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URI – UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS
MISSÕES
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES
CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA
SANDRA DE FÁTIMA KALINOSKI
AS CICATRIZES DA CENSURA: MEMÓRIA, MELANCOLIA E
FRAGMENTAÇÃO NA FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64
Prof. Dr. LIZANDRO CARLOS CALEGARI
Frederico Westphalen, RS, Brasil
Agosto de 2011
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SANDRA DE FÁTIMA KALINOSKI
AS CICATRIZES DA CENSURA: MEMÓRIA, MELANCOLIA E FRAGMENTAÇÃO NA FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Letras na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, campus de
Frederico Westphalen. Área de concentração:
Literatura.
Orientador: Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari
Frederico Westphalen, RS, Brasil
Agosto de 2011
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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕESPRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES
CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA
A Comissão Examinadora, abaixo assinada,
aprova a Dissertação de Mestrado
AS CICATRIZES DA CENSURA: MEMÓRIA, MELANCOLIA E
FRAGMENTAÇÃO NA FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64
Elaborada por
SANDRA DE FÁTIMA KALINOSKI
como requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Letras
COMISSÃO EXAMINADORA:
____________________________________________
Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari – URI
(Presidente/Orientador)
_____________________________________________
Profa. Dra. Márcia Ivana de Lima e Silva – UFRGS
(1ª arguidora)
____________________________________________
Prof. Dr. Breno Antonio Sponchiado – URI
(2º arguidor)
Frederico Westphalen, 16 de agosto de 2011
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A vida, prezado leitor, é uma sucessão de acontecimentos, monótonos, repetidos e sem imprevisto. Por isto, alguns homens de imaginação foram obrigados a inventar o
romance. O homem na terra, nasce, vive e morre sem
que lhe aconteça nenhuma dessas aventuras pitorescas
de que os livros estão cheios.
(Caminhos cruzados, Erico Verissimo)
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Para minha mãe, por tudo que representa em minha vida.
Para Sandro, por tudo que passou a representar.
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente a Deus,
por me possibilitar, através do dom da vida, a chegar até aqui
e continuar sonhando com novas conquistas. A essa força invisível que me guia e que me dá coragem para lutar e vencer
os obstáculos, mesmo quando eles parecem invencíveis, minha imensa gratidão;
A Leonora, minha mãe,
por ter me dado a vida e por ter me ensinado não a teoria dos
livros, mas a prática dos valores morais e éticos, indispensáveis para a conquista de uma vida digna. Por tudo que fez por
mim para que eu pudesse iniciar o longo caminho que me
trouxe até aqui, meu eterno agradecimento;
Ao Sandro, meu namorado,
pelo grande incentivo, pela força, paciência e compreensão.
Por ter vivenciado junto comigo cada etapa dessa conquista,
por sorrir quando sorri, por enxugar minhas lágrimas quando
elas insistiram em cair e por segurar minha mão quando me
senti só. Por ter ficado ao meu lado nos momentos de angústia, pelas palavras de carinho e estímulo, pela dedicação e pelo afeto demonstrado, que me fizeram seguir em frente, meu
reconhecimento e meu carinho. Sobretudo, pelas vezes que
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acreditou muito mais em mim do que eu mesma, minha terna
gratidão.
Aos professores do curso de Mestrado em Letras da URI,
pelos valiosos ensinamentos transmitidos;
Ao Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari – de modo muito especial,
por ter me apresentado a essa temática e apontado caminhos
possíveis, pelo valoroso incentivo, pela orientação segura, pela inteligência, por seu exemplo de competência, pela plena
confiança e compreensão diante de tantas inquietações e angústias. Sou imensamente grata por seu apoio, paciência e incansável trabalho de leitura, pela forma carinhosa com que me
auxiliou a construir um texto em meio a tantas ideias truncadas
e confusas. Mas, acima de tudo, agradeço pela amizade e
confiança – pois isso não tem preço. Levo comigo esse grande
exemplo de mestre e de amigo, mas, sobretudo, de humanidade. Por ter me auxiliado e dividido comigo uma parte de seu
saber, minha gratidão, reconhecimento, carinho e amizade;
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES,
pela bolsa concedida;
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RESUMO
Dissertação de Mestrado
Curso de Mestrado em Letras
Universidade Regional Integrada – Frederico Westphalen
AS CICATRIZES DA CENSURA: MEMÓRIA, MELANCOLIA E FRAGMENTAÇÃO NA FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64
Autor: Sandra de Fátima Kalinoski
Orientador: Lizandro Carlos Calegari
Local e data da defesa: Frederico Westphalen, 16 de agosto de 2011
A presente pesquisa investiga como as práticas autoritárias do período ditatorial são
representadas na Literatura Brasileira, verificando aspectos como a problemática da
memória e do esquecimento, a melancolia dos protagonistas e, consequentemente, a
fragmentação da narrativa. O corpus desse estudo é formado por duas narrativas
surgidas em meio ao contexto histórico ditatorial: Quatro-olhos, de Renato Pompeu,
publicada em 1976, e Em câmara lenta, de Renato Tapajós, lançada em 1977. A
investigação se dá em torno da figura dos protagonistas das obras, principalmente no
que se refere ao esforço de ambos na tentativa de narrar suas experiências em relação ao sistema opressor e a dificuldade encontrada para fazê-lo diante da problemática da memória e da perturbação psicológica. Para dar conta dos referidos elementos estudados, leva-se em conta textos da Teoria Literária, bem como busca-se respaldo em referenciais de outras áreas do saber, como as teorias dos consagrados
estudiosos da Escola de Frankfurt, mais notadamente Walter Benjamin e Theodor
Adorno. Pressupostos teóricos provindos da psicanálise, como os de Sigmund Freud,
também são utilizados na compreensão da literatura de testemunho enquanto narrativa do trauma instaurado na memória dos sujeitos vitimados pela barbárie do período.
Palavras-chave: Literatura de testemunho. Memória. Melancolia. Trauma. Fragmentação.
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ABSTRACT
Master’s Thesis
Master’s Degree Program in Literature
Universidade Regional Integrada – Frederico Westphalen
SCARS FROM THE CENSORSHIP: MEMORY, MELANCHOLY, AND
FRAGMENTATION IN THE POST-64 BRAZILIAN FICTION
Author: Sandra de Fátima Kalinoski
Chair: Lizandro Carlos Calegari
Time and place of defense: Frederico Westphalen, 16th August, 2011
This thesis analyzes how the authoritarian practices carried out during the 1964-85
dictatorship in Brazil are represented in the literature, departing from some aspects
like memory and forgetting, melancholy and fragmentation of the narratives. Renato
Pompeu’s Quatro-olhos (1976) and Renato Tapajos’ Em câmara lenta (1977) constitute the corpus of the present research. The investigation centers on the
protagonists of the two novels, especially with regard to the efforts of both to an
attempt to narrate their experiences in relation to the system of oppression and the
difficulty of doing so because of memory and psychological disturbances. Works from
various areas of knowledge like literary theory and literary sociology, most notably
Walter Benjamin and Theodor Adorno, ground this analysis. Theoretical issues from
psychoanalysis are also used in the understanding of testimonial literature concerning
the trauma established in the memory of individuals victimized by the barbarism of the
period.
