acontecimentos brutais do país, marcando profundamente a sociedade e a cultura brasileira. Contudo, tendo em 12 vista o elevado grau de violência, o grande número de desaparecidos e de mortos, pode-se dizer que, talvez, a Ditadura Militar tenha se configurado na maior e mais truculenta experiência autoritária de toda a história da nação, possibilitando ao país pertencer ao rol das sociedades da “era das catástrofes”1. Assim, rememorar esse período histórico brasileiro significa revisitar um tempo autoritário e reconhecer as mais variadas formas de violência e tortura praticadas contra pessoas muitas vezes inocentes, bem como a catástrofe desse tempo, a tragédia, a barbárie e a repressão. O fato de se conhecer muitas dessas atrocidades cometidas para com as gerações passadas configura-se em possibilidades de ações distintas no presente, para que aquela triste história jamais torne a se repetir. Por outro lado, esquecer ou fingir esquecer esse tempo, segundo Renato Franco2, ao fazer releitura de Theodor Adorno, pode significar não tomar consciência do passado, mas, ao contrário, levá-lo ao recalque, suprimindo, negando e transformando-o em um não-acontecimento. Situação esta capaz de redimir e apagar a história nacional, culminando não em uma libertação do passado, mas em uma vivência condenada à ignorância e vitimada por tal passado. Fato é que toda essa agitação ocasionada pelos conflitos violentos refletiu nas relações entre indivíduo e sociedade, problematizando de tal modo esse vínculo, que a constituição subjetiva e psicológica também foi afetada. Diante disso, as formas de manifestação artística e cultural também sofreram bruscas transformações, uma vez que a representatividade estética estava condicionada aos acontecimentos circundantes. Uma vasta produção literária, de indiscutível qualidade, surgiu nos escombros do período ditatorial. Entretanto, muito pouco ainda se sabe a respeito dessas produções, uma vez que, vitimadas pela censura, foram silenciadas e, ainda hoje, depois de quase três décadas do fim da Ditadura Militar, muitas dessas obras ainda permanecem desconhecidas ou pouco valorizadas. Dessa forma, por configurar-se num campo relativamente ainda pouco estudado pela crítica, mas com inúmeras possibilidades de pesquisa e análise, é que se justifica a presente pesquisa acerca do romance pós-64. Além disso, outros motivos dizem respeito ao anseio de se investigar como fatores como a repressão e a violência contribuíram para o caos psicológico instaurado na mente dos sujeitos e explorar os elementos que influenciaram na fragmentação formal das obras, tão comum em 1 2 Cf. HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). 1995. p. 112. FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: A festa. 1998. p. 16. 13 muitos relatos produzidos nesse período. A esses interesses soma-se o fato de se averiguar o quão importante é para o artista vitimado pelo abuso de poder encontrar na literatura um espaço para a denúncia das barbáries de modo que o passado não volte a se repetir. Assim, foram eleitos para esse estudo dois romances que podem ser representativos daquele período violento e brutal no Brasil. São eles: Quatro-olhos, de Renato Pompeu, publicado em 1976, e Em câmara lenta, de Renato Tapajós, publicado em 1977. A investigação propõe uma reflexão acerca da representação literária do autoritarismo e da violência oriundos do período ditatorial, considerando alguns elementos como a problemática da memória e do esquecimento – diante da necessidade de dar testemunho dos narradores –, a melancolia dos protagonistas das obras, a questão do trauma e a fragmentação da narrativa. A escolha por esse corpus deuse, inicialmente, por ambos apresentarem narrativas fragmentárias e, num segundo momento, pela constatação da presença de narradores perturbados psicologicamente. Tais considerações, da mesma forma que se propõem a justificar a escolha das referidas obras, servem para situá-las em relação ao objetivo proposto. Quatro-olhos é uma narrativa de cunho memorialístico, que, através da mescla de lembranças do passado e ficção, aborda a repressão e suas estratégias violentas. Quatro-olhos – o protagonista, que, aliás, também nomeia a obra – tem o árduo exercício de recuperar, através da memória, o passado violento. Nessa tentativa, depara-se com a impossibilidade de lembrar, de maneira íntegra, os fatos transcorridos. Diante disso e marcado por um alto teor melancólico, o relato aparece descontínuo e destituído de qualquer organização lógica. Seguindo a mesma linha memorialística, Em câmara lenta faz uma reflexão crítica acerca das estratégias de guerrilha ocorridas no norte do Brasil e também denuncia o emprego brutal da violência decorrente da repressão. Ao abordar esses aspectos, o protagonista depara-se com a dificuldade de lembrar e organizar em sua mente, de maneira ordenada, os fatos sucedidos. Diante do desconhecido que o perturba e tomado pela melancolia, que o afastam da realidade, o personagem constrói um relato de interrupções, de vaivens temporais e de repetições. A fim de dar conta do objetivo proposto, a presente pesquisa foi organizada em três segmentos básicos. O primeiro aborda questões relacionadas ao contexto histórico e social pós-64, bem como os rumos tomados pela ficção brasileira nesse período em decorrência da situação política instaurada no país. Trata ainda das no- 14 vas tendências do romance como forma de resistência à censura e à repressão oriundas do regime governamental autoritário. Para esses aspectos, destaca-se a utilização dos suportes teóricos de Creuza Berg, Flávio Aguiar, Janete Gaspar Machado, Malcolm Silverman, Márcio Seligmann-Silva, Renato Franco, Silviano Santiago e Tânia Pellegrini, dentre outros, usados na elucidação das questões abordadas. O segundo capítulo trata da produção literária enquanto escrita da dor. Nesse segmento, são apresentadas considerações sobre o abandono do modelo tradicional do romance, bem como é discutida a estreita relação entre ficção, história e testemunho. Partindo desse enfoque, faz-se uma reflexão sobre as narrativas do trauma surgidas durante o século XX, enquanto testemunhos do horror e da catástrofe. Para dar suporte teórico a essa abordagem, são levados em conta os estudos de Anatol Rosenfeld, Cathy Caruth, Erich Auerbach, Hayden White, Márcio Seligmann-Silva, Roland Barthes, Sigmund Freud, Theodor W. Adorno e Walter Benjamin, dentre outros. O terceiro capítulo, por sua vez, trata da análise do corpus desta pesquisa e traça uma reflexão acerca da memória, da melancolia, do trauma e da fragmentação à luz dos teóricos supracitados. A análise radica em torno do problema de memória e de seu correlato, o esquecimento, a manifestação da melancolia nos protagonistas das obras e a problemática da fragmentação da narrativa. Quanto à questão da memória, pode-se dizer que a necessidade de os protagonistas dos romances lembrarem o passado e narrá-lo, para assim conseguirem retornar à vida cotidiana, é barrada pelo esquecimento. Diante dessa condição supostamente imposta pelas práticas violentas, os personagens principais travam uma árdua luta entre a necessidade de contar, dar testemunho da sua experiência, e a dificuldade para fazê-lo. Diante dos embates psicológicos dos protagonistas, tendo em vista a percepção de ambos em relação às perdas sofridas, de cunho subjetivo e material, vê-se o desenvolvimento do sentimento melancólico nos narradores, que, diante da impossibilidade de recuperar o que era para eles motivo de valorosa estima e que ficou perdido no passado, adoecem. Diante desses aspectos motivados pelas amarras do Estado opressor, a manifestação artística também ficou prejudicada. A escrita em fragmentos, observada tanto em Quatro-olhos quanto em Em câmara lenta, não se dá gratuitamente, mas é resultado de uma mente problemática e perturbada psicologicamente devido aos traumas ocasionados pelas experiências violentas, a exemplo da tortura. A ferida aberta deixada na memória impossibilita a assimilação dos acontecimentos traumáti- 15 cos, impedindo a simbolização do trauma, de modo que os narradores não conseguem encontrar palavras adequadas para serem utilizadas, nem mesmo concatenar de maneira lógica o seu discurso. A fragmentação acaba sendo a materialização de uma mente confusa, a prova de que a linguagem não é suficiente para encobrir o trauma sofrido. Para a abordagem das temáticas selecionadas, levaram-se em conta referenciais da Teoria da Literária, da História e da Psicanálise, tendo em vista autores como Walter Benjamin e Theodor Adorno, estudiosos consagrados da Escola de Frankfurt, e Sigmund Freud, autor dos mais importantes estudos psicanalíticos que se têm até a atualidade. Além disso, no decorrer da pesquisa, foram acrescentados outros referenciais além dos já mencionados, a fim de atender às particularidades que iam surgindo no transcorrer do estudo e possibilitar uma melhor construção da análise interpretativa. 16 1 A FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64: AUTORITARISMO E RESISTÊNCIA Como foi que viveram desde que principiou a epidemia, Saímos do internamento há três dias, Ah, são dos que foram postos de quarentena, Sim, Foi duro, Seria dizer pouco, Horrível, O senhor é escritor, tem, como disse há pouco, obrigação de conhecer as palavras, portanto sabe que os adjectivos não nos servem de nada, se uma pessoa mata outra, por exemplo, seria melhor enunciá-lo assim, simplesmente, e confiar que o horror do acto, só por si, fosse tão chocante que nos dispensasse de dizer que foi horrível, Quer dizer que temos palavras a mais, Quero dizer que temos sentimentos a menos. (Ensaio sobre a cegueira, José Saramago) 1.1 A produção cultural pós-64: ditadura, censura e literatura no Brasil A gente teve que se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente nunca se acostumou, em si, na verdade. (A terceira margem do rio, Guimarães Rosa) Abordar o tema da produção cultural brasileira, de modo especial no que se refere à literatura produzida no período que compreende a segunda metade da década de 1960 e toda a década de 1970, é uma tarefa que, antes de ser definitivamente iniciada, deve ser situada e entendida dentro de uma determinada condição histórica, social e política. Fato é que as décadas transcorridas entre os anos 60 e 80 foram marcadas por um período sombrio e triste e, quando se adentra no campo de entendimento da produção artística dessa época, é importante que ela seja identificada também dentro desse contexto truculento. 17 A partir de 1964, a sociedade brasileira experimenta um longo e tenso período de acontecimentos históricos e políticos que, articulados de maneira desordenada, conferem ao país uma estrutura caracterizada pela desordem social. O Brasil volta a vivenciar a situação política já experimentada na metade do século XX, com a implantação do Estado Novo (1937-1945) pelo governo Getúlio Vargas. Entretanto, apesar da semelhança, o período que se iniciaria em 64 superaria em muitos sentidos – principalmente no que se refere à censura, à repressão e à violência – aquele implantado no Estado Novo. Durante o período Vargas, o clima de autoritarismo pairou incessantemente no território brasileiro, incluindo em seu projeto governamental torturas, execuções e perseguições variadas contra todos aqueles que tentavam contestar o sistema, bem como contou com o controle de informações na imprensa, e a censura a obras literárias, cinematográficas e teatrais. Transcorridas quase duas décadas desse regime, o país volta a vivenciar a mesma experiência a partir de 1964, com a Ditadura Militar. O contexto político da década de 60 começa a sofrer modificações e configura-se decisivamente em 1961, quando o então presidente da República Jânio Quadros renuncia ao governo. Assume o poder o seu vice-presidente João Goulart, que, mesmo munido de grandes ideais de reformas sociais e econômicas para o país, tem seu governo marcado pelo agravamento da crise econômica, bem como por conflitos sociais e políticos, não conseguindo, com isso, nem manter a ordem no país, nem levá-lo adiante como era seu objetivo. Perante tal cenário e alegando assegurar a economia e a ordem democrática, os militares tomam o poder na noite de 1º de abril de 1964. Tal ato passou a determinar os rumos da nação nas próximas duas décadas, e seu regime governamental passou a ser conhecido como Ditadura Militar. No intuito de promover o desenvolvimento do país, acabar com as disparidades sociais existentes entre as regiões, controlar a inflação e ainda atrair investimento estrangeiro (objetivos que seriam buscados pelos governos militares até o fim da ditadura em 1984), os militares precisariam investir em ações capazes de lhes conferir plena autonomia econômica dentro do contexto capitalista da época. Para que seus projetos desenvolvimentistas fossem plausíveis de concretização, o governo militar investiu em ações capazes de lhe conferir poderes para a administração da vida política da nação. Tais ações ficaram conhecidas como Atos Institucionais (AIs), através dos quais os militares controlavam e modificavam a vida política brasileira de acordo com suas convicções e interesses. Muitos desses atos foram criados, contudo, o AI 5, de 13 de dezembro de 1968, instituído no governo Costa e Silva, foi considerado o de 18 maior relevância para todo o contexto político, histórico e social do período e, o mais importante, principalmente no que tange à produção cultural e artística do país. Com a implantação do AI 5, a ditadura consolida-se e o país adentra no período mais violento e intolerante de todo o regime, pois esse AI supera em todos os sentidos os anteriores tendo como força motriz a censura. A sociedade se depara com um sistema político em que tudo é proibido, tanto na imprensa quanto no que se refere à produção cultural. Qualquer manifestação contrária ao sistema vigente era considerada provocativa e desafiadora para com o governo, merecedora de punições severas, como perseguições, tortura, sequestro, exílio e até mesmo assassinato. Creusa Berg, ao pesquisar a implantação e a permanência da censura durante o regime militar, afirma que esta não se deu unicamente de um modo, mas de várias formas. A autora classifica a censura de duas maneiras. Uma primeira considerada de cunho burocrático, pois estava baseada em leis e decretos, sendo algumas formuladas pela Escola Superior de Guerras (ESG) e exercidas pela Divisão de Censura e Diversões Públicas (DCDP), com o único objetivo de “promover” a “Segurança Nacional”. Essa etapa da censura ainda se dividia em dois níveis: a preventiva, que se resumia na censura prévia ao que seria apresentado, e a punitiva, que desencadeou processos judiciais contra aqueles que não observavam as normas impostas pelo Estado. Um segundo tipo de censura era aquela de caráter coercitivo, a qual ganhou espaço com a promulgação do então AI 5. Essa forma era muito mais radical e violenta, e, não raras vezes se sobrepôs à censura legal. Era praticada por terroristas de extrema direita que pertenciam à ala radical do Exército e também pela polícia que estava vinculada ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e dirigida a todos os pertencentes, ou que de alguma forma estavam ligados ao meio artístico e que representavam a resistência à censura convencional3. Tais subdivisões, a que se refere a autora, são formas de visualizar a proporção, o alcance e o (não)limite da censura imposta aos meios artísticos pelo DCDP. A censura prévia era considerada o primeiro nível da repressão e, como o próprio nome indica, atuava de maneira preventiva em relação às causas, vetando e proibindo a exibição de trabalhos artísticos. O segundo nível, a censura punitiva, de ação mais repressiva, agia, de um modo geral, sobre os efeitos das causas, ou seja, sobre a divulgação ou a apresentação pública de um trabalho já vetado, ou ao desrespeito 3 BERG, Creusa. Mecanismos do silêncio: expressões artísticas e censura no regime militar (1964-1984). 2002. p. 121. 19 aos cortes dos censores. A censura punitiva estava amparada judicialmente com plenos poderes para gerar processos, impedimentos contra apresentação de trabalhos e até mesmo a prisão. Contudo, é no terceiro nível, através da censura coercitiva, que se pode visualizar o ápice da violência propriamente dita, contra artistas, intelectuais, escritores e até mesmo contra o público que prestigiava tais produções. Classificada de caráter totalmente extralegal, buscava eliminar, destruir e neutralizar todos os dirigentes, bem como os mecanismos que iam contra o sistema prevendo todo o tipo de operação, desde a tortura ao assassinato. Não obstante esse acompanhamento repressivo a que eram submetidas as produções artísticas como música, teatro, romances, entre outras, os artistas conseguiam na maioria das vezes fazer com que os cortes e as modificações sugeridas pelos censores fossem burladas de alguma forma. Creusa Berg, ao realizar pesquisa em documentos oficiais do governo acerca da atuação da censura, afirma que, apesar de muitos terem sido os trabalhos que sofreram cortes ou que tiveram sua apresentação e/ou publicação proibidas, de alguma forma, driblaram o controle dos censores, deixando as respectivas proibições somente “no papel”, mantendo e apresentando os textos originais, principalmente no caso do teatro. Tamanha era a repressão praticada nos diversos segmentos artísticos, que Caetano Veloso chegou a denominar de “linguagem de fresta” a linguagem metafórica que era usada pelos compositores musicais para driblar o controle do Estado. Essa denominação referia-se ao disfarce que era dado ao real sentido das palavras utilizadas nas composições, fazendo com que o verdadeiro sentido da mensagem que estava sendo passada fosse percebido nas “frestas” dessas palavras. Através de atitudes como essas, identifica-se a resistência às imposições que pairava entre os artistas. Contudo, essa resistência configurada através da insistência em apresentações de peças teatrais e espetáculos já embargados pela censura, bem como a divulgação de músicas que atentavam aos interesses do sistema vigente, representavam “desobediência civil”4. Isso desencadeava contra os “desobedientes” processos-crime5 e também a censura punitiva, levando à prisão, à tortura e ao exílio, sem justificativa, muitos artistas como, dentre outros, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Marília Pêra, Rodrigo Santiago, Zezé Motta. A violência praticada como fruto da censura coercitiva, bem como a eliminação – até mesmo física – de 4 Idem. Ibidem. p. 144. A autora não discute esse tipo de processo, pois só se pode ter acesso aos arquivos de quem teve essa punição com autorização do envolvido no processo. 5 20 muitos daqueles que resistiram, visavam a amedrontar e, de certa forma, exemplificar o que poderia acontecer a quem se mostrasse contrário ao sistema implantado. Essa prática de repressão violenta contava com a colaboração de civis de extrema direita, como o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), com o apoio de empresários que recebiam privilégios da polícia e com militares radicais. Dessa forma, durante toda permanência dos militares no poder, a censura foi uma estratégia que atuou como instrumento de controle da nação. Segundo Thomas Skidmore, desde 1964, ocorria uma divergência muito grande entre os militares radicais com aqueles mais moderados, no que se referia ao uso da repressão 6. Talvez essa divergência fosse o fio condutor capaz de explicar as diversas variações da censura nesse período, desde a censura prévia – amparada legalmente e submetida a processos jurídicos nos quais ambas as partes, repressão e resistência, passavam pela decisão judicial, como possibilidade de diálogo – até chegar à censura coercitiva, como resposta dada pelos militares radicais a essa flexibilidade e a esse diálogo que o governo, mesmo que de forma muito restrita, mantinha com os artistas através dos processos judiciais. Nesse âmbito, o peso que teve a vigência do AI 5 para a esfera cultural e artística do país foi um fator de extrema relevância ao enfocar o tema referente à produção literária da década de 70, determinando não só os padrões da escrita, mas também os rumos que os artistas tomariam em suas produções tais como a temática a ser abordada e como seria abordada. Acredita-se que, com a institucionalização da censura, grande parte da produção artística e cultural da época em questão ficou ou silenciada no íntimo dos artistas ou confiscada e apreendida pelos oficiais. Mesmo assim, muitos foram os críticos escritores, principalmente jornalistas, que, impulsionados pela estética literária, conseguiram ultrapassar as barreiras impostas pela censura e traçar, através de suas produções, um diagnóstico do turbulento período histórico e social em que se encontrava o país. Silviano Santiago, ao discutir acerca da repressão e da censura que assolou o campo das artes na década de 70, aborda essa situação dividindo-a em duas partes que se complementam. De um lado, trata dos estragos advindos das proibições da censura, referindo-se, num sentido geral, ao grandioso número de livros que foram proibidos de circular, às peças de teatro que foram barradas, aos filmes – nacionais e estrangeiros – que não foram exibidos, às canções que não foram tocadas e canta6 SKIDMORE, Thomas. Brasil de Getúlio a Castelo. 1976. 21 das, bem como todos os escritores, cineastas, dramaturgos, compositores, entre outros artistas, que enfrentaram problemas com a censura. Sob outra ótica, o autor trabalha sob um viés paradoxal de que, apesar da repressão do regime militar, a produção cultural brasileira não foi afetada quantitativamente7. Contraditório ou não, fato é que o autor, ao fazer tal afirmação, adentra num campo muito mais profundo do que representou a censura para a vida artística do país. Para ele, o artista, ao ser censurado, sofre bastante porque é afetado moral e economicamente, ou seja, a censura atinge brutalmente a pessoa humana do artista, mas não necessariamente a obra enquanto produção artística porque, no caso específico da obra de arte, o processo criador – semelhante a um avestruz – se alimenta praticamente de tudo: flores, pregos, cobras e espinhos. Livros, peças, canções continuaram a ser escritas. E, pelo que se sabe, artista algum mudou de partido político por causa da censura; ou deixou de pensar, imaginar, inventar, anotar, escrever, por causa da censura. Nenhum deixou de dizer o que queria, ainda que em voz baixa, para o papel, para si ou para os poucos companheiros. [...] A repressão e a censura podem, no máximo, alimentar certa preguiça latente em cada ser humano, podem apenas justificar racionalmente o ócio que impede o artista muitas vezes a fazer só amanhã e pensar hoje8. Através dessas palavras, observa-se que Santiago acredita num possível ócio, que possa surgir no artista, a partir da censura, mas não necessariamente num impedimento para a produção, uma vez que ele é capaz de encontrar vários modos e lançar mão de inúmeras estratégias para burlar a repressão. Porém, o crítico acredita veementemente que, embora a censura não seja impedimento total para a produção artística, ela pune severamente a sociedade ao impedir a circulação de tais obras: [o] grande punido, punido injustamente, pela censura artística, é a sociedade – o cidadão, este ou aquele, qualquer. [...] É o cidadão que deixa de ler livros, de ver espetáculos, de escutar canções, de ver filmes, de apreciar quadros, etc. Ele é quem recebe um atestado de minoridade intelectual. Por causa da censura, nesses períodos, a sociedade tem a sua sensibilidade esclerosada e o seu pensar-artístico embotado (e também o seu pensar-crítico e o seu pensar-científico). Nessa circunstância, o fruidor da obra de arte fica desfacelado de certos elementos que o ajudariam a compor o quadro global da sociedade em que vive, pois apenas recebe uma única voz que circuns- 7 8 SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. 1982. p. 52. Idem. Ibidem. p. 49. 22 creve toda a realidade. A voz do regime autoritário, a única permitida9. Nesse sentido, é possível inferir que, ao impedir a circulação das produções na década de 70, a censura, além de agredir moral e fisicamente a pessoa do artista, contribuiu de forma significativa na (de)formação intelectual dos indivíduos, pois agiu como barreira entre os artistas e os indivíduos, impedindo que aqueles pudessem levar as mais diversas informações e, até mesmo, “orientações” para esses últimos. Assim, o papel castrativo que teve a censura no pensamento da sociedade possibilitou não só uma espécie de atraso intelectual nos indivíduos, mas a formação de lacunas vazias no campo de entendimento sócio-político da sociedade. Em meio a esse cenário autoritário e repressivo, em que a palavra de ordem era censura a toda e a qualquer manifestação contrária ou que fosse capaz de desestabilizar a “ordem” imposta, Tânia Pellegrini também discute a atuação da censura no campo das artes brasileiro. A autora busca entender até que ponto essa barreira imposta foi determinante e influenciou diretamente nas produções literárias da década de 70, ou se tal situação foi apenas mais uma dentro de uma variedade muito maior de transformações em que se encontrava o país10. Antonio Candido, ao proferir conferência nos Estados Unidos, em 1972, também mostra um posicionamento similar ao de Pellegrini, quando declara: [o] atual regime militar no Brasil é de natureza a despertar protesto incessante dos artistas, escritores e intelectuais em geral, e seria impossível que isto não aparecesse nas obras criativas [...]. Por outro lado, este tipo de manifestação é extremamente dificultado pelo regime, que exerce um controle severo sobre os meios de comunicação. Controle total na televisão e no rádio, quase total nos jornais de maior circulação, muito grande no teatro e na canção; nos livros e nos periódicos de pouca circulação a repressão é mais branda [...]. Além disto, existe em escala nunca vista antes a repressão sobre os indivíduos. É claro que isso afeta a atividade intelectual e limita as possibilidades de expressão. Mas é difícil dizer se influi na natureza e sobretudo na qualidade das obras criativas11. Assim como Candido evidencia na última frase de seu comentário, há dúvidas em relação a até onde a censura pesa e impede a criatividade dos artistas. Nesse 9 Idem. Ibidem. p. 51. PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. 1996. 11 CANDIDO, Antonio. A literatura brasileira em 1972. Arte em Revista, 1979. p. 25. 10 23 sentido, em relação à produção literária de 70, Pellegrini discute duas opiniões contrárias entre si a respeito dessa influência. De modo ponderado, a autora averigua que, em um primeiro momento, a censura pode ter sido sim um fator decisivo para a produção literária no período da Ditadura Militar, exercendo realmente uma função castradora sobre a criação artística da época. Contudo, reforça ela, esse fator não pode ser tomado como único, tendo em vista que o país, assim como outras sociedades contemporâneas, sofriam rupturas e experimentavam a influência da indústria cultural, sendo este um fator que deve ser acolhido no momento de avaliar a produção literária pós-6412. Em relação à influência da indústria cultural, Pellegrini afirma que, mesmo esta sendo sustentada pela ideologia do poder autoritário, possuía características próprias como produto do desenvolvimento capitalista dos países desenvolvidos. Nesse meio, o padrão de avaliação configurava-se no produto, no objeto, jamais no homem, que começa então a entrar num processo de alienação, ou seja, a indústria cultural não era determinada pelo consumidor, mas estava a serviço de um público-massa homogêneo e nivelado às instituições que produzem e difundem as mensagens13. Nesse contexto nivelado mundialmente, em que cai por terra, com o desenvolvimento da indústria cultural, a oposição clássica entre cultura erudita e cultura popular, sendo que ambas se veem impregnadas de elementos da indústria cultural, a literatura, até então tida como elemento de conhecimento e de transformação do real, sofre também. Ocorre o choque entre a ideologia literária, que passa a ser inconciliável com a realidade circundante, exigindo, pois, uma produção direcionada ao grande público. Assim, o romance brasileiro na década de 70 se vê, de certa forma, ameaçado pelas transformações sociais e políticas, mas também modificado pelo desenvolvimento do capitalismo universal. O aumento massivo do mercado editorial na época, um crescente número de escritores desconhecidos, bem como a afirmação do conto como gênero narrativo de maior evidência também contribuíram para que o romance não se desenvolvesse tanto. Evidencia-se, então, no discurso de Pellegrini, que o fato de não surgirem tantos romances na década de 70 não é, em absoluto, consequência da censura imposta pelo regime militar. Isso se deu tanto pela proliferação do conto, devido à sua rapidez e imediaticidade estrutural, quanto pelo surgimento da poesia marginal, em função do uso de elementos e procedimentos considerados antiliterários. Por esse motivo, o conto e a poesia marginal eram mais bem recebidos pelo 12 13 PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. 1996. p. 9-10. BOSI, Ecléa. Cultura de massas e cultura popular. 1978. p. 49. 24 público e pela crítica, pois representavam a inovação e a experimentação de um tempo que também buscava inovação14. Entretanto, ao levar em consideração as ideias defendias por Pellegrini, convém destacar que a expansão e o incentivo da indústria cultural também foram ações desenvolvidas pelo governo como forma de censura. Em outras palavras, a intensa repressão que pairou sobre período de 1969 a 1974 não foi a única ação praticada pelo sistema de governo contra a produção cultural. Ao se analisarem minuciosamente esses outros elementos que a autora julga como deslocados da censura imposta pelo governo, a questão que fica é se a modernização, das condições materiais, da criação cultural, a melhoria das condições de expansão e consolidação da indústria cultural no Brasil, não passou de uma estratégia modernizada de censura. Diante disso, torna-se plausível o retorno ao acolhimento e ao reconhecimento, de forma significativa, no peso que teve a censura na produção cultural e, em especial, na criação literária. Ao se citarem alguns dos exemplos de incentivo cultural aos quais o governo incutia sua ideologia conservadora e autoritária, tem-se a criação de algumas universidades em meados da década de 60 que se voltaram para o cumprimento dos objetivos do regime. Nessas instituições, a criação de áreas como as Ciências Humanas tende à sistematização e à implantação dos ideais do governo. Do mesmo modo, o ensino de disciplinas como a literatura possibilita a definição dos rumos que o governo almejava para essa prática. Outra expansão também diz respeito ao que se observa na área da comunicação, com a expansão da rádio e a da televisão. Nesse meio, as imposições do governo se faziam sentir, uma vez que a programação, tanto no que se referia a notícias ou a músicas, era fiscalizada pelo regime, sofrendo cortes e manipulações, podendo ser veiculado apenas aquilo que estava de acordo com os interesses do Estado. Na realidade, o que acontece é que a Ditadura Militar lança mão de tais mecanismos de expansão e de transformação do processo material da cultura, e vê nisso a oportunidade para incutir, de modo indiscriminado, sua ideologia. Nesse sentido, é válido, portanto, considerar a censura como fator negativo principal (e talvez o único) para os problemas da produção literária pós-64. O Estado, mesmo com elementos de incentivo à produção e divulgação da cultura, sempre tentou “direcionar” e alterar, a seu modo, tais manifestações. Porém, a agitação desencadeada pela ditadura era sentida nos diversos segmentos, e estes influenciavam as diversas produções culturais que surgiam. Diante disso, o governo percebe que a estratégia não fora 14 PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. 1996. p. 16. 25 acolhida por escritores e intelectuais do meio cultural. Vendo-se então incapaz de controlar os produtos culturais, parte para a repressão autoritária e violenta, censurando de forma inigualável a produção ficcional dessa década. E, é então, através da implantação do AI 5, que o governo vê a possibilidade de transformar e direcionar os rumos da atividade cultural, objetivando, assim, não só administrar a fluidez das produções, mas de modo especial, seu conteúdo. Nesse sentido, ao se analisar a produção literária pós-64, torna-se importante não a “catalogação” quantitativa, se assim se pode dizer, mas observar, tomando emprestada a definição de Flávio Aguiar, o valor da palavra escrita no calor da luta, não no recolhimento posterior; a palavra escrita entre malho e bigorna, forjada ao mesmo tempo de um tanto de ousadia e de outro tanto de fuga, em todo caso não omissa15. Em outras palavras, deve-se levar em consideração a forma engajada socialmente com que os escritores trataram das questões relativas à forma de política repressiva implantada pelo regime militar do momento, no afã de tentar encontrar respostas para o tempo caótico que a sociedade enfrentava. Atualmente, após algumas décadas já transcorridas do período ditatorial, quando já é possível olhar para esse triste passado com um certo distanciamento, nota-se que talvez a ditadura não tenha atingido tão brutalmente a criatividade literária, assim como fez com o teatro, com o cinema e com a música. Em meio à repressão, observa-se, na produção literária, a emergência de alguns mecanismos, considerados como “desvios formais”16 que fizeram com que os autores seguissem produzindo. Tais desvios configuraram-se em tendências para as obras desse período, atribuindo características marcantes a cada tipo de romance e, dentre essas tendências, tem-se o romance jornalístico, o memorial, o de massificação, o de costumes urbanos, o intimista, o regionalista histórico, o realista político, o de sátira política absurda e o de sátira política surrealista. 1.2 Tendências da ficção brasileira pós-64: a busca pelo novo Ir contra a corrente geral é uma coisa bastante incômoda. É possível que a maior parte das misérias morais e intelectuais se cometam por isso, para não contradizer as ideias dos nossos patronos, 15 16 AGUIAR, Flávio. A palavra no purgatório: literatura e cultura nos anos 70. 1997. p. 18-19. SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. 1982. p. 52. 26 vizinhos, amigos. Um pensamento independente é um lugar solitário e ventoso. (A louca da casa, Rosa Montero) Frente à situação política instaurada no Brasil na década de 1960, é importante atentar para o contexto cultural e, de modo particular, para a produção literária que resistia não só à censura imposta, como também iniciava um processo de renovação no campo da produção ficcional. Entretanto, ao se voltar algumas décadas na história literária brasileira, observa-se que as modificações que a produção literária sofreu após a década de 60, bem como as diferentes tendências observadas, são frutos de influências formuladas ainda na década de 20, com os modernistas, e que vieram se estendendo e se adaptando com o romance de 30, nas produções de 40 e 50, até chegarem às manifestações do período em questão, o período pós-64. Segundo Janete Gaspar Machado, o modernismo de 20 deve ser considerado ainda na atualidade como o marco de onde se inicia o despertar para a busca do novo na arte e, de modo especial, na literatura17. Seguindo essa linha de pensamento, infere-se que o escritor das décadas de 60 e 70 reafirma o vínculo com um passado literário, sendo o legado modernista um dos principais argumentos para sua produção. Na visão de Machado, destaca-se como o mais importante elemento de contribuição do modernismo de 20, para a ficção pós-64, o fato de que aquele primava pela fidelidade ao presente. Assim, como no período de 20 o “romance novo” 18 buscou representar, através de formas também inovadoras, as transformações e as mudanças atuais do cenário social decorrentes das inovações tecnológicas e científicas do início século XX, os artistas do período ditatorial – também impulsionados pelas transformações – mas principalmente afetados pela censura, procuraram a renovação da estética romanesca e a representação do período histórico e social em que se encontravam. O romance de 30, por sua vez, critica a produção de 20, pelo fato de esta se fixar em aspectos basicamente formais, e passa a utilizar técnicas da tradição realista e naturalista. Para João Luiz Lafetá, tal estratégia representa o despertar desses artistas, através da consciência do subdesenvolvimento, para a denúncia social, liber17 MACHADO, Janete Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70: fragmentação social e estética. 1981. p. 26. 18 Idem. Ibidem. p. 26. 27 tando-se, assim, da preocupação com a linguagem e com o estilo, principal característica do modernismo de 2019. Entretanto, apesar desse desvencilhamento, o que, para muitos estudiosos como Janete Gaspar Machado, havia significado “um passo atrás”, para a história literária, o romance de 30 passou a ser importante devido aos seus novos estilos, principalmente pelo fato de demonstrar seu comprometimento com o social e de chamar atenção da sociedade para o subdesenvolvimento cultural presente no cenário brasileiro20. Fato é que o romance de 30, ao tratar de questões sociais da época, não só demonstrava um comprometimento com o seu tempo e com a sociedade, como também desempenhava o papel de precursor em relação a como seria abordado o pessimismo e a denúncia social no romance pós-64. Isso pode ser assim considerado pelo fato de que as vanguardas de 20 primavam não exclusivamente pela questão da estética formal da linguagem, mas também defendiam uma reforma geral no campo das artes, e, dentro dessa reforma, encontrava-se igualmente a questão temática. O que acontece é que geralmente uma característica se sobrepõe a outra, como foi o caso da estética modernista de 20 e da temática proposta pelo romance de 30. Assim, ambos os períodos encontravam-se voltados para o compromisso de figurar e representar seu tempo, mesmo que um fator prevalecesse sobre outro nesses dois momentos. Apesar do espaço ocupado pelo modernismo de 20 e pelo romance de 30 no cenário brasileiro em busca de um novo fazer literário, é na metade da década de 40, com a chamada Geração de 45, que o experimentalismo na produção literária se intensifica. Tal Geração contraria seu período antecessor e retoma o culto aos valores poéticos parnasianos, dando privilégio para a palavra, para o verso, para o ritmo e para a rima. Nessa ocasião, a preocupação era externalizar, através da obra (poemas, principalmente), o trabalho do artista, de modo a enfatizar a inclusão da estética do autor dentro de sua própria obra21. Essa Geração, ao retomar os valores parnasianos, reaviva e enriquece a proposta das vanguardas modernistas de 20, o que passou a contribuir também de forma significativa para a produção literária das próximas décadas e, em especial, para a ficção dos anos 70, em cujas obras se observa o enriquecimento da temática através da poética, ou seja, o emprego estético das palavras de modo a contribuir para o valor temático. 19 LAFETÁ, João Luiz. A volta do velho. In: ____. 1930: a crítica e o modernismo. 1974. MACHADO, Janete Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70: fragmentação social e estética. 1981. p. 31. 21 Idem. Ibidem. p. 32. 20 28 Com base nisso, os rumos dos artistas de 70, bem como as diversas tendências possíveis de serem observadas, também tiveram impulso com as produções da Geração de 45, uma vez que, nesse período, o principal objetivo era conseguir expressar e mostrar, através da obra, o trabalho que teve o artista na composição literária. O mesmo pode ser notado na produção pós-64, pois, mais do que representarem o caos social instalado pela Ditadura Militar, os artistas queriam chamar atenção para o esfacelamento da sociedade e do indivíduo em meio a essa situação. Por isso, a não linearidade do texto, a fragmentação e o uso específico de determinados vocábulos, capazes de atribuir às palavras “mil faces secretas”, como uma forma de resistência e estratégia contra a censura. As vanguardas de 50 e início de 60 também deixaram um legado significativo à ficção literária produzida no período ditatorial. Essa produção, predominantemente poética, revitalizou a linguagem do romance. Considera-se, para tanto, como principal contribuição desse período, a Poesia Concreta, a Poesia Práxis e o Poema Processo, que, juntas, chamam atenção para o despertar de um interesse mais comprometido para com a realidade literária do país, incentivando uma espécie de revisão crítica do que se estava produzindo. Segundo Affonso Romano de Sant’Anna, a palavra é um instrumento de dominação e sempre esteve, de uma ou outra forma, a serviço do poder22. Com base nisso, o objetivo das vanguardas de 50 e 60, representadas nas três iniciativas poéticas mencionadas, era desvincular a palavra do poder e despertar para um novo fazer poético, longe da repressão e do protecionismo das ideologias do poder. Diante do exposto, cabe destacar que não é objetivo deste trabalho levantar categoricamente como se deu cada período aqui elencado, desde o modernismo de 20 até as vanguardas de 60, mas fazer uma explanação dos principais elementos que podem ter influenciado as tendências do romance de 70. Outrossim, convém mencionar que as iniciativas defendidas pelo modernismo de 20, na busca de um novo fazer literário, são complementadas pelas vanguardas de 50 e 60, representadas pela busca da liberdade expressiva e ratificadas pela produção de 70, em que se vê a explosão de distintas tendências literárias à cata dessa mesma liberdade de expressão em prol dos valores individuais e sociais. 22 SANT’ANNA, Affonso Romano de. A antiga relação entre escrita e poder. In: ____. Por um novo conceito de literatura. 1977. p. 139. 