Keywords: Testimonial literature. Memory. Melancholy. Trauma. Fragmentation.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 11
1 A FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64: AUTORITARISMO E RESISTÊNCIA ............. 16
1.1 A produção cultural pós-64: ditadura, censura e literatura no Brasil ............... 16
1.2 Tendências da ficção brasileira pós-64: a busca pelo novo ............................ 25
1.3 As obras de Renato Pompeu e Renato Tapajós: estudos críticos
acerca de Quatro-olhos e Em câmara lenta ...................................................... 36
2 A ESCRITA DA DOR: LINGUAGEM E SILÊNCIO NA
NARRATIVA DOS ANOS 70 NO BRASIL ................................................................ 47
2.1 O romance no século XX ................................................................................. 47
2.2 Fronteiras da narrativa: ficção, história e testemunho ..................................... 58
2.3 As narrativas do trauma no século XX ............................................................ 68
3 MEMÓRIA, MELANCOLIA E FRAGMENTAÇÃO EM QUATRO-OLHOS E
EM CÂMARA LENTA .......................................................................................... 79
3.1 Memória e esquecimento em Quatro-olhos e Em câmara lenta .................. 79
3.2 A melancolia nas obras de Pompeu e Tapajós ............................................. 101
3.3 Trauma e fragmentação em Quatro-olhos e Em câmara lenta .................. 125
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 146
REFERÊNCIAS ................................................................................................. ...... 152
ANEXOS .................................................................................................................. 158
Figura 1 – Angelus Novus, de Paul Klee .......................................................... 159
Figura 2 – Melancolia I, de Albrecht Dürer ........................................................ 160
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INTRODUÇÃO
Desvio-me do caminho. O verdadeiro caminho passa por uma corda que não está esticada a grande altura, mas muito próxima do
chão. Parece estar ali para nos fazer tropeçar, e não para que se
passe por cima dela.
(Parábolas e fragmentos, Franz Kafka)
As palavras de Franz Kafka aludem à necessidade de se desviar do caminho
já conhecido e buscar olhar, através de um novo rumo, menos repisado, para aquilo
que ainda permanece oculto e que anseia pelo reconhecimento. Parece que as palavras de Kafka mantêm uma estreita empatia com o interesse por histórias de um passado de sofrimento e de horror, que, ao permanecerem no desconhecimento, geram
sensação de desconforto nos indivíduos.
O século XX, tanto na Europa como na América Latina, foi cenário para as
mais hediondas experiências de autoritarismo e de violência. Regimes políticos autoritários baniram das sociedades a liberdade e instituíram normas rígidas de comportamento reguladas pelo Estado, reprimindo, assim, qualquer manifestação adversa às
normas do poder.
Dentro desse contexto, destaca-se o caso do Brasil, que vivenciou, por duas
décadas, o modelo governamental autoritário, decorrente do golpe militar de 1964.
Sob outro olhar, convém não ignorar que a história da nação brasileira sempre esteve
marcada pelo autoritarismo, dominação e violência. Inicialmente, no descobrimento,
com a chegada dos portugueses e a dominação dos indígenas; depois, com os negros, que eram submetidos às mais desumanas condições de vida com a escravatura
e, posteriormente, com as diversas lutas políticas por territórios e posses. Nesse cenário, o golpe militar de 1964 passa a integrar o palco dos acontecimentos brutais do
país, marcando profundamente a sociedade e a cultura brasileira. Contudo, tendo em
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vista o elevado grau de violência, o grande número de desaparecidos e de mortos,
pode-se dizer que, talvez, a Ditadura Militar tenha se configurado na maior e mais
truculenta experiência autoritária de toda a história da nação, possibilitando ao país
pertencer ao rol das sociedades da “era das catástrofes”1.
Assim, rememorar esse período histórico brasileiro significa revisitar um tempo
autoritário e reconhecer as mais variadas formas de violência e tortura praticadas
contra pessoas muitas vezes inocentes, bem como a catástrofe desse tempo, a tragédia, a barbárie e a repressão. O fato de se conhecer muitas dessas atrocidades
cometidas para com as gerações passadas configura-se em possibilidades de ações
distintas no presente, para que aquela triste história jamais torne a se repetir. Por outro lado, esquecer ou fingir esquecer esse tempo, segundo Renato Franco2, ao fazer
releitura de Theodor Adorno, pode significar não tomar consciência do passado, mas,
ao contrário, levá-lo ao recalque, suprimindo, negando e transformando-o em um
não-acontecimento. Situação esta capaz de redimir e apagar a história nacional, culminando não em uma libertação do passado, mas em uma vivência condenada à ignorância e vitimada por tal passado.
Fato é que toda essa agitação ocasionada pelos conflitos violentos refletiu nas
relações entre indivíduo e sociedade, problematizando de tal modo esse vínculo, que
a constituição subjetiva e psicológica também foi afetada. Diante disso, as formas de
manifestação artística e cultural também sofreram bruscas transformações, uma vez
que a representatividade estética estava condicionada aos acontecimentos circundantes. Uma vasta produção literária, de indiscutível qualidade, surgiu nos escombros
do período ditatorial. Entretanto, muito pouco ainda se sabe a respeito dessas produções, uma vez que, vitimadas pela censura, foram silenciadas e, ainda hoje, depois
de quase três décadas do fim da Ditadura Militar, muitas dessas obras ainda permanecem desconhecidas ou pouco valorizadas.
Dessa forma, por configurar-se num campo relativamente ainda pouco estudado pela crítica, mas com inúmeras possibilidades de pesquisa e análise, é que se
justifica a presente pesquisa acerca do romance pós-64. Além disso, outros motivos
dizem respeito ao anseio de se investigar como fatores como a repressão e a violência contribuíram para o caos psicológico instaurado na mente dos sujeitos e explorar
os elementos que influenciaram na fragmentação formal das obras, tão comum em
1
2
Cf. HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). 1995. p. 112.
FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: A festa. 1998. p. 16.
13
muitos relatos produzidos nesse período. A esses interesses soma-se o fato de se
averiguar o quão importante é para o artista vitimado pelo abuso de poder encontrar
na literatura um espaço para a denúncia das barbáries de modo que o passado não
volte a se repetir.
Assim, foram eleitos para esse estudo dois romances que podem ser representativos daquele período violento e brutal no Brasil. São eles: Quatro-olhos, de
Renato Pompeu, publicado em 1976, e Em câmara lenta, de Renato Tapajós, publicado em 1977. A investigação propõe uma reflexão acerca da representação literária
do autoritarismo e da violência oriundos do período ditatorial, considerando alguns
elementos como a problemática da memória e do esquecimento – diante da necessidade de dar testemunho dos narradores –, a melancolia dos protagonistas das obras,
a questão do trauma e a fragmentação da narrativa. A escolha por esse corpus deuse, inicialmente, por ambos apresentarem narrativas fragmentárias e, num segundo
momento, pela constatação da presença de narradores perturbados psicologicamente. Tais considerações, da mesma forma que se propõem a justificar a escolha das
referidas obras, servem para situá-las em relação ao objetivo proposto.
Quatro-olhos é uma narrativa de cunho memorialístico, que, através da mescla de lembranças do passado e ficção, aborda a repressão e suas estratégias violentas. Quatro-olhos – o protagonista, que, aliás, também nomeia a obra – tem o árduo
exercício de recuperar, através da memória, o passado violento. Nessa tentativa, depara-se com a impossibilidade de lembrar, de maneira íntegra, os fatos transcorridos.
Diante disso e marcado por um alto teor melancólico, o relato aparece descontínuo e
destituído de qualquer organização lógica.
Seguindo a mesma linha memorialística, Em câmara lenta faz uma reflexão
crítica acerca das estratégias de guerrilha ocorridas no norte do Brasil e também denuncia o emprego brutal da violência decorrente da repressão. Ao abordar esses aspectos, o protagonista depara-se com a dificuldade de lembrar e organizar em sua
mente, de maneira ordenada, os fatos sucedidos. Diante do desconhecido que o perturba e tomado pela melancolia, que o afastam da realidade, o personagem constrói
um relato de interrupções, de vaivens temporais e de repetições.
A fim de dar conta do objetivo proposto, a presente pesquisa foi organizada
em três segmentos básicos. O primeiro aborda questões relacionadas ao contexto
histórico e social pós-64, bem como os rumos tomados pela ficção brasileira nesse
período em decorrência da situação política instaurada no país. Trata ainda das no-
14
vas tendências do romance como forma de resistência à censura e à repressão oriundas do regime governamental autoritário. Para esses aspectos, destaca-se a utilização dos suportes teóricos de Creuza Berg, Flávio Aguiar, Janete Gaspar Machado,
Malcolm Silverman, Márcio Seligmann-Silva, Renato Franco, Silviano Santiago e Tânia Pellegrini, dentre outros, usados na elucidação das questões abordadas.
O segundo capítulo trata da produção literária enquanto escrita da dor. Nesse
segmento, são apresentadas considerações sobre o abandono do modelo tradicional
do romance, bem como é discutida a estreita relação entre ficção, história e testemunho. Partindo desse enfoque, faz-se uma reflexão sobre as narrativas do trauma surgidas durante o século XX, enquanto testemunhos do horror e da catástrofe. Para dar
suporte teórico a essa abordagem, são levados em conta os estudos de Anatol Rosenfeld, Cathy Caruth, Erich Auerbach, Hayden White, Márcio Seligmann-Silva, Roland Barthes, Sigmund Freud, Theodor W. Adorno e Walter Benjamin, dentre outros.
O terceiro capítulo, por sua vez, trata da análise do corpus desta pesquisa e
traça uma reflexão acerca da memória, da melancolia, do trauma e da fragmentação
à luz dos teóricos supracitados. A análise radica em torno do problema de memória e
de seu correlato, o esquecimento, a manifestação da melancolia nos protagonistas
das obras e a problemática da fragmentação da narrativa. Quanto à questão da memória, pode-se dizer que a necessidade de os protagonistas dos romances lembrarem o passado e narrá-lo, para assim conseguirem retornar à vida cotidiana, é barrada pelo esquecimento. Diante dessa condição supostamente imposta pelas práticas
violentas, os personagens principais travam uma árdua luta entre a necessidade de
contar, dar testemunho da sua experiência, e a dificuldade para fazê-lo. Diante dos
embates psicológicos dos protagonistas, tendo em vista a percepção de ambos em
relação às perdas sofridas, de cunho subjetivo e material, vê-se o desenvolvimento
do sentimento melancólico nos narradores, que, diante da impossibilidade de recuperar o que era para eles motivo de valorosa estima e que ficou perdido no passado,
adoecem.
Diante desses aspectos motivados pelas amarras do Estado opressor, a manifestação artística também ficou prejudicada. A escrita em fragmentos, observada tanto em Quatro-olhos quanto em Em câmara lenta, não se dá gratuitamente, mas é
resultado de uma mente problemática e perturbada psicologicamente devido aos
traumas ocasionados pelas experiências violentas, a exemplo da tortura. A ferida aberta deixada na memória impossibilita a assimilação dos acontecimentos traumáti-
15
cos, impedindo a simbolização do trauma, de modo que os narradores não conseguem encontrar palavras adequadas para serem utilizadas, nem mesmo concatenar
de maneira lógica o seu discurso. A fragmentação acaba sendo a materialização de
uma mente confusa, a prova de que a linguagem não é suficiente para encobrir o
trauma sofrido.
Para a abordagem das temáticas selecionadas, levaram-se em conta referenciais da Teoria da Literária, da História e da Psicanálise, tendo em vista autores como
Walter Benjamin e Theodor Adorno, estudiosos consagrados da Escola de Frankfurt,
e Sigmund Freud, autor dos mais importantes estudos psicanalíticos que se têm até a
atualidade. Além disso, no decorrer da pesquisa, foram acrescentados outros referenciais além dos já mencionados, a fim de atender às particularidades que iam surgindo no transcorrer do estudo e possibilitar uma melhor construção da análise interpretativa.
16
1 A FICÇÃO BRASILEIRA PÓS-64: AUTORITARISMO E
RESISTÊNCIA
Como foi que viveram desde que principiou a epidemia, Saímos do
internamento há três dias, Ah, são dos que foram postos de quarentena, Sim, Foi duro, Seria dizer pouco, Horrível, O senhor é escritor, tem, como disse há pouco, obrigação de conhecer as palavras, portanto sabe que os adjectivos não nos servem de nada, se
uma pessoa mata outra, por exemplo, seria melhor enunciá-lo assim, simplesmente, e confiar que o horror do acto, só por si, fosse
tão chocante que nos dispensasse de dizer que foi horrível, Quer
dizer que temos palavras a mais, Quero dizer que temos sentimentos a menos.
(Ensaio sobre a cegueira, José Saramago)
1.1 A produção cultural pós-64: ditadura, censura e literatura no Brasil
A gente teve que se acostumar com aquilo. Às penas, que, com
aquilo, a gente nunca se acostumou, em si, na verdade.
(A terceira margem do rio, Guimarães Rosa)
Abordar o tema da produção cultural brasileira, de modo especial no que se
refere à literatura produzida no período que compreende a segunda metade da década de 1960 e toda a década de 1970, é uma tarefa que, antes de ser definitivamente
iniciada, deve ser situada e entendida dentro de uma determinada condição histórica,
social e política. Fato é que as décadas transcorridas entre os anos 60 e 80 foram
marcadas por um período sombrio e triste e, quando se adentra no campo de entendimento da produção artística dessa época, é importante que ela seja identificada
também dentro desse contexto truculento.