29 A pretensão desse levantamento é, então, mostrar como o modernismo de 20, o romance de 30, a Geração de 45 e as produções de 50 e início de 60 contribuíram para o surgimento e a consolidação do considerado romance de 70, objeto de estudo dessa pesquisa. Nesse sentido, observa-se que as produções de 70 encontram-se marcadas pela mistura das características presentes nas manifestações literárias das décadas anteriores, demonstrando, com isso, que muito se deve às contribuições desses antecessores. Tais contribuições serviram para compor o saldo positivo da literatura de 70, cujos romances alcançaram um nível estético em que o privilégio do conteúdo de 30 ou a primazia da forma de 45 não são apresentados individualmente, mas paralelamente, tornando-se um único elemento. Desse modo, ao unir forma e conteúdo, os escritores de 70 mostram que é possível a crítica sem o abandono da criatividade, elemento pelo qual a arte tanto preza. Com base nisso, a atividade literária desenvolvida no Brasil, a partir da metade da década de 60 e durante os anos 70, incorporou em sua prática as mais diversas tendências, o que, segundo Janete Gaspar Machado, foi uma forma de responder ao impacto das alterações históricas através da criatividade23. Pode-se acrescentar a essa colocação o peso da censura que recaiu sobre os escritores, que não só fiscalizava suas produções como as confiscava, torturava os autores, obrigando-os, muitas vezes, ao exílio como única alternativa para escapar da morte. Apesar de, em 1964, logo no início, a ditadura não suprimir de todo a liberdade de produção da intelectualidade, esse fato ocorreu em 1968, com a consolidação do regime autoritário. Em meio a esse cenário modificado rigorosamente, o governo passa a desenvolver e a incentivar diversas ações de intimidação à intelectualidade, como a burocratização das atividades intelectuais, o remanejamento das instituições universitárias, o desestímulo do pensamento crítico e, ainda, a cooptação intelectual. Tão marcante é a repressão sobre a produção literária, que os escritores precisam tomar rumos capazes de burlar a censura e a repressão a fim de ser possível a expressão literária como forma de denúncia e crítica social. Para tanto, a prosa de ficção que marca os anos 70 assume algumas tendências, que, de acordo com Malcolm Silverman, podem classificar toda a produção romanesca da época em nove categorias, sendo esses romances: o jornalístico, o memorial, o de massificação, o de costumes urbanos, o intimista, o regionalista histórico, o realista político, o de sátira política ab- 23 MACHADO. Janete Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70: fragmentação social e estética. 1981. p. 33. 30 surda e o de sátira política surrealista24. Antes de se iniciar a abordagem de cada uma dessas tendências, com suas respectivas especificidades, convém frisar que nem sempre as fronteiras entre elas aparecerão demarcadas claramente, uma vez que, por tratarem praticamente da mesma temática e por estarem nas mesmas condições turbulentas de produção, uma mesma obra pode flutuar por mais de uma classificação. O romance jornalístico, também denominado romance-reportagem, origina-se da censura imposta à imprensa, considerando que esta foi uma das esferas que mais sofreu com a repressão do período ditatorial, pois qualquer coisa que pudesse ofender ou prejudicar o sistema vigente não podia ser abordado nas páginas jornalísticas e muito menos questionado pela imprensa. Tal fator impulsionou um grande número de escritores dos meios de comunicação de massa, principalmente jornalistas, a migrarem para a esfera literária, vendo na literatura uma possibilidade de manifestação. Na literatura, esses profissionais encontram ambiente favorável para o relato do cotidiano, para a denúncia social e para prática artística do bem escrever, que eles tanto idealizavam. Oriundas desse meio, as obras dialogavam com seu próprio tempo, e as produções literárias transformavam-se lentamente em documentos da época da barbárie. Tendo em vista que o objetivo desses escritores era muito mais informativo do que estético, esse romance tem as qualidades sociológicas e histórias bem mais evidenciadas, perdendo um pouco seus atributos especificamente literários. A respeito dessa produção, destacam-se como de maior representação: Zero (1975), de Ignácio de Loyola Brandão; A república dos assassinos (1976), de Aguinaldo Silva; e Por que Cláudia Lessin vai morrer (1978), de Valério Meinel, dentre outros. Quanto ao romance memorialista ou autobiográfico, na maioria das vezes, ele resultou de testemunhos e vivências dos escritores ou de jornalistas que sofreram com a tortura e com o exílio. Muitos escritores, ao comporem suas obras, migraram para esse estilo como uma possibilidade de, através da escrita, recuperar e (re)organizar, em sua memória, o passado vivido. Se, no romance jornalístico, os escritores desvinculavam-se muitas vezes da ficcionalização do romance para transformá-lo num transmissor de notícias proibidas, no romance memorialista, eles faziam o caminho inverso, pois, na ânsia de dar seus testemunhos e falar de fatos reais, atribuíam uma forte carga de ficção a tais relatos. São algumas obras significativas dessa tendência: Baú de ossos (1972), de Pedro Nava; Confissões de Ralfo (1975), de 24 SILVERMAN, Malcolm. Protesto e o novo romance brasileiro. 1995. p. 25-210. 31 Sérgio Sant’Anna; Armadilha para Lamartine (1976), de Carlos Sussekind; Quatroolhos (1976), de Renato Pompeu; Em câmara lenta (1977), de Renato Tapajós, e O que é isso companheiro? (1979), de Fernando Gabeira. O classificado romance de massificação aborda temas referentes ao desenfreado crescimento urbano que assola as cidades, transformando os indivíduos em meros produtos da sociedade enlouquecida. Para Renato Franco, esse tipo de romance estabelece uma crítica contundente à ideia de progresso, uma vez que esta sublima, na visão dominante, a permanência do horror e da barbárie na estrutura social25. É trazida à tona, nesse tipo de produção, a situação desigual em que se encontram os indivíduos perante o que a classe dominante chamava de progresso. Têm-se casos como o consumismo desenfreado praticado por aqueles que tinham melhores condições de vida, em oposição à frustração dos menos favorecidos financeiramente. Nessas situações, pode-se observar a crítica às circunstâncias que a sociedade muitas vezes tenta ocultar, mas que continua segregando a grande parcela de oprimidos. Tudo isso pode ser observado em romances como Babel que a cidade comeu (1968), de Ignácio de Loyola Brandão; O caso Morel (1973), de Ruben Fonseca; e A festa (1976), de Ivan Ângelo. O romance de costumes urbanos irá percorrer um caminho em alguns momentos semelhante ao romance de massificação no que se refere ao trato com os seres humanos. Nesse tipo de produção, o protagonista pode ser um indivíduo ou um grupo de indivíduos que relatam seus problemas existenciais enquanto seres que vivenciam dramas e preocupações decorrentes da situação instaurada com o golpe militar de 64. São considerados alguns dos representantes dessa vertente: Dona Flor e seus dois maridos (1966), de Jorge Amado; As meninas (1973), de Lygia Fagundes Telles; e Simulacros (1977), de Sérgio Sant’Anna. A quinta categoria mencionada por Malcolm Silverman trata-se do romance intimista. Essa denominação abarca aquelas obras que se enveredaram pelo sagaz caminho da representação dos dramas vividos por uma determinada classe social e dos conflitos decorrentes das imposições políticas da época aos quais o sujeito estava exposto. Dentre os principais expoentes dessa tendência, destacam-se: Sargento Getúlio (1971), de João Ubaldo Ribeiro, e Os sinos da agonia (1974), de Autran Dourado. 25 FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: A festa. 1998. p. 171. 32 Classificado de romance regionalista-histórico, as obras dessa vertente constituem-se de narrativas que abordam a reconstituição da história, dos costumes, da geografia e dos demais elementos que compõem o cenário de um determinado espaço, geralmente rural. É também característica desse tipo de narrativa o registro das sagas regionais, genealógicas e políticas de um determinado lugar. É possível observar tais particularidades em produções exemplares da época tais como: Os guaianãs (1962-1975), de Benito Barreto; O coronel e o lobisomen (1964), de José Cândido de Carvalho; Mad Maria (1980), de Márcio Souza; A república dos sonhos (1984), de Nélida Piñon; e Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro. O romance realista-político, dentre as nove tendências, é o que pode ser considerado como o que exige uma maior atenção do leitor para poder ser assim classificado. Esse romance requer certa sensibilidade e conhecimento prévio acerca do tema abordado, pois parte de um presente totalmente metaforizado para tratar de assuntos de um passado distante ou de um passado bem recente. Em função disso, para que o leitor seja capaz de captar tal informação, precisa estar atento. É muito comum nesses livros a presença da sátira em relação à situação política da época. Algumas das obras que representam essa tendência são: O senhor embaixador (1965), de Erico Verissimo; Sombras de reis barbudos (1974), de José J. Veiga; Galvez, o imperador do Acre (1976), de Márcio Souza; e A cidade dos padres (1986), de Deonísio da Silva. O romance de sátira política absurda e o romance de sátira política surrealista podem ser elencados quase que paralelamente pelo fato de ambos elegerem o modo paródico de se fazer crítica social. Nessas produções, o incomum aparece como corriqueiro e banal, o inesperado e até mesmo o sobrenatural são características recorrentes nessas produções. O humor é abundante e se sobrepõe à seriedade que o momento exige, expondo, quase sempre, os fatos reais ao ridículo e à gozação. A única diferença possível de ser observada dentre essas duas tendências é que a primeira envereda para a verossimilhança, voltando sua ficção para fatos relacionados diretamente com a ditadura imposta em 64 e, para isso, faz uso de elementos extraídos da realidade factual como nome de cidades e datas. Farda, fardão, camisola de dormir (1979), de Jorge Amado, é um bom exemplo dentro desta linha. Já o romance de sátira política surrealista preocupa-se em narrar os diversos problemas sociais, porém através da utilização de espaços e personagens totalmente imaginários e até mesmo grotescos, como é o caso de Incidente em Antares (1971), de Erico Verissimo. 33 Já Renato Franco, por sua vez, ao estudar a produção ficcional dos anos da ditadura, caracteriza-a em dois períodos significativos. O primeiro compreende os anos de 1969 a 1974 e é denominado Cultura da Derrota. Este se refere aos primeiros anos da tomada do poder pelos militares, configurando-se no momento em que diversos setores ligados à vida cultural do país sofreram repressão. O segundo momento abrange os anos de 1975 a 1980 e ficou conhecido como Época de Resistência ou também Época de Abertura, por coincidir com a política de abertura imposta pelo regime. Esse período caracterizou-se por uma recorrente luta pela resistência às imposições da censura numa tentativa desesperada contra o silenciamento26. De acordo com a classificação proposta por Renato Franco, o período da Cultura de Derrota constituiu-se, por um lado, pelo romance de impulso político e, por outro, pelo romance que, por tratar prioritariamente de aspectos diversos da vida urbana, pôde ser identificado como o romance da desilusão urbana. Para esse período, destacam-se como principais expoentes os livros: Quarup e Pessach, ambos de Antonio Callado, publicados em 1967; Engenharia do casamento (1968) e Paixão bem temperada (1970), os dois de Esdras do Nascimento; Bebel que a cidade comeu (1968), de Ignácio de Loyola Brandão; Cural dos crucificados (1971), de Rui Mourão; As meninas (1973), de Ligia Fagundes Telles27. Os romances de desilusão urbana representam os impasses e as transformações experimentadas pela classe média urbana, decorrentes das dificuldades de adequação em relação às novas exigências de atuação e de comportamento requeridas pela rápida modernização que abalava e gerava insegurança à sociedade. Já os romances de impulso político, que foram plausíveis de veiculação somente no início do período ditatorial, são os que caracterizam o romance da Cultura da Derrota. Essas obras representam a angústia e a desilusão dos escritores em relação ao que escrever e a como escrever uma vez que eles se encontravam em plena vigência do AI 5. A produção ficcional desse período buscava privilegiar a tarefa literária de constituir a memória por meio da recomposição do passado enquanto ruína, que, relembrada no presente, atualiza esse passado, fazendo ecoar seu grito no aqui e agora: modo, portanto, de a literatura opor-se tanto ao esquecimento – sempre socialmente provocado – quando à “história oficial”28. 26 FRANCO, Renato. Ficção e política no Brasil: os anos 70. 1992. p. 8-13. FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: A festa. 1998. p. 28. 28 FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 358. 27 34 Com o início do governo de Ernesto Geisel, em 1975, os rumos da estratégia política do Estado sofrem algumas alterações, pois, com o objetivo de solidificar ainda mais o regime instaurado, o governo decreta o fim do estado de exceção (estratégia do governo anterior) e desenvolve a “política de abertura”. Tal estratégia, na verdade, significou a manutenção da censura prévia e de uma disposição repressiva ainda mais contundente em relação aos primeiros tempos do regime. Segundo Renato Franco, essa prática adotada por Geisel nada mais era que a face moderna de sua organização repressiva e um meio privilegiado para prolongar ainda mais seu caráter ditatorial29. Nesse período, surge um considerável número de obras, cuja maior parte caracteriza-se pelo memorialismo, justamente por serem produzidas por militantes políticos que sofreram a tortura e/ou exílio e que, ao retornarem, tentaram recuperar suas memórias e reorganizar suas vidas através da escrita. É nessa segunda fase que a prosa de ficção sofre uma considerável expansão, cuja variedade de obras rompe com a tradição literária e percorre novos caminhos e procedimentos literários. Franco confere, então, àquelas produções mais comprometidas com a veiculação e a utilização de elementos de cunho político a denominação de Literatura de Resistência. A Literatura de Resistência, aliás, adotou um estilo de linguagem bastante singular, pois incorporou, em sua constituição, signos, elementos do presente como cartazes, manchetes de jornais e procedimentos técnicos originários de outros meios de expressão, como da rádio, da televisão e do cinema. Assim, esse romance nascia da montagem dos artifícios de que dispunham os escritores, da fragmentação e da multiplicação dos distintos pontos de vista narrativos da história política da época. Dentre as muitas obras desse período, o autor destaca: Confissões de Ralfo (1975), de Sérgio Sant’Anna; Quatro-olhos (1976), de Renato Pompeu; Em câmara lenta (1977), de Renato Tapajós; e Zero (1979), de Ignácio de Loyola Brandão. Obras como essas buscaram não só dar respostas às atrocidades do período ditatorial como também instigar a produção de uma consciência literária original em relação à condição e ao alcance do romance enquanto manifestação cultural em meio a uma sociedade autoritária. Ao tratar de assuntos como a tortura, a perseguição política, a repressão violenta, as prisões, os sequestros, o funcionamento do sistema repressivo do Estado, a violência cotidiana a que estavam vulneráveis todas as pessoas, o sofrimento das camadas populares, a loucura a que chegavam os militantes 29 FRANCO, Renato. Ficção e política no Brasil: os anos 70. 1992. p. 11. 35 presos, tais livros dão o testemunho das situações de barbárie praticadas pelo Estado. A maioria desses escritores enveredou pelo caminho de lembrar os horrores e narrá-los, a fim de não esquecer seu sofrimento e também como forma de acusar o inimigo pela violência perpetrada, na tentativa de impedi-lo a continuar adotando tais práticas. Essa produção ficcional, composta por obras de ex-militantes revolucionários, que, após serem presos e torturados, resolvem relatar suas experiências, constitui-se em literatura de testemunho, o que Franco, assim como Seligmann-Silva30, entre outros autores, chegam a denominar de Literatura do Trauma. Isso porque tais livros fazem muito mais do que narrar as experiências vividas pelos escritores; eles representam, através da escrita, o trauma sofrido por seus narradores-personagens31. Segundo Márcio Seligmann-Silva, o trauma é um acontecimento que não pode ser assimilado nem enquanto ocorre, nem mesmo em tempos posteriores, a não ser de modo pouco satisfatório32. Para o autor, o trauma é resultante de uma incapacidade do indivíduo de recepção de um evento que vai além dos limites da percepção humana e que se torna algo sem-forma, atemporal, sempre retornando à consciência da vítima. Em relação à representação do trauma na literatura, o estudioso desenvolve, em seu estudo A história como trauma, questões relativas à temática do Holocausto e sua relação direta com a representação estética33. Nessa linha, afirma que a experiência humana moderna está imersa num acúmulo de barbáries e catástrofes e que o artista ou o escritor, no momento de representarem tais experiências, debatemse entre a necessidade de escrever para perpetuar tal evento e a consciência da impossibilidade de cumprir tal tarefa justamente pela falta de um aparato conceitual capaz de levá-lo à assimilação de tal evento. O autor ainda enfatiza que a dificuldade de recepção de um evento ocorrido bem como a incapacidade de sua assimilação concorrem, numa perspectiva psicanalítica, para o problema do trauma, é definido por ele como “uma ferida na memória”34, a qual permanece sempre presente na mente, passando a afetar diretamente a linguagem do indivíduo e, consequentemente, sua escrita. Theodor W. Adorno, em Teoria estética, ao abordar questões relativas à arte, à sociedade e à estética, afirma existirem vínculos entre as barbáries das quais a so30 SELIGMANN-SILVA, Márcio. A literatura do trauma. Cult, 1999. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 361. 32 SELIGMANN-SILVA, Márcio. A literatura do trauma. Cult, 1999. p. 40-47. 33 SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. Pulsional, Revista de Psicanálise, dez.jan., 1998/99. 34 Idem. Ibidem. p. 46. 31 36 ciedade foi vítima e as produções artísticas. Para o autor, os dilemas do indivíduo, que não são plausíveis de resolução ou de assimilação na realidade, irão retornar às manifestações artísticas não somente como fatores temáticos, mas configurados em problemas de forma35. A proposta teórica desenvolvida por Adorno, ao abordar a desestruturação estética do romance, aponta para tal característica como consequência da situação social a que o artista estaria submetido no momento da produção. Nessa perspectiva, a dificuldade de assimilação da barbárie unida à necessidade da escrita acaba por influenciar diretamente na ordem estética da produção. Assim, algumas obras literárias, ao representarem ou apresentarem esse indivíduo problemático, condicionado historicamente, o fazem através da fragmentação, característica recorrente em muitos dos romances da década de 70. Dentre eles, destacam-se Quatro-olhos, de Renato Pompeu, e Em câmara lenta, de Renato Tapajós, romances que, por suas propriedades testemunhais, remetem à constante presença da problemática da escrita de seus narradores-personagens enquanto vítimas da barbárie e do trauma sofrido, decorrentes da Ditadura Militar. 1.3 As obras de Renato Pompeu e Renato Tapajós: estudos críticos acerca de Quatro-olhos e Em câmara lenta [I]nsatisfeito com a minha história pessoal até então e também insatisfeito com o meu provável e mediano futuro, resolvi transformar-me em outro homem, tornar-me personagem. (Confissões de Ralfo, Sérgio Sant’Anna) A literatura produzida nos anos truculentos da Ditadura Militar, apesar de ainda pouco estudada e divulgada, contribui significativamente para a construção de uma versão da história do país a qual a ideologia dominante insiste em apagar ou mascarar. Os romances Quatro-olhos e Em câmara lenta representam um tipo de fazer literário que tematiza não apenas os vários aspectos originários da vida política da década ou da modernização econômica conservadora e autoritária dos anos 70, mas, sobretudo, expressam-se através de procedimentos literários pouco usuais para 35 ADORNO, Theodor W. Teoria estética. 2008. p. 18. 37 a época, como é o caso da narrativa altamente fragmentada, da presença de múltiplos pontos de vista narrativos e, ainda, da utilização da montagem. Esses livros são escritos não simplesmente para veicular certos tipos de informações, mas para tentar transmitir experiências. Funcionam, também, como contraponto a versões oficiais legitimadas em benefício próprio dos poderes constituídos ou usurpados. Naturalmente, além de exercerem um papel de contribuição pública, realizam o processo particular de narração de episódios traumáticos. Esse tipo de ficção, que integra a linha do chamado Romance de Resistên36 cia , oferece uma possível resposta ao caos social instaurado bem como promove uma luta contra o esquecimento, procurando recuperar o material histórico recalcado pelo brutal sistema repressivo da ditadura. Dessa forma, a literatura, enquanto produção cultural, cumpre com seu papel perante a sociedade, qual seja, despertar a consciência crítica frente às mazelas sociais e históricas. Apesar da insistência de alguns críticos de que a literatura produzida nos anos iniciais da ditadura permaneceu com suas “gavetas vazias”37, a própria censura suscitou nos artistas o desejo de escrever, externalizar, de algum modo, através da arte, a situação social e histórica vivenciada naquele momento. Assim como a literatura, o cinema também contribuiu significativamente para a representação da situação ditatorial em que se encontrava o país. Nessa perspectiva, o filme Batismo de sangue (2006), de Helvécio Ratton, ilustra a perseguição, a prisão e as brutalidades a que eram submetidos jovens militantes nas secretas salas de tortura do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Com fortes cenas de violência, a obra trata da perseguição dos militares a todos aqueles que se mostrassem contrários ao sistema ou que tentassem qualquer manifestação capaz de desestabelecer a ordem imposta pelo Estado. Perpassado por um clima tenso de perseguições, ameaças, violência e morte, o filme chama atenção para a dificuldade de um personagem, Frei Tito, libertar-se das lembranças dos momentos terríveis por que passou nas mãos dos torturadores. A sensação de perseguição e de intimidação é uma constante no dia-a-dia desse personagem que somente vê no suicídio uma possível libertação desse trauma. A opção por mencionar Batismo de sangue no início desta discussão não é gratuita: ocorre em função da sua grande proximidade com o modo como o trauma vivido é representado pelo 36 Cf. FRANCO, Renato Bueno. Ficção e política no Brasil: os anos 70. 1992. Expressão usada para se referir aos primeiros anos de Ditadura Militar, quando se acreditava que não havia surgido nenhum tipo de produção artística capaz de representar essa época. Cf. PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. 1996. 37 38 narrador de Quatro-olhos e, como isso desenvolve nele outros problemas de ordem psicológica. Cabe dizer, no entanto, que Quatro-olhos apresenta diversas possibilidades de leitura e interpretação, não ficando condicionada apenas à questão traumática que envolve o narrador. Dentre algumas possibilidades investigativas do romance, têmse: a destruição do sujeito por parte do sistema autoritário, a luta do protagonista contra o esquecimento ocasionado pelo trauma da tortura, a loucura como uma possibilidade de lucidez, a melancolia que assola e isola o personagem do mundo bem como fatores de ordem estética como a construção literária (des)organizada pela fragmentação. Quatro-olhos foi escrito entre os anos de 1968, inicialmente quando Pompeu escreveu à mão todo o primeiro capítulo, e, mais tarde, em 1975, quanto ele retoma o livro após um tratamento psiquiátrico de um ano e meio. Através de sua divisão tripartida, composta de três partes, sendo a primeira Dentro (24 capítulos), narrada em primeira pessoa, e as duas últimas, Fora (4 capítulos) e De volta (capítulo único), narradas em terceira pessoa, Quatro-olhos avança pelas sinuosas sendas do regime autoritário, abordando de forma veemente o alto grau de dificuldade de narrar e organizar o pensamento, tendo em vista a problemática do esquecimento perante o apagamento da memória decorrente da violência das torturas praticadas durante o regime militar. Publicado em 1976, um ano depois da divulgação da Política Nacional de Cultura, iniciativa da Política de Abertura do governo Ernesto Geisel, a narrativa trata da tentativa do personagem-narrador em reescrever um livro que lhe fora tomado pela polícia. Embora não tenha atingido um numeroso público leitor na época, essa obra, devido à sua originalidade, ocupa um lugar de destaque no rol das produções literárias e é considerada pela crítica como um dos romances mais instigantes da década de 70. Seu prestígio se dá por conseguir reunir em sua estrutura não só elementos temáticos capazes de externalizar a realidade social e histórica do período, mas também elementos significativos de ordem estética capazes de levar o leitor ao conhecimento e à compreensão da realidade psicológica a que ficaram condicionadas as vítimas da violência cometida pela ditadura, desde a censura até o ponto mais extremo do autoritarismo, a tortura física e mental. A fábula dessa obra é a seguinte: o protagonista Quatro-olhos é um escritor que tem seu apartamento invadido pela polícia que procurava prender sua mulher, 39 uma professora universitária e militante revolucionária que consegue fugir. Entretanto, nessa invasão, a polícia vasculha a residência e apreende um livro escrito disciplinadamente por ele, dos seus 16 aos 29 anos “durante todos os dias, exceto numa segunda-feira em que fora acometido de forte dor-de-cabeça”38. Em função disso, é preso e, de acordo com certos indícios dados pela narrativa, é torturado. O texto confiscado e a mulher desaparecida eram as únicas ligações do protagonista com a realidade e, com a perda deles, que eram as únicas fontes de prazer e refúgio, em meio ao desconforto social do cotidiano, o protagonista torna-se transtornado e completamente alheio à realidade, chegando a ser internado numa clínica de saúde mental. Ao se reabilitar e voltar à vida social, o personagem entende que precisa reaver o livro perdido e, após inúmeras buscas sem sucesso, conclui que precisa reescrevê-lo. Ao retomar a escrita, na tentativa de reconstruir seu trabalho original, chega à conclusão de que tal atividade configura-se numa tarefa impossível, pois, o que lembra de sua obra original, são apenas fragmentos isolados e, com isso, conclui que jamais poderá reconstituí-lo integralmente devido à perda de memória sofrida. A única narrativa que resulta do seu esforço é a narrativa fragmentada, provinda de suas vagas e tumultuadas lembranças. Para Malcolm Silverman, Quatro-olhos pertence à condição de romance memorialista39 e, segundo os pressupostos teóricos desenvolvidos por Seligmann-Silva, ele integra o grupo das obras que compõem a Literatura do Trauma40. Essa classificação se justifica devido à manifestação de indícios no texto que demonstram a destruição do sujeito dentro do sistema autoritário vigente e também pelo fato de o livro apresentar uma construção literária calcada basicamente na fragmentação e na luta contra o esquecimento. Para Renato Franco, Quatro-olhos é um dos melhores representantes do que se considerou como literatura engajada nos anos 70, uma literatura como atividade de resistência e crítica. Para o estudioso, esse livro, na verdade, narra um nãoacontecimento, pois o narrador, mesmo conhecendo todos os obstáculos que o impedem de escrever, em virtude de uma quase impossibilidade, decide escrever, “mesmo que para nada”41. Em síntese, Franco avalia Quatro-olhos como uma obra elaborada e bastante singular por articular várias narrativas simultâneas, fragmenta38 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 15. SILVERMAN, Malcolm. Protesto e o novo romance brasileiro. 1995. 40 SELIGMANN-SILVA, Márcio. A literatura do trauma. Cult, 1999. p. 40-47. 41 FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: A festa. 1998. p. 48. 39 40 das e pouco vinculadas a um eixo cronológico. Devido à sua linguagem antirrealista, o crítico classifica esse romance como resultado de uma experiência traumática socialmente imposta ao narrador-protagonista42. Isso conduz à ideia de que o pensamento e a visão histórica e social da época são apresentados de forma estilhaçada, através de trechos fraseológicos desconexos, o que demonstra um fenômeno vinculado ao caráter alegórico da obra a serviço da condição melancólica do sujeito. Dito em outros termos, a composição fragmentada desse livro não é aleatória. Ela procura estabelecer relações com a não-superação do trauma da tortura vivido pelo narrador, bem como com a representação do sujeito melancólico imerso nas adversas situações sociais impostas. Além disso, não deixa de externalizar, através dos fragmentos, a tentativa desesperada de um indivíduo que, muito mais do que tentar reconstruir seu trabalho, busca reconstruir seu passado através da memória. Para Franco, a narrativa dilacerada apresentada em Quatro-olhos não é gratuita, mas constitui-se na mímese da estrutura repressiva da atual vida social43. Ainda de acordo com o crítico, “o alvo secreto do narrador não é mais recuperar o material esquecido, o saber e a experiência nele eventualmente contidos, mas o de denunciar que algo de fundamental foi esquecido”44. Janete Gaspar Machado vê Quatro-olhos como um romance que tematiza a loucura como uma forma de sensibilidade apontada para a problemática da composição literária em sua dificuldade de escrever sobre a realidade, sem deixar de abordar as formas de expressão anuladoras do homem45. Para a autora, a prática da construção do livro é uma estratégia que o narrador encontrou para se manter vivo dentro do contexto social opressor como complementa: sua [de Quatro-olhos] fuga para a escrita e para a Literatura vai resultar numa atitude de transgressão da ordem vigente, transgressão aos padrões habituais de comportamento, ao mesmo tempo que se expõe como possibilidade de libertação [...]. A transgressão, contudo não se limita à subversão de padrões de comportamento. O romance, como um todo, efetua, a despeito da loucura, e através dela, a crítica lúcida ao contexto cultural, aproximando-se do discurso histórico, quando tematiza forças ideológicas que agem contra a individualidade e contra a comunidade. São essas forças opressoras que 42 FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 365. 43 FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: A festa. 1998. p. 112. 44 FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 371. 45 MACHADO. Janete Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70: fragmentação social e estética. 1981. p. 111. 41 empurram o personagem para o refúgio da escrita, decidem sua perda de racionalidade46. Ainda na visão de Machado, é no refúgio da escrita que se observa o conflito existente entre o real e o irreal, entre o conteúdo do romance perdido e o do romance reescrito, o que acaba gerando a fragmentação estrutural do relato, uma vez que agrega a mistura de rememorações do texto perdido à realidade presente. Fato é que a ordenação ou a fusão de tais perspectivas distintas gera várias narrativas – uma em função da outra; uma, muitas vezes, contrastando com a outra –, ao invés de um único relato. Em suma, a autora aponta Quatro-olhos como um romance que, ao combinar rebeldia e denúncia, tematiza a angústia de um indivíduo e sua luta para a libertação das condições a que foi submetido, vendo na escrita e, particularmente, na literatura, o único refúgio plausível para externalizar suas angústias e única possibilidade para reconstruir e retomar sua vida47. Quanto à temática de Quatro-olhos, a analogia se dá com muitos romances do período. Entretanto, observa-se a estreita relação que ele estabelece com Em câmara lenta, de Renato Tapajós, uma vez que este texto também compõe o quadro de obras classificadas como Literatura do Trauma. Uma versão, não do livro, mas do drama relatado nesse texto, também teve espaço no cinema. Araguaya: a conspiração do silêncio (2004), do cineasta Ronaldo Duque, delineia o pouco preparo e o fracasso de uma organização de guerrilheiros que pretendiam vencer as imposições da ditadura através de uma luta que se iniciaria no campo – em particular, na selva amazônica – e avançaria até os grandes centros urbanos, onde a repressão se fazia sentir com maior brutalidade. Contudo, a grande maioria desses idealizadores são capturados, torturados e mortos, fazendo com que se sintam desolados e melancólicos. Em câmara lenta, de Renato Tapajós, foi publicado em 1977 pela AlfaÔmega, uma editora de oposição ao regime militar. Assim que foi divulgado em todo o país, o livro despertou a fúria de diversos setores conservadores, o que ocasionou a prisão de Renato Tapajós em São Paulo. A referida prisão foi justificada pela acusação de que a obra se mostrava como um instrumento de guerra revolucionária. Inicialmente, a circulação do romance não foi proibida e não teve, do ponto de vista legal, nenhum impedimento à sua circulação; entretanto, após alguns dias da prisão de 46 47 Idem. Ibidem. p. 112-113. Idem. Ibidem. p. 119. 42 Tapajós, o texto foi censurado e teve sua venda proibida. Escrito parcialmente na prisão do Carandiru, em 1973, quando Tapajós esteve preso, esse texto foi a primeira obra nacional produzida por um escritor que atuou na esquerda armada. Em função disso, é uma obra que reflete criticamente acerca das estratégias da guerrilha e denuncia o brutal emprego da tortura por parte da repressão. Essa obra inclina-se pela via estética para desenvolver a narração do trauma fundamental sofrido pelo narrador-personagem. O trauma, no caso, resulta da prisão e da bárbara tortura sofrida pela companheira do narrador-personagem – que, assim como ele, era também militante da mesma organização revolucionária –, seguida de sua execução cruel em estabelecimento militar. Dessa forma, o núcleo do trauma que perpassa essa obra, a saber, a execução, sob cruel tortura, da sua companheira, nomeada na obra como Ela, traz à narrativa a frequente repetição desse evento traumático na obra, o qual se dá como se fosse um flashback cinematográfico exibido em câmara lenta. A narração, portanto, configura-se em duas tentativas: por um lado, de tentar esclarecer tal tragédia e, por outro, de narrar sua própria prisão e o simultâneo desmoronamento do projeto político revolucionário acalentado pela organização em que militou. A trama é difícil e sinuosa, e as ações relatadas entrecruzam-se em fragmentos e a narrativa remete a um quebra-cabeça, que, aos poucos, por meio do acréscimo de detalhes – na medida em que a narração avança – adquire a configuração do todo. Composta fragmentariamente, essa obra, assim como muitas outras produzidas sob a atmosfera repressiva e violenta dos anos 70, apresenta várias narrativas paralelas através das quais o narrador reflete sobre o sentido da luta, os impasses enfrentados pelos militantes frente à brutalidade da repressão e dos tropeços do movimento guerrilheiro. Na medida em que o relato segue em frente, é possível observar a descrição feita pelo narrador a fim de demonstrar a brutalidade cotidiana do Estado militar através de sua mais usual prática terrorista: a tortura, indiscriminadamente praticada na obscuridade dos porões. Tendo em vista o alto teor denunciativo desse livro, muitos foram os posicionamentos críticos ocorridos ainda em 1977, logo após sua publicação, estendendo-se até os dias atuais. Talvez uma das primeiras manifestações sobre Em câmara lenta que merece ser abordada nesse trabalho refere-se àquela formulada por Antonio Candido na oportunidade em que elaborou um parecer acerca da obra, o qual foi parte integrante da defesa de Renato Tapajós quando esteve preso. Segundo as palavras do crítico: 43 [t]endo sido indicado como Perito no Processo movido conta o escritor Renato Tapajós, por causa da publicação de seu romance Em câmara lenta, penso que os pontos importantes, no caso, são os seguintes: 1. este livro é subversivo? 2. a sua leitura induz a uma atitude subversiva, ou à prática de atos subversivos? Antecipo que a resposta é – “Não”, – pelos motivos abaixo discriminados48. Após essas palavras, Candido prossegue sua defesa explicitando os argumentos capazes de mostrar aos censores o equívoco que estavam cometendo ao considerar o livro subversivo. Ele alega que se trata de um romance e, por isso, tem seu discurso marcado pela função poética cujo único objetivo está em “realçar as qualidades estéticas da palavra”49, não sendo possível, portanto, tomá-lo como informativo ou como documento. Ao se referir ao segundo questionamento apontado, posicionase argumentando que a obra não é capaz de induzir a práticas subversivas, pois o máximo que pode acontecer, é despertar no leitor o interesse pelos dramas pessoais, pela sucessão de atos, pelo suspense das cenas, pelas imagens poéticas ou, ainda, pelo mistério que paira nela e que se desvenda lentamente e, diante disso, conclui sua defesa: “não vejo, em momento algum, convite à prática, induzimento ou sequer sugestão por meio do embelezamento ou realce do que é escrito”50. Outra contribuição importante a respeito dessa obra também é dada por Sérgio Buarque de Holanda, quando escreve ao advogado de Renato Tapajós, Lins e Silva. Sérgio Buarque comenta no documento que, apesar de não ter concluído a leitura do livro de Tapajós, mas que, pelo muito que dele já percorreu, não sente dúvidas em afirmar que, a despeito da moldura ficcional que o autor lhe atribuiu, trata-se de um impressionante depoimento sobre alguns aspectos da era da violência em que a sociedade se encontrava. Acrescenta, ainda, tratar-se de um romance no qual os historiadores futuros encontrarão um indispensável documentário sobre o Brasil daquela época e que, por isso mesmo, em sua opinião, não vê nesse texto nada que se pareça com o incitamento à guerrilha51. Por meio da composição de Em câmara lenta, Tapajós demonstra que sua escrita não se restringira apenas à veiculação e à expurgação de suas conflituosas 48 CANDIDO, Antonio. Parecer. In: MAUÉS, Eloísa Aragão. Defesa notável. Teoria e Debate, 2007. p. 36. 49 Idem. Ibidem. p. 36. 50 Idem. Ibidem. p. 38. 51 MAUÉS, Eloísa Aragão. Em câmara lenta, de Renato Tapajós: a história do livro, experiência histórica da repressão e narrativa literária. 2008. p. 197. 44 pulsões emocionais. Muito além disso, o autor busca alcançar a catarse através de uma construção que objetiva mostrar as constantes tensões ocorridas na militância, segundo a observação que faz Tânia Pellegrini ao discorrer sobre o assunto: um dos personagens mais importantes da narrativa em questão é mesmo o próprio autor que, através de seu relato, sai em busca de uma catarse ao mesmo tempo particular e coletiva, junto ao público. Todavia, a procura de purgação, de descarrego, não minimiza por si essa literatura; explica-a, apenas, assinalando mais um aspecto, parte integrante e indispensável do contexto que a gerou52. Já Renato Franco não vê essa obra como uma produção ficcional cujo principal valor seja de ordem autobiográfica, capaz de encerrar seu interesse no relato histórico de caráter político53. Ao contrário, aposta em sua estrutura temática e estética com o intuito de valorizar um tipo de narrativa cuja preocupação está na originalidade com que conduz, ao longo do relato, a reflexão acerca dos dilemas da guerrilha e a apresentação dos mais variados e minuciosos detalhes dos combates armados. Quanto à estrutura fragmentada do texto, o crítico o avalia como resultado da dificuldade de o narrador relatar a história inteira e reconstruir completamente a memória de um passado histórico também fragmentado e desprovido de qualquer nexo lógico. Assim, o ato de narrar é visto como um intrigante jogo de armar que – pouco a pouco, através do lento acréscimo de mínimos detalhes, por meio de procedimentos técnicos originários do cinema, como o flashback e a câmara-lenta – vai ganhando uma configuração mais nítida54. Janete Gaspar Machado, por sua vez, ao estudar a obra em apreciação, considera-a como um veículo de informação, explicitando, é claro, não se tratar de um romance composto pela mesma linguagem utilizada no jornal, mas por aproveitar a função do jornal, qual seja, divulgar e tornar conhecidas as informações, o que, para a autora, foi impedido aos veículos de informação, a fim de preservar os interesses da ideologia do poder55. Entretanto, a crítica reconhece na obra uma linguagem jorna- 52 PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. 1996. p. 29. FRANCO, Renato. Ficção e política no Brasil: os anos 70. 1992. p. 48. 54 Idem. Ibidem. p. 112. 55 MACHADO. Janete Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70: fragmentação social e estética. 1981. p. 76. 53 45 lística, mas enriquecida por valores de significação, tratados com muito mais profundidade em comparação a uma reportagem jornalística56. Ao discorrer a respeito da ordem estética composicional de Em câmara lenta, a autora chama a atenção para o fato de a fragmentação que compõe a obra ser o resultado e a representação da impossibilidade de o narrador lembrar seu passado e retomar sua vida, dificultados pelas imposições da censura: [s]ua forma narrativa objetiva recuperar a totalidade de um fato guardado na memória, através da recordação. A única possibilidade de coordenação dos movimentos da narrativa é a oferecida pelo narrador-personagem, que guarda na memória a sequência dos fatos, e os vai apresentando numa ordem que obedece a uma espécie de livre associação de ideias, a qual parece ser ditada por uma impossibilidade ideológica – força da censura – de apreender a totalidade em sua sequência causal lógica. Isto não quer dizer, simplesmente, que a censura é a única responsável pelos desvios formais operados na narrativa. Quer dizer (e também) que as forças repressoras, agindo continuamente, criam um bloqueio na própria memória do narrador-personagem, dificultando o relato [...]. Isto explica porque os trechos que compõem a narrativa parecem estáticos [...]. [E]sta fragmentação do texto é que leva o leitor a refletir, por sua vez, sobre as razões dos cortes e enxertos do curso lógico do texto, sobre a própria linguagem do texto e dos significados que ela produz57. O romance exige uma reflexão acerca da linguagem reproduzida no texto da mesma forma que atenta para uma tomada de consciência sobre um passado próximo. Por meio de sua estrutura calcada em fragmentos, ao representar seu próprio dilaceramento formal, enquanto texto, representa também o dilaceramento da sociedade, conclui Machado. O próprio Renato Tapajós, quando fala de sua obra, comenta ser esta “uma reflexão emocionada, porque tenta captar a tensão, o clima, as esperanças imensas, o ódio, e o desespero que marcaram uma tentativa política desesperada e extrema em nosso país: um romance a respeito da ingênua generosidade daqueles que jogaram tudo, inclusive a vida, na tentativa de mudar o mundo”58. Através das palavras de Tapajós, é possível a reflexão acerca do que em específico e de modo mais urgente, tenha instigado escritores como ele e Pompeu, entre tantos outros, a escreverem a respeito de suas experiências dentro do contexto político ditatorial da época. Nesse sentido, o desejo de retorno a esse passado, mui56 Idem. Ibidem. p. 77. Idem. Ibidem. p. 77-78. 58 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. 