17
A partir de 1964, a sociedade brasileira experimenta um longo e tenso período
de acontecimentos históricos e políticos que, articulados de maneira desordenada,
conferem ao país uma estrutura caracterizada pela desordem social. O Brasil volta a
vivenciar a situação política já experimentada na metade do século XX, com a implantação do Estado Novo (1937-1945) pelo governo Getúlio Vargas. Entretanto, apesar
da semelhança, o período que se iniciaria em 64 superaria em muitos sentidos – principalmente no que se refere à censura, à repressão e à violência – aquele implantado
no Estado Novo. Durante o período Vargas, o clima de autoritarismo pairou incessantemente no território brasileiro, incluindo em seu projeto governamental torturas, execuções e perseguições variadas contra todos aqueles que tentavam contestar o sistema, bem como contou com o controle de informações na imprensa, e a censura a
obras literárias, cinematográficas e teatrais. Transcorridas quase duas décadas desse
regime, o país volta a vivenciar a mesma experiência a partir de 1964, com a Ditadura
Militar.
O contexto político da década de 60 começa a sofrer modificações e configura-se decisivamente em 1961, quando o então presidente da República Jânio Quadros renuncia ao governo. Assume o poder o seu vice-presidente João Goulart, que,
mesmo munido de grandes ideais de reformas sociais e econômicas para o país, tem
seu governo marcado pelo agravamento da crise econômica, bem como por conflitos
sociais e políticos, não conseguindo, com isso, nem manter a ordem no país, nem
levá-lo adiante como era seu objetivo. Perante tal cenário e alegando assegurar a
economia e a ordem democrática, os militares tomam o poder na noite de 1º de abril
de 1964. Tal ato passou a determinar os rumos da nação nas próximas duas décadas, e seu regime governamental passou a ser conhecido como Ditadura Militar.
No intuito de promover o desenvolvimento do país, acabar com as disparidades sociais existentes entre as regiões, controlar a inflação e ainda atrair investimento
estrangeiro (objetivos que seriam buscados pelos governos militares até o fim da ditadura em 1984), os militares precisariam investir em ações capazes de lhes conferir
plena autonomia econômica dentro do contexto capitalista da época. Para que seus
projetos desenvolvimentistas fossem plausíveis de concretização, o governo militar
investiu em ações capazes de lhe conferir poderes para a administração da vida política da nação. Tais ações ficaram conhecidas como Atos Institucionais (AIs), através
dos quais os militares controlavam e modificavam a vida política brasileira de acordo
com suas convicções e interesses. Muitos desses atos foram criados, contudo, o AI 5,
de 13 de dezembro de 1968, instituído no governo Costa e Silva, foi considerado o de
18
maior relevância para todo o contexto político, histórico e social do período e, o mais
importante, principalmente no que tange à produção cultural e artística do país.
Com a implantação do AI 5, a ditadura consolida-se e o país adentra no período mais violento e intolerante de todo o regime, pois esse AI supera em todos os sentidos os anteriores tendo como força motriz a censura. A sociedade se depara com
um sistema político em que tudo é proibido, tanto na imprensa quanto no que se refere à produção cultural. Qualquer manifestação contrária ao sistema vigente era considerada provocativa e desafiadora para com o governo, merecedora de punições
severas, como perseguições, tortura, sequestro, exílio e até mesmo assassinato.
Creusa Berg, ao pesquisar a implantação e a permanência da censura durante
o regime militar, afirma que esta não se deu unicamente de um modo, mas de várias
formas. A autora classifica a censura de duas maneiras. Uma primeira considerada
de cunho burocrático, pois estava baseada em leis e decretos, sendo algumas formuladas pela Escola Superior de Guerras (ESG) e exercidas pela Divisão de Censura e
Diversões Públicas (DCDP), com o único objetivo de “promover” a “Segurança Nacional”. Essa etapa da censura ainda se dividia em dois níveis: a preventiva, que se resumia na censura prévia ao que seria apresentado, e a punitiva, que desencadeou
processos judiciais contra aqueles que não observavam as normas impostas pelo
Estado. Um segundo tipo de censura era aquela de caráter coercitivo, a qual ganhou
espaço com a promulgação do então AI 5. Essa forma era muito mais radical e violenta, e, não raras vezes se sobrepôs à censura legal. Era praticada por terroristas de
extrema direita que pertenciam à ala radical do Exército e também pela polícia que
estava vinculada ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e dirigida a
todos os pertencentes, ou que de alguma forma estavam ligados ao meio artístico e
que representavam a resistência à censura convencional3.
Tais subdivisões, a que se refere a autora, são formas de visualizar a proporção, o alcance e o (não)limite da censura imposta aos meios artísticos pelo DCDP. A
censura prévia era considerada o primeiro nível da repressão e, como o próprio nome
indica, atuava de maneira preventiva em relação às causas, vetando e proibindo a
exibição de trabalhos artísticos. O segundo nível, a censura punitiva, de ação mais
repressiva, agia, de um modo geral, sobre os efeitos das causas, ou seja, sobre a
divulgação ou a apresentação pública de um trabalho já vetado, ou ao desrespeito
3
BERG, Creusa. Mecanismos do silêncio: expressões artísticas e censura no regime militar
(1964-1984). 2002. p. 121.
19
aos cortes dos censores. A censura punitiva estava amparada judicialmente com plenos poderes para gerar processos, impedimentos contra apresentação de trabalhos e
até mesmo a prisão. Contudo, é no terceiro nível, através da censura coercitiva, que
se pode visualizar o ápice da violência propriamente dita, contra artistas, intelectuais,
escritores e até mesmo contra o público que prestigiava tais produções. Classificada
de caráter totalmente extralegal, buscava eliminar, destruir e neutralizar todos os dirigentes, bem como os mecanismos que iam contra o sistema prevendo todo o tipo de
operação, desde a tortura ao assassinato.
Não obstante esse acompanhamento repressivo a que eram submetidas as
produções artísticas como música, teatro, romances, entre outras, os artistas conseguiam na maioria das vezes fazer com que os cortes e as modificações sugeridas
pelos censores fossem burladas de alguma forma. Creusa Berg, ao realizar pesquisa
em documentos oficiais do governo acerca da atuação da censura, afirma que, apesar de muitos terem sido os trabalhos que sofreram cortes ou que tiveram sua apresentação e/ou publicação proibidas, de alguma forma, driblaram o controle dos censores, deixando as respectivas proibições somente “no papel”, mantendo e apresentando os textos originais, principalmente no caso do teatro. Tamanha era a repressão
praticada nos diversos segmentos artísticos, que Caetano Veloso chegou a denominar de “linguagem de fresta” a linguagem metafórica que era usada pelos compositores musicais para driblar o controle do Estado. Essa denominação referia-se ao disfarce que era dado ao real sentido das palavras utilizadas nas composições, fazendo
com que o verdadeiro sentido da mensagem que estava sendo passada fosse percebido nas “frestas” dessas palavras.
Através de atitudes como essas, identifica-se a resistência às imposições que
pairava entre os artistas. Contudo, essa resistência configurada através da insistência
em apresentações de peças teatrais e espetáculos já embargados pela censura, bem
como a divulgação de músicas que atentavam aos interesses do sistema vigente,
representavam “desobediência civil”4. Isso desencadeava contra os “desobedientes”
processos-crime5 e também a censura punitiva, levando à prisão, à tortura e ao exílio,
sem justificativa, muitos artistas como, dentre outros, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Marília Pêra, Rodrigo Santiago, Zezé Motta. A violência praticada
como fruto da censura coercitiva, bem como a eliminação – até mesmo física – de
4
Idem. Ibidem. p. 144.
A autora não discute esse tipo de processo, pois só se pode ter acesso aos arquivos de quem
teve essa punição com autorização do envolvido no processo.
5
20
muitos daqueles que resistiram, visavam a amedrontar e, de certa forma, exemplificar
o que poderia acontecer a quem se mostrasse contrário ao sistema implantado. Essa
prática de repressão violenta contava com a colaboração de civis de extrema direita,
como o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), com o apoio de empresários que
recebiam privilégios da polícia e com militares radicais.
Dessa forma, durante toda permanência dos militares no poder, a censura foi
uma estratégia que atuou como instrumento de controle da nação. Segundo Thomas
Skidmore, desde 1964, ocorria uma divergência muito grande entre os militares radicais com aqueles mais moderados, no que se referia ao uso da repressão 6. Talvez
essa divergência fosse o fio condutor capaz de explicar as diversas variações da
censura nesse período, desde a censura prévia – amparada legalmente e submetida
a processos jurídicos nos quais ambas as partes, repressão e resistência, passavam
pela decisão judicial, como possibilidade de diálogo – até chegar à censura coercitiva,
como resposta dada pelos militares radicais a essa flexibilidade e a esse diálogo que
o governo, mesmo que de forma muito restrita, mantinha com os artistas através dos
processos judiciais.
Nesse âmbito, o peso que teve a vigência do AI 5 para a esfera cultural e artística do país foi um fator de extrema relevância ao enfocar o tema referente à produção literária da década de 70, determinando não só os padrões da escrita, mas também os rumos que os artistas tomariam em suas produções tais como a temática a
ser abordada e como seria abordada. Acredita-se que, com a institucionalização da
censura, grande parte da produção artística e cultural da época em questão ficou ou
silenciada no íntimo dos artistas ou confiscada e apreendida pelos oficiais. Mesmo
assim, muitos foram os críticos escritores, principalmente jornalistas, que, impulsionados pela estética literária, conseguiram ultrapassar as barreiras impostas pela censura e traçar, através de suas produções, um diagnóstico do turbulento período histórico e social em que se encontrava o país.
Silviano Santiago, ao discutir acerca da repressão e da censura que assolou o
campo das artes na década de 70, aborda essa situação dividindo-a em duas partes
que se complementam. De um lado, trata dos estragos advindos das proibições da
censura, referindo-se, num sentido geral, ao grandioso número de livros que foram
proibidos de circular, às peças de teatro que foram barradas, aos filmes – nacionais e
estrangeiros – que não foram exibidos, às canções que não foram tocadas e canta6
SKIDMORE, Thomas. Brasil de Getúlio a Castelo. 1976.
21
das, bem como todos os escritores, cineastas, dramaturgos, compositores, entre outros artistas, que enfrentaram problemas com a censura. Sob outra ótica, o autor trabalha sob um viés paradoxal de que, apesar da repressão do regime militar, a produção cultural brasileira não foi afetada quantitativamente7. Contraditório ou não, fato é
que o autor, ao fazer tal afirmação, adentra num campo muito mais profundo do que
representou a censura para a vida artística do país. Para ele, o artista, ao ser censurado, sofre bastante porque é afetado moral e economicamente, ou seja, a censura
atinge brutalmente a pessoa humana do artista, mas não necessariamente a obra
enquanto produção artística porque,
no caso específico da obra de arte, o processo criador – semelhante
a um avestruz – se alimenta praticamente de tudo: flores, pregos, cobras e espinhos. Livros, peças, canções continuaram a ser escritas.
E, pelo que se sabe, artista algum mudou de partido político por causa da censura; ou deixou de pensar, imaginar, inventar, anotar, escrever, por causa da censura. Nenhum deixou de dizer o que queria,
ainda que em voz baixa, para o papel, para si ou para os poucos
companheiros. [...] A repressão e a censura podem, no máximo, alimentar certa preguiça latente em cada ser humano, podem apenas
justificar racionalmente o ócio que impede o artista muitas vezes a
fazer só amanhã e pensar hoje8.
Através dessas palavras, observa-se que Santiago acredita num possível ócio,
que possa surgir no artista, a partir da censura, mas não necessariamente num impedimento para a produção, uma vez que ele é capaz de encontrar vários modos e lançar mão de inúmeras estratégias para burlar a repressão. Porém, o crítico acredita
veementemente que, embora a censura não seja impedimento total para a produção
artística, ela pune severamente a sociedade ao impedir a circulação de tais obras:
[o] grande punido, punido injustamente, pela censura artística, é a
sociedade – o cidadão, este ou aquele, qualquer. [...] É o cidadão que
deixa de ler livros, de ver espetáculos, de escutar canções, de ver
filmes, de apreciar quadros, etc. Ele é quem recebe um atestado de
minoridade intelectual. Por causa da censura, nesses períodos, a sociedade tem a sua sensibilidade esclerosada e o seu pensar-artístico
embotado (e também o seu pensar-crítico e o seu pensar-científico).
Nessa circunstância, o fruidor da obra de arte fica desfacelado de
certos elementos que o ajudariam a compor o quadro global da sociedade em que vive, pois apenas recebe uma única voz que circuns-
7
8
SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. 1982. p. 52.
Idem. Ibidem. p. 49.
22
creve toda a realidade. A voz do regime autoritário, a única permitida9.
Nesse sentido, é possível inferir que, ao impedir a circulação das produções
na década de 70, a censura, além de agredir moral e fisicamente a pessoa do artista,
contribuiu de forma significativa na (de)formação intelectual dos indivíduos, pois agiu
como barreira entre os artistas e os indivíduos, impedindo que aqueles pudessem
levar as mais diversas informações e, até mesmo, “orientações” para esses últimos.
Assim, o papel castrativo que teve a censura no pensamento da sociedade possibilitou não só uma espécie de atraso intelectual nos indivíduos, mas a formação de lacunas vazias no campo de entendimento sócio-político da sociedade.