57 46 tas vezes, pode ser suscitado pelo simples fato de se lembrar de algum ou de vários episódios e os relatar. Entretanto, nas obras que constituem o corpus deste trabalho, nota-se claramente que o objetivo não é a recordação prazerosa e descompromissada, mas a reflexão crítica de um momento histórico traumático. De certo modo, as rememorações de Pompeu e Tapajós, ao relatarem fatos encravados em um determinado período político, especialmente um período de autoritarismo, buscam, através do registro da vítima e do oprimido, fornecer subsídios e preencher as lacunas deixadas pela ideologia dominante na compreensão da história da nação brasileira. 47 2 A ESCRITA DA DOR: LINGUAGEM E SILÊNCIO NA NARRATIVA DOS ANOS 70 NO BRASIL A necessidade de contar “aos outros”, de tornar “os outros” participantes alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades elementares. O livro foi escrito para satisfazer essa necessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de liberação interior. Daí, seu caráter fragmentário: seus capítulos foram escritos não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência. O trabalho de ligação e fusão foi planejado posteriormente. Acho desnecessário acrescentar que nenhum dos episódios foi fruto de imaginação. (É isto um homem? Primo Levi) 2.1 O romance no século XX Chega um momento em que o narrador precisa ajustar melhor suas linhas, tencionar melhor o seu arco, tirar alguns efeitos técnicos. Todos esperam isso dele, sobretudo na hora da emoção. Mas o narrador já aprendeu, com o tempo, que um livro, um longo relato, não é apenas uma sucessão de histórias que se contam num punhado de páginas brancas. Um livro não se controla. (O que é isso companheiro? Fernando Gabeira) Em suas reflexões teóricas, Anatol Rosenfeld, Theodor W. Adorno e Walter Benjamin, dentre outros, discutem mudanças significativas no que diz respeito às formas de representação estética, em particular, aquelas observadas no romance. Para esses críticos, o que deve ser observado, para a compreensão de tal premissa, é o fato de que a obra literária estará sempre, de uma forma ou de outra, vinculada a fatos e a ocorrências da realidade social e histórica de uma determinada época e cultura. Em outros termos, o texto literário, enquanto fenômeno cultural, jamais pode vir 48 a existir por si só, mas como produto originário e representativo de uma determinada realidade. Ao traçar suas considerações acerca do surgimento do romance moderno, Rosenfeld discute algumas hipóteses instigantes a esse respeito. Num primeiro momento, o crítico se apoia na tese de que, para cada fase histórica da humanidade, há um espírito unidificador que coloca em contato todas as manifestações culturais59. Para o estudioso, ao se tomar como paradigma a cultura ocidental, mesmo sendo esta complexa e caracterizada pela autonomia em diversas esferas da vida social, histórica e científica, existe certa interdependência e influência entre os diferentes campos, o que acaba por gerar certa unidade de espírito e de vida capaz de impregnar e influenciar, dentre outras atividades, a atividade literária. Em um segundo momento, Rosenfeld julga o fenômeno da “desrealização”, inicialmente observado na pintura, como de grande importância para a compreensão das transformações estruturais ocorridas no âmbito literário. Ao transferir o sentido do vocábulo “desrealização” da pintura para o domínio da literatura, o crítico está se referindo ao abandono e à recusa da mera cópia ou reprodução da realidade tal como esta se apresentava60. Em outras palavras, conforme o autor, [i]sso, sendo evidente no tocante à pintura abstrata ou não-figurativa, inclui também correntes figurativas como o cubismo, expressionismo ou surrealismo. Mesmo estas correntes deixaram de visar a reprodução mais ou menos fiel da realidade empírica. Esta, no expressionismo, é apenas “usada” para facilitar a expressão de emoções e visões subjetivas que lhe deformam a aparência; no surrealismo, fornece apenas elementos isolados, em contexto insólito, para apresentar a imagem onírica de um mundo dissociado e absurdo; no cubismo, é apenas ponto de partida de uma redução a suas configurações geométricas subjacentes. Em todos esses casos podemos falar de uma negação do realismo, se usarmos este termo no sentido mais lato, designando a tendência de reproduzir, de uma forma estilizada ou não, idealizada ou não, a realidade apreendida pelos nossos sentidos61. No que tange às proposições elaboradas, na visão de Rosenfeld, a arte deixa de ser cópia fiel da realidade, pois a perspectiva já não é mais a mesma, uma vez que sofreu certas distorções como podem ser observadas a partir da pintura moder59 ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: ____. Texto/contexto. 1969. p. 73. 60 Idem. Ibidem. p. 74. 61 Idem. Ibidem. p. 74. 49 na, na qual o ser humano passa a ser dissociado no cubismo e deformado no expressionismo. Desse modo, ao discutir as profundas alterações presenciadas no campo da pintura e que desencadearam o desaparecimento do “retrato”62 – reprodução fiel e plastificada da realidade sensível –, o autor segue uma linha de raciocínio muito semelhante em relação aos rumos que toma o relato romanesco no século XX, e trata, mais especificamente, da questão da fragmentação do romance moderno. Ao discutir as transformações sofridas pelo gênero romanesco63, na passagem do século XIX para o XX, o crítico conclui que se trata de uma modificação muito semelhante à observada na pintura moderna e que a característica principal da narrativa contemporânea é o surgimento de uma manifestação artística em que a cronologia e a continuidade temporal foram abaladas, enfim, “os relógios foram destruídos”. Ainda segundo o autor, “[o] romance moderno nasceu no momento em que Proust, Joyce, Gide, Faulkner começam a desfazer a ordem cronológica, fundindo passado, presente e futuro”64. Para o estudioso, não é mais possível observar claramente a ordem cronológica dos fatos, pois a continuidade temporal dos acontecimentos foi abolida da mesma forma que o espaço, ou pelo menos a ilusão de espaço, que se tinha no romance realista. O narrador já não é mais alguém que tudo sabe e tudo apreende, mas que vê o mundo e a realidade a partir de uma perspectiva, de um ângulo muitas vezes distorcido e deformado pela realidade social e histórica. No romance, não é mais possível demarcar as fronteiras entre passado, presente e futuro, uma vez que é próprio do fazer literário moderno a fusão entre os tempos, tendo em vista que o narrador “passeia” entre estes numa contínua intercalação de fatos e relatos, ora do passado, ora do presente, ora de sua própria imaginação. Tal fenômeno muitas vezes conduz o leitor a certas dificuldades de adaptação a esse tipo de produção, pois nega o compromisso com um mundo de aparências tido até então como real e absoluto, regido pelo tempo e pelo espaço até o momento determinado pelo realismo tradicional e pelo senso comum. Rosenfeld, ao se valer dos elementos da pintura a fim de compreender as mudanças estruturais do romance, está traçando linhas distintivas entre o romance que era produzido no século XIX e aquele que emergiu no século XX. Ao mencionar a 62 Idem. Ibidem. p. 75. O vocábulo “romanesco”, tal como empregado neste trabalho, refere-se ao gênero moderno “romance”, e não ao gênero medieval, que recebe denominação similar. 64 Idem. Ibidem. p. 78. 63 50 questão da perspectiva e da reprodução fiel que a pintura representava, está também se referindo às produções romanescas tradicionais, cuja funcionalidade principal era possibilitar ao leitor um saber total, já direcionado pelo narrador, e uma ampla visão dos elementos que pertenciam à sua estrutura. Por outro lado, quando menciona a abolição da plasticidade, da cópia fiel da realidade circundante e da mudança de perspectiva, está fazendo uma menção às tendências do romance moderno. Para tanto, apoia-se em pressupostos de que a arte deve não só acompanhar as transformações do mundo, mas apresentar o homem a ele mesmo e à sua realidade através de outra perspectiva, revelando não só uma nova temática, mas, acima de tudo, uma nova estrutura estética capaz de suscitar estranhamento no indivíduo para, a partir disso, levá-lo à assimilação e à compreensão dos episódios. As narrativas modernas apresentam como principal oposição em relação ao romance realista a ruptura com suas características fundamentais que são a temporalidade e a causalidade. Em Rosenfeld, a argumentação capaz de justificar e mesmo explicar as transformações observadas no romance surgido no século XX reside no fato de tal gênero, assim como qualquer outra expressão artística, representar um mundo em constantes transformações e em crise. Na visão do crítico, para a compreensão da narrativa moderna, deve-se estar atento aos vínculos que ela mantém com as mudanças estruturais observadas na sociedade. Assim, de acordo com os argumentos propostos por Rosenfeld, as alterações ocorridas no gênero narrativo não se deram gratuitamente. O estudioso explica que foi o mundo que sofreu grandes transformações desencadeadas por guerras, por avanços de pensamento científico e tecnológico, por mudanças de dogmas e crenças mitológicas e religiosas, dentre tantos outros colapsos. Frente a isso, a realidade, ao se transformar e avançar rapidamente, deixa para trás lacunas que precisavam ser elucidadas, e os artistas, então, precisaram adaptar suas formas estéticas de modo a contemplar e representar o maior número possível de fatores, ações e pensamentos em suas obras65. Em notas semelhantes às de Rosenfeld, Erich Auerbach, em seu texto Mimesis, também discute pressupostos acerca das mudanças ocorridas no gênero romanesco no século XX. Nesse estudo, Auerbach analisa um trecho do livro To the Lighthouse (1927), de Virginia Woolf, a fim de traçar sua linha argumentativa acerca das novas tendências do romance moderno. Nessa reflexão, as proposições do autor são 65 Idem. Ibidem. p. 77-78. 51 inicialmente delineadas com base na situação em que são apresentados os personagens no relato. Assim, ao contrário do que se poderia imaginar, segundo o romance tradicional, os personagens eram apresentados dentro de contextos sistemáticos, através da exposição ou até mesmo da introdução, para, com isso, facilitar o entendimento da linha de raciocínio lógico que o narrador queria causar no leitor. Aqui, o personagem em questão, Mrs. Ramsay, aparece através de formas enigmáticas. Segundo Auerbach, a exemplo desse trecho da obra de Woolf, é perceptível que “[o] escritor, como narrador de fatos objetivos, desaparece quase que completamente; quase tudo o que é dito aparece como reflexo na consciência dos personagens do romance”. Tampouco é comunicado ao leitor “o conhecimento que Virgínia Woolf tem da essência de Mrs. Ramsay, mas reflexos dessa essência e dos seus efeitos sobre diferentes figuras do romance, junto ‘aos espíritos sem nome’”66. Para Auerbach, o modo ordenado e claro de como eram mostrados os acontecimentos nas produções literárias e de como eram utilizados na construção do romance por escritores do século XIX e até mesmo do início do século XX já não pode mais ser encontrado nas tramas do romance moderno desse século67. O poder de representação da palavra literária entra em crise, e o romance perde a capacidade de ser um espelho do mundo. O narrador do romance moderno, por sua vez, perde a crença no mundo perante as diversas modificações e, assim, passa a encenar o conflito entre sua condição precária que se resume em falta de autoridade para narrar e a necessidade deste narrar. No romance realista, a pretensão do narrador era de dizer como as coisas aconteciam, mesmo que todo o relato fosse fantástico. O narrador era o sujeito que dominava a experiência e, por isso, selecionava os fatos mais importantes e confiáveis, ordenando-os em uma narrativa lógica e coerente. Assim, o leitor acreditava nessa ordem que lhe era apresentada e na capacidade do narrador de transformar episódios dispersos em uma narração única e completa, aceitando a ilusão de que se tratava de um relato confiável68. A narrativa contemporânea, em contrapartida, está longe de ser una e linear, uma vez que o próprio narrador não possui mais total domínio da matéria nem da forma. 66 AUERBACH, Eric. A meia marrom. In: ____. Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 1971. p. 469. 67 Idem. Ibidem. p. 470-471. 68 SANSEVERIANO. Antonio Marcos Vieira. Realismo e alegoria em Machado de Assis. 1999. p. 55-56. 52 O próprio escritor, ao criar o narrador da trama, já não o faz objetivamente como alguém que relata, observa e interpreta os pensamentos, anseios e atitudes dos seus personagens. Abre-se espaço no romance contemporâneo para um narrador sapiente, mas com olhos duvidosos, interrogativos: aqui, onde o escritor atinge a impressão mencionada colocando-se a si próprio, por vezes, como quem duvida, interroga e procura, como se a verdade acerca do seu personagem não lhe fosse mais bem conhecida do que aos próprios personagens ou ao leitor. Tudo é, portanto, uma questão da posição do escritor diante da realidade do mundo que representa; posição que é, precisamente, totalmente diferente da posição daqueles autores que interpretam as ações, as situações e os caracteres dos seus personagens com segurança objetiva, da forma que, anteriormente, ocorria em geral. Goethe ou Keller, Dickens ou Meredith, Balzac ou Zola comunicavam-nos, partindo de um conhecimento seguro, o que os seus personagens faziam, o que pensavam ou sentiam ao agirem, de que forma deveriam ser interpretadas as suas ações ou pensamentos69. Tendo em vista a complexidade e as particularidades que compõem não só a estrutura do texto literário moderno, mas também os fatores sócio-históricos que se entrecruzam na sua composição, torna-se importante a busca de suportes teóricos capazes de tentar explicar a complexidade de certas ocorrências literárias que as teorias tradicionais já não dão mais conta. Para tanto, unem-se às proposições já levantadas por Rosenfeld e Auerbach posicionamentos críticos formulados por filósofos da Escola de Frankfurt como Theodor W. Adorno e Walter Benjamin. Esses autores dedicarem-se ao estudo e à compreensão do fenômeno estético, em particular, do romance. Theodor W. Adorno, em seu livro Teoria estética, ao discutir questões relativas à arte, à sociedade e à estética, enfatiza que as obras de arte mantêm uma estreita ligação com a vida social. Dessa forma, o crítico aponta para a existência de um vínculo permanente entre as barbáries que a sociedade enfrenta ou enfrentou e as produções artísticas. Para Adorno, uma tensão externa não resolvida irá motivar, no romance, uma tensão interna, que se revelará em formas específicas de representação estética. Segundo o autor, “os antagonismos não resolvidos da realidade retornam às obras de arte como problemas imanentes da sua forma. É isto, e não a trama 69 AUERBACH, Eric. A meia marrom. In: ____. Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 1971. p. 470. 53 dos momentos objetivos, que define a relação da arte com a sociedade”70. De acordo com a proposta teórica elaborada por Adorno, é possível entender que o artista, ao estar em contato com uma determinada realidade social, a internaliza, e, se essa realidade for caracterizada por conflitos e tensões, da mesma forma será a representação artístico-cultural, não só em nível temático, mas principalmente formal. Para Adorno, a realidade não é percebida como algo harmônico, logo sua representação também não pode ser harmoniosa, pois, se assim o fosse, ter-se-ia uma falsa projeção dessa realidade. Com isso, rompe-se com o conceito de perspectiva mantido pelo romance realista, e surge uma nova forma de expressar ou representar as experiências. A linearidade e a logicidade que definiam o romance realista são abolidas, e o que o romance moderno incorpora, são fragmentos e estilhaços de imagens e de pensamentos formulados a partir da realidade, negando a ideia de que a arte deve ser concebida e entendida como totalidade: [a] arte de elevada pretensão tende a ultrapassar a forma como totalidade, e desemboca no fragmentário. A indigência da forma deveria expressamente acabar de se fazer sentir na dificuldade da arte temporal [...]. Uma vez desembaraçada da convenção, nenhuma obra de arte pode já manifestadamente concluir de modo convincente, enquanto que os desenlaces tradicionais apenas procedem como se os momentos singulares se associassem a com o ponto final no tempo para constituir a totalidade da forma. Em numerosas obras da modernidade que, entretanto, forma objeto de ampla recepção, a forma manteve-se habilmente aberta, porque queriam provar que a unidade da forma já não lhes era garantida71. A posição do narrador no romance contemporâneo é outro item analisado pelo crítico frankfurtiano. Para ele, o fato de narrar implica a necessidade de “ter algo especial a dizer”, entretanto, na contemporaneidade, isso é impedido pelo mundo administrado pela estandardização e pela mesmidade. No romance contemporâneo, é preciso considerar a impossibilidade do narrador de contar sua participação em certos episódios traumáticos. A experiência desintegrou-se, e a vida articulada e contínua em si mesma já não pode mais ser apresentada sem fissuras. Para Adorno, a ideia de que alguém possa se sentar para ler um bom livro é ultrapassada, pois o que precisa ser considerado no mundo contemporâneo não deve ser somente a coisa 70 71 ADORNO, Theodor W. Teoria estética. 2008. p. 18. Idem. Ibidem. p. 171. 54 comunicada, mas a forma como é apresentada72. Frente a isso, o artista fica condicionado à parcialidade dos fatos e suscetível ao engano, ao esquecimento e às rupturas do relato. O romance realista, por outro lado, ao reproduzir uma visão absoluta e consistente do real, ficava condicionado à reprodução da fachada, enganando e mascarando a realidade ao apresentá-la através de uma aparência de totalidade, sem lacunas e sem cortes. Walter Benjamin, crítico ligado à Escola de Frankfurt, dentre seus estudos de filosofia, estética, religião e história, também se dedicou à teoria literária e, em particular, às transformações da arte moderna. Em seus ensaios, o autor reflete acerca da sociedade, de seus processos de industrialização, modernização, guerras e demais conflitos históricos. Assim, as compatibilidades teóricas entre Benjamin e Adorno são visíveis uma vez que ambos examinam a produção artística sob o impacto das diversas situações históricas e sociais ocorridas no século XX. Em seu ensaio Sobre o conceito da história, Benjamin observa algumas das formas como a história tem sido narrada e concebida. Segundo ele, nem a historiografia progressista nem a historiografia burguesa cumprem com a tarefa adequadamente, pois, enquanto a primeira procura enfatizar uma ideia de progresso histórico inevitável e cientificamente previsível; a segunda, que diz respeito ao historicismo, oriundo da grande tradição acadêmica, objetiva reviver o passado através de uma espécie de identificação afetiva do historiador com o seu objeto. Essa última tenta contar um passado sem questionar a posição do historiador ou a forma como a matéria é narrada e realizada. Perante essas correntes, Benjamin entende que somente a voz dos dominadores e vencedores é contada e, por isso, acredita que a verdadeira história fica suprimida e abafada. O crítico enfatiza que essa forma de narrar a história deve ser abandonada e substituída pelo materialismo histórico, o qual não mascara a barbárie cometida pelo poder opressor. O materialismo histórico resulta da visão e da forma de narrar dos vencidos, e principalmente das vozes caladas e soterradas em meio aos escombros do passado, violento e repressor. Benjamin destaca que a imagem do passado é de ruínas, porque a civilização foi concebida a partir de episódios de destruição, de massacre e de barbárie, ou melhor, a civilização teve como alicerce o 72 ADORNO, Theodor W. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: ____ et al. Textos escolhidos. 1983. p. 269-270. 55 sangue de muitos povos. Todas as sociedades são marcadas fortemente por tensões e conflitos dos quais o intelectual não pode se eximir. Diante disso, a proposta que Benjamin apresenta para uma nova escrita da história é de que a narração deve estar comprometida na causa contra as barbáries cometidas ao longo dos tempos. O crítico sugere que o olhar do narrador deve estar sempre voltado para a história como catástrofe, como “ruína sobre ruína”73, e, assim, relatá-la, fora de uma certa lógica e de um nexo causal, mas em fragmentos, como que de forma a reconstituir os cacos da história. Na visão de Adorno e Benjamin, o caminho para se entender a narrativa moderna está em se pensar e considerar problemas de teoria da literatura e acontecimentos da experiência humana, sem deixar de levar em conta o contexto em que uma determinada obra fora produzida, bem como seu impacto sobre as formas literárias. Em outras palavras, as proposições de ambos os teóricos servem para explicar que os problemas de ordem estética de determinadas narrativas – como ruptura da linearidade, fragmentação, descontinuidade temporal, tais como observados nas obras que compõem o corpus desta pesquisa, ou seja, Quatro-olhos, de Renato Pompeu, e Em câmara lenta, de Renato Tapajós – podem ser entendidas através da ótica de um contexto bárbaro, turbulento e violento que circundava o momento de sua produção. Ignácio de Loyola Brandão, ao discutir sobre as tendências e as características do romance moderno, observa que, no Brasil, esse tipo de produção literária foi influenciado fortemente pelo jornalismo, pelo documentário, por depoimentos e por acontecimentos cotidianos oriundos da situação ditatorial e violenta do país pós-64. Devido a isso, então, as obras de ficção foram marcadas pelo desejo sincero de retratar tais episódios antes que fossem esquecidos ou que se perdessem por algum motivo proveniente da censura. O principal objetivo dos escritores era “evitar que escoassem para o esgoto da história, fornecendo um álibi ao sistema duro e desumano que imperava o Brasil”74. Para Brandão, a década de 70, no Brasil, desenvolveu na mentalidade dos escritores uma nova forma de encarar a realidade e, consequentemente, de reproduzi-la. Um novo público formava-se e reunia-se para falar de literatura brasileira, mas 73 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 2006. p. 226. 74 BRANDÃO. Ignácio de Loyola. Literatura e resistência. In: SCHWARTZ, Jorge; SOSNOWSKI, Saul (Orgs.). Brasil: o trânsito da memória. 1994. p. 178. 56 também de política e da situação do país. Esse novo público, formado principalmente por escritores-jornalistas, costumava ter em mãos as notícias censuradas, as fotos e as reportagens proibidas de serem veiculadas pelos meios de comunicação. Frente à presença da censura e da necessidade de driblar esse sistema opressor, o crítico pondera que a literatura sofria uma brusca transformação, cuja forma de composição e expressão migrava em direção ao fantástico e ao metafórico. Já os conceitos de realismo, verossimilhança e logicidade, que compunham os romances tradicionais de até então, são abalados de forma que perdem seus limites e passam a ganhar elasticidade. Ou seja, o escritor ganha maior liberdade na escrita e rompe com barreiras e conceitos quase que intransponíveis do romance realista75. Outrossim, cabe acrescentar que, ao se tratar das tendências do romance moderno, deve-se ponderar o fato de que a forma estética de apresentação de certas narrativas representa a intenção essencial do escritor de não impor à vida, ao seu tema, uma ordem que ela própria não oferece76. Em outras palavras, seria quase impossível representar ou apresentar o decurso completo de uma vida ou de um conjunto de episódios, que merecessem ser contados, sem que os lapsos de memória do escritor ou do narrador não interferissem na narrativa. Contudo, é possível esperar que relatos de poucos personagens, ocorridos em curtos espaços de tempo, possam ser contados ou reproduzidos com maior perfeição, assim como episódios, muitas vezes aleatórios, sem um nexo cronológico definido, mas que apresentam detalhes e fatores que, ao serem relatados, transformam-se em grandes reflexões sobre a vida social e/ou histórica do homem. O romance moderno, ao apresentar elementos fragmentados, desconexos e por não seguir uma ordem linear, seja ela de tempo ou de causalidade, busca instigar o leitor à interpretação da vida que, por sua vez, surge também de fatos do cotidiano e de experiências de vida tampouco organizadas cronologicamente. A literatura moderna forma-se a partir das distintas experiências encontradas em pensamentos, na consciência humana, nas palavras e em ações, que geralmente se configuram em episódios desordenados. Provavelmente, este seja o desafio dos escritores modernos, ou seja, representar, através da arte, e em particular através do romance, a essência da vida humana e de tudo que a cerca e, assim, possibilitar ao leitor ou ao 75 Idem. Ibidem. p. 179. AUERBACH, Eric. A meia marrom. In: ____. Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 1971. p. 481. 76 57 expectador da arte sua própria interpretação e conclusão de determinadas situações, uma vez que dentro de nós realiza-se incessantemente um processo de formação e de interpretação, cujo objeto somos nós mesmos: a nossa vida, com passado, presente e futuro; o meio que nos rodeia; o mundo em que vivemos, tudo isso tentamos incessantemente interpretar e ordenar, de tal forma que ganhe para nós uma forma de conjunto, a qual, evidentemente, segundo sejamos obrigados, inclinados e capazes de assimilar novas experiências que se nos impinjam, modifica-se constantemente de forma mais rápida ou mais lenta, mais ou menos radical77. Nesse sentido, pondera-se olhar para o romance moderno assim como fazem os escritores no momento de sua produção e buscar a interpretação dos fatos relatados a partir do entrecruzamento, da contradição e, por que não, da complementação resultante dos episódios apresentados. O processo de construção do romance contemporâneo segue pelas sendas instintivas da inteligência, que observa e representa uma realidade que não é única, mas dissolvida em múltiplos e distintos reflexos da consciência humana. Sendo assim, a emergência de determinadas características que se podem observar em romances que surgem durante a Ditadura Militar no Brasil não é de difícil entendimento, já que traduz um sintoma da confusão e do desconserto da sociedade da época. Portanto, ao se observarem obras esteticamente fragmentadas como Quatroolhos e Em câmara lenta, produzidas no calor do regime autoritário e violento, reforçam-se as teses defendidas por Adorno e Benjamin, segundo os quais o romance moderno possibilita um novo jeito de tratar de questões históricas, políticas e sociais, em que a temática não é o principal eixo da trama, mas a fusão desta com a forma de organização da obra. A tentativa desses escritores está em não mais impor um narrador que organize o caos e o relate, mas fazer com que o leitor, através dos destroços da narrativa, despedaçada e desarticulada entre si, consiga observar a situação de sua perspectiva e chegar ao seu próprio conceito de verdade e de realidade. 77 Idem. Ibidem. p. 482. 58 2.2 Fronteiras da narrativa: ficção, história e testemunho Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos; ninguém restará para dar testemunho, mas, mesmo que alguém escape, o mundo não lhe dará crédito [...]. Ainda que fiquem algumas provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos narrados são tão monstruosos que não merecem confiança: dirão que são exageros e propaganda aliada e acreditarão em nós que negaremos tudo, e não em vocês. Nós é que ditaremos a história dos Lager (campos de concentração). (Os afogados e os sobreviventes, Primo Levi) A história e a ficção, durante séculos, trilharam caminhos semelhantes, pois ambas eram responsáveis por apresentar e recontar os acontecimentos das civilizações. Tal responsabilidade, por um lado, marcava a aproximação entre essas duas áreas do saber; por outro, estimulava determinadas divergências entre elas. Diante disso, a relação entre narrativa histórica e narrativa ficcional apresenta-se à humanidade em constantes diálogos e debates, no intuito de refletir acerca das singularidades de cada uma, bem como chamar atenção para os elementos que unem tais discursos. Ao se tomar como ponto de partida dados como a ação de escrever a história, (re)contar os fatos e interpretar o mundo, percebe-se que tanto a história quanto a ficção apresentam-se capazes de ordená-los a fim de narrar o que deve ser relatado; entretanto, a forma como essa escrita pode se configurar é o que irá variar. A história e a literatura compartilham os mesmos elementos para as suas composições, a saber, fato, personagens, espaço, tempo, ações. Contudo, o procedimento em organizá-los é muito variável entre essas duas formas de narrar, distinguindo assim história de literatura, sem, no entanto, conferir mais ou menos autenticidade de uma em relação à outra. Para tanto, a filosofia da história e a teoria literária têm procurado entender e esclarecer os laços que unem ficção e história, bem como os fatores que as divergem, numa busca constante para compreender de que modo essas áreas elaboram e relatam uma mesma temática e que tipo de recursos narrativos podem ser encontrados em suas diegeses. Assim, se as relações entre literatura e história encontram-se no centro do debate da atualidade, e as fronteiras entre essas duas áreas parecem cada vez mais fluídas, torna-se importante destacar que a segunda metade do século XIX é tida co- 59 mo referência quando o assunto é ruptura entre esses dois campos do conhecimento, uma vez que se instaura o modelo de interpretação positivista da história. Toma-se, então, a história como um sistema científico, dotado de verdades absolutas, e a literatura como arte, tida unicamente como lugar do fictício, do subjetivo e do imaginário. Frente a isso, observa-se a sobreposição do cientificismo como prática da verdade, opondo-se categoricamente à arte literária, conferindo a esta a posição produtora de inverdades. Roland Barthes, ao discutir o que seria o discurso histórico, enquanto lugar de “verdades”, refere-se a uma tessitura capaz de comportar em sua unidade fatores “existentes” e “ocorrentes”78. Tal classificação é exemplificada através de Heródoto, cuja definição de “existentes” inclui dinastias, príncipes, generais, soldados, povos e lugares, e, para a de “ocorrentes”, ações como as de devastar, submeter, reinar, devastar, aliar-se e fazer expedições, consultar oráculo, etc79. Nesse sentido, o autor afirma: “[s]endo essas coleções (relativamente) fechadas, devem oferecer-se a certas regras de substituição e de transformação, e deve ser possível estruturá-las – tarefa de maior ou menor dificuldade, evidentemente, conforme os historiadores”80. Com base nessa categorização, que organiza a narrativa histórica, entende-se que tais conjuntos de elementos apresentam-se restritos ao campo da história, cabendo ao historiador a tarefa de arranjá-los da forma que melhor lhe pareça adequada. Dá-se a liberdade para que o historiador constitua seu discurso de acordo com sua ideologia e com seu ponto de vista, podendo tanto enfatizar e glorificar um evento, quanto denegri-lo ou depreciá-lo, dependendo da ênfase que confere aos dados de que dispõe. Entretanto, ainda com base na definição de Heródoto acerca dos elementos composicionais da história, itens considerados até então específicos ao domínio da história também podem ser encontrados na ficção. Assim, acredita-se ser impossível delimitar categoricamente o que incumbe à literatura e o que é próprio do discurso histórico. Isso porque as fronteiras entre essas duas áreas revelam-se muito fluídas, uma vez que elementos tidos como característicos da história migram para a ficção, e a história, por vezes, migra “para uma forma metafórica”81. Desse modo, a partir do momento em que se observa que as mesmas categorias podem servir tanto à história 78 BARTHES, Roland. O discurso da história. In: ____. O rumor da língua. 2004. p. 171. Idem. Ibidem. p. 171. 80 Idem. Ibidem. p. 171. 81 Idem. Ibidem. p. 175. 79 60 quando à literatura, a teoria da história concebida até então é posta em xeque. A propósito da definição do discurso histórico, Barthes ainda acrescenta: [o]s próprios processos históricos (seja qual for o seu desenvolvimento terminológico) levantam – entre outros – um problema interessante: o de seu estatuto. O estatuto de um processo pode ser assertivo, negativo, interrogativo. Ora, o estatuto do discurso histórico é uniformemente assertivo, constativo; o fato histórico está ligado linguisticamente a um privilégio de ser: conta-se o que foi, não o que não foi ou o que foi duvidoso. Enfim, o discurso histórico desconhece a negação (ou conhece raramente, de maneira excêntrica). [...] Pode-se dizer que, em certo sentido, o discurso “objetivo” (é o caso da história positivista) alcança a situação do discurso esquizofrênico; num caso como no outro, há censura radical da enunciação82. Em outros termos, Barthes está chamando atenção para o fato de que a história sempre será positivista, capaz de relatar o que aconteceu, sem se preocupar com aquilo que deixou de acontecer, com os fatos que foram encobertos. Ou seja, sempre haverá algum tipo de censura na enunciação histórica, seja por ideologia do historiador ou por necessidade de uma certa classe ou por outro motivo qualquer. Fato é que, para que o historiador consiga concatenar as informações selecionadas de que dispõem, em uma certa ordem lógica e aceitável, ele precisa dar significação a tais subsídios, isto é, precisa interpretá-los de acordo com seus conhecimentos e com seu ponto de vista. Sem a interpretação, a narrativa não tem significação: [p]ara que a História não signifique, é necessário que o discurso se limite a uma pura série inestruturada de anotações: é o caso das cronologias e dos anais [...]. No discurso histórico constituído (“forrado”, poderíamos dizer), os fatos relatados funcionam irresistivelmente quer como índices, quer como núcleos cuja sequência mesma tem valor indicial [...]. No discurso histórico da nossa civilização, o processo de significação visa sempre a “preencher” o sentido da história: o historiador é aquele que reúne menos fatos do que significantes e os relata, quer dizer, organiza-os com a finalidade de estabelecer um sentido positivo e de preencher o vazio da série pura83. Como se observa, Barthes vê o discurso histórico como fruto da elaboração ideológica e principalmente da elaboração imaginária do historiador, confirmando as82 83 Idem. Ibidem. p. 173. Idem. Ibidem. p. 176. 61 sim o papel que tem a ficção para a composição do discurso histórico. Tal proposição serve para ratificar que a metaforização que se faz presente na ficção também irá ser encontrada na narrativa histórica, postulando que, em nenhum momento, elementos da ficção ou da história são fatores determinantes para a caracterização de uma e para a exclusão da outra, mas que cada vez mais essas duas áreas do saber parecem interligadas. Hayden White, em Trópicos do discurso, ao discutir questões relacionadas à natureza humana, como cultura, sociedade e história, postula que o registro histórico é algo muito compacto e ao mesmo tempo difuso demais, e que, por isso, compartilhando da mesma visão de Barthes, o historiador é alguém que geralmente precisa interpretar os elementos de que dispõem a fim de conseguir narrar o processo histórico de modo coerente e verossímil, bem como preencher possíveis lacunas84: o historiador deve “interpretar” os seus dados, excluindo de seu relato certos fatos que sejam irrelevantes ao seu propósito narrativo. De outro lado, no empenho de reconstruir “o que aconteceu” num dado período da história, o historiador deve inevitavelmente incluir em sua narrativa um relato de algum acontecimento ou conjunto de acontecimentos que carecem dos fatos que poderiam permitir uma explicação plausível de sua ocorrência. E isto significa que o historiador precisa “interpretar” o seu material, preenchendo as lacunas das informações a partir de inferências ou de especulações85. Dessa forma, a narrativa histórica, ao passar pela interpretação do escritor, resulta numa organização de eventos explicados adequada ou inadequadamente. Fatos inferidos pelo historiador e estabelecidos como representação são tomados como explicação para o processo narrativo da história. Assim, as narrativas históricas passam a ser “ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos e cujas formas assemelham-se à literatura”86. White, ao reler Collingwood, afirma que o historiador era acima de tudo um contador de histórias e que sua sensibilidade era manifestada através de sua capacidade de, a partir de fatos que muitas vezes se apresentavam desorganizados e carentes de sentido, criar uma história dotada de sentido. Para Collingwood, o registro histórico sempre será fragmentário e incompleto e, por isso, o historiador precisa usar 84 WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. 2001. p. 65. Idem. Ibidem. p. 65. 86 Idem. Ibidem. p. 98. 85 62 sua imaginação construtiva. Entretanto, o crítico observa nos historiadores a tendência para o relato de testemunho a partir do senso das formas possíveis que os diferentes tipos de situação humana podem assumir. Na visão de White, os acontecimentos históricos, ao serem relatados, eram organizados através da supressão de alguns elementos e do realce de outros, de acordo com o ponto de vista do narrador e com as estratégias ideológicas que este lograva contemplar. Em suma, o texto histórico reunia as técnicas que normalmente se esperava encontrar na composição da trama de um romance ou de uma peça87. White complementa a observação de Collingwood: nenhum acontecimento histórico é intrinsecamente trágico; só pode ser concebido como tal de um ponto de vista particular ou de dentro do contexto de um conjunto estruturado de eventos do qual ele é um elemento que goza de um lugar privilegiado. Pois na história o que é trágico de uma perspectiva é cômico de outra [...]. [O]s acontecimentos históricos são de valor neutro [...]. O mesmo conjunto de eventos pode servir como componentes de uma estória que é trágica ou cômica, conforme o caso, dependendo da escolha, por parte do historiador, da estrutura de enredo que lhe parece mais apropriada para ordenar os eventos desse tipo, de modo a transformá-los numa estória inteligível88. De acordo com as ideias levantadas por White e Collingwood, pode-se inferir que o acontecimento histórico nada mais é do que um conjunto de fatores capaz de possibilitar ao escritor uma série de sequências narratológicas dotadas de sentidos diferentes, provenientes das mais distintas concepções de seus historiadores. A configuração de uma determinada situação histórica requer do historiador muita sutileza a fim de harmonizar seu enredo e conferir-lhe sentido. Trata-se, portanto, de uma espécie de apropriação, por parte do historiador, da operação literária, da prática criadora de ficção. White, ao citar Levi-Strauss, argumenta que esse autor, em um de seus ensaios sobre historiografia, discute que, quando se trata de escrever um relato abrangente de um determinado período temporal, o historiador deixa-se levar por “esquemas fraudulentos”, “abstrações”, pois só é possível construir uma história compreensível do passado mediante o abandono de alguns fatos. Assim, a explicação do processo histórico é determinada mais pelo que se deixa de fora da “representação” do que 87 88 Idem. Ibidem. p. 100. Idem. Ibidem. p. 101. 63 pelo que nele é incluído. O crítico conclui, dessa forma, que uma história considerada clarividente jamais escapa completamente à natureza da imaginação89. Tais pressupostos são acolhidos por White quando complementa que a narrativa histórica é uma narrativa simbólica, pois não reproduz os eventos que descreve, apenas aponta a direção que os acontecimentos devem ser pensados, trazendo, com isso, à mente, imagens dos eventos que indica, assim como faz a metáfora90. Segundo White, aceitar o teor ficcional no discurso histórico não deprecia o status dessa narrativa em sua concepção de fornecedora de um tipo de conhecimento. A respeito dessa relação de elementos históricos e literários que se entrecruzam no ato de narrar a história, o crítico reconhece a necessidade de cada vez mais se debater a respeito da produtiva relação que essas áreas podem possibilitar. Para White, essa discussão joga luz ao verdadeiro passado histórico, pois se em cada relato histórico há um elemento ficcional, em cada elemento da ficção também irá se encontrar um ou mais fatos históricos que merecem ser observados. De acordo com o crítico, a antiga distinção entre ficção e história, na qual a ficção era concebida como a representação do imaginável, e a história como a representação do verdadeiro, “deve dar lugar ao reconhecimento de que só se pode conhecer o real comparando-o ou equiparando-o ao imaginável”91. Assim, a narrativa histórica, por ser uma estrutura complexa, abre-se para um vasto mundo de experiências que ela se propõe a apresentar de modos distintos. Logo, a história do mundo real adquire sentido da mesma forma que o romancista confere aspecto e forma reconhecível à sua ficção. Portanto, “[n]ão importa se o mundo é concebido como real ou apenas imaginado; a maneira de dar-lhe um sentido é a mesma”92. O que se percebe com base em Barthes e também em White, é que o caminho do conhecimento tanto para a história quanto para a literatura não se encontra nas divergências entre elas, mas na tentativa de borrar tais distinções. White, em especial, ao defender a prática da semelhança, postulando as similaridades entre história e literatura, defende a política da afinidade entre tais discursos, opondo-se ao sistema conceitual que concebeu à historiografia maior similitude às ciências naturais. Nessa sinuosa fronteira entre ficção e história, parece não haver espaço para afirmações categóricas, pois, se, em White, a narrativa histórica é concebida como 89 Idem. Ibidem. p. 107. Idem. Ibidem. p. 108. 91 Idem. Ibidem. p. 115. 92 Idem. Ibidem. p. 115. 90 64 um tipo de arte e, se, para Collingwood, tanto no romance quanto na história, é imprescindível a imaginação a priori por parte do escritor, infere-se que os laços que unem história e literatura tornam-se cada vez mais estreitos e fluidos93. De um lado, tem-se a história, que se usa das ferramentas literárias a fim de compor sua narrativa; de outro, a literatura, em especial a produzida no século XX, que é vista como um espaço de autorreflexão da linguagem, não meramente para representar o “real”, mas para dar forma a ele94. Seligmann-Silva classifica essa literatura do “real” como literatura de testemunho, justamente pela presença, em sua tessitura, do entrecruzamento de elementos literários e do mundo fenomênico. A caracterização de literatura de testemunho surgiu em países europeus, principalmente na Alemanha e na França, referindo-se às narrativas literárias associadas aos relatos testemunhais que se propunham a narrar o evento da Shoah, dos campos de concentração e extermínio da Segunda Guerra Mundial. Esta literatura de testemunho não pode ser meramente classificada como um gênero, mas como uma face da literatura que surge em meio a uma época de catástrofes, fazendo com que, após séculos, o conceito de literatura de autorreferência seja questionado, bem como seu compromisso com o “real”. Este “real” a que se refere a literatura de testemunho não deve ser confundido com a realidade antes pensada pelo romance realista e naturalista, mas deve ser olhado sob a luz freudiana do trauma, como “um evento que justamente resiste à representação”95. Esclarecidos tais conceitos, é hora de tratar do testemunho. Testemunho pode ser definido de duas formas em latim: testis ou supertes. Essa segunda nomenclatura é também conhecida como mártir em grego. A primeira definição significa o depoimento de um terceiro em um processo. A testemunha é aqui alguém que dá sua versão dos fatos vivenciados, é alguém que sobreviveu a uma catástrofe, mas que não consegue dar conta do vivido, porque ficou traumatizado (elemento subjetivo) devido à dimensão da catástrofe (elemento objetivo). Quanto à segunda definição, esta refere-se a alguém que passou por uma provação, ou seja, o sobrevivente96. Sendo assim, a ideia de testemunha remete à verificação da verdade, ou seja, sua existência só é possível quando houver indícios de dúvida e possibilidade de mentira. A literatu93 COLLINGWOOD, Robin George. Idea de la historia. 1952. p. 238. SELIGMANN-SILVA, Márcio. O testemunho: entre a ficção e o “real”. In: ____ (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 372. 95 Idem. Ibidem. p. 273. 96 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção. In: ____. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. 2005. p. 84. 94 65 ra de testemunho configura-se, portanto, na literatura do trauma, pois concentra-se na tentativa de representar o irrepresentável e buscar, através da língua, alguma possibilidade de testemunhar aquilo que foi visto, mesmo que para isso seja preciso recorrer às estratégias da ficção. Dessa forma, a literatura de testemunho surge para tentar trazer à esfera da realidade tudo aquilo de mais terrível que possa ter sido encoberto pelo discurso dos vencedores. Em seu ensaio Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção, Seligmann-Silva discute que a literatura de testemunho deve ser olhada como a representação de uma “cena”, como o testemunho, escrito ou falado, de uma “cena” violenta, de um acidente ou de uma guerra97. Para o crítico, entretanto, sempre que se tratar de um testemunho, a representação não pode ser entendida como uma descrição realista do ocorrido, devido à impossibilidade de a testemunha apresentar a totalidade da cena vivenciada. Outrossim, o testemunho irá instigar uma possível reorganização sobre aquela cena que não conseguiu ser completamente simbolizada pela mente do indivíduo que a vivenciou ou presenciou. O olhar da testemunha traz para a tessitura narrativa aquelas informações que não são encontradas nos arquivos da história. Com isso, a testemunha revela-se, através do texto literário, num arquivo vivo repleto de informações capazes de indicar uma nova (re)leitura da história. A literatura de testemunho sempre irá implicar a presença de uma testemunha ocular, de alguém que passou por uma experiência traumática. Para tanto, essa literatura irá exigir uma nova ética de representação, que se caracteriza pela presença de imagens mudas, impossíveis de serem representadas, a não ser através de uma nova performance da linguagem98. Portanto, a literatura de testemunho é a transposição para a forma escrita do caráter individual e intransferível da vivência da catástrofe. Essa forma de ficção deve ser vista como uma narração necessária não só em termos individuais, mas principalmente pela sua esfera universal, funcionando assim como um testemunho à posteridade. A essência da literatura de testemunho não se encontra mais na imitação da realidade, mas numa espécie de manifestação de uma cena não simbolizada e entendida no campo da memória. Não se trata de transpor de modo imediato essa cena ou o “real’ para a literatura, mas fazer da trama literária um espaço para que, através da linguagem, seja possível representar na ficção esse “real” enquanto trauma, en97 Idem. Ibidem. p. 105. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção. Letras, 1998. p. 22. 98 66 quanto uma “perfuração” na mente, ferida que não se fecha, diante da memória do sofrimento vivido99: [é] um chavão dizer que essas experiências-limite são indescritíveis: mas não é menos verdade que elas foram carimbadas na mente de sobreviventes aos quais escapava a nossa capacidade cotidiana de simbolização. A onipresença da morte faz com que a linguagem se torne mais “concreta”: as pessoas num campo de concentração são queimadas literalmente, a fome mata literalmente, o mais forte é literalmente dono de você etc. Não há espaço para metáfora – apenas para a metamorfose. Daí por que essas imagens formam como que hieróglifos indecifráveis para os testemunhos (e para os leitores desses textos). Hieróglifos (um misto inseparável de imagens e conceitos) ou simplesmente imagens que, como diz Wilkomirski, “voltam com frequência à minha mente”, de modo descontrolado e desordenado100. Nesse sentido, a literatura de testemunho pode ser considerada uma ramificação da própria história, narrando a “contrapelo”101 os (des)caminhos trilhados pela história tida como objetiva e verdadeira. Por sua vez, a literatura de testemunho reitera o comprometimento em “desenterrar” um passado que poderia estar destinado a permanecer em ruínas. O mundo e os indivíduos passam a ser (re)construídos através dessa forma de ficção. Poder-se-ia dizer que é uma forma de narrativa dedicada ao resgate das experiências de um indivíduo ou de um grupo, a fim de reintegrar sua memória e sua identidade. Walter Benjamin, ao discutir questões acerca da arte de testemunho, aponta para essa forma de ficção como sendo um trabalho da memória. Dito em outro termo, a literatura que dedica sua ficção ao testemunho é por excelência literatura da memória. Cabe destacar, no entanto, que não se trata de uma mera rememoração do passado, mas de uma tarefa comprometida com a necessidade do lembrar e de sua impossibilidade. O autor desenvolve suas proposições contra o historicismo que apenas reproduz a alienação entre a experiência e o indivíduo, e reitera a força do trabalho da memória na reconstrução do passado histórico através do testemunho. Para o estudioso, a literatura de testemunho faz o caminho inverso da historiografia tradicional, pois, ao invés de seguir uma certa linearidade clara e de percurso ascendente, sua narrativa se dá em fragmentos, possibilitando ao expectador um espaço aberto 99 Idem. Ibidem. p. 382-383. Idem. Ibidem. p. 110. 101 Cf. expressão utilizada por BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 1994. p. 223. 100 67 para diversas (re)leituras do que é narrado. A reflexão de Benjamin sobre história e consecutivamente sobre a arte chama atenção para a cesura do tempo, para a quebra da prosa linear. O tempo, sob essa ótica, não pode ser considerado algo vazio, mas denso, carregado de sentido e matéria102. Para finalizar, retomam-se as proposições elencadas por Seligmann-Silva quando o autor enfatiza que o significativo número de produções literárias surgidas após o evento da Shoah sugere um pensar permanente acerca da relativização do processo narrativo histórico enquanto puro e objetivo. Para o estudioso, não é possível pensar em um texto puramente histórico e quase científico, de um lado, e um puramente fictício, de outro, se se levar em consideração a diversidade de obras consideradas literatura de testemunho que surgiram no último século. Para o autor, pensar sobre literatura de testemunho implica diretamente repensar acerca da visão que se tem da história, do fato histórico enquanto acontecimento e manifestação narrativa. O testemunho que surge na ficção literária deve ser acolhido não como a narração objetiva e plastificada dos fatos violentos, mas como resistência à compreensão deles. Em suma, tanto o historiador quanto o romancista estão expostos e cercados pelo mundo real e imaginário, transformando-o em ponto de referência para a composição de suas narrativas. Dessa forma, seus discursos se sobrepõem, pois “as técnicas ou estratégias de que se valem na composição de suas narrativas são substancialmente as mesmas”103. Vivencia-se, portanto, a ficcionalização da história como explicação pelo mesmo motivo que se vivencia a grande ficção como iluminação para um mundo em ruínas. Em ambas, reconhecem-se as formas pelas quais a consciência humana constitui e povoa o mundo que ela própria busca habitar confortavelmente104. A ficcionalização da história pela literatura não prejudica o pacto narrativo entre autor e escritor, tampouco na literatura o uso da história não significa substituir a emoção pela razão. Com isso, a narrativa histórica e a ficcional se interpenetram, completando-se. Os personagens ficcionais ganham vida no sentido de agir e refletir sobre sua ação histórica. O universo fictício que coexiste com a narrativa histórica não se sobrepõe ao histórico, mas interage com ele de várias formas. O historiador produz sua obra representando acontecimentos históricos com inferências de sua imaginação, o que constitui o lado ficcional da narrativa, de cuja realidade que envolve a imaginação é impossível fugir. Da mesma forma, o romancista, principalmente 102 Idem. Ibidem. p. 221-228. WHITE, Hayden. As ficções da representação factual. In: ____. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. 2001. p. 137. 104 Idem. Ibidem. p. 116. 103 68 escritor da literatura de testemunho, não tem como se desviar dos elementos históricos que se impõem à sua volta. Quem escreve, seja o historiador ou o romancista, dá voz à sua narrativa e, nesta voz, afloram os sentimentos de quem vive uma realidade de lembranças e momentos significativos de seu mundo. Por isso, história e ficção trilham os mesmos caminhos, completando-se mutuamente e intrinsecamente para uma melhor compreensão do mundo social. 2.3 As narrativas do trauma no século XX Chega um momento da vida em que, entre todas as pessoas que conhecemos, os mortos são mais numerosos que os vivos. E a mente se recusa a aceitar outras fisionomias, outras expressões: em todas as faces novas que encontra, imprime os velhos desenhos. (Cidades invisíveis, Ítalo Calvino) A história da humanidade do século XX apresenta-se caracterizada por uma série de avanços no âmbito científico e tecnológico, oferecendo, com isso, uma série de possibilidades aos indivíduos. Entretanto, paralelo a tais conquistas, não se pode deixar de mencionar que esse mesmo período foi cenário dos mais violentos atos de barbárie praticados no mundo e no Brasil. Com essa colocação, não se pretende apagar dessa mesma história a memória dos genocídios e das guerras ocorridas nos séculos anteriores, muito menos inocentar tais atos. Porém, tal século supera em todos os sentidos o nível de violência e o número de vítimas dizimadas pelos massacres. Tanto é que recebeu denominações como “era dos extremos” e “era dos cataclismos”, “era das catástrofes” e “era do totalitarismo”, confirmando, assim, a fatalidade desse período sobre a humanidade105: [n]o último século, o homem inventou a bomba atômica, cometeu o Holocausto, travou as mais violentas e mortíferas guerras de todos os tempos. Antes dele, houve muitos combates, mas nenhum tão monstruoso e destruidor. Somente na Primeira Guerra Mundial, dez milhões de vidas foram dizimadas, e isso seria menos de um quinto do número de pessoas que morreria poucas décadas depois, na Segunda Guerra. A carnificina estava longe de acabar. Antes, durante e de105 CORNELSEN, Elcio Loureiro. O testemunho na chave do trauma: aspectos teóricos. In: UMBACH, Rosani Ketzer; CALEGARI, Lizandro Carlos (Orgs.). Estética e política na produção cultural: as memórias da repressão. 2011. p. 10. 69 pois das guerras mundiais, incontáveis embates eclodiram nos cinco continentes – uma quantidade tão grande que não caberia de modo algum em nossas páginas106. Para Márcio Seligmann-Silva, esse numeroso conjunto de barbáries, que integrou a história da humanidade, suscitou uma série de eventos que ficaram conhecidos como “pós” catástrofes, a saber, pós-massacre dos armênios, pós-Primeira Grande Guerra, pós-Segunda Guerra Mundial, pós-Shoah, pós-gulag, pós-guerras de descolonização, pós-massacres no Camboja, para citar somente alguns. Tal prefixo, entretanto, não remete à ideia de superação do passado, mas, conforme complementa o estudioso, “[e]star no tempo ‘pós-catástrofe’ significa habitar essas catástrofes”, num constante chocar-se contra elas e reviver todo o terror do trauma desse suposto “passado”107. Diante de tantas atrocidades, prestar testemunho ou relatar para outras pessoas e gerações as experiências vividas por aqueles que passaram por algum desses episódios tornam-se tentativas de resgatar, através da memória, a outra versão dos fatos e estabelecer um contradiscurso. Tal premissa é relevante porquanto visa a superar as fissuras deixadas pelo discurso oficial, geralmente ancorado à política do esquecimento, do silenciamento e da desmemória. É nesse contexto violento e diante da necessidade de dar testemunho do terror, que se torna importante refletir sobre a literatura de testemunho do século XX e a sua relação direta com o trauma, ou seja, pensar na literatura de testemunho como narrativa do trauma desse século. A literatura de testemunho, enquanto possibilidade de acesso direto ao “real” (conforme definição proposta por Freud), implica não uma visão positivista dos eventos ocorridos, calcada no progresso e passível de plena aceitabilidade por parte da sociedade. Ao contrário, ela se volta para uma concepção de realidade, através do conceito de trauma, que permite a intelectuais e expectadores o retorno à história sem máscaras e livre da alienação positivista do historicismo oficial. A literatura de testemunho, como uma nova forma de se conceber a história, não adere às premissas do historicismo; antes, é correlata ao conceito de materialismo histórico. Walter Benjamin, a propósito, é um dos teóricos que aborda tal questão. 106 OLIVEIRA, Fabiana de Toledo. Cem anos de contradição. Guerras e conflitos do século 20, 2009. p. 4. 107 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura e trauma: um novo paradigma. In: ____. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. 2005. p. 63. 70 Segundo o autor, o cronista deve voltar-se para uma narrativa dos acontecimentos sem distinção entre os grandes e os pequenos eventos, sem privilegiar uma determinada ideologia ou deixar esquecidas as vozes dos oprimidos. Conforme Benjamin, “nada do que um dia aconteceu no passado pode ser considerado perdido para a história”108, o sofrimento do passado de uma nação deve ser não só recuperado, mas conhecido no presente para só então mudar o que precisa ser mudado a fim de construir um futuro sem cometer os mesmo erros. Como complementa, [a]rticular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminescência, tal como ela relampeja no momento de um perigo [...]. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer109. Benjamin postula que todo o sistema é opressor, de modo que a sociedade passa a ser vítima de uma minoria que conta a sua versão dos fatos e a impõe como única e verdadeira. Segundo a avaliação proposta pelo autor, não existe cultura sem barbárie e, por isso mesmo, ele acredita que é através do materialismo histórico que o passado dos vencidos pode ser conhecido, uma vez que esta possibilidade de narração, contrária ao método proposto pelo positivismo, relata uma outra versão da história oficial a contrapelo110. Na tese IX do ensaio Sobre o conceito da história, o crítico frankfurtiano representa metaforicamente sua teoria a respeito do olhar que se deve ter para a narração da história. Nessa tese, ele descreve um quadro de Paul Klee, intitulado Angelus Novus (ver anexo à pág. 156), o qual mostra um anjo completamente desfigurado, de olhos escancarados, boca dilatada e asas abertas, tendo seu rosto voltado para o passado, vendo o acumular de ruínas como resultado de uma catástrofe: [o]nde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e 108 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 1994. p. 223. 109 Idem. Ibidem. p. 224-225. 110 Idem. Ibidem. p. 225. 71 prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso111. Com base nessa imagem do Angelus Novus, que volta seu olhar para trás, entende-se que o passado da civilização não pode ser concebido livre de tragédias e barbáries, mas encarado como catástrofe. O olhar do anjo chama a atenção para a necessidade de se observarem os escombros do passado como um acúmulo de ruínas e tentar perceber, através desse amontoado catastrófico, aqueles eventos que ficaram escondidos sob os escombros da história oficial. Para Benjamin, o método proposto pelo historicismo positivista torna-se insustentável diante do assombro que acometeu o século XX. Com isso, reforça-se a necessidade de as vítimas das catástrofes históricas darem testemunho de seu passado de modo a se resgatarem das ruínas aquelas vozes soterradas e silenciadas. Como resultado, tem-se uma nova concepção da história que, segundo alguns críticos, pode e deve ser avaliada sob a perspectiva do trauma. É possível, ainda, que, pelo fato de a voz testemunhal não se referir a um relato universalizante, mas a uma posição específica, ela situa seu interesse político em contrariedade ao autoritarismo, colocando-se em oposição ao discurso oficial e às repressões institucionais. Em seu ensaio Experiência e pobreza, Benjamin menciona que, após a Primeira Guerra Mundial, grande parte dos soldados sobreviventes, ao retornarem a seus países, apresentavam um comportamento muito diferente em relação ao que tinham antes de partir. O ponto comportamental mais crítico observado nesses soldados dizia respeito a distúrbios mentais e impossibilidades de elaboração de discursos racionais acerca das situações vividas nos campos de batalha. A problemática que gira em torno da organização de ideias no testemunho passa a ser a triste característica e sinal do desconcerto mental do sobrevivente, isto é, da testemunha112. É Freud quem, através de seus estudos psicanalíticos, irá jogar luz a esse campo do desconcerto mental do sujeito que passou por algum tipo de situação traumática. Em suas Conferências introdutórias sobre a psicanálise (1915-1917), es111 Idem. Ibidem. p. 226. BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 1984. p. 114-115. 112 72 crita em plena Primeira Guerra Mundial, o psicanalista direciona sua atenção às neuroses traumáticas dos soldados e sobreviventes da guerra, observando que essas vítimas apresentam fixação no momento do acidente traumático que está na sua base. Esses doentes repetem nos seus sonhos regularmente a situação traumática. Quando ocorrem ataques de tipo histérico, que permitem uma análise, percebe-se o ataque correspondente a uma total transposição naquela situação. É como se esses pacientes não tivessem se desvencilhado a situação traumática, como se ela estivesse diante deles como uma tarefa (Aufgabe) não dominada e nós aceitamos com toda seriedade esse ponto de vista113. É, em 1920, contudo, através do seu ensaio Para além do princípio de prazer, que esse estudo das neuroses pós-guerras é enriquecido plenamente ao ser desenvolvido sob a reflexão sobre as pulsões. Nessa etapa, Freud reúne uma série de elementos capazes de dar conta dos acontecimentos traumáticos oriundos das catástrofes. Nesse texto, o psicanalista aborda a relação existente entre o trauma e o pavor (“schreck”, como ele denomina), implicando, também, a ruptura da “prontidão angustiada” do indivíduo, uma espécie de angústia positiva que o prepara para o desconhecido. Em Freud, o trauma é caracterizado como uma fixação psíquica que permanece presa à situação de ruptura, sempre retornando simbolicamente ao evento causador desse trauma, seja através de seus pensamentos involuntários ou através de imagens oníricas: “é como se esses pacientes não tivessem findado com a situação traumática, como se ainda estivessem enfrentando-a como tarefa imediata ainda não executada”114. Através de tais observações, Freud apresenta seu conceito de experiência traumática, concluindo ser a que, “em curto período de tempo, aporta à mente um acréscimo de estímulo excessivamente poderoso para ser manejado ou elaborado de maneira normal, e isto só pode resultar em perturbações permanentes da forma em que essa energia opera”115. O fato de a situação causadora da neurose traumática ser algo novo – algo para o qual o sujeito não estava preparado para enfrentar, como, 113 Extraído de FREUD, Sigmund. Freud-Studienausgabe. 1970. p. 274. Conforme tradução de Rosani Ketzer Umbach. 114 FREUD, Sigmund. Fixação em traumas – o inconsciente. In: ____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 1976a. p. 323. 115 Idem. Ibidem. p. 325. 73 por exemplo, desastres ferroviários, acidentes que envolvem risco de vida, guerras116 – faz com que esse indivíduo não saiba como lidar com esses acontecimentos, que passam a ser internalizados, mas não compreendidos ou simbolizados por ele. Essa premissa, de acordo com Freud, justifica tanto o constante retorno mental à cena traumática por parte do sujeito quanto a sua dificuldade para organizar de forma coerente e lógica seu discurso. Seligmann-Silva, ao fazer uma releitura de Bohleber, observa que o trauma é caracterizado pelo enfraquecimento da capacidade de organização dos traços mnemônicos nos representantes objetais da mente do sujeito traumatizado. Os fatos vividos não são reconhecidos como parte do ego, a capacidade de representação interna falha. Com isso, ocorre o registro, mas não a representação, isso porque o trauma representa “uma espécie de quisto autônomo que representa um núcleo duro resistente à simbolização e ao significado”117. Baseando-se nos estudos de Freud, o crítico brasileiro classifica o trauma como uma incapacidade de recepção de um evento extremo e sem qualquer limite. Ele é visto como algo desprovido de forma e, sendo assim, a repetição da cena traumática é recorrente no sobrevivente. Isso acontece uma vez que o trauma está diretamente ligado tanto ao choque quanto ao fato de ser um “distúrbio de memória no qual não ocorre uma experiência plena do fato vivenciado que transborda a nossa capacidade de percepção”118. De acordo com essas proposições, o campo sobre o qual a literatura do trauma se debruça apresenta-se dúbio, pois, de um lado, impera a necessidade de narrar uma experiência vivida, de outro, tem-se a percepção da dificuldade para articular a linguagem perante o conjunto de fatos a serem contados, muitas vezes inenarráveis, justamente pelo seu caráter excepcional e, por vezes, inverossímil. O testemunho, segundo Seligmann-Silva, apresenta-se sob o signo da simultânea necessidade e impossibilidade119, devido ao excesso de realidade testemunhado que, por vezes, ao apresentar-se tão imponente, o indivíduo não consegue simbolizá-lo verbalmente, causando a ruptura entre evento e linguagem. A lacuna “impreenchível” que passou a existir entre a experiência traumática e sua narração confirma que um possível relato de tal experiência somente será possível de materialização – ainda que parcial e pro116 FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. In: ____. Obras psicológicas completas. 1976b. 117 SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença. 2005. p. 71. 118 SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. In: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANNSILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação. 2000. p. 85. 119 SELIGMANN-SILVA, Márcio. O testemunho: entre a ficção e o “real”. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 46. 74 blemática – através da ficção. Por meio da ficção, o sobrevivente do choque traumático encontra um modo de tentar permanecer vivo e estabelecer relação com os outros e com a sociedade. A escrita de suas memórias passa a ser uma forma de guardar e lembrar a experiência vivida. Néstor A. Braunstein, ao discutir a questão do testemunho à luz do trauma, filia-se à ideia de que, na situação traumática, o sujeito é alguém que atravessou uma situação na qual poderia ter morrido, mas não o fez. Em virtude disso, tem-se um sobrevivente, “[u]m morto potencial que apesar disso continua vivendo. Alguém que vive além do momento em que deveria ter morrido. Está ‘entre duas mortes’. Uma que já passou e outra que está por chegar”120. Para Braunstein, o trauma é um acontecimento que divide a vida em duas etapas, antes e depois do trauma, pois o sujeito que sobreviveu depois já não é mais o mesmo de antes, mas um outro que ficou em seu lugar, portando seu nome e suas memórias. Para Cathy Caruth, o trauma, além de ser apresentado como uma patologia, assim como observado por Freud, é, em sua definição genérica, uma resposta a um evento violento inesperado ou arrebatador, que não é inteiramente compreendido quando acontece, retornando mais tarde em flashbacks, pesadelos e outros fenômenos repetitivos121. A autora acredita que o trauma não pode ser considerado uma ferida no corpo, uma cicatriz que pode ser curada e desaparecer com o passar do tempo, mas uma marca deixada na memória eternamente. Para a crítica, o fato de o sobrevivente ter passado por experiências inexplicáveis e inverossímeis é o que ocasiona na memória essa ferida aberta que sempre irá retornar incessantemente – e, agora, comungando das proposições de Freud e Seligmann-Silva – através de pensamentos, ações repetitivas, pesadelos, dificuldade de assimilação dos acontecimentos, organização ilógica e até mesmo através de silêncios à mente do sobrevivente. A propósito de tais ponderações, Caruth complementa seu pensamento afirmando que, na maioria das vezes, o sobrevivente enlouquece, pois não consegue superar a dor do trauma e o estágio da loucura, algo que acaba corrompendo a própria identidade do sujeito. A loucura, portanto, passa a ser o correlato do trauma para o qual o sujeito não conseguiu encontrar ou organizar uma linguagem capaz de definir tal experiência. “Enlouquecer é ser submetido à angústia e ficar prisioneiro do uni120 BRAUNSTEIN, Néstor. Sobrevivendo ao trauma. s. d. p. 1. CARUTH, Cathy. Modalidades do despertar traumático (Freud, Lacan e a ética da memória). In: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação. 2000 p. 111-120. 121 75 verso do não sentido, em que nossa linguagem fica aquém da possibilidade de interpretar o que experimentamos”122. Na literatura de testemunho enquanto narrativa do trauma, encontra-se, como um dos principais expoentes representativos dessa manifestação traumática e consequentemente enlouquecedora, o relato testemunhal de Primo Levi, sobrevivente da Segunda Guerra Mundial. Primo Levi, enquanto testemunha dos campos de concentração nazistas, apresenta em seus relatos uma complexa combinação de perplexidade e necessidade de fala. Seu trabalho está pautado na dura batalha entre memória e esquecimento, uma vez que o reencontro com o que foi vivido pode trazer, em seu interior, um risco de repetição do sentimento de dor, pois o testemunho nada mais é do que narrar a proximidade da morte. Com isso, trava-se a necessidade de rememorar com o intuito de organizar a mente e entender a experiência vivida como forma de se firmar um compromisso com aqueles que já não podem mais falar. Jaime Ginzburg argumenta que a escrita do sobrevivente sempre estará vinculada à memória daqueles que não sobreviveram e, por isso, é uma modo de dar “túmulo aos mortos”, para que não sejam esquecidos. Isso reforça a necessidade de narrar como uma forma de compromisso moral com aqueles que já não podem mais fazê-lo. O registro ficcional do sobrevivente se faz necessário como condição elementar na tentativa de elaboração de suas vivências e, em função disso, o autor acredita que estudar a literatura de testemunho implica diretamente uma noção de linguagem intrínseca ao trauma. A escrita não pode ser concebida na literatura de testemunho como lúdica, mas comprometida com o sofrimento e seus fundamentos, mesmo que estes sejam por vezes obscuros e repugnantes123. “[E]ntre o impacto da catástrofe e os recursos expressivos, pode haver um abismo intransponível, de modo que toda formulação pode ser imprecisa ou insuficiente”124. Para tanto, o valor da narrativa do trauma muitas vezes não está em sua capacidade de ser comprovada, como se fosse posta à prova em termos científicos, mas é a representação da tentativa de resgate da identidade do sujeito da enunciação, que fora perdida em função do trauma. Sem identidade, o sobrevivente faz uso da narração como forma de atribuir um sentido não antecipadamente definido e, por isso, a- 122 BIRMAN, Joel. O lugar do psíquico na experiência da loucura. Ciências Hoje, 1983. p. 30-36. GINZBURG, Jaime. Linguagem e trauma na escrita do testemunho. Conexão Letras, 2008. 124 Idem. Ibidem. p. 61. 123 76 presenta um “discurso instável, híbrido, em que os conflitos sociais são incorporados aos fundamentos expressivos”125. Diante da impossibilidade de narrar o evento traumático, Seligmann-Silva, em seu ensaio Testemunho de Shoah e literatura, enfatiza a singularidade existente na catástrofe com base em duas proposições que se opõem constantemente, a saber, por um lado, a descrição sempre será parcial, e, por outro, ela nunca poderá dar conta da experiência do sobrevivente. Ou seja, cada sujeito que entrou em choque com a barbárie a recebeu de uma forma: para cada um, o que se passou foi único. Já a linguagem, em contrapartida, é concebida a serviço do universal e deixa de lado o particular, não dando conta de suprir a carência da representação. O crítico ainda menciona desabafos acerca da carência de linguagem, observados em obras como a de Ruth Klüger, Paisagens da memória: autobiografia de uma sobrevivente do holocausto, na qual a narradora postula que, diante de tamanha barbárie, “justamente sobre tais vivências extremas pode-se falar impressionantemente pouco. A fala humana foi criada e pensada para outra coisa”126. Seligmann-Silva, ao citar Sarah Kofmann, comenta que em seu livro Paroles suffoquées, essa autora menciona: “Sobre Auschwitz e depois de Auschwitz, não é possível narração, se por narração entende-se: contar história de eventos fazendo sentido”127. Por outro lado, o evento existe e precisa ser narrado porque o sobrevivente sente necessidade de contar e porque os crimes precisam ser registrados. Contudo, a escrita, para o sobrevivente, assume um papel duplo segundo Seligmann-Silva, pois “ela é disposição, inscrição, memória no sentido de recolhimento e armazenamento de dados, mas é também um ato de separação desta memória. No ato de escritura o passado é como que passado adiante”128. Ou seja, a testemunha, no momento de narrar sua experiência, ao transmitir o que viveu, sente uma espécie de alívio por fazer isso. O peso da carga traumática é parcialmente diminuído no momento em que divide com o outro e com a sociedade seu sofrimento de fato vivido e aquele revivido no ato de narrar sua experiência. Ainda de acordo com Seligmann-Silva, entende-se que o sobrevivente de um evento traumático não é alguém que vê o que poderia ser trivialmente aceito pelo senso comum, mas alguém que está diante de uma excepcionalidade que exige ser 125 GARCÍA, Gustavo V. La literatura testimonial latinoamericana. 2003. p. 50. In SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho da Shoah e literatura. 2007. p. 5. 127 Idem. Ibidem. p. 6. 128 Idem. Ibidem. p. 7. 126 77 relatada. No entanto, o fato de ter atravessado um sofrimento desmedido abala a relação que existia entre a língua e o pensamento, de modo que a linguagem passa a ser concebida como traço indicativo de uma ausência. O sobrevivente da experiência traumática não possui em sua memória a imagem total do ocorrido, mas episódios em fragmentos. Em função disso, a experiência traumática não pode ser assimilada por completo pela vítima, gerando a repetição constante da cena que ocasionou o trauma129. Assim, em concordância com Seligmann-Silva, infere-se que aquele que testemunha defronta-se a cada dia com a árdua e ambígua tarefa de rememorar a tragédia e enlutar os mortos. Tarefa essa que o coloca sempre frente a frente com a ferida aberta do trauma, desencadeando a resistência e a tentativa de superação, bem como a busca por um consolo completamente inalcançável130: [a]quele que testemunha sobreviveu – de modo incompreensível – à morte: ele como que a penetrou. Se o indizível está na base da língua, o sobrevivente é aquele que reencena a criação da língua. Nele a morte – o indizível por excelência, que a toda hora tentamos dizer – recebe novamente o cetro e o império sobre a linguagem131. Diante disso, observa-se que o sobrevivente encontra na imaginação um meio para a narração, ou seja, a “imaginação é chamada como arma que deve vir em auxílio ao simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma”132. Tal premissa se justifica pelo fato de que o sujeito traumatizado não consegue em hipótese alguma relatar de modo íntegro e linear os acontecimentos sobre o trauma tendo em vista que as lembranças são recorrentes, fazendo-o reportar-se sempre ao momento traumático e sofrer uma vez mais. Entre o real traumático e o ato de narrar, sempre existirá uma distância muito grande capaz de impossibilitar a narrativa linear, interromper a sequência lógica do pensamento e transportar o narrador continuamente ao seu interior ligado ao passado, passado este nunca plenamente realizado. Perante tais considerações, cabe destacar um trecho da obra brasileira de Olga Papadopol, que narra sua sobrevivência após a permanência no campo de con129 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão. In: ____ (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 47. 130 SELIGMANN-SILVA, Márcio. O testemunho: entre a ficção e o “real”. In: ____ (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 52. 131 Idem. Ibidem. p. 52. 132 Idem. Ibidem. p. 70. 78 centração. No livro, a narradora se dá conta da impossibilidade para relatar o vivido diante do abalo traumático: “Quero me convencer de que a melhor forma para poder viver é tentar esquecer, mas como encontrar a fórmula para apagar as lembranças? O esquecimento é de fato impossível”133. Para o sobrevivente, o fato de não ser capaz se livrar das memórias do trauma bem como ter dificuldade de narrar tudo o que precisa ser externalizado faz com que, muitas vezes, o próprio sobrevivente entre em choque consigo mesmo a ponto de se questionar e ficar em dúvida quando da credulidade de seus próprios fatos que são narrados. As palavras não são suficientes para dar conta do relato do trauma. Em razão disso, o sujeito traumatizado sufoca-se entre a insuficiência da linguagem e a necessidade de narração. Tal necessidade, a rigor, vai muito além de uma simples transmissão de informações. Ela se compromete em se livrar, mesmo que parcialmente, do peso do passado, sepultando os que morreram. Assim, a narração é tomada como uma possibilidade de denúncia, como um legado para as próximas gerações e, por fim, como um sinal humanitário capaz de servir à memória, no intuito de evitar uma possível repetição de semelhantes atrocidades. Em suma, pode-se compartilhar das ideias dos críticos mencionados de que não há palavras para dizer tudo o que se quer. Entretanto, o que ocorre é um esforço de se dizer o indizível. Isso pode acontecer e ser observado, nas obras literárias, através das fissuras da narrativa, das pausas, dos fragmentos, das recorrentes repetições, das reticências, dos silêncios interpostos pelo narrador, através das frases curtas, da não-linearidade, bem como de tantos outros recursos estéticos notados nas narrativas do trauma. Com isso, essa relação de impossibilidade liga-se ao compromisso do testemunho que é de resgatar o que existe de mais terrível no “real” para apresentá-lo, mesmo que para isso precise da literatura e de recursos estéticos que somente a ela são permitidos, sendo talvez essa a única condição possível de narrar encontrada pelo sujeito traumatizado. 133 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho da Shoah e literatura. 2007. p. 11. 79 3 MEMÓRIA, MELANCOLIA E FRAGMENTAÇÃO EM QUATRO-OLHOS E EM CÂMARA LENTA Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem. Num instante, por intuição quase profética, a realidade nos foi revelada: chegamos ao fundo. Mais para baixo não é possível. Condição humana mais miserável não existe, não dá para imaginar. Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão – e, se nos escutarem, não nos compreenderão. Roubarão também o nosso nome, e, se quisermos mantê-lo, deveremos encontrar dentro de nós a força para tanto, para que, além do nome, sobre alguma coisa de nós, do que éramos. (É isto um homem? Primo Levi) 3.1 Memória e esquecimento em Quatro-olhos e Em câmara lenta E pela primeira vez tentou captar algumas lembranças da vida passada – mas o vácuo é enorme, o vazio, um túnel sem saída. [...] Se ao menos pudesse pensar no passado. Mas tudo parecia estar em branco para trás... Os guardas passaram uma esponja no meu passado, lavaram a minha mente – só tenho que suportar as algemas, o escuro, o simples prato de sopa incolor... (Os que bebem como cães, Assis Brasil) A palavra memória, de origem latina, deriva de menor e oris, e significa “o que lembra”, ligando-se, dessa forma, ao passado; logo, ao já vivido. Em nível individual, a memória é a capacidade de um conjunto de funções psíquicas que possibilitam conservar certas informações, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele concebe como passadas134. Henrique Serra Padrós, ao fazer releitura de Schacter, aponta para o fato de que, ao lembrar, o sujei134 LE GOFF, Jacques. História e memória. 1996. p. 423. 80 to pode libertar-se dos imperativos imediatos do tempo e do espaço, percebendo, novamente, o passado, e imaginando o futuro à vontade135. Fato é que nem sempre (re)visitar o passado, através da memória, foi uma tarefa fácil de ser realizada. As dificuldades impostas pela censura, como repressão e violência, através de torturas físicas e psicológicas, durante o período da Ditadura Militar no Brasil, foram algumas das estratégias utilizadas a fim de agir como barreiras interpostas entre as memórias do pretérito e as ações do presente, e, assim, impedir que lembranças de um passado sombrio fossem conhecidas. Através da repressão, punição, violência moral e física, o governo militar inibia toda e qualquer manifestação artística que podia oferecer algum tipo de perigo à ordem imposta pelo regime, bem como à versão de história que a ideologia dominante pregava. Durante as duas décadas em que os militares permaneceram no poder, o povo brasileiro pouco ou nada sabia a respeito do sistema de “interrogatórios” aplicado nos porões do país, tampouco das reais versões dos desaparecimentos repentinos de cidadãos considerados subversivos. É somente a partir de 1979 que essa realidade começa a mudar ou, pelo menos, começa a ser – mesmo que de forma muito penosa – divulgada. Através da promulgação da lei da Anistia e com o retorno de muitos exilados ao país, inicia-se um longo processo de relatos de torturas e de maus-tratos sofridos pelos sobreviventes. Testemunhos esses que vieram a público através de um significativo número de obras de ficção consideradas autobiográficas ou memorialísticas, assim como é o caso de Quatro-olhos, de Renato Pompeu, e Em câmara lenta, de Renato Tapajós. O romance Quatro-olhos, de Renato Pompeu, foi publicado em 1976, logo após a divulgação da Política Nacional de Cultura do governo Ernesto Geisel. Essa estratégia política, na prática, configurava-se na manutenção da censura prévia já instaurada no país e aderia a métodos de repressão ainda mais incisivos que aqueles inaugurados nos primeiros anos do regime. Diante de tal realidade, o livro de Pompeu, ao ser publicado, não só se posiciona contrário a essa política e a suas respectivas práticas violentas, como também burla a extrema vigilância imposta pela censura. De modo muito análogo a Quatro-olhos, a obra Em câmara lenta, publicada em 1977, apresenta-se comprometida com a denúncia acerca das atrocidades empreendidas durante o regime militar, bem como radica em torno da necessidade de reme- 135 PADRÓS, Enrique Serra. Usos da memória e do esquecimento na história. Letras, 2001. p. 80. 81 morar o passado a fim de contribuir para a (re)construção e para o aclaramento de uma outra versão da história da sociedade brasileira. Nessas obras, a constante tentativa de recuperação do passado, na medida em que atenta para a história dos vencidos, configura-se também no ataque ao inimigo que oprime e faz calar. Sendo assim, tais narrativas não se restringem à mera denúncia do abuso de poder, ratificado através das barbáries e das atrocidades cometidas e por elas reveladas. Elas vão muito além, pois lutam, com um esforço descomunal, pela busca e pela recuperação das memórias apagadas, com o compromisso não só de levar ao conhecimento da sociedade o que se passou, mas, além disso, como uma espécie de obrigação com aqueles sujeitos que passaram pela mesma experiência, mas que já não podem mais falar, nem exercer seu direito civil de deixar seu próprio depoimento à sociedade. A partir de tais apontamentos, nota-se que, em narrativas memorialísticas como Quatro-olhos e Em câmara lenta, oriundas de vivências traumáticas dos tempos da Ditadura Militar no Brasil, equilibram-se dois objetivos básicos por parte de seus escritores para com o ato de narrar. Trata-se da necessidade de elucidação de acontecimentos repressivos negados pelos órgãos do governo militar e da prestação de contas para com a própria consciência, numa tentativa de avaliação dos erros e acertos das ações decorrentes da postura antiditatorial. Com isso, para que aconteça a narração dos fatos, os narradores precisam retornar ao ocorrido, esmiuçando os fatos e atribuindo-lhes valores específicos. A rememoração, por sua vez, transporta o escritor para o seu passado e o coloca novamente diante daquilo que o atormentou e que, no momento da rememoração, torna a torturá-lo, fato esse pelo qual muitos escritores deixaram de registrar suas experiências. Renato Franco, ao discorrer acerca de Quatro-olhos, enfatiza a originalidade do livro no que diz respeito à problemática do esquecimento. Para o autor, a trama da obra direciona para o duplo sentido da narrativa: por um lado, a tentativa de reescrever o livro; por outro, a sua dificuldade para lembrar, o que representa, também, a luta pela recuperação da identidade do protagonista136. O duelo que o protagonista trava na obra para reconstituir o seu original perdido é o mesmo duelo travado na tentativa de recuperar a memória de sua vida, unir o presente ao passado e, assim, integrar-se novamente à sociedade. Segundo a proposição de Franco, “o alvo secreto do narra136 FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 366. 