Em meio a esse cenário autoritário e repressivo, em que a palavra de ordem
era censura a toda e a qualquer manifestação contrária ou que fosse capaz de desestabilizar a “ordem” imposta, Tânia Pellegrini também discute a atuação da censura no
campo das artes brasileiro. A autora busca entender até que ponto essa barreira imposta foi determinante e influenciou diretamente nas produções literárias da década
de 70, ou se tal situação foi apenas mais uma dentro de uma variedade muito maior
de transformações em que se encontrava o país10.
Antonio Candido, ao proferir conferência nos Estados Unidos, em 1972, também mostra um posicionamento similar ao de Pellegrini, quando declara:
[o] atual regime militar no Brasil é de natureza a despertar protesto
incessante dos artistas, escritores e intelectuais em geral, e seria impossível que isto não aparecesse nas obras criativas [...]. Por outro
lado, este tipo de manifestação é extremamente dificultado pelo regime, que exerce um controle severo sobre os meios de comunicação. Controle total na televisão e no rádio, quase total nos jornais de
maior circulação, muito grande no teatro e na canção; nos livros e
nos periódicos de pouca circulação a repressão é mais branda [...].
Além disto, existe em escala nunca vista antes a repressão sobre os
indivíduos. É claro que isso afeta a atividade intelectual e limita as
possibilidades de expressão. Mas é difícil dizer se influi na natureza e
sobretudo na qualidade das obras criativas11.
Assim como Candido evidencia na última frase de seu comentário, há dúvidas
em relação a até onde a censura pesa e impede a criatividade dos artistas. Nesse
9
Idem. Ibidem. p. 51.
PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. 1996.
11
CANDIDO, Antonio. A literatura brasileira em 1972. Arte em Revista, 1979. p. 25.
10
23
sentido, em relação à produção literária de 70, Pellegrini discute duas opiniões contrárias entre si a respeito dessa influência. De modo ponderado, a autora averigua
que, em um primeiro momento, a censura pode ter sido sim um fator decisivo para a
produção literária no período da Ditadura Militar, exercendo realmente uma função
castradora sobre a criação artística da época. Contudo, reforça ela, esse fator não
pode ser tomado como único, tendo em vista que o país, assim como outras sociedades contemporâneas, sofriam rupturas e experimentavam a influência da indústria
cultural, sendo este um fator que deve ser acolhido no momento de avaliar a produção literária pós-6412. Em relação à influência da indústria cultural, Pellegrini afirma
que, mesmo esta sendo sustentada pela ideologia do poder autoritário, possuía características próprias como produto do desenvolvimento capitalista dos países desenvolvidos. Nesse meio, o padrão de avaliação configurava-se no produto, no objeto,
jamais no homem, que começa então a entrar num processo de alienação, ou seja, a
indústria cultural não era determinada pelo consumidor, mas estava a serviço de um
público-massa homogêneo e nivelado às instituições que produzem e difundem as
mensagens13.
Nesse contexto nivelado mundialmente, em que cai por terra, com o desenvolvimento da indústria cultural, a oposição clássica entre cultura erudita e cultura popular, sendo que ambas se veem impregnadas de elementos da indústria cultural, a literatura, até então tida como elemento de conhecimento e de transformação do real,
sofre também. Ocorre o choque entre a ideologia literária, que passa a ser inconciliável com a realidade circundante, exigindo, pois, uma produção direcionada ao grande
público. Assim, o romance brasileiro na década de 70 se vê, de certa forma, ameaçado pelas transformações sociais e políticas, mas também modificado pelo desenvolvimento do capitalismo universal. O aumento massivo do mercado editorial na época,
um crescente número de escritores desconhecidos, bem como a afirmação do conto
como gênero narrativo de maior evidência também contribuíram para que o romance
não se desenvolvesse tanto. Evidencia-se, então, no discurso de Pellegrini, que o fato
de não surgirem tantos romances na década de 70 não é, em absoluto, consequência
da censura imposta pelo regime militar. Isso se deu tanto pela proliferação do conto,
devido à sua rapidez e imediaticidade estrutural, quanto pelo surgimento da poesia
marginal, em função do uso de elementos e procedimentos considerados antiliterários. Por esse motivo, o conto e a poesia marginal eram mais bem recebidos pelo
12
13
PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. 1996. p. 9-10.
BOSI, Ecléa. Cultura de massas e cultura popular. 1978. p. 49.
24
público e pela crítica, pois representavam a inovação e a experimentação de um tempo que também buscava inovação14.
Entretanto, ao levar em consideração as ideias defendias por Pellegrini, convém
destacar que a expansão e o incentivo da indústria cultural também foram ações desenvolvidas pelo governo como forma de censura. Em outras palavras, a intensa repressão
que pairou sobre período de 1969 a 1974 não foi a única ação praticada pelo sistema
de governo contra a produção cultural. Ao se analisarem minuciosamente esses outros elementos que a autora julga como deslocados da censura imposta pelo governo, a questão que fica é se a modernização, das condições materiais, da criação cultural, a melhoria das condições de expansão e consolidação da indústria cultural no
Brasil, não passou de uma estratégia modernizada de censura. Diante disso, torna-se
plausível o retorno ao acolhimento e ao reconhecimento, de forma significativa, no
peso que teve a censura na produção cultural e, em especial, na criação literária.
Ao se citarem alguns dos exemplos de incentivo cultural aos quais o governo
incutia sua ideologia conservadora e autoritária, tem-se a criação de algumas universidades em meados da década de 60 que se voltaram para o cumprimento dos objetivos do regime. Nessas instituições, a criação de áreas como as Ciências Humanas
tende à sistematização e à implantação dos ideais do governo. Do mesmo modo, o
ensino de disciplinas como a literatura possibilita a definição dos rumos que o governo almejava para essa prática. Outra expansão também diz respeito ao que se observa na área da comunicação, com a expansão da rádio e a da televisão. Nesse
meio, as imposições do governo se faziam sentir, uma vez que a programação, tanto
no que se referia a notícias ou a músicas, era fiscalizada pelo regime, sofrendo cortes
e manipulações, podendo ser veiculado apenas aquilo que estava de acordo com os
interesses do Estado. Na realidade, o que acontece é que a Ditadura Militar lança
mão de tais mecanismos de expansão e de transformação do processo material da
cultura, e vê nisso a oportunidade para incutir, de modo indiscriminado, sua ideologia.
Nesse sentido, é válido, portanto, considerar a censura como fator negativo
principal (e talvez o único) para os problemas da produção literária pós-64. O Estado,
mesmo com elementos de incentivo à produção e divulgação da cultura, sempre tentou
“direcionar” e alterar, a seu modo, tais manifestações. Porém, a agitação desencadeada
pela ditadura era sentida nos diversos segmentos, e estes influenciavam as diversas produções culturais que surgiam. Diante disso, o governo percebe que a estratégia não fora
14
PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. 1996. p. 16.