82 dor não é mais recuperar o material esquecido, o saber e a experiência nele eventualmente contidos, mas o de comunicar que algo de fundamental foi esquecido”137. Com base na leitura de Quatro-olhos, é possível inferir que seus aspectos constitutivos, estéticos e temáticos concorrem para o desvelamento e para a denúncia de práticas ligadas ao esquecimento, bem como buscam revelar a conturbada relação entre memória e esquecimento. A tentativa de rememoração, nesse romance, é evidenciada já na primeira página da narrativa, da mesma forma que a imponente dificuldade para a realização de tal atividade: [p]erdi os originais há muitos anos, em circunstâncias que não me convém deixar esclarecidas. Do trabalho, tão importante, guardo apenas memória vaga; de que havia, indubitavelmente, um tema, ou vários temas, e mesmo um ou outro personagem, mas não consigo reproduzir um único gesto, nenhuma situação ou frase. Às vezes, sinto dúvidas e hesitações138. Diante da percepção das poucas memórias ou das “memórias vagas”, como o próprio protagonista nomeia sua falta de conteúdo memorialístico, fica evidenciado que algum tipo de evento significativo aconteceu e abalou decisivamente o narrador, de modo que todo o conteúdo foi esquecido. Por sua vez, o fato de ele não querer expor, inicialmente, as circunstâncias em que perdeu seu romance remete para o pensar na censura e consequentemente na violência provinda dela. Ou seja, o ato de confiscar o livro sugere que algo de importante ou de ameaçador ao poder dominante poderia estar presente naquela obra. Sendo assim, ao fazer com que ela desapareça, pode-se inferir que tal atitude é mais uma estratégia por parte dos censores para apagar a história nela contida, silenciá-la a fim de que não permaneça nenhuma versão da realidade além daquela contada pelo poder dominante. Diante disso, percebese o esforço do narrador-protagonista em tentar vencer o esquecimento supostamente imposto. Entretanto, fica claro também que seu empenho em lembrar não é recompensado pela sua memória, pois ele não consegue sequer afirmar com clareza quanto à existência de um ou mais temas em seu romance, tampouco da existência ou não de personagens. Tamanha é sua dificuldade para lembrar, que o protagonista, por vezes, chega a duvidar de si próprio, se realmente foi capaz de produzir, em um determinado momento, uma obra-prima como ele acreditava. 137 138 Idem. Ibidem. p. 367. POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 15. 83 De maneira similar, observa-se, em Em câmara lenta, os problemas de memória que atingem o protagonista. Em Quatro-olhos, o narrador luta constantemente contra o esquecimento, numa tentativa de rememoração de um tempo pretérito, através das vagas reminiscências desse passado que vêm à sua mente e trava uma dura batalha, tentando reconstruir e entender esse tempo e assim recuperar sua identidade perdida. Em contrapartida, em Em câmara lenta, tem-se um narrador que tenta, por meio da memória, reavaliar o passado marcado pelo fracasso e também chegar à compreensão deste e dos acontecimentos bárbaros ocorridos em seu meio e que o perturbam constantemente. Nessa narrativa, a memória do protagonista, embora muito fragmentada, apresenta-se menos turva que a de Quatro-olhos, porém, não menos problemática, assim como pode ser observado no seguinte fragmento: [é] muito tarde. A imagem já se perdeu no tempo, mas está bem viva – como um corte de navalha [...]. É muito tarde. Mesmo que todas as informações reconstruam os fatos, mesmo que saiba exatamente quem estava lá, mesmo que o ódio atravessado na garganta possa encontrar rostos a serem destruídos. Não foi apenas uma pessoa que morreu, foi o tempo. De repente o mundo está cheio de algodão, espesso e pegajoso, as palavras não fazem mais sentido porque não nomeiam coisas – apenas soam como ecos, prolongados por ouvidos acostumados a classificá-los. O tempo acabou, mas os gestos continuarão a ser feitos, repetidos e aperfeiçoados139. Nota-se que o protagonista conserva mais nítida em sua mente a memória do passado, conforme se evidencia pelo retorno que faz no tempo de sua existência, um tempo em que, embora pareça distante, permanece preso ao seu presente e em sua memória. Essa percepção de um tempo que já se foi revela não só o seu compromisso em relatar tal passado, mas principalmente a sua impotência em tratar de um tempo que não pode ser consertado no presente. É possível inferir, através do discurso do narrador, sua consciência em relação ao passado e as marcas deste deixadas, que impedem o presente de seguir seu curso normal. A tentativa de compreender e reavaliar o passado através da memória confere ao narrador a tomada de consciência de que, mesmo que ele consiga obter todas as informações possíveis e reorganizar, através de sua memória, tudo o que se passou, mesmo que encontre os culpados pelas atrocidades e violências cometidas, jamais conseguirá encontrar linguagem 139 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 13-15. 84 suficiente para expressar todo o sentimento de perda que restou em sua memória. Para o narrador, somente ficará aprisionada em sua memória a presença de gestos e de ações incompreensíveis. Enrique Serra Padrós, ao discorrer sobre os usos da memória enquanto reconstrução do passado histórico, afirma que, mesmo que a memória seja composta por experiências pessoais, as lembranças sempre serão o resultado da interação com outras pessoas. Dito em outros termos, a memória é construída ligada às lembranças das experiências e dos laços afetivos de pertencimento a um determinado coletivo social, e tais laços, a rigor, irão produzir, induzir e reforçar as lembranças comuns à memória social. Sendo assim, ocorrerá o surgimento de diversos grupos sociais, marcando e reforçando a consciência de fronteiras socioculturais vinculadas ao reconhecimento do seu pertencimento e de sua identidade. Ao considerar a memória como uma construção, o autor afirma que “ela é perpassada por mediações que expressam relações de poder hierarquizadas de acordo com os interesses dominantes, sejam eles aspectos de classe, políticos, culturais, etc”140. Nessa linha de pensamento, o autor acrescenta que a capacidade de lembrar possibilita a preservação dessa base comum de elementos – sejam eles políticos, sociais ou culturais – transformados em referência e identidade nas relações sociais. O ato de lembrar preserva as experiências históricas para as novas gerações. Assim, a ação de lembrar, realizada por um determinado grupo social ou por um indivíduo desse grupo, a fim de transmitir a outras gerações esse legado de experiências acumulado, muitas vezes, não é condizente e tampouco agrada à ideologia dominante responsável pela história positivista. Tal ação, por sua vez, irá fazer com que a elite dominante lance mão de estratégias para “apagar” da memória de determinados indivíduos o que convém ser esquecido ou desconhecido da sociedade141. Segundo Jacques Le Goff, uma das grandes preocupações das classes, dos grupos e dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas, é tornarem-se detentores da memória e do esquecimento142. Para tais classes vinculadas ao poder, lembrar o que lhes é conveniente assim como deter o esquecimento e os silêncios da história resumem-se também a formas de manipulação da memória coletiva. O esquecimento, os silêncios e os não-ditos podem ser formas de ocultar o que não se quer revelado. Diante disso, é válido lembrar que o desconhecimento é tam140 PADRÓS, Enrique Serra. Usos da memória e do esquecimento na história. Letras, 2001. p. 81. Idem. Ibidem. p. 80-83. 142 BURKE, Peter. Variedades de história cultural. 2000. p. 426. 141 85 bém uma forma de apagamento da memória, pois impede o posicionamento consciente e faz com que o sujeito permaneça na inércia do esquecimento coletivo143. Com base na problemática do apagamento da memória, nota-se, em Quatroolhos, que, através do trabalho de reescritura, a tentativa do narrador-protagonista é justamente resistir a essas formas de supressão da memória. Para tanto, centra-se na denúncia da situação social que assombrava o país, referindo-se não só à violência física, mas também à violência moral, em relação às quais ele se sente vitimado. Por meio da narração, o protagonista busca um espaço em que possa criar um novo mundo menos nebuloso que aquele que estava à sua volta. O mundo que ele procura criar em sua obra é aquele em que pessoas com mentalidade e postura crítica têm coragem de enfrentar as adversidades tais como se apresentavam anteriormente. Por outro lado, a própria tessitura do texto mostra como a sociedade da época ditatorial encontrava-se perdida e carente de informação referente à real situação do país, e como as pessoas eram alienadas em relação à sua realidade, bem como confirma a repressão quanto aos setores educacionais como escola e universidades, que não repassavam nem se preocupavam com o desenvolvimento do senso crítico dos cidadãos: [m]as quando conto essas coisas me parece viver fantasias, o livro cresce a meus olhos como muito mais real do que minha pobre vida. Seus personagens eram muito mais complexos, tinham muito mais domínio sobre as condições circundantes do que eu jamais tive na escola [...]. Tinha também dificuldades para acompanhar as conversas, já que citavam muitos nomes de autores que eu desconhecia. Me espantava como podiam ser finos, esses revolucionários, o quanto importante para eles era a pronúncia correta de nomes estrangeiros [...]. Nessas ocasiões meus dentes doíam em riso coprofílico a alguma observação esculachada, de que eram pródigos os presentes. Mas me sentia mais a vontade conversando com meu amigo funileiro, colega do primário que eu encontrava às vezes em sua oficina – ou então trocando ideias com vendedores de algodãodoce ou artistas de circo mambembe. Em casa, afagava os objetos, cinzeiros de cristal, sofá de couro, aparelhos de som de brilho opaco, punha algum licor rosa num copo fino para combinar e me sentia dono144. 143 Entretanto, mesmo concordando com Jacques Le Goff, cabe fazer uma indagação acerca do fato de por que, ainda na atualidade, mesmo a classe dominante que já é de certa forma integrada por pessoas que fizeram parte do grupo dos vencidos de outrora, ainda continua encobrindo, ocultando e dificultando o acesso aos documentos e aos registros de épocas de violência, como foi o caso da Ditadura Militar no Brasil. 144 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 100. 86 Observa-se, com essa passagem de Quatro-olhos, como o narrador procura (re)criar sua obra de modo cuidadoso, bem como imaginar personagens de mentalidade e conhecimento superior às pessoas e a ele próprio. Tal ação, para ele, era algo tão primoroso e complexo e, por isso, não se equiparava a nada daquilo que tinha aprendido nos bancos escolares, uma vez que julgava tais conhecimentos alienados e superficiais. Quando ele menciona as reuniões com revolucionários, organizadas por sua esposa e que aconteciam em sua casa, deixa evidente a admiração que tinha com o conhecimento que demonstravam os militantes e quão grande era sua dificuldade para entender o que eles falavam nessas reuniões, haja vista que ele não adquirira formação similar que lhe possibilitasse fazer parte das conversas. Tanto é, que ele revela sentir-se bem na presença de seu amigo funileiro – colega de primário, como enfatiza – ou, então, conversar com vendedores de algodão-doce ou artistas de circo. No entanto, a condição de pobreza intelectual, com que se apresenta o narradorpersonagem, é ornada com a presença de objetos fúteis como cinzeiros de cristal, sofá de couro e aparelhos de som de brilho opaco. Além disso, observa-se a ação de colocar licor rosa num copo fino, simplesmente para combinar, aludindo, assim, uma crítica às práticas e costumes burgueses da época, que se sobrepunham aos muitos interesses sociais. Em câmara lenta – ao cumprir seu papel de veículo de denúncia contra as violências praticadas durante o regime militar, mesmo que de forma menos elaborada e agressiva que Quatro-olhos, mas nem por isso de menor qualidade denunciativa – trata também da questão da alienação dos sujeitos em relação à conturbada realidade social. Nessa obra, tal problemática refere-se à fracassada organização guerrilheira: [o]s seis guerrilheiros tinham pela frente uma floresta imensa e desconhecida, armas ineficazes, uma ignorância quase total a respeito do que queriam fazer. Mas acreditavam [...] Sonâmbulos de uma ideia grandiosa, meia dúzia de adolescentes exaustos, cambaleando para explodir um continente145. 145 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 17 e 40. 87 Com base no fragmento, nota-se a presença do grande ideal que nutria os guerrilheiros, que objetivavam a organização de uma grande guerrilha no norte do país, em plena floresta amazônica. Esses revolucionários acreditavam que, saindo da cidade e indo ao campo, iriam conseguir um grande número de adeptos à luta armada contra a Ditadura Militar. Entretanto, não é bem isso o que acontece: o pequeno grupo de seis guerrilheiros não consegue encontrar pessoas dispostas a unir-se a eles e a lutar contra o regime imposto. Diante do fracasso da organização guerrilheira, da qual o narrador-protagonista também participou, ele se dá conta de quão ingênuos e sonhadores foram em almejar tal ação: [a]gora eu sei, sozinhos, fazendo ações sem ir buscar os outros, os que sabem, os que precisam, os que querem, os que podem, assim sozinhos nós só poderíamos chegar onde chegamos, acabar um a um, perder tudo, a vontade, a esperança e viver somente com ódio e uma amargura [...]. Ele me disse que nesse tempo, dois anos a organização assentou, cresceu [...]. [E]u compreendi de repente uma verdade simples, óbvia, que eu devia ter sabido sempre, mas é preciso que morra um monte de gente, é preciso sacrifício e sangue pra se entender uma coisa simples, fácil e óbvia que nem essa, que nem isso tudo, apenas que é o povo, a massa, o proletariado que faz a revolução e não nós sozinhos que o que nós temos pra fazer é buscá-los e ensinar, educar, organizar e eles se levantarão e derrubarão tudo. E nós não entendemos, nem soubemos fazer isso e também que, para fazer isso, é preciso saber o que ensinar, como organizar e isso eu não sei, eu só aprendi outras coisas146. Através da rememoração desse passado em que o pequeno grupo de estudantes pretendia vencer uma legião de militares, ele se dá conta do despreparo e do desconhecimento que tinham em relação ao sistema político e social em que se encontravam. O narrador entende que não poderiam ter tido outro destino além daquele que tiveram – em que alguns foram mortos, outros presos e torturados –, pois não receberam um preparo adequado, não tinham desenvolvido uma organização capaz de tal atitude. Após um tempo transcorrido, o narrador-personagem entende que o que eles deveriam ter buscado antes de pegar em armas era conhecimento, era o contato com pessoas que podiam lhes ensinar o verdadeiro sentido de lutar em prol de justiça para aí sim levar esse mesmo conhecimento até outras pessoas, até a grande massa. A desilusão do protagonista radica em torno do quão despreparados 146 Idem. Ibidem. p. 159-160. 88 eram “esses sonhadores”, pois não aprenderam a desenvolver o espírito crítico, viveram alienados do conhecimento capaz de verdadeiramente revolucionar, e só lhes restou, em atitude desesperada, pegar em armas. A questão da alienação social em que a grande parte da população vivia emergida encontra seu ápice de denúncia quando o narrador narra a situação em que viveram quando chegaram a um pequeno vilarejo isolado em meio à floresta amazônica. Nesse relato, o narrador lembra como foi o contato com aquelas pessoas que lá se encontravam: [o]s guerrilheiros pararam e o venezuelano começou a falar, um discurso que misturava português e espanhol. Os outros se dispuseram em círculo em torno dele. Falou da miséria em que os caboclos viviam e os caboclos não sabiam que em sua vida havia miséria. Falou da exploração a que o povo era submetido e os caboclos sequer imaginavam que fossem explorados ou que pudessem sê-lo: desde sempre viviam assim. Ele falou ainda da luta para derrubar os opressores, convidando a que aderissem à guerrilha e os caboclos não sabiam contra quem lutar nem porquê147. Fica nítido com tal fragmento que, se os próprios estudantes encontravam-se desorientados e sem preparo para enfrentar o problema da repressão e do regime militar, quanto mais as pessoas simples que viviam em meio à floresta e distante de tudo. Pode-se inferir, através de uma passagem como essa, a crítica que o narrador faz ao próprio sistema político desenvolvimentista que propunham os militares. Ora, se o país se direcionava para grandes avanços em todos os setores, segundo as propostas dos militares, como aceitar que pessoas ainda vivessem extremamente isoladas e alheias a tudo, “ali como a floresta e como o rio [...], presos à terra como árvores”148. Nota-se que o narrador enfatiza como falaram a essas pessoas sobre a miséria, sobre a exploração e da importância de lutar contra tudo isso. Entretanto, parecia que esses indivíduos nada estavam entendendo, pois como sempre haviam vivido assim, não sabiam que outra vida mais justa e mais digna era possível. Diante de tais eventos, o trabalho meticuloso a que se propõem os narradoresprotagonistas tanto de Quatro-olhos quanto de Em câmara Lenta representa não 147 148 Idem. Ibidem. p. 41. Idem. Ibidem. p. 40. 89 um simples lembrar o passado, mas “recordá-lo”149 por meio do processo de escrita literária. Para tanto, ao se falar da criação literária pautada no resgate da memória, levam-se em consideração os pressupostos levantados por Maurice Halbwachs, um dos críticos precursores a defender a ideia de que o resgate da memória individual sempre estará diretamente interligada à memória coletiva150. Para o autor, a memória coletiva, enquanto constitutiva da história, somente acontece a partir das lembranças de cada um dos indivíduos pertencentes a uma determinada coletividade. Dessa forma, a memória individual está sempre relacionada ao meio social, e as lembranças individuais devem ser entendidas como provenientes e também constitutivas da vida social. Michael Pollak, por sua vez, em seu artigo Memória, esquecimento, silêncio, ao comentar o conceito de memória coletiva tal como proposto por Halbwachs, argumenta que o que este autor propõe, a partir de tal conceito, é não um processo de seletividade de memórias individuais, mas um trabalho de “negociação” entre memória coletiva e memórias individuais: [p]ara que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos tragam seus testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída sobre uma base comum151. Dessa forma, as memórias individuais, aqui apresentadas através da narração dos protagonistas de Quatro-olhos e de Em câmara lenta, são entendidas de acordo com a crítica de Halbwachs, uma vez que as lembranças dos narradores, ao se apresentarem individualmente, são constituídas de acordo com um contexto social comum. Suas lembranças compõem um quadro dos acontecimentos sociais e coletivos da época, e as memórias de ambos os protagonistas concorrem para a referência a uma versão (des)conhecida do passado de uma coletividade. Nos dois romances, as tentativas recorrentes de rememoração do passado apresentam formas e conteúdos semelhantes entre si, representando, pois, a memó149 Para Benjamin, “lembrança” significa “lembrar” – Andenken –, e “recordar” significa “ter presente” – Eingedenken. Cf. UMBACH, Rosani Ketzer. Memórias da repressão e literatura: algumas questões teóricas. In: ____ (Org.). Memórias da repressão. 2008. p. 15. 150 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 1990. p. 32-65. 151 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, 1989. p. 3. 90 ria de uma coletividade diretamente relacionada ao meio social. A referência à violência física e às torturas representa, desse modo, as cíclicas rememorações similares dessas narrativas, assim como pode ser observado através da seguinte passagem de Quatro-olhos: [t]odos estavam condenados à tortura, em ambientes infectos e sujos e poucos protestavam, pois sempre havia a hora de escovar os dentes, o intervalo das refeições; à noite havia o lazer fabricado vindo de longe, sempre elétrico, e não era proibido urinar. A vida era suportável nos intervalos das torturas [...]. As torturas eram o caminho concreto para a libertação, pelo menos era o que se comentava. Antes de chegarem a determinado grau, ou melhor a grau indeterminado, era impossível fazer qualquer coisa. Os graus variavam para cada um, ou talvez fosse sempre o mesmo grau, alguns o atingindo, outros não – para o meu amigo funileiro, o momento chegou cedo demais. Eu particularmente nunca sofri muito, a não ser quando estava fazendo o livro152. O relato do protagonista deixa evidente como era a realidade da época da ditadura no que se refere às torturas físicas como prática de repressão e silenciamento. Nota-se a referência ao ambiente caótico a que eram submetidas as vítimas presas. Contudo, observa-se que o narrador se vale de certa sutileza, mas sem deixar de lado o sarcasmo, para referir-se à cadeira elétrica, também conhecida como cadeira do dragão, um instrumento de tortura, que disparava altas descargas elétricas nas vítimas e era utilizada pela polícia do Brasil, pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e pelo Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), durante o regime militar. Para referir-se a tal instrumento, ele faz menção ao lazer que vinha de longe à noite, sempre elétrico, ao qual não era proibido urinar, remetendo, assim, ao grau exagerado da violência praticada com esses instrumentos. Lembra inclusive como o grau era diferente entre um e outro preso. Analisando a referência que faz o narrador a respeito dos determinados graus de tortura a que eram submetidas as vítimas, pode-se entender também que alguns não resistiam por muito tempo tais práticas violentas e morriam, como no caso de seu amigo funileiro, ao qual o narrador se refere dizendo que o tempo para aquele chegou cedo demais, pois não aguentou vivo por muito tempo as torturas. Em Quatro-olhos, observa-se a denúncia das torturas e das violências praticadas durante a ditadura, geralmente de modo muito sutil, em que o narrador152 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 23. 91 protagonista, na maioria das vezes, usa-se de estratégias discursivas capazes de disfarçar o tom da denúncia em relação a tais situações. Já em Em câmara lenta, o testemunho da violência física aparece de maneira mais explícita e audaciosa, conferindo à narrativa um tom desesperador de denúncia perante tais violências: [c]om um esforço, continuava calada. Eles puxaram-na pelo braço quebrado, obrigando-a a sentar-se. Amarram-lhe os pulsos e os tornozelos, espancando-a e obrigando-a a encolher as pernas. Passaram a vara cilíndrica do pau-de-arara entre seus braços e a curva interna dos joelhos e a levantaram, para pendurá-la no cavalete. Quando a levantaram e o peso do corpo distendeu o braço quebrado, ela deu um grito de dor, um urro animal, prolongado, gutural, desmedidamente forte. Foi o único som que emitiu durante todo o tempo [...]. Os choques incessantes faziam seu corpo tremer e se contrair, atravessavam-na como milhares de punhais e a dor era tanta que ela só tinha uma consciência muito tênue do que acontecia. Os policiais continuavam a bater-lhe no rosto, no estômago, no pescoço e nas costas, gritando palavrões entremeados por perguntas e ela já não poderia responder nada, mesmo que quisesse [...]. Um deles enfiou na cabeça dela a coroa-de-cristo: um anel de metal com parafusos que o faziam diminuir de diâmetro [...]. O policial começou a apertar os parafusos e a dor a atravessou, uma dor que dominou tudo, apagou tudo e latejou sozinha em todo o universo como uma imensa bola de fogo [...]. Quando os ossos do crânio estalaram e afundaram, ela já havia perdido a consciência, deslizando para a morte com o cérebro esmagado lentamente153. Nota-se, em tal fragmento de Em câmara lenta, como o narrador-personagem se preocupa em relatar a violência em todos os seus detalhes. A forma como ele descreve as etapas da violência até culminar com a morte da vítima, sua companheira, é clara e destituída de qualquer máscara ou disfarce capaz de burlar a censura. Entretanto, o fato de tal passagem, repleta de detalhes, aparecer em sua narrativa apenas nas últimas páginas da obra pode inclusive ser vista como uma estratégia de ataque quando nada mais faz sentido, quando o narrador percebe que sua organização fracassou e que também perdeu sua companheira para o sistema repressivo e violento. Nessa etapa da narrativa, infere-se que o narrador-personagem já não se preocupa mais com o que lhe pode acontecer por denunciar de modo tão explícito as barbáries, pois nada mais tem a perder, e o que lhe resta é levar ao conhecimento dos outros o que ele agora sabia em relação às torturas e às mortes de pessoas inocentes. 153 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 171-172. 92 Com base em tais excertos, que apelam à memória como ferramenta primordial para emitir juízos e versões sobre os fatos do passado, pode-se acrescentar que a obra literária enquanto ficção não busca negar por completo a autoridade da história. Contudo, a obra literária que se pauta na rememoração preza pela liberdade em lançar novas luzes sobre os eventos do passado, a fim de estabelecer uma nova relação entre memória e história, para, dessa forma, reconstruir um passado não alicerçado somente em fontes históricas embasadas na ideologia dominante, mas também de um modo subjetivo, através da memória individual e coletiva, e, assim, reerguer a história sob outro foco, sob a perspectiva da “história vista de baixo”, conforme expressão utilizada por Peter Burke154. Rosani Ketzer Umbach, em seu artigo Memórias da repressão e literatura: algumas questões teóricas, aborda as definições elencadas por Astrid Erll acerca da memória nos estudos literários, em que o crítico distingue-a em três categorias: 1) memória da literatura; 2) memória na literatura; 3) literatura como “veículo da memória coletiva”155. A primeira classificação pauta-se na imagem metafórica de “memória do sistema simbólico literatura”, ou seja, a memória é manifestada nos textos por meio de referências intertextuais, quando, em uma obra literária, a literatura anterior é rememorada, através da intertextualidade, de esquemas, de pensamento ou de expressão. Nessa categoria, inclui-se ainda a “memória do sistema social literatura”, a qual é representada por meio da história da literatura e pelo cânone, institucionalizando, assim, a memória de uma tradição literária no mundo social. A segunda classificação, a memória na literatura, refere-se à “mímese da memória”. Esta remete à encenação da memória, tratando de recordações e lembranças em textos literários. Tal memória traz à mostra o funcionamento, processos e problemas da memória (individual e coletiva) no campo ficcional por meio de procedimentos estéticos. A terceira classificação trata da literatura como veículo da memória, atuando na formação de versões do passado, na construção de identidades coletivas, na negociação de memórias concorrentes e, inclusive, agindo como instância de supervisão crítica de processos culturais que tenham relação com a memória. 154 Cf. BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. 1992. UMBACH, Rosani Ketzer. Memórias da repressão e literatura: algumas questões teóricas. In: ____ (Org.). Memórias da repressão. 2008. p. 12. 155 93 Diante de tais classificações, a autora atenta para a relação que deve existir entre os estudos da memória na literatura com a construção da história156. Tal premissa é justificada pelo fato de que o século XX, por ser caracterizado pela violência e repressão extremadas, tanto na Europa quanto na América Latina, gerou inúmeras vítimas, mas deixou também sobreviventes, cujas memórias apresentam-se “de suma importância para a conscientização das gerações posteriores a respeito da intolerância, das perseguições e dos extermínios que ocorreram”157. Dessa forma, a autora chama a atenção para a importância da produção literária memorialística para o resgate de tais eventos históricos associados à violência, à catástrofe e ao trauma. Tal resgate, do seu ponto de vista, estaria a serviço da reconstituição da história, não a tradicional, mas aquela defendida por Walter Benjamin158, a qual, pautada na memória das ruínas do passado, busca uma reconstituição dessa memória e, consecutivamente, da história dos vencidos, daqueles deixados à margem da sociedade pela historiografia oficial. Márcio Seligmann-Silva, ao desenvolver estudos acerca da memória, direciona seus argumentos para o fato de que não é possível existir memória sem seu correlato: o esquecimento159. A respeito de tais considerações propostas pelo autor, observa-se que, tanto em Quatro-olhos quanto em Em câmara lenta, ocorre uma relação muito forte entre lembrar e esquecer, pois os protagonistas, ao mesmo tempo em que se esforçam para rememorar o passado na tentativa de entendimento e assimilação deste, percebem que nem tudo o que gostariam de relatar está ao alcance de sua memória, já que muitos fatos foram esquecidos. Em Quatro-olhos, tem-se um narrador-protagonista que se debate na tentativa de narrar em seu livro lembranças as quais lhe parecem de extrema importância e que, por isso, não deveriam ficar de fora de seu manuscrito. Entretanto, depara-se com o esquecimento que assombra sua memória e o impede de organizar de forma harmônica os fatos que sobressaltam sua mente, impedindo-o de identificar com clareza quando está falando do seu passado ou quando está se referindo ao conteúdo de sua obra original que fora perdida: 156 UMBACH, Rosani Ketzer. Estética e política nos espaços comparatistas. 2011. [no Prelo]. Palestra proferida pela autora durante as atividades do II SINEL, III SENAEL e III SELIRS realizadas na URI-FW durante os dias 10 a 13 de maio de 2011. 157 UMBACH, Rosani Ketzer. Memórias da repressão e literatura: algumas questões teóricas. In: ____ (Org.). Memórias da repressão. 2008. p. 17. 158 Idem. Ibidem. p. 17. 159 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Reflexões sobre a memória, a história e o esquecimento. In: ____ (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 60-63. 94 [e]la, porém, me amava, o que só vim a perceber muito recentemente, no intervalo do primeiro para o segundo tempo de um jogo a que eu estava assistindo muito depois de tê-la visto pela última vez. Continuo porém a comportar-me como se ela me amasse ainda hoje, do que aos poucos fui adquirindo imutável certeza. Mas foi nesse instante, lá no estádio a caminho da cerveja do meio-tempo, que me lembrei não só que ela me amava mas também do livro. O rebate do telefonema não fora verdadeiro. A roda de mãos dadas é recordação de adulto. As crianças, como se sabe, não têm infância e nunca brincam. A fila de ônibus, porém, realmente existiu. O rapaz chegou para a moça da fila e disse: “Te trago um embrulho cor-de-maravilha”. Era uma lata de goiabada, disso me lembro perfeitamente, mas acho que não fazia parte do livro. O homem estava morto na avenida. Acho que no romance não havia rosas. É certo, no entanto, que se tratava de um campo de concentração. Nem sempre tinha sido assim. Agora aliás não estou falando do meu trabalho, acima e além de tudo, restrito ao puro cuidado de criar, distante de qualquer confissão. É o que me lembra no momento, mas às vezes me surgem lembranças inadequadas; não sei onde foi parar o livro, mas em algum lugar eu o deixei. Agora estou pensando em outras coisas: dedos desprezíveis me tocaram, mais de uma vez [...]. E lembrava, não sei se do livro ou da vida160. Em tal passagem, é possível perceber como o narrador-protagonista não consegue ordenar e expor com clareza suas lembranças. Ele começa a narrar a respeito de sua vida pretérita – lembrando os momentos da vida real que passou com sua mulher e dos sentimentos que ambos nutriam um pelo outro –, mas, logo, sua narração migra, de forma muito repentina, para outras recordações, as quais não consegue identificar se são de sua própria vida ou do livro que escrevera. Em sua mente, as imagens se confundem, e as lembranças de pessoas que ele não lembra se fizeram parte de sua vida ou de seu livro surgem e mesclam-se constantemente. Com certo esforço, lembra que havia um local específico para a realização das torturas e que essa lembrança que, por ora, assombra sua mente, não se refere somente ao conteúdo do livro, mas a um acontecimento de sua própria vida. Tece inclusive vagas lembranças acerca das brutalidades praticadas nesse local onde parece que esteve. As lembranças inadequadas vêm à sua mente – inadequadas porque o fazem sofrer novamente a violência que “dedos desprezíveis” praticaram por muitas vezes. Ressalva-se, portanto, o dificultoso trabalho de Quatro-olhos para relatar o passado, tanto da vida quanto do livro, e sua tentativa em manter-se lúcido diante dessas memórias embaralhadas que lhe atormentam. 160 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 20 e 31. 95 O narrador-protagonista de Em câmara lenta revela também sua dificuldade para organizar seus pensamentos e suas memórias. Tal constatação pode ser comprovada com passagens como: [o] que fizeram com ela? O tempo bate nos ouvidos, passa gota a gota, o mundo arrebentado em milhares de pedaços, a casa vazia. O sorriso e as mãos, uma expressão tranquila, e de repente. A vida rachou no meio, ficou lá toda certeza possível. O próprio gesto, agora, é um movimento hesitante feito de diversas repetições. Como um vaso que cai: estilhaçado em pedaços irregulares. Alguma vez ele esteve inteiro? Estilhaços. Misturados no chão com uns restos de vida, um pedaço de rosto, uma frase, um livro rasgado. O tempo nos ouvidos: é muito tarde. O que deixou de ser feito, nunca mais será feito. É tarde. O que fizeram com ela? [...] O gesto continuava estilhaçado, espalhado aos pedaços pelo chão da casa e é impossível reunir as peças para reconstituir seu sentido. Para restituir a forma ao jogo de armar. Os elementos acumulados e ordenados pelo tempo se arrebentaram, explodiram em mil fragmentos no momento em que ela [...]. Então agora: tudo muito de repente, tudo de uma vez fragmentado e não há mais tempo para nada. O espelho foi de novo colocado, mas agora ele está trincado em mil pedaços e devolve uma imagem partida. Uma imagem que não é mais do mundo, mas de uma solidão voltada sobre si mesma. O gesto incompleto, estilhaçado, no momento em que ela161. Nesse discurso, nota-se a constante presença da dúvida que paira sobre os pensamentos do narrador. Inicialmente, a indagação por não saber o que aconteceu com sua companheira, o que fizeram com ela e como foi morta. A constante verificação de uma vida que não pode mais seguir seu curso normal – pois algo de muito grave aconteceu e fez com que tudo perdesse o sentido – vem à mente do narrador de forma muito fragmentada. Ele se dá conta da problemática que está enfrentando, de que não consegue reunir as informações suficientes para entender o que aconteceu no passado para, talvez com isso, encontrar um sentido e seguir a vida. As imagens e lembranças que ele tem não são suficientes para lhe fazer entender a atual sensação de perda e desilusão em que se encontra. Tudo agora é muito vago, a memória em si é muito vaga e incompleta, pois ele lembra de algumas vidas, de rostos, de frases ditas e de um livro rasgado, mas não consegue unir esses estilhaços da memória a fim de entender o que se passou. A vagueza e a incompletude das informações apontam para um pensar acerca de que forma o esquecimento passou a dominar sua memória, bem como a notória falta de 161 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 38-43. 96 informações da qual se sentia vítima. Contudo, a lembrança do livro rasgado que fulgura em sua mente pode servir para questionar e propor uma reflexão sobre as formas de silenciamento utilizadas pelo poder. A menção ao livro pode ser analisada como uma metáfora em relação à imposição do esquecimento por meio da violência, à destruição de conteúdos e ao apagamento de mensagens que o poder não queria que fossem divulgados e conhecidos. A dificuldade para organizar de forma coerente e lógica o passado, bem como as poucas lembranças deste, demonstra a quão árdua era a tarefa de trazer esse passado até o presente, mesmo que isso se fizesse necessário para ajudar os protagonistas a reerguerem suas vidas. De acordo com Walter Benjamin, sempre existirá uma relação intrínseca entre ações do presente em relação aos fatos do pretérito. Assim, pelo fato de os protagonistas não conseguirem lembrar com clareza as suas histórias de vida, evidencia-se como suas mentes foram abaladas pelos acontecimentos desencadeados pelo poder dominante e pelas práticas de repressão, comprometidas com o apagamento da memória, provindas do regime ditatorial. A impossibilidade de se estabelecer um elo entre o passado e o presente retoma uma vez mais a ideia de correlação entre a memória e o esquecimento, tal como defendida por Seligmann-Silva. Essa mesma ideia é ratificada por Renato Franco, quando enfatiza que tentar lembrar daquilo que fez parte do seu passado é uma forma de colocar o indivíduo diante de sua condição de homem cindido. Ainda segundo o autor, o conteúdo do esquecimento está relacionado à sua própria identidade, ao que, no passado, ele mesmo foi. Torna-se, assim, consciente de como está dilacerado, incapaz de unir o passado ao presente162. Essa tensão existente entre lembrança e esquecimento, entre revelação e ocultamento dos eventos violentos, é discutida também por Loiva Otero Felix. A autora afirma que, ao se estudar a memória, não se está apenas tratando da perpetuação de eventos, mas do esquecimento, dos silêncios e dos não-ditos163. Segundo a pesquisadora, lembrança e esquecimento estão imbricados, não há uma oposição entre o que é verdadeiro e o que é falso, e o que ocorre não é uma contradição, mas uma zona intermediária entre esses dois polos, em que a verdade (alétheia) se desloca progressivamente em direção ao esquecimento (léthe), e assim reciprocamente. Ao se olhar para o esquecimento como um elemento fundador, não se pode deixar de 162 FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 366. 163 FELIX, Loiva Otero. História e memória: a problemática da pesquisa. 1998. p. 45. 97 perceber que ele nunca se dá de forma neutra em relação ao que deve ser esquecido ou a quem deve ser imposto o esquecimento164. Usar-se das estratégias de esquecimento é, sem dúvida, uma possibilidade de manipulação da memória pelo poder. Cabe ressaltar ainda que “esquecimento ou silêncio é a potência da morte que se ergue frente à potência da vida, Memória”165. Lembrar, portanto, é uma atividade desafiadora da vida em relação à morte. A narrativa de Quatro-olhos, ao tentar resgatar a memória para reconstituir fatos e assim cumprir também com um compromisso social, concorre, inclusive, para a representação de práticas que visavam ao ocultamento da violência praticada: “Volta o veterano e, da derrota triunfa: ‘Enquanto os senhores ouviam meu colega, as manchas de sangue foram lavadas; o cadáver há muito foi recolhido. Partículas de hemoglobina, porém, ficarão para sempre agregadas a esse trecho de asfalto’”166. Essa é uma passagem lembrada pelo protagonista e que estava em seu livro perdido. A crítica aqui pode ser feita no seguinte sentido. Enquanto a grande maioria da população, naquele momento, ocupava-se com discursos de progresso dos militares, propagados pelos meios de comunicação de massa como televisão e rádio, muitas pessoas desapareciam, eram torturadas e mortas sem que a sociedade se desse conta da real situação em que se encontrava o país. Já o protagonista de Em câmara lenta atenta para uma denúncia mais incisiva no que se refere às formas como o sistema vigente da época se manifestava em relação aos desaparecimentos e mortes de pessoas que eram presas e possivelmente torturadas: [p]rincipalmente agora, com toda essa gente sendo “atropelada”, caindo debaixo de caminhões ou mesmo da escada até virar uma coisa sangrenta, pasta de gente [...]. Porque com quase todos foi assim, todo mundo sabe que a notícia do jornal é uma mentira, o que fizeram com ela?167. A referência à tentativa de ocultamento da violência que era praticada contra os presos militantes fica explícita quando o narrador, através do uso da palavra “atropelada”, ironiza a frieza com que eram tratados os casos de pessoas que apareciam 164 Idem. Ibidem. p. 51. In Idem. Ibidem. p. 45. 166 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 19. 167 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 18. 165 98 mortas. Da mesma forma, estende sua crítica a como eram divulgadas essas notícias nos jornais. Isso porque, apesar de as pessoas saberem que os mortos que apareciam completamente desfigurados não poderiam ter sido simplesmente vítimas de atropelamentos ou outro acidente qualquer, eram essas as versões que predominavam nos meios de comunicação de massa, ocultando a verdade e mascarando a violência praticada. Nelly Richard, ao tratar de questões ditatoriais chilenas semelhantes às ocorridas no Brasil, discute como o país buscou o ocultamento das barbáries ditatoriais e como tais estratégias possivelmente foram estendidas a outros países. A autora discute que, no Chile, a elite dominante procurou restabelecer a ordem, impondo uma espécie de consenso entre as oposições, eliminando, com isso, os desajustes da memória que recordavam experiências traumáticas do passado e criando “uma história social e cultural falsamente reconciliada consigo mesma”168. Segundo Richard, colocar lado a lado as classes distintas foi uma forma de suprimir as memórias do passado que poderiam atacar a elite dominante e, consequentemente, o poder vigente. Loiva Otero Félix também traça caminhos de discussão acerca do ocultamento ou do encobrimento das memórias do passado com base no que se refere à anistia política. A respeito disso, a autora comenta que essa era uma forma de fazer com que a lembrança dos sujeitos que passaram por provações extremas fosse esquecida, a fim de que houvesse o perdão das lembranças dolorosas169. Contudo, tal estratégia concorre para a possibilidade de se estabelecer uma relação entre verdade e engano, ou seja, a verdade torna-se uma propriedade da elite, que passa a ser a detentora da “verdade” é também do poder de enganar. Enfim, o objetivo da classe dominante é fazer uso de um discurso para construir uma realidade que seja livre de qualquer opacidade capaz de macular o consenso histórico positivista170. Em Quatro-olhos, a necessidade de rememoração é tão grande, que o narrador sente que convém deixar registrado em sua narrativa o dia em que não foi autor, o dia em que não conseguiu lembrar de nada para escrever. Conforme nota-se a seguir: 168 RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. 2002. p. 57. FELIX, Loiva Otero. História e memória: a problemática da pesquisa. 1998. p. 45. 170 Idem. Ibidem. p. 46. 169 99 [n]ecessidades de ordem prática, me levaram naquela desprimorosa segunda-feira a deixar de lado o trabalho. Muito positivamente, estava desprovido do instrumental imprescindível à consecução da tarefa. Desmesura explicar que me faltavam papel e tinta, de modo que, nessa segunda-feira certa, nada escrevi. Interessante lembrar com pormenor as horas em que não fui autor, quando nada recordo do livro171. Essa certa segunda-feira, em que ele não conseguiu escrever nada, elucida a constante batalha que se travara em sua mente entre a necessidade de lembrar e a constatação dessa dificuldade para fazê-lo. O fato de o narrador nada conseguir escrever nesse referido dia o distancia ainda mais da realidade, pois, lembrar para ele era uma forma de voltar a sentir-se vivo, voltar a relacionar-se com o mundo, (re)construir um mundo aceitável para viver. Querer escrever, não encontrar em sua mente “instrumental imprescindível à consecução da tarefa” e dar-se conta de que as palavras não são suficientes para expressar o que ele gostaria de colocar no livro fazem com que Quatro-olhos desista dessa tarefa naquele dia. Isso porque, como ele mesmo afirma, as palavras pareciam entrelaçadas e distantes, de tal modo que sua contribuição à ciência naquele momento seria muito mais o silêncio que a vã tentativa para escrever. Também para o narrador-protagonista de Em câmara lenta, por algumas vezes, as palavras lhe parecem destituídas de qualquer sentido e inúteis para lhe ajudar na tarefa de rememoração e de denúncia. Assim como se observa: [n]ao foi apenas uma pessoa que morreu, foi o tempo. De repente o mundo está cheio de algodão, espesso e pegajoso, as palavras não fazem mais sentido porque não nomeiam coisas – apenas soam como ecos, prolongados por ouvidos acostumados a classificálos172. Para o narrador de Em câmara lenta, o mundo que o cerca já não apresenta mais nenhum sentido, de forma que a própria linguagem também já lhe parece carente de significado e de importância. Para as lembranças recuperadas através de poucas e vagas informações, que eventualmente lhe são oferecidas em relação ao seu 171 172 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 38. TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 15-16. 100 passado, ele não consegue encontrar palavras adequadas para externalizá-las em seu relato, ficando sempre frases por concluir e perguntas sem respostas. O sujeito sente necessidade de contar o que viveu, mas é incapaz de organizar os fatos em seu pensamento. O trauma da violência, sofrido pelos protagonistas, opera uma cisão na memória, o que os impossibilita não só de lembrar o passado, mas principalmente de encontrar linguagem apropriada para narrá-lo devido à grandiosidade do evento. Os narradores não são capazes de organizar os episódios de maneira harmônica, e isso se dá em razão das circunstâncias históricas em curso, em especial a repressão e as torturas sofridas por eles. Tais mecanismos traumáticos não permitem que o sujeito posicione-se criticamente como seria seu desejo, contribuindo inclusive para o esquecimento de muitos episódios e desencadeando uma narrativa esteticamente problemática, destituída de integridade e linearidade. Entretanto, discutir o processo narrativo tanto de Quatro-olhos quanto o de Em câmara lenta permite que se avalie a penosa luta, por parte de seus narradores, contra o esquecimento imposto pelo poder. Diante disso, torna-se imprescindível observar como tais narrativas se constituem em tentativas de (re)organização e de (re)estruturação de histórias de vida marcadas pela violência. Assim, os narradoresprotagonistas de ambos os romances buscam, através da recuperação da memória e da possibilidade de narrá-la, uma forma de (re)integração social e um espaço para expor a sua versão da história, mesmo que em desacordo à versão oficial. Walter Benjamin, ao discorrer sobre o conceito de história, o que consiste também numa teoria da memória, insiste na reconstrução da história através da rememoração. Para o teórico, torna-se imprescindível trazer à tona o passado deixado à margem pelo método historicista, o qual se preocupa em narrar somente a versão dos vencedores, abafando a verdadeira história das sociedades oprimidas173. Em outros termos, conforme explica Jeanne Marie Gagnebin, o historicismo acaba por mascarar a luta de classes e por contar a história dos vencedores, culminando, assim, no apagamento da memória dos excluídos, isto é, dos esquecidos da memória oficial174. Ainda segundo a autora, cabe ao historiador materialista não deixar essa memória dos excluídos esquecida, mas zelar pela sua conservação e assim contribuir na reapropriação desse fragmento de história. “Cada geração recebe assim uma ‘tê173 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 1994. p. 223-224. 174 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória e libertação. In: ____. Walter Benjamin: os cacos da história. 1982. 101 nue força messiânica’, porque cabe a cada presente resgatar o próprio passado; não apenas guardá-lo e conservá-lo, mas também libertá-lo”175, reforça a autora com base na Tese II de Benjamin. Para finalizar, cabe retomar Nelly Richard quando afirma que recordar a tensão e os dilaceramentos da arte da memória é uma forma de resgatar dessa memória um campo de forças plurais e divergentes, para assim abrir uma multiplicidade de pontos de vista176. Para a autora, as contradições históricas oriundas dos distintos pontos de vista não podem permanecer silenciadas de acordo com a vontade de uma ideologia que busca abolir qualquer “corpo estranho”177 que se apresente como ameaça à clarividência de uma história social e cultural falsamente harmonizada consigo mesmo. Assim, narrar as memórias das experiências vividas por parte dos protagonistas de Quatro-olhos e Em câmara lenta configura-se em pequenas peças de um grande quebra-cabeça que, muitas vezes, toma-se desconhecido ou não acontecido. Com isso, ao se retomar a ideia de que as diversas formas abusivas de repressão e violência praticadas sob a forma de tortura, durante o período ditatorial, resultavam no apagamento da memória dos indivíduos e, consequentemente, no apagamento de uma história que a elite não queria que fosse lembrada e repassada, reforça-se a necessidade cada vez maior de se (re)visitar esse passado e trazê-lo novamente ao presente. Assim, através da percepção dos distintos pontos de vista desse passado, a sociedade pode compreendê-lo e, da mesma forma, entender o presente e planejar o futuro de modo a evitar acontecimentos semelhantes. 3.2 A melancolia nas obras de Pompeu e Tapajós À proporção que declinava o dia e que as sombras cobriam o céu, esse vago inexprimível da noite no meio das ondas, a tristeza e melancolia que infunde o sentimento da fraqueza do homem em face dessa solidão imensa de água e de céu, se apoderavam de meu espírito. (Cinco minutos, José de Alencar) 175 Idem. Ibidem. RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. 2002. p. 57. 177 Idem. Ibidem. p. 57. 176 102 A brutalidade a que foi exposta grande parte da sociedade em virtude da implantação da Ditadura Militar no Brasil, na medida em que afetou a memória das pessoas envolvidas, suprimindo, através do esquecimento imposto, uma série de lembranças importantes para sua própria existência e para a sociedade, provocou também uma série de perdas. A ideia de perda que por ora é elencada, se, por um lado, permanece relacionada à noção de perda de memória individual e coletiva por parte de uma significativa parcela da sociedade que sofreu as consequências da repressão, por outro, remete às figuras do desaparecimento e da ausência física de muitos militantes revolucionários, políticos, artistas, intelectuais, estudantes, dentre outros que se mostravam contrários ao regime imposto. Diante disso, torna-se importante refletir acerca dos sentimentos que são desencadeados pelo sujeito quando este é afetado por uma perda. O sujeito, quando perde seu objeto de investimento libidinal, seu objeto de amor, atravessa um processo de intenso sofrimento. Segundo Nelly Richard, as perdas, sejam elas de que natureza forem, podem desenvolver no sujeito bloqueios psíquicos, paralisações afetivas e inibições da vontade178, em função da sensação de irrecuperabilidade do objeto perdido. Frente a tal situação, principalmente quando ocasionada em meio a uma condição histórica marcada pela violência, o sujeito passa a viver um luto tensional e mergulha numa espécie de tristeza sem fim, sentimento esse denominado de melancolia. O termo melancolia179, definido por Hipócrates como um estado de tristeza e medo de longa duração, deriva do grego mélas kolé, “humor negro”, e é considerado o estado psicológico típico do temperamento atrabilioso – de atrabilis ou bílis negra. Para o filósofo, o melancólico é alguém cujo estado mental apresenta-se perturbado180. Já Aristóteles, ao discorrer sobre a melancolia, a define como a natureza (physis) e o hábito (ethos) do filósofo. Não como doença, o temperamento melancólico passa a ser associado à personalidade de exceção, à genialidade, aos espíritos excepcionais. De acordo com o filósofo, existiria uma ligação entre a postura melancólica e o pensamento contemplativo, necessário à filosofia. Aristóteles também aponta 178 RICHARD, Nelly. Políticas da memória e técnicas do esquecimento. In: MIRANDA, Wander Melo (Org.). Narrativas da modernidade. 1999. p. 325. 179 Convém destacar que a pretensão desse estudo não é fazer um prolongado levantamento acerca das distintas concepções de melancolia que se apresentaram ao longo dos tempos. Entretanto, acredita-se ser plausível o levantamento de algumas das principais concepções, bem como dos distintos pontos de vista acerca desse sentimento, para assim tornar mais produtivo o entendimento dos romances em análise. 180 GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante – elementos melancólicos em Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo. 1997. p. 45. 103 para o fato de que é a bile negra a responsável pelo desenvolvimento do sentimento melancólico. Segundo ele, a bile negra tem por propriedade a inconstância e, por isso, ela pode se comportar de modo variável, por vezes muito quente, por vezes muito fria, a ponto de causar efeitos diversos e geralmente contraditórios, sendo assim o melancólico, por natureza, um ser contraditório181. Entretanto, é Constantinus Africanus, autor árabe medieval, quem desenvolveu um importante estudo acerca do sentimento melancólico. O estudioso partiu da premissa de que a melancolia compõe-se de um misto de medo e tristeza que confunde a alma: tristeza pela perda de algo muito amado e medo pela suspeita de que algo possa causar no sujeito um dano futuro182. Com base nisso, observa-se que, tanto em Hipócrates como em Constantinus, a melancolia é apresentada como uma doença. Para o primeiro, ela é decorrente de uma degradação do sangue, de uma putrefação que desordena o funcionamento do corpo. Para o segundo, o sentimento melancólico seria o resultado de excessos ou faltas, ou seja, o sujeito possui um modelo de equilíbrio humano, que é a sua capacidade de dosagem na vida, entre o movimento e a quietude, o sono e a vigília, a comida e a bebida, etc., e o excesso ou a falta de algum desses elementos pode gerar no corpo efeitos nocivos. Para o autor, até mesmo o excesso de meditação e a tentativa de investigar o incompreensível podem provocar a melancolia183. Susana Kampff Lages, ao fazer releitura de Jean Starobinski, atenta para o fato de que a história da melancolia pode se resumir em três períodos históricos até o século XIX. Tais períodos subdividem-se em: o da Antiguidade clássica, o que se estende da Idade Média até o século XVIII e, finalmente, a época moderna, que abrange os séculos XVIII e XIX, em que se origina a moderna psiquiatria, da qual derivará a psicanálise freudiana, e dela então o mais moderno conceito de melancolia que se tem184. A concepção moderna da melancolia, citada por Lages, encontra-se profundamente ligada às suas bases antigas. A hipótese de que existe uma conexão entre a experiência de perda e a condição melancólica, levantada por Africanus, é a base principal para a abordagem psicanalítica elaborada por Freud em 1917, quando da publicação de seu ensaio Luto e melancolia, escrito em 1915. Tal estudo pauta-se na 181 ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia: o problema XXX, I. 1998. GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante – elementos melancólicos em Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo. 1997. p. 46. 183 Idem. Ibidem. p. 47. 184 LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. 2002. p. 32. 182 104 questão psicológica da melancolia em cuja análise o autor desenvolve uma distinção entre os dois sentimentos que podem se manifestar diante da experiência de uma perda: o luto e a melancolia. Para o autor, esses dois sentimentos apresentam muitas semelhanças, e é através dessa correlação existente entre suas características análogas, que Freud traça também os pontos divergentes entre os sentimentos de luto e de melancolia. Segundo o psicanalista, [a] correlação entre a melancolia e o luto parece ser justificada pelo quadro geral dessas duas condições. Além disso, as causas excitantes devidas a influências ambientais são, na medida em que podemos discerni-las, as mesmas para ambas as condições. O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante [...]. Também vale a pena notar que, embora o luto envolva graves afastamentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida, jamais nos ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica e submetê-lo a tratamento médico. Confiamos em que seja superado após certo lapso de tempo, e julgamos inútil ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a ele185. Ao expor as causas e as características do luto, que servirão de base para a discussão acerca da melancolia, Freud explicita que este é ocasionado diante de uma perda objetal irreversível. Diante dessa perda, embora o sujeito sinta-se imensamente desolado, o luto não pode ser considerado uma patologia, pois, após algum tempo, o sofrimento vivido é superado, uma vez que o indivíduo passa a transferir seu investimento libidinal a outro objeto, substituindo dessa forma o objeto perdido. Com base em tais apontamentos, Freud adentra na natureza da melancolia, elencando os principais traços que a distinguem do luto, bem como defendendo o lado patológico desse sentimento. Segundo Freud, [o]s traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima a ponto de encontrar expressão em autorrecriminação e autoenvilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição. Esse quadro torna-se um pouco mais inteligível quando consideramos que, com uma única exceção, os mesmos traços são encontrados no luto. A perturbação 185 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: ____. Obras psicológicas completas. 1977. p. 249. 105 da autoestima está ausente no luto; afora isso, porém, as características são as mesmas186. Ao fazer uso dos elementos encontrados no luto para esclarecer a melancolia e ao contrapor esses dois afetos, Freud observa que os traços mentais similares aparecem em ambos. Porém, a divergência observada nesse paralelo é que, no luto, o indivíduo consegue chegar à superação do seu estado. Nesse período, o psicológico é extremamente afetado pelo vazio deixado pelo ser ou pelo objeto amado que não existe mais na realidade, e isso começa a exigir do indivíduo que todo o seu investimento libidinal seja retirado daquele objeto, passando a ser desviado para outro que se faz presente. Já na melancolia, não ocorre uma perda objetal como no luto, mas ideal, ou seja, o sentimento melancólico é ocasionado não necessariamente pela morte de alguém, do objeto amado, mas pela perda de algo enquanto objeto de amor. No luto, o indivíduo sabe exatamente o que perdeu, já na melancolia, mesmo que o paciente esteja consciente de que houve a perda de algo ou alguém, ele não consegue identificar o que exatamente perdeu com isso. Assim, o sujeito passa a conservar por muito tempo, em alguns casos pela vida inteira, esse sentimento, pois, como não tem definido com exatidão a sua perda, não consegue encontrar substitutos para ela. Na visão de Susana Kampff Lages187, Freud, ao estabelecer um paralelo entre luto e melancolia, coloca-se a favor da hipótese da existência de uma melancolia “positiva”, a qual consegue ser superada pelo sujeito, e a existência de uma melancolia “negativa”, da qual o indivíduo sofre profundamente para libertar-se. Em ambos os casos, a perda se configura no momento em que o objeto desaparece do campo de investimento do enlutado. Contudo, se, no luto, o sujeito consegue desligar-se do objeto por ora desinvestido e investir em novos objetos, na melancolia, esse sujeito não se desenlaça, perdendo-se psicologicamente no vínculo com o objeto de amor perdido. Em relação aos mencionados traços melancólicos, nota-se que, tanto na obra Quatro-olhos, quanto em Em câmara lenta, tem-se a presença de narradoresprotagonistas marcados por sentimentos considerados melancólicos, cujos laços psicológicos permaneceram, mesmo após muito tempo, atrelados aos objetos de amor já desaparecidos do campo de investimento dos sujeitos. De acordo com as já men186 187 Idem. Ibidem. p. 250. LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. 2002. p. 53. 106 cionadas características melancólicas elaboradas por Freud, no que se refere ao surgimento da melancolia como uma reação à perda de um objeto amado, observa-se que, em Quatro-olhos, o sentimento melancólico que toma conta da vida do protagonista resulta, principalmente, da perda de seu livro, objeto que ele considerava como sua obra-prima e que o mantinha dentro de um certo equilíbrio e ligação com a realidade. Poder-se-ia acrescentar ainda a esse episódio a fuga de sua mulher, bem como a própria situação ditatorial, que fazia com que ele se sentisse um verdadeiro derrotado perante essa realidade tão particular. Entretanto, o fato de ter perdido o livro e sua impossível recuperação, diante da tentativa frustrada de tentar reescrevêlo e não conseguir lembrar de seu conteúdo, deixa Quatro-olhos completamente frustrado e melancólico, assim como se pode observar na passagem a seguir: Mais ou menos dos 16 aos 29 anos passei no mínimo três a quatro horas todos os dias, com exceção de um ou outro sábado e de certa segunda-feira, escrevendo não me lembro bem se um romance ou um livro de crônicas. Recordo com perfeição, porém, tratar-se de obra admirável, a por a nu de modo confortavelmente melancólico a condição humana universal e eterna, particularizada com emoção discreta nas dimensões nacionais e de momento [...]. Às vezes sinto dúvidas e excitações188. As lembranças que vem à mente do narrador e que aparecem logo no primeiro parágrafo da obra já dão indícios do quão importante era para ele o romance que escrevera e que fora confiscado pela polícia. O protagonista evidencia que passou boa parte de sua juventude dedicado à incessante escrita dessa “obra admirável”. Entretanto, as lembranças que vêm estilhaçadas à mente do narrador e que remetem a episódios de um passado triste, do qual ele não consegue se libertar, justamente por não conseguir recordá-lo com clareza, associam-se diretamente ao esquecimento, possivelmente imposto. Diante de tal episódio, a perda da memória por parte do narrador configura-se juntamente com a apreensão do seu manuscrito original, nas causas de seu estado melancólico, destituindo-o então de qualquer interesse pela realidade, fazendo com que seu mundo psicológico e físico passe a girar em torno dessa infindável e profunda tristeza. O ego do protagonista apresenta-se totalmente destituído de qualquer valor, pois, por não se recordar de seu passado, sente-se desprezível e inferior, e chega até mesmo a duvidar de sua própria capacidade de composição. 188 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 15. 107 Na mesma proporção, é possível observar, em Em câmara lenta, como os aludidos elementos melancólicos que perturbam o narrador-protagonista são evidenciados em seu discurso. Este também é um livro marcado pela perda e pela ausência, e, precisamente por ser a sequela primeira da falta de algo e/ou de alguém, a melancolia se faz presente na narrativa. Esse romance, assim como Quatro-olhos, é construído dentro da mesma condição histórico-social violenta do regime ditatorial, e tem, em sua narração, a apresentação do sofrimento psíquico que perturba o sujeito em função da dor causada pelo sistema opressor. Nesse sentido, a perda, em Em câmara lenta, refere-se à frustração por parte do narrador em relação à organização guerrilheira que pretendia atacar a Ditadura Militar e que fracassara, bem como à perda de sua amada que fora morta, sob tortura, nas mãos de militares. De acordo com tais apontamentos, observa-se, já no início dessa obra, como o discurso deixa transparecer a melancolia do narrador: [é] muito tarde. A sensação de perda é física, como se faltasse a laringe ou o esôfago e não vai passar porque se, ao menos, tivesse servido para alguma coisa. Mas não, simplesmente acabou, e com isso acabou o tempo [...]. Nada deu certo, o fogo de artifício iluminou o céu, mas pouca gente entendeu, nem podia entender e agora estamos sozinhos, vinte, trinta, sei lá [...]. Não foi apenas uma pessoa que morreu, foi o tempo189. O constante refletir do protagonista, durante o discurso acerca da fracassada organização guerrilheira, remete para a sua tomada de consciência em relação à derrota que obtiveram perante a inexperiência do grupo de militantes. A decadência do grupo é perceptível, pois é denunciada pelo próprio narrador. Tal declínio marca nesse sujeito o sentimento de desamparo e angústia frente à perda do tempo que passou, perante a vã tentativa de guerrilha. Entretanto, expressa principalmente a perda de um ideal e a sensação de que nada mais é plausível de sentido diante de tamanha frustração, restando apenas as poucas e vagas lembranças melancólicas de um tempo obscuro que não pode ser modificado nem recuperado. Em relação à perda de sua amada, averigua-se, ao longo da narrativa, a dor pela qual passa o narrador frente ao desconhecido. Diante do que ignora, observa-se 189 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 13-15. 108 a constante tentativa, também frustrada, de conhecer o que lhe foi ocultado acerca dessa morte: aquele corpo, o que fizeram com ela? Talvez agora já soubessem de mais alguma coisa, no ponto o companheiro talvez tivesse uma informação nova. Mais depressa. Chegar lá e saber. Mas saber pra quê? Para alimentar ainda mais o ódio, o desespero, a solidão? É tarde demais, mas é preciso continuar vazio, um sentimento oco190. Nota-se, nessa passagem, que o protagonista busca explicações para o que aconteceu com sua amada, travando uma luta constante com suas próprias memórias e tentando buscar, através de outras pessoas, informações que pudessem lhe amenizar tal sofrimento. Porém, o desconhecimento e a cansativa luta por saber verdadeiramente o que aconteceu, que o fez vítima de tamanhas perdas, acabam gerando no protagonista todo um sentimento de desorientação e desalento, despertando e alimentando, inclusive, sentimentos de desprezo, raiva e ódio, muitas vezes, direcionados a si próprio. Segundo os pressupostos levantados por Freud, a “perda ideal” que ocorre no sujeito melancólico afeta diretamente seu ego, deixando-o totalmente enfraquecido. Ou seja, no melancólico, há uma diminuição de sua autoestima, um empobrecimento de seu ego em grande escala; em contrapartida, no luto, é o mundo que se torna pobre e vazio. Em função desse empobrecimento do ego, o sujeito melancólico apresenta um caráter tendencioso a autoacusar-se e recriminar-se constantemente por ser alguém tão desprezível. Esse quadro de um delírio de inferioridade (principalmente moral) é completado pela insônia e pela recusa a se alimentar, e – o que é psicologicamente notável – por uma superação do instinto que compele todo ser vivo a se apegar à vida191. Ainda de acordo com as definições propostas por Freud, o sujeito melancólico é alguém cujo prazer está em demonstrar a sua própria precariedade. Nos romances em apreciação, são evidentes as demonstrações, por parte dos narradores, de seus sentimentos de dor, frustração, desânimo, incerteza e fragilidade. Em Quatro-olhos, é possível notar essa problemática em determinadas passagens: 190 191 Idem. Ibidem. p. 14. FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: ____. Obras psicológicas completas. 1977. 109 e eu comecei a chorar no meio da rua, ou melhor, sentei na calçada e comecei a chorar, mas não era comentário nem revolta, me parece, apenas reação natural das glândulas lacrimais ante poderosos estímulos ópticos, e não sentia nenhuma vontade de louvar em ação de graças a graça de nascer e viver, e meu rosto começou a ficar negro de óleo e rugoso de pedrinhas, e triste, muito triste, porque todo mundo era filho de pai e mãe, e todas as coisas eram filhas das mãos de todos, mas eu não me sentia agradecido192. O fragmento descreve uma cena em que Quatro-olhos, já cansado de tanto procurar seu livro perdido, entra em desespero devido à inutilidade de seu esforço. Este trecho ilustra de maneira muito conveniente a sensação de debilidade do protagonista diante do sentimento de dor ocasionado pela perda de seu manuscrito e revela como ele se sentia diante da impossibilidade de recuperá-lo, em meio ao sistema político violento que vigorava. Nota-se que o narrador é tomado por uma profunda tristeza e igual desinteresse a ponto de não se importar com o fato de demonstrar esses seus sentimentos em público e começa a chorar “no meio da rua”. A trivialidade com que vê seus próprios sentimentos e até mesmo sua própria existência demonstra um sujeito cujo ego está empobrecido e altamente abalado, sendo que, para ele, a exposição da sua própria fragilidade e do seu empobrecimento passa a ser sua única alternativa de prazer existencial. Passagens similares podem ser encontradas em Em câmara lenta, quando o narrador também deixa transparecer episódios de desalento e debilidade em função de sua situação melancólica. Assim, observa-se: [h]oje o pensamento está seco, o desespero é uma coisa calma, uma coisa que não grita e nem explode, uma coisa que se arrasta com a inevitabilidade da permanência. O companheiro disse que eu estava estranho e eu estou [...]. Eles tombaram e pronto. Ela também. E isso é irreversível, perdi a ponte que dá passagem ao futuro e estou acorrentado aos fantasmas. E não quero quebrar essas correntes porque pertenço a eles, a ela [...]. Sobreviver seria válido para vingá-los, para destruir seus destruidores, mas não acredito mais nisso [...]193. Eu fiquei sepultado na madrugada, ancorado, preso, comprometido com os que tombaram e com os que vão tombar194. Nesse fragmento, observa-se como o narrador descreve todo o seu sentimento de dor e de tristeza pela perda de seus companheiros e também de seu 192 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 31. TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 83-84. 194 Idem. Ibidem. p. 86. 193 110 ideal. O protagonista faz questão de permanecer ligado a aqueles ou a aquilo que já não existe mais. Transpor a barreira que separa o passado do presente é algo que lhe é praticamente impossível, pois ele vê, nesse passado perdido, sua única possibilidade – e que já não existe mais – de vida. Entretanto, apesar de revelar sua dor e ao mesmo tempo expor seu ódio e desespero, é plenamente notável o enfraquecimento psicológico do narrador diante de tais eventos ocasionados pela repressão violenta do regime militar. Assim como em Quatro-olhos, o narrador não se limita a simplesmente viver e sentir o seu luto e a sua perda. Antes, faz questão de expor sua melancolia como uma possível forma de amenizá-la e também mostrar como sua própria vida foi aniquilada e como seu ego destruído sofre diante da impossibilidade de reversão desse triste quadro. Considerando as proposições freudianas, é possível inferir que o melancólico é alguém cujo ego adoeceu e, diante disso, não consegue retomar sua vida e encontrar esperanças no futuro, pois se acredita incapaz, indigno e sem condições de qualquer tipo de realização, devido à sua baixa autoestima. Em virtude disso, o melancólico sente uma grande necessidade de expor sua depressão, sua precariedade, bem como recriminar-se e punir-se pela situação que enfrenta. Entretanto, as recriminações e as acusações direcionadas a si próprio, na verdade, dirigem-se a outra pessoa que é, foi ou deve ser amada pelo melancólico, ou ainda refere-se a um tempo e a uma situação pretérita que ele não consegue mais recuperar. O fato de o paciente as dirigir a si mesmo ocorre devido ao que o autor chama de processo de identificação narcisística com o objeto amado e perdido, cuja relação foi rompida ou frustrante, e pelo qual ele passa a nutrir, inconscientemente, sentimentos ambivalentes de amor e ódio195. Sobre o processo de identificação narcisística, Julia Kristeva argumenta que o estado patológico em que se encontra o melancólico repousa sobre uma complexa dinâmica de idealização e de desvalorização de si e do outro e, por isso, o melancólico, inconscientemente, exige a presença de um superego fortíssimo: “[p]ois é identificando-me com o outro amado-odiado, por incorporação-introjeção-projeção, que instalo em mim sua parte sublime, que se torna meu juiz tirânico e necessário, assim como sua parte abjeta, que me rebaixa e que desejo liquidar”196, complementa a autora. Para a psicanalista, esse processo narcisístico pode ser entendido como o esconderijo da agressividade contra o objeto perdido. Esse processo de queixa 195 196 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: ____. Obras psicológicas completas. 1977. KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. 1989. p. 17. 111 contra si seria, pois, uma queixa contra o outro e a autocondenação à morte, um disfarce trágico do massacre de um outro. De acordo com Kristeva, ao voltar-se contra si, o sujeito melancólico, na verdade, mesmo que inconscientemente, está atacando o objeto de amor que se encontra dentro dele e que fora perdido. Outra característica recorrente observada nos sujeitos melancólicos dos romances em apreciação diz respeito à forte ligação que eles mantêm com seus passados e à consciência diante da percepção da passagem do tempo. Tal afirmação pode ser comprovada a partir de fragmentos como o abaixo citado, retirado de Quatro-olhos: [m]uito embora não creia não ser possível condenar o presente em nome do passado, pois o passado já passou e o presente está passando; muito embora julgue prevenir acidentes dever de todos, ou seja, a condenação do presente deve ser marcada em nome do futuro – na verdade, não encontro, no fundo do meu coração até onde posso ir, não encontro em meu coração outro recurso. Disfarço com esperteza essa minha limitação, eu não poder condenar em nome do que virá, avanço com solércia o insolente subterfúgio de que falo do que não foi. Incapaz de defender o futuro, defendo o futuro do passado – com essa argumentação tento encobrir meu ataque ao presente197. De acordo com essa passagem, nota-se, no discurso de Quatro-olhos, como a temporalidade é encarada pelo narrador-protagonista. Ele vê com tristeza um passado que, além de comprometer seu presente, impõe obstáculos à chegada do futuro. Mesmo ao ver com profundo pesar um passado destruído e destituído de qualquer sentido, em função das perdas que este lhe causara, o narrador não consegue libertar-se daquele tempo. O fato de o protagonista sentir que foi extremamente prejudicado no passado não permite que ele anseie por um futuro sem danos. A dor que sente, proveniente das perdas que tivera, faz com que ele conserve, mesmo que de modo bastante fragmentado, os laços com seu passado, numa tentativa de conservar, mesmo que na mente, tudo aquilo que fora perdido. No romance de Tapajós, a ligação com o passado é uma recorrente no discurso do narrador. A vinculação do protagonista a um tempo em que ele estava em companhia de pessoas, às quais já não existem no presente e ideais que também foram destruídos, passa a ser o refúgio do narrador, numa constante tentativa de não 197 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 28. 112 só resgatar em sua íntegra esse passado, mas talvez compreendê-lo em sua plenitude. Com base nisso, observa-se em Em câmara lenta: [s]e o gesto falhou. Em algum lugar em algum momento, deve ter havido um erro. Não é possível pensar direito com esse ruído surdo que bate nos ouvidos, a dor e o desespero, os olhos e o rosto que voltam sempre e agora são inatingíveis. Mas deve ter havido um erro [...]. Havia muita gente há apenas três anos e hoje o que há é um monte de mortos, uma multidão de exilados no exterior e algumas solidões tentando continuar. Algumas pessoas dispersas que pouco se encontram, quase nunca discutem e se contentam em sobreviver198. A incansável volta do narrador ao tempo pretérito de sua vida demonstra também sua tentativa de não só rememorar esse tempo, mas também encontrar respostas plausíveis para toda a destruição que vinha enfrentando. O narrador demonstra que sente dificuldade em pensar com clareza, pois seus pensamentos são afetados pelos ruídos, pelas vozes e até mesmo pelos rostos daqueles que faziam parte da sua vida no passado e que agora se encontram “inatingíveis”, enfim, é uma referência aos mortos e aos desaparecidos. Sendo assim, a tentativa de descobrir o que falhou, o que em específico destruiu o ideal que o narrador e seu grupo de militância tinham, é um pensamento cíclico notado no discurso do protagonista. Na medida em que a narrativa avança, esse pensamento e essas lembranças o jogam para o campo perdido do passado e o fazem perseguir e reviver, incessantemente, esse passado perdido. De acordo com o observado, o sujeito melancólico é alguém que não consegue se desligar do passado e, assim, suas lembranças, ao permanecerem presas a esse tempo que não pode mais existir, nem ser resgatado, fazem com que o quadro patológico do melancólico agrave-se ainda mais. Ao ser prisioneiro de uma idealização do tempo passado, o melancólico sofre, como argumenta Susana Kampff Lages, na pele e na alma, de um mal-estar que provém da consciência demasiado aguçada de sua situação199. Ele é envolvido por um passado que o atrai e o remete ao já vivido satisfatório e um futuro que se apresenta a ele como uma miragem, algo muito distante do objeto desejado. 198 199 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. p. 48-49. LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. 2002. p. 45-60. 113 Julia Kristeva também discute questões acerca dessa debilidade sentida pelo melancólico em relação ao seu não desvinculamento com o passado. Segundo a autora, o melancólico vive numa temporalidade descentrada, cujo vetor antes/depois não o governa, não o conduz de um passado para uma finalidade. O sujeito melancólico é alguém que permanece “fixado ao passado, regressando ao paraíso ou ao inferno de um experiência não ultrapassável, é uma memória estranha: tudo findou ele parece dizer, mas eu permaneço fiel a esta coisa finda, estou colado a ela, não há revolução possível, não há futuro”200. No melancólico, o passado ocupa todas as dimensões da continuidade psíquica do sujeito, retirando qualquer perspectiva em relação ao futuro e, ao mesmo tempo, direcionando a memória do melancólico para um processo de incubação do objeto narcisístico dentro de “um túmulo pessoal sem saída”201. Ainda em relação a essa característica do melancólico, cabe acrescentar as proposições de Kant202, quando ele se refere à ideia do surgimento da melancolia como dependente muito mais de um tempo do que de um lugar. Assim, o autor, quando caracteriza o nostálgico, diz que este, ao voltar-se para o passado, não deseja ter de volta o lugar de sua juventude, mas sua própria juventude, enquanto um tempo a ser recuperado, e não enquanto coisa203. O melancólico quer seu passado de volta e, enquanto habitante de um tempo incompleto e que não pode ser recuperado, torna-se necessariamente um habitante do seu imaginário, de seus próprios pensamentos enquanto tentativa de recuperar esse passado. A necessidade que sente o sujeito enlutado de voltar-se para dentro de si e manter-se ligado à sua imaginação, à sua memória, relaciona-se diretamente ao isolamento e à tendência ao apego por ambientes mórbidos. Dessa forma, o apego pela noite é uma característica constante na narrativa de Quatro-olhos: [à] noite eu saia para andar e me sentia embrulhado pelas luzes no escuro, o ar mortiço em volta piscando brilhos, ar embaçado escorregando pelos meus músculos, luzes viscosas como óleo nos olhos; ficam assim noite avançada [...]. A noite acontece mas é uma convenção e minha mulher a ignorava, nunca prestava atenção no ar de cinzas do fim do dia. Em meu livro arranjava cenas no fim de tarde 200 KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. 1989. p. 61. Idem. Ibidem. p. 61. 202 Apud KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. 1989. 203 Idem. Ibidem. p. 62. 201 114 para cantar a noite. Como a em que passava bela moça no luscofusco pardo da rua José Bonifácio204. A situação de apego à noite demonstra a tentativa de fuga do sujeito melancólico. A sensação de sentir-se bem em meio às trevas noturnas que expressa o narrador, a busca por refúgio na noite, metaforiza a procura por algo que o retire da realidade triste em que se encontra. Tal inclinação por ambientes noturnos pode remeter também à representação do desejo de morte. Para o melancólico, a escuridão, as trevas, são tomadas como símbolo de finitude e resolução para a sua situação. O sujeito melancólico é alguém que reflete acerca do tempo em que se encontra no que se refere à insatisfação do tempo presente e da falta de perspectiva para com o futuro, e, para tal atividade, o ambiente sombrio e silencioso da noite pode servir de refúgio e lhe auxiliar nesse encontro com seu interior. Na obra Em câmara lenta, assim como em Quatro-olhos, o apego à noite fica evidente como uma opção por parte do narrador, principalmente para sair em busca de informações acerca do passado desconhecido. Tal situação aponta para o possível perigo de ser visto à luz do dia, diante da violência que era praticada contra todo aquele que pudesse despertar desconfiança e uma provável ameaça ao sistema vigente. Entretanto, o apego do sujeito melancólico de Em câmara lenta a ambientes sombrios e espaços solitários fica mais bem evidenciado através de passagens como a seguinte: essa casa vazia, de repente enorme. Andar da sala para o quarto, do quarto para o banheiro, do banheiro para o outro quarto [...]. O sofá está lá, imóvel, morto, vazio. E, do outro lado dele, o cinzeiro no chão. Continua lá, esperando o cigarro que não vem mais. Não adianta mudar nada. Para quê? [...]. Os olhos que veem o cinzeiro estão vazios, são olhos vazados de um corpo morto que continua passeando seu ódio e seu desespero [...]. Essa casa é um monte de escombros e de corpos mortos amontoados em cada canto. Não há nada para fazer: andar, comer, esperar [...]. Porque hoje não há nada para fazer senão andar pela casa [...]205. Nesse excerto, o narrador não demonstra uma ligação com a noite propriamente dita, mas, ao relatar determinadas situações em que se encontra solitário em sua própria casa, agora silenciosa, carente de qualquer resquício de vida, vazia e 204 205 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 63. TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 47-49. 115 praticamente abandonada, remete a um pensar nesse ambiente como uma representação da noite que se abate sobre ele. O gélido e sombrio ambiente da casa vazia e silenciosa que o envolve se assemelha ao ambiente noturno que o sujeito melancólico procura para completar sua tristeza e sua desolação. A própria casa vazia, que remete à ausência de alguém ou de algo que antes a habitava e a preenchia, metaforiza esse ambiente de vagueza e de solidão que a noite por si só representa. Inserido em um ambiente noturno e propício ao isolamento, o sujeito melancólico encontra o ambiente ideal para solidificar-se em sua situação de autorrecriminação e autopunição, conforme apontado por Kristeva. Dentro desse processo de empobrecimento do ego, em que o melancólico faz questão de demonstrar sua precariedade206, ele também se mantém fixo a uma imagem de finitude do tempo. Logo, a insatisfação de ver o tempo passar, a presença de um presente bárbaro e a impossibilidade de mudança para um futuro melhor fazem com que esse sujeito se fixe num horizonte marcado pelo desejo de finitude e de morte. Em Quatro-olhos, é possível perceber várias passagens que apresentam o protagonista imerso nessa ideia: [f]ora do livro, a vida espelhada em grandes rasgos tinha muitas faces em combate e não conseguia formar um todo coerente. No baile de formatura do científico, comecei a pensar nos meus ossos descarnados décadas depois e no meio das valsas isso era a única coisa que fazia sentido [...]. Eu me apalpava e pensava: esses ossos ainda hão de ser enterrados. Percebi que todos aqueles que dançavam haviam de morrer e pus-me a imaginá-los mortos. Um morto com um copo de cuba-libre passou atabalhoado por mim e me deu um empurrão; uma morta de vestido vaporoso deixou a garganta exposta ao lançar a cabeça para trás numa gargalhada lúbrica207. Diante disso, observa-se o olhar atento do protagonista em relação à situação social à sua volta, quando ele menciona que “fora do livro” a vida apresentava-se como um grande combate e fragmentada. Devido ao contexto em que fora escrito o romance, tal referência possivelmente alude à situação de violência, tortura, massacres e repressão que vigorava durante a Ditadura Militar. Nota-se como mergulhado em tal contexto, o narrador-protagonista logo migra para uma narração em que prevalece a ideia de finitude da vida e tendência à morte. A percepção do protagonista melancólico, diante da caótica situação social, é de destruição e de 206 207 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: ____. Obras psicológicas completas. 1977. POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 117-118. 