25
acolhida por escritores e intelectuais do meio cultural. Vendo-se então incapaz de controlar os produtos culturais, parte para a repressão autoritária e violenta, censurando de
forma inigualável a produção ficcional dessa década. E, é então, através da implantação
do AI 5, que o governo vê a possibilidade de transformar e direcionar os rumos da atividade cultural, objetivando, assim, não só administrar a fluidez das produções, mas de
modo especial, seu conteúdo.
Nesse sentido, ao se analisar a produção literária pós-64, torna-se importante
não a “catalogação” quantitativa, se assim se pode dizer, mas observar, tomando
emprestada a definição de Flávio Aguiar, o valor da palavra escrita no calor da luta,
não no recolhimento posterior; a palavra escrita entre malho e bigorna, forjada ao
mesmo tempo de um tanto de ousadia e de outro tanto de fuga, em todo caso não
omissa15. Em outras palavras, deve-se levar em consideração a forma engajada socialmente com que os escritores trataram das questões relativas à forma de política
repressiva implantada pelo regime militar do momento, no afã de tentar encontrar
respostas para o tempo caótico que a sociedade enfrentava.
Atualmente, após algumas décadas já transcorridas do período ditatorial,
quando já é possível olhar para esse triste passado com um certo distanciamento,
nota-se que talvez a ditadura não tenha atingido tão brutalmente a criatividade literária, assim como fez com o teatro, com o cinema e com a música. Em meio à repressão, observa-se, na produção literária, a emergência de alguns mecanismos, considerados como “desvios formais”16 que fizeram com que os autores seguissem produzindo. Tais desvios configuraram-se em tendências para as obras desse período, atribuindo características marcantes a cada tipo de romance e, dentre essas tendências, tem-se o romance jornalístico, o memorial, o de massificação, o de costumes
urbanos, o intimista, o regionalista histórico, o realista político, o de sátira política absurda e o de sátira política surrealista.
1.2 Tendências da ficção brasileira pós-64: a busca pelo novo
Ir contra a corrente geral é uma coisa bastante incômoda. É possível que a maior parte das misérias morais e intelectuais se cometam por isso, para não contradizer as ideias dos nossos patronos,
15
16
AGUIAR, Flávio. A palavra no purgatório: literatura e cultura nos anos 70. 1997. p. 18-19.
SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. 1982. p. 52.
26
vizinhos, amigos. Um pensamento independente é um lugar solitário e ventoso.
(A louca da casa, Rosa Montero)
Frente à situação política instaurada no Brasil na década de 1960, é importante atentar para o contexto cultural e, de modo particular, para a produção literária que
resistia não só à censura imposta, como também iniciava um processo de renovação
no campo da produção ficcional. Entretanto, ao se voltar algumas décadas na história
literária brasileira, observa-se que as modificações que a produção literária sofreu
após a década de 60, bem como as diferentes tendências observadas, são frutos de
influências formuladas ainda na década de 20, com os modernistas, e que vieram se
estendendo e se adaptando com o romance de 30, nas produções de 40 e 50, até
chegarem às manifestações do período em questão, o período pós-64.
Segundo Janete Gaspar Machado, o modernismo de 20 deve ser considerado
ainda na atualidade como o marco de onde se inicia o despertar para a busca do novo na arte e, de modo especial, na literatura17. Seguindo essa linha de pensamento,
infere-se que o escritor das décadas de 60 e 70 reafirma o vínculo com um passado
literário, sendo o legado modernista um dos principais argumentos para sua produção. Na visão de Machado, destaca-se como o mais importante elemento de contribuição do modernismo de 20, para a ficção pós-64, o fato de que aquele primava pela
fidelidade ao presente. Assim, como no período de 20 o “romance novo” 18 buscou
representar, através de formas também inovadoras, as transformações e as mudanças atuais do cenário social decorrentes das inovações tecnológicas e científicas do
início século XX, os artistas do período ditatorial – também impulsionados pelas
transformações – mas principalmente afetados pela censura, procuraram a renovação da estética romanesca e a representação do período histórico e social em que se
encontravam.
O romance de 30, por sua vez, critica a produção de 20, pelo fato de esta se
fixar em aspectos basicamente formais, e passa a utilizar técnicas da tradição realista
e naturalista. Para João Luiz Lafetá, tal estratégia representa o despertar desses artistas, através da consciência do subdesenvolvimento, para a denúncia social, liber17
MACHADO, Janete Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70: fragmentação social e
estética. 1981. p. 26.
18
Idem. Ibidem. p. 26.
27
tando-se, assim, da preocupação com a linguagem e com o estilo, principal característica do modernismo de 2019. Entretanto, apesar desse desvencilhamento, o que,
para muitos estudiosos como Janete Gaspar Machado, havia significado “um passo
atrás”, para a história literária, o romance de 30 passou a ser importante devido aos
seus novos estilos, principalmente pelo fato de demonstrar seu comprometimento
com o social e de chamar atenção da sociedade para o subdesenvolvimento cultural
presente no cenário brasileiro20.
Fato é que o romance de 30, ao tratar de questões sociais da época, não só
demonstrava um comprometimento com o seu tempo e com a sociedade, como também desempenhava o papel de precursor em relação a como seria abordado o pessimismo e a denúncia social no romance pós-64. Isso pode ser assim considerado
pelo fato de que as vanguardas de 20 primavam não exclusivamente pela questão da
estética formal da linguagem, mas também defendiam uma reforma geral no campo
das artes, e, dentro dessa reforma, encontrava-se igualmente a questão temática. O
que acontece é que geralmente uma característica se sobrepõe a outra, como foi o
caso da estética modernista de 20 e da temática proposta pelo romance de 30. Assim, ambos os períodos encontravam-se voltados para o compromisso de figurar e
representar seu tempo, mesmo que um fator prevalecesse sobre outro nesses dois
momentos.
Apesar do espaço ocupado pelo modernismo de 20 e pelo romance de 30 no
cenário brasileiro em busca de um novo fazer literário, é na metade da década de 40,
com a chamada Geração de 45, que o experimentalismo na produção literária se intensifica. Tal Geração contraria seu período antecessor e retoma o culto aos valores
poéticos parnasianos, dando privilégio para a palavra, para o verso, para o ritmo e
para a rima. Nessa ocasião, a preocupação era externalizar, através da obra (poemas, principalmente), o trabalho do artista, de modo a enfatizar a inclusão da estética
do autor dentro de sua própria obra21. Essa Geração, ao retomar os valores parnasianos, reaviva e enriquece a proposta das vanguardas modernistas de 20, o que passou a contribuir também de forma significativa para a produção literária das próximas
décadas e, em especial, para a ficção dos anos 70, em cujas obras se observa o enriquecimento da temática através da poética, ou seja, o emprego estético das palavras de modo a contribuir para o valor temático.
19
LAFETÁ, João Luiz. A volta do velho. In: ____. 1930: a crítica e o modernismo. 1974.