116 degradação. Ao imaginar que seu próprio corpo iria se degradar e ao imaginar as pessoas à sua volta como mortas, como indivíduos que aos poucos vão se desfazendo, infere-se a sua visão frustrada diante da vida. A imagem das pessoas mortas que vem a mente do narrador demonstra a sua tristeza e desilusão perante a realidade violenta da época e diante de uma sociedade que aos poucos também vai se degradando, desaparecendo e morrendo. Em Em câmara lenta, a tendência à morte também se faz presente em função de o narrador não suportar mais a dor imposta e o desespero em que se encontrava diante dos acontecimentos que ocasionaram perdas importantes em sua vida. O ego do sujeito apresenta-se tão empobrecido e destituído de qualquer tipo de esperança em relação ao futuro, que ele não encontra mais razões para seguir lutando por qualquer objetivo, apenas vê a vida como uma espera da morte: [e]le quer conversar, não apenas contar como foi e eu não sei que conversa é essa. Talvez ele tenha esperança e ache que há saída para essa situação toda. Sei lá. E nem importa. Mesmo que ele tenha. Quem não tem mais sou eu, porque tudo acabou. A vida é apenas, hoje, um adiamento da morte próxima, uma pausa entre quem sobrevive e aqueles que já morreram, porque eles levaram o que havia de futuro208. Nessa passagem, o narrador-protagonista externaliza sua falta de esperança em relação à vida e em relação ao futuro. Para ele, nada mais faz sentido, pois sofre com a perda e com a ausência de algo. O ideal revolucionário fora suprimido e, diante disso, ele vê seu mundo dilacerado e acabado, cuja vida, agora, destituída de qualquer valor, já não pode mais seguir adiante. Nota-se, a partir de fragmentos como o acima citado, como o personagem sente-se insatisfeito com o momento presente e ao mesmo tempo sem qualquer perspectiva em relação ao futuro, pois acredita que qualquer futuro, plausível de realização, foi extinto com aqueles que morreram. Jaime Ginzburg, ao retomar os conceitos de melancolia levantados por Constatinus Africanus, argumenta que a noção de tristeza profunda que é desenvolvida a partir de uma perda desencadeia no sujeito uma espécie de pontochave tenso. Segundo o autor, esse quadro melancólico é extremamente difícil de ser revertido ou curado, e nada pode ser pior do que uma mente perturbada por esse 208 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 83. 117 sentimento209. Geralmente, o melancólico é alguém que sofreu a perda de filhos, amigos queridos ou algo muito precioso e que não pode recuperar210. Em função disso, o sujeito enlutado permanece preso a um passado o qual vê com sofrimento e pesar, devido às perdas que teve, e também se perturba com o futuro, por temer novamente outro dano. Envolvido nessa angústia, em função da experiência negativa do passado e por temer mais sofrimento no futuro, o melancólico não consegue encontrar tranquilidade e vê na autodestruição a única saída. Segundo Guardini, a ausência de referências de orientação, que tornam o presente do sujeito tão penoso, é o que o leva ao desejo de deixar de existir, transformando a morte num alívio para a dor da existência211. Embora originalmente vista como uma patologia por Constantinus e Freud, a melancolia produz uma situação que, para alguns autores, como Aristóteles e Walter Benjamin, apresenta fatores positivos, pois é capaz de desenvolver no melancólico uma atitude contemplativa. A respeito dessa tendência, é Benjamin quem, em seu livro sobre o drama barroco alemão, disserta sobre o elo existente entre melancolia e contemplação212. Em Quatro-olhos, é possível perceber passagens, como a abaixo citada, que demonstram a tendência do melancólico de permanecer em seu quadro de isolamento e de profundo pensar, em estado meditativo: de manhã não queria acordar e prezava a posição horizontal acima de tudo, envolto em lençóis e colchas que me separavam do mundo acidentado. A meditação presa procurava um ponto fixo, perfeito, um ponto de luz num mundo escuro, Deus ou o que fosse213. Essa passagem demonstra que o sujeito melancólico é alguém que busca o distanciamento do mundo real. O não querer acordar pela manhã remete a um não querer voltar a fazer parte de um mundo caótico, e a necessidade que demonstra Quatro-olhos de permanecer no silêncio de seu quarto, longe “do mundo acidentado”, evidencia o seu desejo de também não querer fazer parte daquela situação social que se apresentava. O isolamento contemplativo que busca o melancólico é também uma tentativa para compreender o mundo à sua volta. A partir desse aparente distan209 GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante – elementos melancólicos em Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo. 1997. p. 46. 210 Idem. Ibidem. p. 46-47. 211 Apud Idem. Ibidem. p. 64. 212 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. 1984. p. 163-169. 213 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 70. 118 ciamento da realidade, as situações de autoritarismo e repressão não passam despercebidas ao melancólico. É através da reflexão e da contemplação que o protagonista procura encontrar explicações aceitáveis para a real situação histórica que o cercava. Nesse sentido, o fumo é também outro fator que caracteriza a ação contemplativa do sujeito: “[s]entei-me à cadeira do quarto e fiquei até a madrugada fumando, sentindo o peso do paletó em meus ombros e acariciando as mangas, pensando naquela vida que se fora dentro daquele paletó”214. Uma cena como essa demonstra uma situação bem típica do sujeito melancólico, uma vez que, diante de grande frustração e de comportamento alterado, passa a manifestar de forma intensa seu desânimo. Nesse caso, a representatividade através do ato de fumar remete à imagem do sujeito desesperado, que até mesmo inconsciente tenta fazer mal contra si próprio. Por outro lado, o cigarro serve para marcar ainda mais a condição de debilidade do melancólico, desligado do mundo à sua volta e imerso na contemplação. Situação similar é encontrada em Em câmara lenta, quando, por vezes, o narrador-protagonista demonstra estar só, em estado de meditação ou simplesmente em busca de suas próprias convicções já perdidas ou desencontradas. Assim é possível perceber: [o] vazio, outra vez, como agora, sozinho em casa, sentado na beira da cama, olhando a parede. Quase escuridão, um zumbido surdo, a pele se esticando, os olhos mortos cansados de ver e vendo, ainda uma vez, na parede o rosto dela, os cabelos curtos, os olhos ligeiramente estrábicos dando um ar de distanciamento no rosto branco, como se visse o mundo de longe, com segurança e certeza do que via215. Aqui, o protagonista demonstra seu isolamento e a reflexão oriunda desse estado. Apresentar-se sozinho em seu quarto diante de uma “quase escuridão” expressa a busca do narrador pelo reencontro com seus pensamentos e com suas memórias perdidas. A reflexão, ou o simples ato de parar para pensar em tudo o que aconteceu, é característica recorrente desse sujeito, pois ele tenta, através de suas memórias, reencontrar o objetivo e assim suprir sua ausência, mesmo que por momentos. O voltar-se para o tempo passado, um tempo que não pode mais ser recuperado 214 215 Idem. Ibidem. p. 118. TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 24. 119 no presente, é uma forma de tentar recuperar algo perdido. E, assim como o exposto por Freud, o maior desejo do melancólico resume-se em eliminar completamente as marcas do tempo e incluir no seu presente outras dimensões temporais, sem o sofrimento decorrente do reconhecimento dessa impossibilidade e da realidade inquestionável da separação216. Através do isolamento e da meditação, o sujeito é capaz de chegar a um profundo entendimento da verdade. Walter Benjamin, em seus argumentos, aponta para a questão de que o melancólico mantém uma pré-disposição muito grande à contemplação e destaca que a meditação é própria do sujeito enlutado 217. Segundo o autor, tal pressuposto está amparado por dois elementos básicos. Em primeiro lugar, pela associação que faz da melancolia à bílis negra e, posteriormente, pela gravura de Albrecht Dürer, que representa a melancolia, a Melancolia I (ver anexo à pág. 157). De acordo com Benjamin, a bílis negra, que é a substância fisiológica caracterizada dentro da patologia dos humores pelo excesso do elemento seco e frio no organismo, é a responsável pelo desenvolvimento da melancolia bem como é capaz de motivar o espírito enlutado à meditação. Benjamin ainda acrescenta a esse elemento o fato de que a teoria da melancolia está diretamente associada à doutrina das influências astrais, sendo que, nesse quadro, Saturno é o planeta que governa o melancólico. Sendo assim, ao ser compreendida na perspectiva de Saturno, que é o planeta mais alto e o mais afastado da vida cotidiana, responsável por toda a contemplação profunda, a alma do sujeito melancólico é convocada para a vida interior, afastando-se das exterioridades, levando-a a subir cada vez mais alto e inspirando-lhe um saber superior e um dom profético218. Em relação ao segundo elemento que representa a melancolia enquanto propícia à meditação, refere-se ao quadro de Dürer, a Melancolia I, o qual trás um personagem, situado em meio a uma série de objetos dispersos pelo chão, que tem seu rosto apoiado em uma das mãos, olhar distante e perdido, alheio a tudo à sua volta. Tal figura ilustra, segundo Benjamin, a imagem convencional da tristeza e um símbolo do homem contemplativo, em busca da verdade profunda. Friedrich Schiller, em seu texto Acerca do sublime, argumenta que a imensidão do universo contrasta com a finitude do ser humano. Diante disso, a sensibilidade que emanaria do sujeito estaria atenta à grandiosidade, justamente 216 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: ____. Obras psicológicas completas. 1977. BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. 1984. p. 163. 218 Idem. Ibidem. p. 171-172. 217 120 voltada para a demanda de superar limitações inevitáveis219. De acordo com o autor alemão, a contemplação retira o espírito do melancólico do cativeiro da realidade opressiva de sua vida física e representa uma recusa da imponente condição em que vive. Tais apontamentos, que não deixam de retomar algumas proposições já iniciadas por Aristóteles e Constantinus Africanus, contribuem para a compreensão de situações, hábitos, atitudes e comportamentos expressados pelos narradoresprotagonistas de Quatro-olhos e de Em câmara lenta. Nos respectivos romances, os protagonistas, imersos em um sistema autoritário e violento, lutam constantemente contra as amarras impostas às suas existências. Dentro desse plano, nota-se que ambos os protagonistas demonstram ciência da condição de fracasso humano em que se encontram e, diante disso, é possível observar que, por vezes, seus comportamentos oscilam. O caráter dos protagonistas, não raras vezes, passa a ser determinado por um dualismo intenso, cuja personalidade ora apresenta-se forte e poderosa, ora frágil e precária. Em Quatro-Olhos observa-se esse espírito dual, de acordo com o abaixo exposto: [e]m meio à empreitada, me detinha por vezes em esquinas e as sombras das nuvens me ultrapassavam, de modo que eu ficava às vezes sombrio e outras iluminado. Não ventava, mas nos momentos em que a sombra saía de mim (pois não era eu que estava à sombra, ela passava por mim) ou quando a luz corria por mim, de repente e só nesses momentos eu me sentia me movimentando, embora estivesse parado. E lembrava, não sei se do livro ou da vida220. Nota-se a dificuldade que o sujeito melancólico tem para administrar situações referentes ao espírito e ao corpo. Nesse estado, o melancólico sofre uma ruptura do seu universo interior com os elementos exteriores que o cercam. A dualidade está em, mesmo tendo consciência da realidade que o cerca, o sujeito melancólico permanece no seu universo íntimo e triste, como alguém que procura o refúgio dentro de si próprio. Nessa cena, o melancólico é alguém dividido entre o desejo da ação e a dificuldade para realizá-la. As ideias contraditórias invadem seu pensamento, e sua personalidade passa a migrar de um extremo emocional para outro: ora o narrador 219 220 SCHILLER, Friedrich. Acerca do sublime. In: ____. Teoria da tragédia. 1991. p. 54. POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 31. 121 sente-se “iluminado” ora “sombrio”. Sua percepção aguçada da realidade, provinda da inclinação à meditação, apresenta um sujeito tipicamente melancólico, desiludido, profundamente triste e que sente prazer em expor sua debilidade diante das perdas que sofrera. Contudo, essa mesma necessidade de exposição da fragilidade, de modo muito particular, é invertida na narrativa de Quatro-olhos quando o narrador demonstra sua insistência em recriar sua obra, em lutar contra o esquecimento e reconstruir sua vida. Em Em câmara lenta, o mesmo paradoxo é encontrado. O sujeito melancólico – que, nesse caso, apresenta-se vencido e debilitado perante a derrota e que não vê mais sentido em viver – é o mesmo que, em determinadas cenas, irá à luta numa tentativa de vingança em honra às perdas que tivera. Diante o exposto, observa-se: [a] sensação de perda é física, como se faltasse a laringe ou o esôfago e não vai passar porque se, ao menos, tivesse servido para alguma coisa. Mas não, simplesmente acabou, e com isso acabou o tempo [...]. [É] muito tarde. Para qualquer coisa; e, além do mais, se chamar atenção, que é que tem? Se eles virem e atirarem e as balas pegarem no peito, na cabeça, que é que tem? Se a dor vier e rasgar o corpo de cima a baixo é um alívio221[...]. [L]utar. Qualquer outra alternativa é fuga, é demissão, é colaboração com o inimigo. E isso continua valendo: qualquer escolha que a pessoa faça será uma traição se ela não escolher a luta [...]. [S]obreviver e gritar que ainda estamos vivos222. O primeiro fragmento apresenta o narrador-protagonista extremamente debilitado diante da sua condição de sujeito derrotado pelo sistema violento e opressor. O vazio ocasionado pelas perdas que sofrera é tão grande e doloroso, que se iguala, na sua concepção, a um órgão vital indispensável ao funcionamento de seu corpo. Diante disso, ao dar-se conta do seu dilaceramento, o personagem não apresenta qualquer zelo pela preservação de sua própria vida, pelo contrário, chega a creditar que a morte pode até servir como um alívio para sua dor. No entanto, no segundo trecho citado, o narrador demonstra um pensamento contrário em relação ao primeiro. Neste, ele busca forças para continuar vivendo e lutando. Mesmo diante da dor e da violência socialmente impostas, ele demonstra a necessidade de manter-se vivo para continuar a luta que fora perdida no passado. A renúncia a esse ideal, bem como o 221 222 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 13-14. Idem. Ibidem. p. 49-50. 122 abandono da própria vida, passam a ser criticados pelo mesmo sujeito que em um momento anterior parecia não se importar mais com tais elementos. Diante da percepção das antíteses apresentadas pelos sujeitos melancólicos, torna-se necessário retomar as proposições levantadas por Benjamin no que se refere ao fato de existir uma associação entre o planeta Saturno, o deus Cronos e a condição melancólica. De acordo com o conhecimento mitológico, para os gregos, Cronos é o deus marcado pela dualidade. Por um lado, ele é um deus benéfico da agricultura, que realiza as festas das colheitas; por outro, é um deus sombrio, solitário, que vive na extremidade mais recolhida da terra. É o deus da morte e dos mortos, pai dos deuses e dos homens, é capaz de gerar a vida, mas também de devorar seus próprios filhos; por um lado, é um monstro capaz de ser vencido pela astúcia mais vulgar, e, por outro, é o deus antigo e sábio, venerado como a inteligência suprema223. Assim, conforme argumenta Ginzburg, a posição do planeta Saturno, as atitudes de Cronos (criar e matar) e as suscetibilidades da bile negra (cuja principal propriedade, segundo Aristóteles, é a inconstância, oscilando entre graus intensos de calor e frio), por caracterizarem uma articulação de extremos, suscitam também no melancólico uma vocação para sentimentos extremos224. Tais desequilíbrios tendem a afastar o melancólico de uma certa média equilibrada, fazendo com que este oscile entre a ansiedade e o abatimento, desviando da norma regular e rumando sempre aos extremos. Sendo assim, de acordo com Aristóteles, essa variação de comportamento da bile negra tornaria o melancólico um ser “polimorfo”, que agiria e sentiria de maneiras diversas e contraditórias, capaz de oscilar entre a atimia, o desapego à vida, e as manifestações eufóricas225: “para resumir, pela razão de que a eficácia da bile negra é inconstante, inconstantes são os melancólicos”226. Ginzburg ainda aponta para os estudos de Romano Guardini, Jean-Pierre Schaller e Oliver Pot ao tratar da existência do dualismo no sujeito melancólico 227. Em Guardini, o comportamento dual do melancólico acontece em função da coexistência paradoxal de dois instintos do sujeito: a afirmação de si, em busca de uma ascensão, 223 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. 1984. p. 172. GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante – elementos melancólicos em Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo. 1997. p. 50. 225 ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia: o problema XXX, I. 1998. p. 99. 226 Idem. Ibidem. p. 107. 227 GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante – elementos melancólicos em Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo. 1997. p. 55. 224 123 e a renúncia à existência. Para esse autor, a dualidade ocorre em função do sujeito melancólico, em meio à sua tristeza, ao buscar transcender suas próprias limitações, não conseguir devido à sua precariedade. Assim, seus valores são relativizados, suas referências passam a ser duvidosas e incertas, de modo que o sujeito sente-se desorientado consigo mesmo. Em Schaller, o dualismo do melancólico é visto como uma frustração em decorrência da oposição entre as expectativas deste e sua realidade frágil. O melancólico é alguém inquieto diante da finitude das coisas e aspira vencer suas limitações; entretanto, frustra-se ao perceber os próprios limites. Por sua vez, Pot vê a melancolia como um estado de passagem, como o reconhecimento da consciência do mover-se de uma faixa etária para outra. Em função disso, a melancolia se apresentaria dual, pois resultaria de um processo de passagem entre dois estados228. Outra característica significativa observada na narrativa de Quatro-olhos e de Em câmara lenta refere-se à questão problemática da comunicação de seus narradores, provavelmente desencadeada pela perturbação de suas mentes. A respeito dessa particularidade, em Quatro-olhos, pode-se observar passagens como: [n]ão creio que esse gordo aparecesse outras vezes. Vêm à memória, porém, pedaços em que eu falava de calçadas ensolaradas, pisadas por pés femininos no fim da manhã. A passagem da dona desses pés interrompeu conversa sobre galinhas, entre duas senhoras a um portão, e conciliábulo num carro, entre um despachante e seu freguês [...]. Também me surge ao quengo ter escrito sobre corredores, espaços abertos em salas burocráticas, em que se concentravam vida e conversas na firma. Minha mulher apreciava licoreiras, isso posso dizer com certidão; nosso apartamento dispunha de cristaleira, porta-chapéu e outros testemunhos da época mais austera229. Através desse excerto, observa-se como a linguagem de Quatro-olhos aparece destituída de organização. Tem-se no fragmento uma mescla entre algumas lembranças por parte do narrador de trechos de seu livro original e também vagas memórias da vida cotidiana que levava com sua mulher. A fala do protagonista apresentase problemática, pois a conexão entre as passagens do livro e de sua vida real apresenta-se incompleta. Por outro lado, a rapidez com que migra de um assunto para outro, como quando relata o que lembra de ter escrito em seu original e logo em seguida, quando começa a narrar gostos que possuía sua mulher, bem como determi228 229 Idem. Ibidem. p. 55-57. POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 84-85. 124 nados objetos que possuíam em sua casa, demonstra a precariedade de sua mente para organizar a linguagem e definir como esta deve ser externalizada. A narrativa de Em câmara lenta também toca nesta questão. A linguagem inacabada, cercada por reticências e por não ditos dessa obra, ratifica a fragilidade em que se encontra o ego do sujeito melancólico, denunciando sua quase impossibilidade de organização do discurso: [u]ma imagem que não é mais do mundo, mas de uma solidão voltada sobre si mesma. O gesto incompleto, estilhaçado, no momento em que ela. O barco à deriva foi encontrado por alguns caboclos. A polícia veio ver o corpo do piloto, encontrou os livros e o disco. Os serviços de segurança consideraram os livros como altamente subversivos230. Com base nesse fragmento, nota-se que em um primeiro momento o narrador não leva seu discurso até o final e o interrompe de maneira brusca quando relata a cena em que lembra da possível morte de sua amada. Quando a expressão “no momento em que ela” termina uma frase, que possivelmente teria continuação, entendese com isso que o narrador, em função da profunda dor que sofre, ou não quer levar por vontade própria esse discurso até o final, ou não sabe o que dizer, devido ao seu desconhecimento em relação a esse episódio. Aqui, tem-se também a mudança de assunto de maneira muito rápida, e isso acontece em virtude das lembranças fragmentadas que surgem numa mente debilitada, impossibilitando uma sequência de ideias coerentes entre si. Segundo Kristeva, o discurso fragmentado vai ser o produto final do melancólico, pois é resultado do seu ego que também encontra-se fragmentado231. A fragmentação é então um sintoma da condição melancólica em que se encontra o sujeito. O melancólico não consegue organizar uma espécie de relato lógico e conexo quando sua consciência está perturbada pelo sentimento de perda. O discurso do deprimido surge construído muitas vezes com signos absurdos, com sequências retardadas, deslocadas, paradas, o que traduz o desmoronamento do sentido no não – nomeável em que mergulha232. 230 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 43. KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. 1989. p. 25. 232 Idem. Ibidem. p. 54. 231 125 Na obra Quatro-Olhos, o discurso aparece fragmentado e totalmente desconexo. O protagonista mescla uma série de acontecimentos que ora se confundem com realidade, ora com delírio, ora com passagens que se encontravam no seu livro perdido, demonstrando assim a debilidade em que se achava o sujeito e ratificando a presença da melancolia na vida do sujeito. Por sua vez, Em câmara lenta apresenta uma narrativa também bastante dificultosa, pois o narrador, com uma linguagem não menos marcada pelo desânimo e pelo desalento que toma conta de si, expõe histórias que se misturam com seus devaneios e suas desilusões. Fato é que ambas as obras mergulham profundamente nas raízes autoritárias do Brasil do período ditatorial e geram narrativas desafiadoras e extremamente desconfortáveis, que fogem do padrão literário canônico. Tais narrativas expõem a olho nu o espírito melancólico e sem perspectiva, instaurado nos indivíduos, devido às represálias ocasionadas pelo violento sistema político oriundo da Ditadura Militar. 3.3 Trauma e fragmentação em Quatro-olhos e Em câmara lenta Havia em mim pedaços mortos, ia-me, aos poucos habituando à sepultura; difícil ressurgir, vagar na multidão, à toa, como alma penada. (Memórias do cárcere, Graciliano Ramos) São profundas as marcas deixadas na memória dos indivíduos que passaram por experiências de violência, oriundas do período ditatorial brasileiro. Durante as duas décadas, entre 1964 e 1985, em que governo militar esteve no poder, o país assistiu e também sofreu as mais distintas e hediondas formas de violência. O autoritarismo do governo militar lançou mão de estratégias extremamente brutais a fim de barrar qualquer manifestação, por parte da sociedade, que se mostrasse adversa ao modo governamental vigente. O rigor com que a repressão passou a dominar a sociedade brasileira da época era marcado desde o controle de informações nos meios de comunicação à censura a produções artísticas e culturais. Sobretudo foi através de perseguições, prisões, e os inúmeros modos de tortura, que iam desde pressão 126 psicológica a agressões físicas, com os mais distintos instrumentos, que a brutalidade do poder vigente foi mais incisiva e destruidora. A tortura a que eram submetidas as pessoas suspeitas de qualquer manifestação que pudesse ameaçar o governo não só provocou dor física nas vítimas, mas foi responsável pela destruição moral e pelo surgimento de marcas indeléveis no psicológico dessas pessoas. O fato de fazer com que os torturados chegassem ao limite da dor física e ao extremo de seu emocional é fator determinante para as distintas sequelas que passaram a habitar o psíquico dos sobreviventes. A tumultuada relação entre memória e esquecimento, discutida em subcapítulo anterior, exemplificada pela necessidade de lembrar do passado, prática que entra em choque com a dificuldade para fazê-lo, devido ao esquecimento que confunde as lembranças, é então marca proveniente da tortura. Da mesma forma, destaca-se o forte vínculo entre as lembranças do passado e a condição melancólica, a qual passa a se fazer presente no emocional do sujeito em decorrência das perdas desse passado, sejam elas físicas, como pessoas, ou emocionais, como o esquecimento. Entretanto, a relação de choque que ocorre entre memória e esquecimento, bem como o fator perda que desencadeia a melancolia, não podem ser observados isoladamente. Há uma relação intrínseca entre a questão da memória, a perda ocasionada pelo esquecimento e o estado melancólico, cuja manifestação problemática e dificultosa vai ser observada através do discurso, dos problemas de linguagem dos indivíduos que sobreviveram às situações limites. É na linguagem fragmentada, no discurso truncado, repetitivo e sem logicidade, que se observa quão inapagáveis são as marcas deixadas pela violência e como podem permanecer, para sempre, impregnadas no psicológico de suas vítimas. Em outras palavras, o que se argumenta aqui é que a linguagem fragmentada, assim como pode ser observada tanto em Quatroolhos quanto em Em câmara lenta, é também resultado da experiência traumática suscitada pelo período ditatorial brasileiro em curso na época. A escrita dessas obras não pode objetivamente ser classificada na ordem da realidade, como observação empírica, mas à ordem do “real”, enquanto trauma e como uma experiência impossível de ser contada do modo como aconteceu. As lembranças que habitam tanto a mente do narrador de Quatro-olhos, quanto de Em câmara lenta, dizem respeito à esfera daquilo que não pode ser simbolizado, pertencem ao indizível, à ordem do excesso, encontrado na origem do trauma. Este, segundo Freud, configura-se no estado psicológico que fica um sujeito que foi submetido a 127 um susto (schreck) para o qual não estava preparado. Segundo o psicanalista, é a angústia (angst) que coloca o sujeito em estado de espera e o prepara para um perigo, mesmo que desconhecido, livrando-o de possíveis neuroses. Entretanto, a preparação não antecede o susto ou o horror, que ocorre subitamente, originando o trauma233. Segundo Seligmann-Silva, sobreviventes de situações extremas, como é o caso da Ditadura Militar, sentem necessidade de narrar o trauma vivenciado, o que se configura num desejo de renascimento, uma vez que o indivíduo precisa retornar à sua vida e reconstruí-la234. Esse relato, que ficou conhecido como “testemunho”, nem sempre é algo fácil de ser concretizado, pois não basta, à vítima, narrar a experiência, é indispensável a presença de alguém disposto a ouvi-la. A necessidade da presença de um ouvinte pode ser suprida numa terapia, quando a dor é externalizada diante desse ouvinte, mas também esse ouvinte não precisa ser necessariamente uma pessoa, pode ser a própria escrita da experiência. Diante dessa estratégia, muitos são os sobreviventes que apelam à literatura de testemunho como uma tentativa de transpor a barreira traumática e também de apresentar uma outra versão da história, questionando e colocando em xeque a versão oficial dessa história contada pela classe detentora do poder. Com base em tais pressupostos, observa-se, nas obras literárias em estudo, como são representadas as situações de violência a que estavam expostas as pessoas da época. Tanto Renato Pompeu, quanto Renato Tapajós, figurantes desta época de autoritarismo que o Brasil enfrentou por conta da Ditadura Militar, vivenciaram situações violentas ocasionadas por este sistema e buscaram, por meio da literatura, dar testemunho às suas experiências. Dessa forma, é possível observar, por meio do discurso testemunhal desses autores, como a violência imperava e de que forma contribuía para a degradação da sociedade durante o período ditatorial. Em relação a isso, destaca-se um fragmento da obra Quatro-olhos: [a] chuva era também objeto de distinta consideração. No meu texto, vinha aos pingos, parecendo nunca repetir-se exatamente sobre o 233 FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. In: ____. Obras psicológicas completas. 1976b. 234 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: a questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psic. Clin., 2008. p. 65-82. 128 mesmo ponto, mas acho que isso era ilusão. A chuva fria, caindo sobre a terra seca, fazia flutuar aquele cheiro característico. A gente chapinava onomatopeicamente nas ruas inundadas, a umidade penetrando roupa da gente dentro. Cabelos úmidos louros ficavam escuros e desmanchavam-se, alterando a fisionomia das pessoas; ombros molhados aceitavam guarda-chuva de estranhos e pés afundavam n’água, todos andando com muita pressa. É sabido que a velocidade dos pedestres se acelera com a deteriorização do tempo, embora seja esse um conhecimento empírico. Seria necessário postar vários técnicos e cientistas numa esquina, munidos de trena, cronômetro e folha de anotações para saber isso com certeza científica. Os pesquisadores determinariam uma distância qualquer, digamos vinte metros a contar de um poste, e ficariam observando quanto tempo as pessoas levariam para percorrê-la. Examinando alternadamente em dias de sol e de chuva, seria possível finalmente determinar se as pessoas andam mais depressa com mau tempo ou não. Aí, eu escritor, poderia dizer com confiabilidade a frase: “todos andando com muita pressa”, como está acima235. O fragmento acima poderia ser visto como a descrição de uma situação trivial do cotidiano. Entretanto, pode-se inferir, tendo em vista o contexto em que tal obra fora produzida, que o que esse trecho sugere é um jogo de metáforas para referir-se à violência praticada pelo poder vigente. A menção à chuva pode ser vista como uma alusão à repressão, à violência e à tortura. Da mesma forma, a referência aos “cabelos úmidos”, que se desfazem devido à chuva e que alteram a “fisionomia das pessoas”, pode aqui ser analisada como uma alusão ao pós-tortura, uma vez que as vítimas ficavam completamente desfiguradas fisicamente, devido ao elevado grau dos espancamentos. O trecho ainda menciona o fato de que as pessoas apressam mais o passo quando há chuva e que também aceitam a ajuda de estranhos para se protegerem dela. A situação ilustrada pelo narrador demonstra que, em circunstâncias como essas, as pessoas correm porque têm medo da perseguição e da violência e, por isso, buscam proteção para ficar a salvo. O sol também é mencionado nessa passagem; entretanto, de maneira oposta à chuva, pois, ao se referir ao sol, o narrador discute a questão de que, em dias ensolarados, as pessoas parecem andar menos apressadas, o que leva a pensar que essa situação é uma menção a tempos de paz e de liberdade, em que as pessoas podem andar tranquilamente pelas ruas, sem medo. Dessa forma, a chuva, como representação do mau tempo, é também sinônimo de 235 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 132. 129 tempos difíceis e sombrios, assim como aquele em que as pessoas viviam sob repressão e violência. Em Em câmara lenta, também é possível perceber a preocupação do narrador em demonstrar, por várias vezes, a situação violenta e degradante em que estava mergulhada a sociedade brasileira da época. O trecho abaixo ilustra tal colocação: [o] mundo continua envolto em algodão, os ruídos amortecidos, as pessoas distantes, mas tem um monte de gente, isso distrai um pouco e é preciso prestar atenção aos gestos normais. Tranquilo como qualquer pessoa, o rosto só transmite o mesmo alheamento cansado de todo mundo, dos que estão voltando de um dia de trabalho monótono e medíocre [...]. Mas não se deve deixar transparecer que nos transformaram em carne moída duma vez só e o rosto não transmite nada [...]. Por isso a gente está cada vez mais isolado, sozinho desconfiado, mas tudo isso nem tem mais importância236. Através dessa passagem, o narrador apresenta algumas características do cotidiano de violência e de medo em que estavam mergulhados os indivíduos. Fala de como as pessoas viviam temerosas, pois o perigo poderia estar escondido atrás de qualquer rosto, e, atrás da face que menos despertasse suspeita, poderia surgir o horror. Trata-se, pois, de abordar como os militares infiltravam-se no meio de diversos grupos para poder, com maior facilidade, perseguir e prender os suspeitos ou até mesmo saber o que estava acontecendo nas diversas esferas da sociedade, para, assim, coibir qualquer manifestação contrária aos interesses do governo. A menção aos rostos que nada transmitem refere-se ao silêncio a que deveriam se submeter as pessoas para que não fossem perseguidas e presas. O importante era não demonstrar qualquer contrariedade e, mesmo aquelas que o sistema repressivo já havia se encarregado de “interrogar”, não poderiam deixar transparecer em sua face qualquer sinal de desfiguração, tanto física quanto moral. As aludidas referências que ambos os narradores fazem acerca da realidade ditatorial da época demonstram, pois, a necessidade de dividir com alguém, levar a um possível ouvinte ou leitor o conhecimento acerca da situação social a que a população estava submetida. Segundo Shoshana Felman, a propagação do testemunho dos tempos de crise e sua onipresença nesta “era dos extremos” apresenta-se como uma possibilidade de transmissão de conhecimento e direcionamento para o pensar 236 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 19. 130 da história enquanto produtora de catástrofes237. Do contrário, argumenta a autora, ao seguir preceitos teóricos benjaminianos, não buscar nas ruínas do passado respostas para o presente é uma forma de aumentar a incompreensão em relação aos rumos da experiência humana. Jeanne-Marie Gagnebin, estudiosa das teorias de Benjamin, explica que cada acontecimento histórico do passado espera pacientemente ser reconhecido, cuja descoberta é só uma questão de perseverança e de habilidade. A crítica ainda cita palavras de Dilthey, quando diz que a célula original do mundo histórico é a experiência vivida238. Para ela, só a experiência é capaz de compor um continuum histórico aceitável, o que indica que o testemunho, enquanto resultado de uma experiência vivida, torna-se o caminho ou o modelo de narração capaz de escrever uma outra história. Seligmann-Silva também comunga da tese de que o testemunho de cenas violentas extremas apresenta-se como um registro da história, pois pode servir como um documento para uma contra-história ao apresentar outro ponto de vista discrepante da história oficial239. Contudo, apesar de o testemunho apresentar um considerável conteúdo para a história e de aquele que sobreviveu uma situação extrema sentir necessidade de testemunhar e contar o vivido, enquanto estratégia de libertação e tentativa de retorno à vida, o testemunho é algo que não se dá de maneira tranquila ou plena de êxito. O sujeito percebe que a linguagem, seja de forma oral ou escrita, não consegue dar conta da tarefa de narrar o que se propôs, gerando, assim, um grande conflito diante do querer narrar e de sua impossibilidade em função dos problemas psicológicos e de memória, ocasionados pelo evento traumático. Em Quatro-olhos, é possível notar a necessidade que sente o narrador para retomar um possível “curso normal” da vida. Observa-se como o protagonista debatese, através da narração, na busca pelo restabelecimento da ordem que parece ter sido destruída. Diante disso, destaca-se: enfim queria dar notificação de que festa é festa, advertir que ou se está vivo ou morto, morto-vivo não funciona, eia, eia sus, vamos armar grossa farra, vamos impor a ordem nesse caos, sou partidário convicto da ordem; faça-se a ordem, pois – alguém dê a ordem, a237 FELMAN, Shoshana. Educação e crise ou as vicissitudes do ensinar. In: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação. 2000. 238 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória e libertação. In: ____. Walter Benjamin: os cacos da história. 1982. p. 63. 239 SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. 2005. p. 89. 131 cione o apito, primeiro o surdo, depois as caixas, tarol, atabaque, cuíca e tamborim, haja ordem e não o caos desordenado das conversas desconexas e isoladas, para fazer isso não precisa haver reunião, fica cada um no seu canto ou cada par na sua cama que ninguém vai incomodar, é preciso acabar com essa desordem, onde está o mestre-sala, cadê a porta-estandarte240. Através desse excerto, nota-se como o narrador ansiava pelo restabelecimento da ordem. Tal necessidade demonstra o quão fragilizado se encontrava em decorrência de tudo o que havia vivido. Suas ideias encontravam-se desconexas, a ponto de não identificar, muitas vezes, se estava vivo ou morto. A menção aos vários instrumentos musicais remete à necessidade de provocar a harmonia, pois, assim como os sons dos diferentes instrumentos musicais geram um só som harmonioso, inferese seu desejo de também conseguir concatenar em sua mente todas as lembranças e informações que se apresentavam confusas e embaralhadas em função do trauma sofrido. Da mesma forma, nota-se, no discurso de Em câmara lenta, a preocupação do narrador pelo restabelecimento da ordem. Assim, observa-se: os oradores falaram dos interesses do imperialismo americano, da resistência do povo cubano, de socialismo e liberdade. Aqueles conceitos que eu já havia lido em algum lugar começaram a tomar contornos reais. Eu conheci o mundo pelos livros, só depois aprendi a reconhecê-lo na vida. Ali, no sentimento exaltado de revolta, no envolvimento pela emoção, aquelas palavras, que nos livros eram frias, saltaram para dentro da vida, reais, palpáveis, vibrantes: liberdade, revolução, socialismo. Saí de lá de madrugada, cansado, confuso e feliz. Aquelas ideias haviam se tornado reais, mas estavam todas desarrumadas, desarticuladas, caóticas. Levei muito tempo tentando arrumá-las, mergulhando na vida para colocá-las na ordem. E descobri que sua ordem é a própria vida241. Através desse fragmento, nota-se que o narrador é alguém que vê tudo desintegrado à sua volta. Ele se dá conta de que a situação que vivera durante o período ditatorial o perturbara muito. Os acontecimentos faziam parte de sua vida e ele participara de tudo, entretanto, percebe que, por mais que tente organizar em sua mente e entender de maneira coerente tudo o que estava acontecendo no país, não consegue êxito. O protagonista então percebe que não é possível estabelecer a ordem em 240 241 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 33-34. TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 71-72. 132 sua mente para entender de forma lógica acontecimentos e situações que já se apresentam destituídos de logicidade e coerência. A busca pela ordem que pode ser inferida com essa passagem demonstra também uma tentativa de restabelecimento de uma ordem interior, de uma organização de ideias e pensamentos capazes de libertálo do caos psicológico em que se encontrava. O conflito psicológico e o descontrole dos narradores, o que pode ser observado nos fragmentos acima, são tratados por Calegari como uma manifestação daquilo que representa o desconhecido, o não convencional. Ao se observar a busca pela ordem como uma recorrente tanto em Quatro-olhos, quanto em Em câmara lenta, pode-se dizer, de acordo com o mesmo autor, que a noção de desordem em que se encontram os narradores é também a base para a linguagem fragmentada e desordenada. Estar exposto a ocorrências sociais de grande impacto, como situações de violência, faz com que a constituição subjetiva do indivíduo seja abalada, problematizando, dessa forma, o próprio ato de narrar242. A busca pelo restabelecimento de um certo curso normal das coisas é um desejo explicitado por ambos os protagonistas. Porém, de acordo com as formulações de Seligmann-Silva, a narrativa do testemunho sempre irá dar-se de maneira ambígua e conflituosa. Em outras palavras, por mais que o sujeito se esforce para relatar, os traumatismos por ele sofridos foram além de sua capacidade de elaboração e assimilação. O sobrevivente não consegue atribuir legitimidade aos eventos. Dessa forma, o desconforto diante da impossibilidade de articulação da linguagem dá origem a um discurso marcado pela fragmentação. Em Quatro-olhos, o discurso fragmentado e a consciência do narrador diante da insuficiência da linguagem para narrar perpassam toda a obra. Em relação a isso observa-se: complexa rede de interações sociais, pois, como se diz, a palavra nunca é alienada, materialização forçosa que é, havia naquele dia se entrelaçado de maneira que me tirava da boca o que tinha a dizer. Muito maior contribuição daria à ciência da estética não quem explicasse a menor vírgula dos que escrevem, mas o silêncio de quem não cria. Esse é o problema central, a meu ver. Naquele dia, portanto, o choque permanente de obscuras potências sociais, a história em movimento, a luta de classes em escala internacional, as contradições entre o homem e a natureza, tolheram i242 CALEGARI, Lizandro Carlos. A literatura contra o autoritarismo: a desordem social como princípio da fragmentação na ficção brasileira pós-64. 2008. p. 279. 133 nexplicavelmente meu astro, que disso não tinha consciência, agente mais passivo do que ativo do surdo conflito que o amoldou tal como é. A consciência das massas, durante aquele período de horas claras no quadro de meridianos e paralelos em que gradativamente me movimento, parecia particularmente entorpecida, a ponto de, ao perpassar por mim o desejo de prosseguir a obra, não atingiu grau suficiente para me levar a pegar a caneta. Talvez, no entanto, a conjuntura dos dominantes é que estivesse notavelmente intensificada à luz daquele dia. Houve empate e fiquei imobilizado como agente social da produção. É possível, porém, que a realidade esteja sendo transposta às avessas no meu sentir e que exatamente a ausência de meu papel, a inexistência de meu texto, melhor conviesse, naquele momento histórico particular, aos interesses do progresso243. Esse fragmento demonstra o problema enfrentado pelo protagonista no decorrer da escrita de sua obra. Ele sente necessidade de narrar alguns fatos que considera importantes, mas, ao mesmo tempo, depara-se com a dificuldade de organizar as ideias. O narrador não encontra linguagem adequada para transmitir para o papel as cenas que se “entrelaçavam” em sua memória. Afora isso, o narrador tem em sua mente as imagens e o conhecimento a ser transcrito, bem como tem o desejo de escrever e levar adiante suas palavras que considera livres de qualquer alienação; contudo, dá-se conta do quão dificultoso se tornou concatenar com certa coerência essas ideias que se emaranhavam em sua mente. Percebe que não consegue êxito com as palavras e deixa transparecer em seu texto que, ao não conseguir escrever, mesmo assim estava contribuindo à ciência, pois o silêncio por nada conseguir dizer é símbolo de sua precariedade e de sua destruição psicológica, como resultado de um sistema opressor e violento. O romance Em câmara lenta também evidencia a problemática da insuficiência da linguagem. Em muitas cenas, é possível observar a luta interna do narrador diante de sua percepção de que as palavras já não podem mais ser usadas com facilidade para expressar tudo aquilo que deseja. Diante disso, observa-se: [d]e repente o mundo está cheio de algodão, espesso e pegajoso, as palavras não fazem mais sentido porque não nomeiam coisas – apenas soam como ecos, prolongados por ouvidos acostumados a classificá-los244. 243 244 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 38-39. TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 15-16. 134 O jogo de armar está ai, para quem puder entendê-lo e encaixar todas as peças. Eu não posso mais – nenhuma coerência quando se destroem algumas peças: ela e a confiança245. Ao observar o fragmento acima citado, percebe-se como o narrador encontrase deslocado em meio às situações sociais que se apresentam e das quais fora vítima. Seu discurso denuncia a forma como vê o mundo, como algo confuso, o qual ele não consegue simbolizar, encontrar explicação plausível por meio da linguagem para a situação em que se insere. A dificuldade para lidar com as palavras, para encontrar uma linguagem possível de explicar como ele se sente, é expressa com profundo pesar. O protagonista evidencia que repentinamente “o mundo está cheio de algodão”, o que pode ser entendido como uma espécie de bloqueio mental que o impossibilita de ver com clareza os acontecimentos à sua volta e também de concatenar as palavras e o discurso. Nota-se, em função da percepção de sua carência de linguagem, a dor que o protagonista sente, a ponto de chegar à desistência e ao abandono da tarefa de “encaixar todas as peças” na tentativa de assimilar o que acontecera e que o perturbava tanto. O problema encontrado pelos narradores de Quatro-olhos e de Em câmara lenta, no que diz respeito à questão da escassez de linguagem para narrar a experiência vivida, é uma questão que pode ser analisada à luz da teoria benjaminiana. É Walter Benjamin quem observa que a submissão do indivíduo a episódios violentos acarreta uma problematização na linguagem, e, consequentemente, do próprio relato. Tais pressupostos teóricos são abordados pelo crítico em seu texto Experiência e pobreza, quando levanta hipóteses acerca do fato de os combatentes do século XX, ao retornarem da Primeira Guerra Mundial, apresentavam-se praticamente silenciosos, pobres em comunicação, completamente incapazes de narrar o vivido246. De acordo com os levantamentos do autor, o indivíduo, diante de uma situação de impacto violento, está sujeito a uma desordem mental. Dessa forma, o testemunho, enquanto narrativa do trauma vivido, também é influenciado por essa desordem psicológica, refletindo diretamente na representação. Diante disso, a exposição dos narradores de Quatro-olhos e de Em câmara lenta às situações violentas, provocadas pelo regime autoritário, acaba por causar forte impacto psicológico neles, explicando, assim, a dificuldade encontrada por eles para construírem seus relatos. 245 Idem. Ibidem. p. 87. BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 2006. p. 115. 246 135 Conforme discute Seligmann-Silva, a fragmentação textual seria então o produto final do sujeito diante de sua incapacidade de atribuir sentido à experiência vivida. O evento traumático extrapola os limites de capacidade mental do sujeito, destituindo-o de qualquer condição de assimilação plena247. Dessa forma, sem conseguir encadear as ideias e distante de qualquer forma plausível de simbolização do trauma, o discurso acontece em fragmentos. E é assim, através de fragmentos, que o romance de Renato Pompeu se constitui e contribui no testemunho que se coloca em oposição ao discurso oficial do Estado e às repressões institucionais. A seguir, observa-se um trecho retirado de Quatroolhos que ilustra como se dá essa narrativa: não sei se na vila em que crescia a roseira ou se noutra vila dei, a certa altura, para enfiar um incêndio. Havia num extremo da vila uma fabriqueta de cera, em cujo muro lateral que dava para o pátio de terra ao fundo da vila, limitado pelo beco de entrada, ocorriam muitas marcas sujas de bola. Aquele pátio de terra nua, mais alto que o leito da vila, era chão sagrado para a molecada. Certo sábado à tarde o pátio ficou coberto de densa fumarada, que se enovelara negra: a fabriqueta tinha pegado fogo [...]. A roseira tornou-se meio escura de fuligem do incêndio. A dona de casa em cujo jardinzinho ficava a roseira pôs-se a lavá-la quase pétala por pétala, alguma rosa se desmanchou [...]. Em certo momento, falei da moça abandonada, que ocupou um capítulo. Era magra e limpa, a lançar em derredor uma impressão de branco com cheiro neutro de anil; formara-se socióloga e lidava com computadores, seu tanto presa aos pais a morar com eles, entre begônias e hortências, com seu quarto de paredes caiadas e lençol azul [...]. De manhã, ela anunciou que voltaria de imediato a São Paulo. Ficou esperando que ele insistisse em retê-la, mas ele não o fez. Por isso eu a chamava no livro de a moça abandonada. Em verdade, foi com alívio que ela retornou às suas begônias e hortências248. Os trechos acima mencionados foram retirados do capítulo XII da primeira parte de Quatro-olhos. Esses excertos podem sintetizar e exemplificar como se dá a narração desse romance que se pauta na escrita enquanto estratégia para transpor a barreira do esquecimento. Esse capítulo, que na obra ocupa em torno de duas páginas, apresenta três histórias diferentes: o incêndio de uma fábrica de cera, a roseira que fora cuidada por uma mulher estranha e o caso da moça abandonada por um suposto namorado. O que mais chama a atenção é o fato de que o narrador não con247 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão. In: ____ (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 47-50. 248 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 75-79 passim. 136 segue contar, dentro de uma certa ordem, as histórias que lembra. Ele migra de um assunto para outro com muita rapidez, o que deixa o relato truncado. De acordo como as lembranças vêm à sua mente, o protagonista as lança no romance, sem discernir o que pertence ao início de uma história e o que faz parte do final. Tudo se apresenta muito desordenado, quase caótico, reunindo uma série de imagens contraditórias e confusas. Os poucos fragmentos que lembra das histórias que colocara em seu livro original, que fora perdido, agora se entrelaçam em sua mente e lhe devolvem uma série de cenas isoladas e obscuras. Esse universo desordenado que o narrador projeta em sua narração é, pois, o reflexo de uma sociedade também desarticulada. Diante disso, a integridade racional dos sujeitos é afetada, fazendo com que seja praticamente impossível o surgimento de uma narração que não a fragmentada ou desarticulada. O romance Em câmara lenta, apesar de deter-se em uma quantidade menor de fatos e de histórias, apresenta também as características de um discurso pautado na incompletude de informações e, por que não dizer, também do esquecimento. Pode-se acrescentar que a obra é construída sob a tensão de ideias incompletas e confusas. De acordo com o exposto, observa-se o seguinte trecho desse romance: [a]lguma coisa de profundamente errado nesse vazio, no longo can- saço dessa espera por coisa nenhuma. Continuar arrastando os pés calçados em botas de chumbo até o fim. Qualquer fim. Continuar porque a marcha não pode mais ser interrompida. Esperar. Ela olhou o mar e fez gesto amplo, carregado de liberdade e de vida. Correu pela praia até cansar e voltou para ele, molhada de suor, o riso cristalino. Seu gesto era um traço de alegria. Os guerrilheiros pararam. Sujos e cansados, eles ficaram imóveis entre as árvores, os rostos voltados para cima, a respiração suspensa. O ruído ritmado das hélices de um helicóptero chegava até eles249. O respectivo trecho, acima citado, foi retirado na íntegra como se apresenta no romance. Diante disso, é possível observar como o narrador, em apenas poucas linhas, se desloca, com muita rapidez, de um assunto para outro. Inicialmente, ele parece refletir acerca da situação de destruição em que se encontrava, uma vez que sua organização guerrilheira fracassara. Logo na sequência, narra uma cena em que lembra de sua amada, quando ela ainda estava viva e, depois disso, direciona o rela249 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 72-73. 137 to para uma outra cena em que lembra de momentos de treinamento da organização guerrilheira. A exemplo desse trecho, toda a narrativa se dá através da intercalação de histórias diversas. Não é possível notar com clareza quando termina um assunto e começa outro, a narrativa avança conforme os pensamentos, lembranças e ideias do narrador vêm à sua mente. A dificuldade de organizar o relato dentro de uma certa coerência e linearidade ilustra como a mente do narrador encontra-se perturbada em função dos acontecimentos pretéritos marcados pela violência. A fragmentação textual que caracteriza o discurso de Quatro-olhos e de Em câmara lenta demonstra a dificuldade em que se encontravam os narradores diante da problemática do esquecimento e das rupturas psicológicas ocasionadas em função do trauma a que foram expostos. Theodor Adorno, ao elaborar suas proposições acerca da fragmentação formal da narrativa, sinaliza para o fato de que o rompimento dos princípios formais da arte moderna está diretamente relacionado às experiências de desumanização e violência em períodos truculentos. Adorno argumenta em favor da tese de que as obras de arte possuem uma ligação direta com a realidade exterior. Segundo ele, a existência de uma tensão externa é o que motiva uma tensão interna na obra de arte, ocasionando uma resposta em termos de estrutura. Em outras palavras, os antagonismos sociais retornariam às obras de arte como problemas imanentes de sua forma250. De acordo com o raciocínio adorniano, a percepção de uma realidade conflitiva vai levar o artista a também elaborar sua obra com tensão. Sendo assim, os problemas, os conflitos e as tensões que podem ser observados na sociedade são motivadores das rupturas com os paradigmas estruturais das obras de arte. Adorno argumenta que esta última, enquanto autêntica manifestação do social, irá exibir as “feridas” da luta e as contradições do real, e, por isso mesmo, o estilo não pode ser harmônico. Assim, em Adorno, o estilo é a ruptura e sua essência é o fragmento. Fora isso, qualquer possibilidade de harmonia seria falsa, pois estaria mascarando a lógica da experiência; e a experiência não é percebida como harmônica251. Ao se seguirem os pressupostos teóricos levantados por Benjamin de que a história não pode ser concebida como um acontecimento linear do tempo, mas pensada enquanto experiência e construída sobre as ruínas que se amontoam no tempo e no espaço, destaca-se o papel da destruição e da falsa aparência da totalidade e 250 251 ADORNO. Theodor W. Teoria estética. 2008. p. 16. Idem. Ibidem. p. 16-20. 138 aponta-se para a valorização da ruína e do fragmento. Para o autor, “articular o passado historicamente não significa conhecê-lo tal como ele propriamente foi, mas apoderar-se de uma lembrança na forma em que ela cintilou no instante de um perigo”252. Dessa forma, a fragmentação é vista em Benjamin como uma possibilidade de leitura de uma história em camadas, em ruínas, sendo o resgate desses estilhaços deixados no tempo, a única possibilidade de entendimento e construção da história da sociedade. Quatro-olhos e Em câmara lenta englobam em seu discurso questões relacionadas diretamente à violência e ao autoritarismo oriundos do regime político ditatorial e abrem uma discussão acerca dessa experiência traumática vivida por seus protagonistas e personagens. Desse modo, os pressupostos elencados por Adorno servem para explicar como os acontecimentos do meio social dos protagonistas foram determinantes para a produção artística da época, principalmente no que se refere ao surgimento da fragmentação enquanto forma estética. Ainda segundo Seligmann-Silva, a fragmentação consistiria numa forma de apresentar a psique cindida do traumatizado e sua incapacidade de incorporar em uma cadeia contínua as imagens253. Também Jaime Ginzburg aponta para o fato de que, na narrativa de testemunho, enquanto linguagem associada ao trauma, pode haver um abismo intransponível entre o impacto da catástrofe e os recursos expressivos, de modo que, assim, toda e qualquer formulação pode ser imprecisa ou insuficiente254. O traumatizado é alguém que podia ter morrido, mas não o fez255, e o fato de o sujeito ter chegado próximo à morte o deixa, como argumenta Ginzburg, sem uma identidade segura. Com isso, o desejo da enunciação faz da narração do testemunho a busca de um sentido que não foi antecipadamente definido. O testemunho, então, fala e narra o encontro com o “real” enquanto trauma, o encontro com as experiências do corpo que sofre. Na medida em que a dor corporal é incontornável, ocorre uma espécie de deslocamento entre mente e corpo, ou seja, ocorre a vontade de abandonar o corpo. Para Ginzburg, em um corpo sofrido, a relação entre língua e pensamento é abalada em função da negatividade da experiência. A linguagem, por sua vez, 252 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória e libertação. In: ____. Walter Benjamin: os cacos da história. 1982. p. 73. 253 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho da Shoah e literatura. 2007. p. 2. 254 GINZBURG, Jaime. Linguagem e trauma na escrita do testemunho. Conexão Letras, 2008. p. 63. 255 BRAUNSTEIN, Néstor. Sobrevivendo ao trauma. s. d. 139 passa a ser vista como “traço indicativo de uma lacuna, de uma ausência” 256. Com isso, a experiência não consegue ser assimilada de modo completo, desencadeando, em função disso, ideias incompletas e a repetição constante, por parte da vítima, da cena do impacto257. De acordo com os aludidos elementos teóricos expostos acima, é possível observar que tanto em Quatro-olhos, quanto em Em câmara lenta, o momento do choque que ocasionou o trauma nos narradores é uma cena que sempre está retornando às suas mentes. Quanto a essa problemática na narrativa de Pompeu, é possível notar trechos como o seguinte: [t]ambém era contado o noivado da mulher com o operário, com cerveja e pasteizinhos. Em suma, eu fazia completo levantamento da vida de subúrbio, que não me apraz repetir aqui. Novelos confusos formam-se em minha mente e não consigo recompor meu escrito. Mas havia algum detalhe, talvez o momento em que a mulher passava base no rosto, enfim havia um detalhe, uma pequena lantejoula redacional, em que eu punha a minha marca de autor. É possível que fosse a lã no colo da mulher enquanto ela fazia uma blusa para o sobrinho – sim, porque a irmã tinha casado também, com o dono de um bar. Mas não me recordo em absoluto258. De acordo com essa citação, é possível observar como o narrador sempre está referindo-se ao seu livro perdido. Ao tentar reescrevê-lo, dá-se conta de que é incapaz, porque lembra muito pouco do conteúdo que nele continha, as referências à perda de seu original são ainda mais intensas. Os novelos confusos a que se refere podem aqui ser entendidos como as lacunas deixadas pelo esquecimento em sua mente em função do trauma. O fato de não conseguir lembrar de seu passado é o que representa a constante presença da experiência traumática vivida pelo narrador. A experiência dolorosa que ocasionou não só a perda de sua obra prima, mas também o esquecimento, lesionou o psicológico do protagonista e o deixou para sempre preso ao passado. No romance de Tapajós, também é percebido com frequência o constante retornar do narrador à cena de impacto, a constante rememoração do passado que ocasionou perdas significativas ao narrador. Assim, observa-se: 256 64. 257 GINZBURG, Jaime. Linguagem e trauma na escrita do testemunho. Conexão Letras, 2008. p. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão. In: ____ (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. p. 48-49. 258 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 131. 140 [e] agora outra vez, só que desta vez foi ela, e eu não escapei porque eu fiquei lá para sempre; o que escapou foi um corpo vazio, uma casca sentada na beira da cama olhando a parede e sabendo que o tempo acabou, mas que vai continuar se arrastando e atirando e odiando [...]. [P]orque eu também morri, lá, naquele dia, no momento quê259. [...] Uma imagem que não é mais do mundo, mas de uma solidão voltada sobre si mesma. O gesto incompleto, estilhaçado, no momento em que ela. O barco à deriva foi encontrado por alguns caboclos. A polícia veio ver o corpo do piloto, encontrou os livros e o disco260. Em Em câmara lenta, o discurso do narrador é marcado pela dor do fracasso da organização guerrilheira e pela dor da perda de sua amada. O frequente constatar da ausência da amada faz com que o narrador volte ao passado na tentativa de compreender o que realmente aconteceu. Nota-se que o narrador permanece envolto em uma dor muito grande e que tamanha é sua perturbação em função da perda que sofrera que não consegue muitas vezes nem levar seu discurso até o final, deixando frases e trechos da narrativa incompletos. Como no observado acima, o narrador, em um determinado momento, está falando de uma cena que antecedeu a prisão e a morte de sua amada, entretanto, de repente, migra para outro assunto e já começa a falar de acontecimentos com o grupo guerrilheiro, deixando incompleta a primeira linha de raciocínio que iniciara. Contudo, é através da repetição da cena que marca a perseguição, prisão e morte da amada do narrador de Em câmara lenta, que se pode entender com maior facilidade a questão do retorno do trauma, enquanto um passado que não passa, mas que permanece atrelado para sempre ao psicológico dos sujeitos. A cena é a seguinte: [c]omo em câmara lenta: ela se voltou para trás. Sua mão descreveu um longo arco, em direção ao banco traseiro, mas interrompeu o gesto e desceu suavemente na abertura da bolsa, escondida entre os dois bancos da frente, pouco atrás do freio de mão [...]. O revólver disparou, clarão e estampido rompendo o silêncio261. 259 Idem. Ibidem. p. 24-25. Idem. Ibidem. p. 43. 261 Idem. Ibidem. p. 16. 260 141 Esta talvez seja a cena que melhor ilustra o constante regresso à mente do narrador da situação a qual ele permanece ligado durante toda a narrativa. Além de outros trechos que lembram a morte de sua amada, o fragmento acima citado aparece assim, sempre escrito da mesma forma, por pelo menos 6 vezes ao longo da narrativa, sempre intercalado entre uma e outra história da organização guerrilheira. Entretanto, a cada vez que surge no relato, essa cena, ao mesmo tempo em que vem acrescida de mais informações, deixa transparecer a dor do narrador que é intensificada a cada retorno desta. Na medida em que o protagonista avança com a narrativa, essa cena ganha maior espaço no relato, até chegar à última página do romance, que é quando o protagonista coloca, com todos os detalhes como fora a morte, sob cruel tortura de sua amada. Assim, “como em câmara lenta”, o narrador vê ressurgir, com insistência, em sua mente, o evento que o abalou. E, da mesma forma, os detalhes são lançados aos poucos, assim “como em câmara lenta”, para que nada passe despercebido aos olhos do leitor. Freud e Breuer, ainda em 1893, declararam que o estudo dos sonhos pode ser considerado o método mais confiável na investigação dos processos mentais profundos. Segundo os psicanalistas, é nos sonhos que as neuroses traumáticas caracterizam-se por repetidamente levar o paciente de volta à situação que lhe causara o susto. Dessa forma, a experiência traumática, ao estar continuamente impondo-se ao paciente, mesmo que durante o sono, demonstra a fixação do trauma na mente desse paciente. Para Freud e Breuer, “os histéricos sofrem principalmente de reminiscências”262. Conforme explicam os autores, após a fixação de um forte impacto no subconsciente, o que ficou no nível do inconsciente, deveria tornar-se consciente, porém isso não é completamente atingível. Dessa forma, o sujeito traumatizado não consegue lembrar a totalidade do que nele se acha reprimido, e o que não lhe é possível recordar pode ser exatamente a parte essencial. Ao não conseguir nenhum sentimento de convicção em relação à coerência e à exatidão daquilo que recorda, para entender que sua experiência é parte do passado, o sujeito está fadado a repetir o conteúdo reprimido como se fosse uma experiência contemporânea, sempre presente e não como algo pertencente ao passado263. Conforme explicado também por Cathy Caruth, o trauma, enquanto patologia, por não ser assimilado pela mente quando acontece, sempre irá retornar como fenô262 FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. In: ____. Obras psicológicas completas. 1976b. p. 24. 263 Idem. Ibidem. p. 30. 142 meno repetitivo à mente do traumatizado264. Assim, enquanto ferida aberta na memória, e comungando das proposições de Freud, de que o traumatizado sofre de reminiscências, Caruth argumenta em favor da tese do eterno retorno, por meio de pensamentos, ações repetidas e até mesmo de pesadelos da cena traumática. A questão da fragmentação do discurso do sobrevivente de uma situação violenta está também diretamente ligada ao esquecimento provocado pelo evento traumático. A incapacidade de lembrar do passado como ele realmente foi faz com que as ideias e os pensamentos do sujeito não sejam articuladas de maneira satisfatória. Em Quatro-olhos, esse é um problema recorrente, pois o narrador tem consciência do quanto sua memória está abalada pelo esquecimento e como seu texto fica prejudicado em função disso, pois não consegue ordenar a narração de maneira linear. A respeito disso, observam-se as seguintes passagens retiradas do romance de Pompeu: [c]reio que no livro falei alguma vez de cenouras, brilhos carnudos laranja a alongar-se finos. Mais certo é ter contado a história do rapaz embriagado que se perdeu com seu carro; tinha visto a antiga namorada a circular com outro num saguão de grêmio de faculdade [...]. Também no livro creio ter feito referência vadia a pernas moças, a brilhar em contracapa de revista num anúncio de cigarro. A moça do anúncio vestia maiô marrom, ao lado do jovem também de maiô marrom que lhe oferecia cigarros num barco a vela. [...] Deixei a moça assim sob a chuva na calçada ou pus alguém à janela, a imaginá-la nus sob o vestido grudado ao corpo, não posso esclarecê-lo de memória. [...] Memória não guardo entrementes de capítulo ou trecho, apenas batem no cérebro miniaturas em que me lembra ter posto o dedo, como cabeleiras douradas numa réstia de poeira brilhante de sol ou gorgolejos estertorados de um velho a lavar a boca, rostos encardidos do pó de fábrica ou imagens de Nossa Senhora de manto azul cheio de estrelas. De tudo isso dei conta e dou fé, mas a maravilha marmórea que fui recortando só em pedaços a esmo me relampeja na cachola265. Segundo a citação reproduzida, percebe-se a dificuldade do narrador para recordar-se de fatos do passado e sua consciência em relação a essa sua dificuldade. Nota-se o esforço que faz para buscar na memória eventos que ele possa simbo264 CARUTH, Cathy. Modalidades do despertar traumático (Freud, Lacan e a ética da memória). In: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação. 2000. p. 111-120. 265 POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 75-112 passim. 143 lizar de maneira coerente. Porém, essa tarefa não se apresenta possível de concretização, e os diferentes tópicos surgem entrelaçados na mente do protagonista, dificultando o surgimento de um relato íntegro. Diante disso, o narrador parece perdido em meio às vagas lembranças que surgem em sua memória e divaga em torno de pistas de acontecimentos e episódios que aludem ao seu passado, sofrendo, no entanto, com a falta de memória que lhe acomete a mente. Condição semelhante é observada no relato de Em câmara lenta. A questão do esquecimento não é apresentada de maneira explícita pelo narrador, entretanto, através de suas atitudes, é que se torna possível a percepção dessa problemática, uma vez que se nota como o desconhecimento de certas situações apresentado pelo narrador é resultado do esquecimento que lhe perturba. Para tanto, pode-se observar: [o] gesto continuava estilhaçado, espalhado aos pedaços pelo chão da casa e é impossível reunir as peças para reconstituir seu sentido. Para restituir a forma ao jogo de armar. Os elementos acumulados e ordenados pelo tempo se arrebentaram, explodiram em mil fragmentos no momento em que ela. No momento, mas não só por causa disso. Estopin, espoleta, detonador duma carga também acumulada, dum elemento de destruição que cresceu junto com a coerência construída, para negá-la. Talvez a coerência fosse falsa e tudo o que se criou em torno dela, um artifício [...]. Então agora: tudo muito de repente, tudo de uma só vez fragmentado e não há mais tempo para nada. O espelho foi de novo colocado, mas agora ele está trincado em mil pedaços e devolve uma imagem partida266. Através dessa passagem, é possível notar como o protagonista sente-se perdido diante daquilo que o cerca. Em outras palavras, poder-se-ia inferir que, o que ele sabe em relação aos acontecimentos passados violentos, dos quais fora vítima, não é o suficiente para formar um todo coerente em sua mente. Ele percebe que tudo parece muito fragmentado, que as informações de que dispõem apresentam-se incompletas e confusas. Sua memória não é capaz de lhe oferecer de maneira ordenada os fatos a fim de que tudo possa ser compreendido. Observa-se como o narrador deixa o discurso truncado quando se refere à sua amada, pois a morte dela é algo que o perturba, não o deixando organizar seus pensamentos dentro de uma certa ordem de causa e consequência. A vagueza com que recorda os episódios é assim transferida para seu relato e, de repente, o narrador se vê impossibilitado de unir, numa única 266 TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 42. 144 imagem, os estilhaços que afloram à sua mente, pois as lembranças que se dão em fragmentos são partes, agora para ele, impossíveis de serem (re)integradas. Essa vagueza que perturba o psicológico do narrador, que faz com que suas ideias confundam-se, demonstra que algo importante, capaz de completar o quebra-cabeça da história, foi esquecido ou silenciado, e, sendo assim, a falta de algumas peças desse “jogo de armar” impossibilitam que o relato seja completo. Os pressupostos teóricos de Seligmann-Silva apontam para o fato de que o testemunho, enquanto narração do evento traumático, situa seu núcleo no trabalho da memória. Entretanto, o trabalho do testemunho permanece centrado entre a necessidade de lembrar e sua impossibilidade. Em outras palavras, o que acontece não é uma mera oposição entre a memória e o esquecimento, mas a necessidade de lembrar é barrada pela impossibilidade da rememoração do sobrevivente, tornando dessa forma a descrição sempre parcial267. O sobrevivente que entrou em contato com o “real”, que passou por um “evento” violento e chegou perto da morte, resiste à simbolização. Esse trauma, que ficou em sua mente como uma “perfuração” na memória, dividiu o sujeito em dois: um antes e outro depois do trauma. Em função disso, a memória se apresenta cindida, e a ferida aberta na mente impossibilita o sobrevivente de lembrar de tudo o que se passou, configurando, assim, um discurso incompleto e fragmentado. O autor ainda argumenta que a incapacidade de incorporar em uma cadeia contínua as imagens vivas, exatas da memória do sobrevivente, marca a narrativa do testemunho como também “uma tentativa de reunir os fragmentos do passado, que não passa”, em busca de um nexo e um contexto para estes. A fragmentação observada tanto na narrativa de Pompeu quanto na de Tapajós permite, em um primeiro momento, olhar para essa construção narratológica enquanto resultado de fatores patológicos decorrentes das mentes perturbadas dos narradores. A problematização da memória dos protagonistas, haja vista o esquecimento que perturba suas mentes e que deixa lacunas, impossibilitando uma plena compreensão dos fatos, bem como o surgimento do sentimento melancólico, propiciado pelas perdas oriundas de situações de violência do período ditatorial, contribuem para a impossibilidade de assimilação e organização das ideias, fazendo com que o discurso surja truncado, destituído de ordem e em estilhaços. 267 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão. In: ____ (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 45-59. 145 A materialização da fragmentação, enquanto produto final do testemunho do “real”, também pode ser vista como uma resposta ao contexto social desestruturado e caótico que caracterizou as décadas do período da Ditadura Militar. Assim, enquanto resposta ao poder autoritário e violento, o fragmento é resultado de uma sociedade caracterizada pelo dilaceramento e pela experiência social caótica, uma vez que desordenada a conjuntura social, da qual emana a produção artística, a ruptura das convenções da linguagem e da narrativa é também inevitável. De acordo com os preceitos adornianos, pode-se inferir que o fragmento, enquanto possibilidade de narrativa, é uma forma alegórica utilizada para representar a experiência histórica de destruição que o país experimentou durante as décadas de 60, 70 e 80. 146 CONSIDERAÇÕES FINAIS [...] Pensem que isto aconteceu: eu lhes mando estas palavras. gravem-nas em seus corações, estando em casa, andando pela rua, ao deitar, ao levantar, Repitam-nas a seus filhos. Ou, senão, desmorone-se a sua casa, a doença os torne inválidos, os seus filhos virem o rosto para não vê-los. (É isto um homem? Primo Levi) Desde a antiguidade, a ênfase dada ao texto literário se resumia na preocupação com a linguagem, deixando em segundo plano o comprometimento com a verdade. Já à história era dada a credibilidade de um discurso que se queria sempre objetivo e comprometido com a verdade factual de um determinado evento. Entretanto, com base nos apontamentos de Hayden White268, observou-se uma certa desconstrução desse conceito, quando o autor defende que a história não podia mais ser vista como uma ciência exata, de fórmulas pré-concebidas e única depositária de fatos verdadeiros. Tal argumento filia-se ao fato de que a história não é neutra, pois, como parte integrante da vida da humanidade, está diretamente relacionada à natureza do homem e à sua constituição social. Nesse sentido, ela sempre será utilizada de acordo com uma determinada ideologia, geralmente de acordo com a ideologia do poder dominante, dos vencedores, glorificando alguns eventos, mas encobrindo outros fatos importantes que, se expostos, poderiam colocar em xeque a versão oficial. De acordo com os pressupostos de White, história e ficção estão sempre entrelaçadas, uma vez 268 WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. 1992. 147 que a história não deixa de ser uma forma de ficção e o romance uma forma de representação histórica, principalmente quando se referir à literatura de testemunho, enquanto produção narrativa memorialística ou autobiográfica. Ao se tratar da literatura de testemunho, olha-se para essa produção como uma forma encontrada pelo sujeito para tentar compreender a si mesmo e a sua vida. Esta pode ser considerada um relato de alguém que perdeu sua própria identidade, que não consegue mais se reconhecer ao sobreviver uma experiência traumática, e que busca, através do relato, reintegrar-se socialmente e, por que não dizer, recuperar essa identidade perdida. Assim, o trabalho com a literatura de testemunho pautase no reconhecimento dos sujeitos deixados à margem pela história oficial, bem como na “escuta” das vozes que foram abafadas. Olhar para a literatura de testemunho é, antes de tudo, um compromisso de cidadania para com aqueles que sobreviveram, bem como um ato de respeito em relação àqueles que foram impossibilitados de dar a sua versão dos fatos em relação às adversidades e às barbáries que assinalaram os tempos. O século XX marcou profundamente a história da humanidade. Nesse período, por um lado, observou-se a intensificação de conquistas no âmbito técnico, a ideia de progresso e de desenvolvimento, por outro, impondo-se paradoxalmente a essas ideias, mas já as acompanhando, surgiram a dominação, o poder, a barbárie e a dor. Esses episódios que caracterizam a história da humanidade em nível mundial servem para exemplificar a série de conflitos que também fez parte da história brasileira desse século, em especial, daquelas décadas entre 1964 e 1985, em que o país ficou sob atuação do governo militar. As considerações a respeito do autoritarismo e das práticas de violência levantadas ao longo deste trabalho servem para elucidar como o país enfrentou aquele nebuloso período de proibições, repressão e tortura, e como os artistas buscaram meios para conseguir driblar as imposições da censura. Os procedimentos narrativos observados nos romances em estudo, Quatroolhos e Em câmara lenta, incorporam a dimensão histórica coletiva da época, bem como testemunham, acusam e condenam a história do país, uma história comum a todos ou a muitos. Na medida em que dão testemunho, os protagonistas de ambos os romances fazem-se ouvir enquanto detentores de um saber que deveria ser de todos, mas que nem sempre é exposto pela versão oficial da história. O que pode ser observado nas obras que fizeram parte desta pesquisa é a dimensão alcançada pelas estratégias autoritárias. A fragmentação apresentada por 148 ambas as narrativas é o resultado da manifestação de mentes perturbadas pelo esquecimento ocasionado pelas práticas violentas e pelos conflitos psicológicos diante do trauma vivenciado. As particularidades observadas tanto em Quatro-olhos como Em câmara lenta, como a memória, o esquecimento, a melancolia, o trauma e, consequentemente, a fragmentação narrativa, articulados, fornecem uma ampla visão de como a situação política autoritária influenciou diretamente nas formas de manifestação artísticas da época. Tais romances produzidos na década de 70 estabelecem uma estreita relação entre realidade e discurso narrativo, fazendo com que a experiência histórica seja um elemento formador capaz de possibilitar o conhecimento de uma etapa da história brasileira. Assim, tanto o livro de Pompeu quanto o de Tapajós apresentam características que os situam dentro de uma vertente específica de crítica e de protesto contra o regime ditatorial brasileiro de 64. Os aludidos traços de forma e de conteúdo observados nessas obras permitem classificá-las, portanto, como textos que não só procuraram ultrapassar as barreiras impostas pela censura, mas atuar como forma de resistência às cadeias que prendem os indivíduos a um sistema opressor. As regras sociais e de conduta, ditadas pela Ditadura Militar, puderam ser sentidas na produção literária desse período que, por apresentar-se tão caótico, violento e confuso, influenciou diretamente os romances que, produzidos nesse meio, não tinham como fugir de determinadas características. Assim, a produção ficcional que surgia incorporada por elementos externos buscava não só uma possibilidade de compreensão para tal situação, mas uma possível resposta ao caos do momento. Diante disso, a literatura de testemunho – considerada literatura “par excellence da memória”269, não de qualquer memória, mas da memória do choque, do trauma – surgia incompleta e também muitas vezes incerta, dando origem a um discurso entrecortado, repleto de rupturas e de fragmentos. Enfim, o discurso testemunhal, por formar-se a partir da recordação da dor, da morte, da destruição e da desumanização, resulta fragmentado, pois é fruto de uma memória também em ruínas. Entretanto, essa memória em estilhaço é resultado de práticas violentas oriundas do autoritarismo. Assim, a fragmentação literária que caracteriza Quatro-olhos em Em câmara lenta representa, pois, a destruição social em que viviam imersos os sujeitos do período ditatorial. Porém, esse não é o único fator de destruição que pode 269 SELIGMANN-SILVA, Márcio. A catástrofe do cotidiano, a apocalíptica e a redentora: sobre Walter Benjamin e a escritura da memória. In: DUARTE, Rodrigo; FIGUEIREDO, Virgínia. (orgs.). Mímesis e expressão. Belo Horizonte: UFMG, 2001. p. 365. 149 ser percebido. A questão da memória e do esquecimento é também considerada um fator problemático. A dificuldade encontrada pelo narrador de Quatro-olhos para lembrar de seu passado demonstra quão debilitada estava sua memória. A tentativa de escrever para lembrar e organizar o pensamento é uma estratégia que não encontra sucesso diante não só do esquecimento imposto, mas da impossibilidade para encontrar linguagem adequada para ilustrar tudo o que se passara. Com algumas diferenças, no entanto, por serem as semelhanças de maior peso, assim, em Em câmara lenta, o protagonista é alguém que da mesma forma apresenta sua impossibilidade de narrar de modo linear. A narrativa não só apresenta rupturas como também é fortemente marcada pelo ziguezaguear das lembranças desse narrador. A melancolia, apesar de ser mais sentida em Quatro-olhos, apresentou-se evidente em Em câmara lenta. Em ambos os romances, pode-se observar o surgimento desse sentimento em função das perdas sofridas, da ideia de finitude, da falta de perspectiva em relação ao futuro e do medo. No primeiro romance, pela perda do livro, da mulher e da memória. No segundo, em função da perda da amada, do fracasso da organização guerrilheira e, com isso, a perda de um ideal. Diante da irrecuperabilidade de tudo isso, os narradores não encontram mais perspectivas para um futuro melhor, e perante esse sentimento de desconforto e de medo, tornam-se desiludidos e melancólicos. Em ambos os livros, a condição melancólica é também motivada pela condição histórico-política vigente na época. Tendo em vista esses apontamentos, cabe ressaltar ainda que a questão da linguagem é tida em ambos os romances como um caminho para uma possível libertação da experiência traumática, mas também é vista como um problema. Ou seja, através da linguagem, o sujeito vê a possibilidade para dar seu testemunho, para passar adiante a experiência vivida. Contudo, essa mesma linguagem é questionada, pois os autores não conseguem usá-la satisfatoriamente para narrar aquilo que precisa ser narrado. Diante disso, seja em função da memória obscura, do esquecimento ou da melancolia, o fato é que a linguagem usada pelos protagonistas não se apresenta organizada nem completa, representando, assim, a externalização dos problemas psicológicos que afetavam a mente dos narradores. Em outras palavras, esse problema com a linguagem, ou para melhor esclarecer, com a falta dela, configura-se na representatividade de um mundo que se apresentava estilhaçado, impossível de ser compreendido em sua totalidade, logo, inenarrável. Isto é, tornou-se impossível simbolizar através da linguagem fatos que não podiam ser assimilados pela mente. Por isso, o deslocamento de frases, as interrupções, as reticências, os fragmentos. 150 A pesquisa pautada na memória e no esquecimento, na observação do sentimento melancólico e no relato fragmentado de Quatro-olhos e de Em câmara lenta, não se quer aqui exaustiva e definitiva. Diante do significativo número de obras que surgiram durante os anos do regime militar, a presente investigação tem interesse em provocar e apontar para novas indagações. Tal intenção parte do princípio de que um período tão enigmático e sombrio como foi aquele entre os anos de 64 e 85 tem ainda muito a ser explorado, principalmente no campo das manifestações artísticas, dentro do qual se destaca, em especial, a literatura de testemunho por ser capaz de possibilitar uma leitura da história a “contrapelo”. Assim, os elementos apontados nos romances que integraram o corpus dessa pesquisa podem ser encontrados em outras obras que surgiram no mesmo período. Problemas semelhantes aos observados em Quatro-olhos e em Em câmara lenta, assim como distúrbios psicológicos apresentados pelos narradores, dificuldade com a linguagem e, ainda, a problemática do relato fragmentado, podem ser encontrados em romances como: Baú dos ossos (1972), de Pedro Nava, Confissões de Ralfo (1975), de Sérgio Sant’Anna, Zero (1975), de Ignácio de Loyola Brandão, A festa (1976), de Ivan Ângelo, O que é isso companheiro? (1979), de Fernando Gabeira, só para citar alguns cujo campo investigativo pode ser semelhante ao já exposto nessa dissertação. Entretanto, para não limitar somente a esse campo e apontar para distintas investigações, destacam-se ainda outras obras oriundas da década de 70. Tais narrativas – ao tratarem da mesma situação social e histórica, ou seja, o regime militar – servem para elucidar um maior número de elementos composicionais estéticos e temáticos dos romances dessa época, bem como para ratificar os problemas ocasionados pelo autoritarismo e pela violência já observados nos romances que fizeram parte da pesquisa que ora se apresenta. Assim, chamam atenção ainda algumas obras merecedoras de investigação: Solo de clarineta (1973), de Erico Verissimo, um livro também de memórias; A república dos assassinos (1976), de Aguinaldo Silva, Por que Claudia Lessin vai morrer (1978), de Valério Meinel, ambos romances jornalísticos; O caso Morel (1973), de Ruben Fonseca, Bebel que a cidade comeu (1968), de Ignácio de Loyola Brandão – esses dois expõem questões de violência, de massificação e da miséria das grandes cidades –; As meninas (1973), de Lygia Fagundes Telles, que trata da visão individual das pessoas acerca dos acontecimentos pósgolpe; Reflexos do Baile (1976), de Antonio Callado, Pessach (1967), de Carlos 151 Heitor Conny e O senhor embaixador (1965), de Erico Verissimo – estas, em âmbito geral, consideradas obras de ataque à opressão política do país. Enfim, poder-se-ia citar uma extensa lista de romances que abordam questões referentes ao período ditatorial brasileiro e às mazelas por ele desencadeadas. Sobretudo, poder-se-ia levantar um amplo número de romances que trazem em sua composição as cicatrizes da censura de um tempo regido pelo autoritarismo e pela violência que não só fez ruir os pilares políticos, econômicos, históricos e sociais de uma nação, mas abalou profundamente as estruturas pessoais e emocionais dos indivíduos. Diante disso, as possibilidades de investigação são infindas, e o que se traz aqui são apenas algumas ideias que apontam em direção ao (re)conhecimento do passado, à compreensão do presente e, consequentemente, à projeção de um futuro mais correto. 152 REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: ____. Textos escolhidos. Trad. Modesto Carone et al. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. ____. Teoria estética. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2008. AGUIAR, Flávio. A palavra no purgatório: literatura e cultura nos anos 70. São Paulo: Boitempo, 1997. ARAGUAYA: a conspiração do silêncio. Direção de Ronaldo Duque. 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