MACHADO, Janete Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70: fragmentação social e
estética. 1981. p. 31.
21
Idem. Ibidem. p. 32.
20
28
Com base nisso, os rumos dos artistas de 70, bem como as diversas tendências possíveis de serem observadas, também tiveram impulso com as produções da
Geração de 45, uma vez que, nesse período, o principal objetivo era conseguir expressar e mostrar, através da obra, o trabalho que teve o artista na composição literária. O mesmo pode ser notado na produção pós-64, pois, mais do que representarem
o caos social instalado pela Ditadura Militar, os artistas queriam chamar atenção para
o esfacelamento da sociedade e do indivíduo em meio a essa situação. Por isso, a
não linearidade do texto, a fragmentação e o uso específico de determinados vocábulos, capazes de atribuir às palavras “mil faces secretas”, como uma forma de resistência e estratégia contra a censura.
As vanguardas de 50 e início de 60 também deixaram um legado significativo
à ficção literária produzida no período ditatorial. Essa produção, predominantemente
poética, revitalizou a linguagem do romance. Considera-se, para tanto, como principal
contribuição desse período, a Poesia Concreta, a Poesia Práxis e o Poema Processo,
que, juntas, chamam atenção para o despertar de um interesse mais comprometido
para com a realidade literária do país, incentivando uma espécie de revisão crítica do
que se estava produzindo. Segundo Affonso Romano de Sant’Anna, a palavra é um
instrumento de dominação e sempre esteve, de uma ou outra forma, a serviço do poder22. Com base nisso, o objetivo das vanguardas de 50 e 60, representadas nas três
iniciativas poéticas mencionadas, era desvincular a palavra do poder e despertar para
um novo fazer poético, longe da repressão e do protecionismo das ideologias do poder.
Diante do exposto, cabe destacar que não é objetivo deste trabalho levantar
categoricamente como se deu cada período aqui elencado, desde o modernismo de
20 até as vanguardas de 60, mas fazer uma explanação dos principais elementos que
podem ter influenciado as tendências do romance de 70. Outrossim, convém mencionar que as iniciativas defendidas pelo modernismo de 20, na busca de um novo fazer
literário, são complementadas pelas vanguardas de 50 e 60, representadas pela busca da liberdade expressiva e ratificadas pela produção de 70, em que se vê a explosão de distintas tendências literárias à cata dessa mesma liberdade de expressão em
prol dos valores individuais e sociais.
22
SANT’ANNA, Affonso Romano de. A antiga relação entre escrita e poder. In: ____. Por um
novo conceito de literatura. 1977. p. 139.
29
A pretensão desse levantamento é, então, mostrar como o modernismo de 20,
o romance de 30, a Geração de 45 e as produções de 50 e início de 60 contribuíram
para o surgimento e a consolidação do considerado romance de 70, objeto de estudo
dessa pesquisa. Nesse sentido, observa-se que as produções de 70 encontram-se
marcadas pela mistura das características presentes nas manifestações literárias das
décadas anteriores, demonstrando, com isso, que muito se deve às contribuições
desses antecessores. Tais contribuições serviram para compor o saldo positivo da
literatura de 70, cujos romances alcançaram um nível estético em que o privilégio do
conteúdo de 30 ou a primazia da forma de 45 não são apresentados individualmente,
mas paralelamente, tornando-se um único elemento. Desse modo, ao unir forma e
conteúdo, os escritores de 70 mostram que é possível a crítica sem o abandono da
criatividade, elemento pelo qual a arte tanto preza.
Com base nisso, a atividade literária desenvolvida no Brasil, a partir da metade da década de 60 e durante os anos 70, incorporou em sua prática as mais diversas tendências, o que, segundo Janete Gaspar Machado, foi uma forma de responder
ao impacto das alterações históricas através da criatividade23. Pode-se acrescentar a
essa colocação o peso da censura que recaiu sobre os escritores, que não só fiscalizava suas produções como as confiscava, torturava os autores, obrigando-os, muitas
vezes, ao exílio como única alternativa para escapar da morte. Apesar de, em 1964,
logo no início, a ditadura não suprimir de todo a liberdade de produção da intelectualidade, esse fato ocorreu em 1968, com a consolidação do regime autoritário.
Em meio a esse cenário modificado rigorosamente, o governo passa a desenvolver e a incentivar diversas ações de intimidação à intelectualidade, como a burocratização das atividades intelectuais, o remanejamento das instituições universitárias, o desestímulo do pensamento crítico e, ainda, a cooptação intelectual. Tão marcante é a repressão sobre a produção literária, que os escritores precisam tomar rumos capazes de burlar a censura e a repressão a fim de ser possível a expressão
literária como forma de denúncia e crítica social. Para tanto, a prosa de ficção que
marca os anos 70 assume algumas tendências, que, de acordo com Malcolm Silverman, podem classificar toda a produção romanesca da época em nove categorias,
sendo esses romances: o jornalístico, o memorial, o de massificação, o de costumes
urbanos, o intimista, o regionalista histórico, o realista político, o de sátira política ab-
23
MACHADO. Janete Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70: fragmentação social e
estética. 1981. p. 33.
30
surda e o de sátira política surrealista24. Antes de se iniciar a abordagem de cada
uma dessas tendências, com suas respectivas especificidades, convém frisar que
nem sempre as fronteiras entre elas aparecerão demarcadas claramente, uma vez
que, por tratarem praticamente da mesma temática e por estarem nas mesmas condições turbulentas de produção, uma mesma obra pode flutuar por mais de uma classificação.
O romance jornalístico, também denominado romance-reportagem, origina-se
da censura imposta à imprensa, considerando que esta foi uma das esferas que mais
sofreu com a repressão do período ditatorial, pois qualquer coisa que pudesse ofender ou prejudicar o sistema vigente não podia ser abordado nas páginas jornalísticas
e muito menos questionado pela imprensa. Tal fator impulsionou um grande número
de escritores dos meios de comunicação de massa, principalmente jornalistas, a migrarem para a esfera literária, vendo na literatura uma possibilidade de manifestação.
Na literatura, esses profissionais encontram ambiente favorável para o relato do cotidiano, para a denúncia social e para prática artística do bem escrever, que eles tanto
idealizavam. Oriundas desse meio, as obras dialogavam com seu próprio tempo, e as
produções literárias transformavam-se lentamente em documentos da época da barbárie. Tendo em vista que o objetivo desses escritores era muito mais informativo do
que estético, esse romance tem as qualidades sociológicas e histórias bem mais evidenciadas, perdendo um pouco seus atributos especificamente literários. A respeito
dessa produção, destacam-se como de maior representação: Zero (1975), de Ignácio
de Loyola Brandão; A república dos assassinos (1976), de Aguinaldo Silva; e Por
que Cláudia Lessin vai morrer (1978), de Valério Meinel, dentre outros.
Quanto ao romance memorialista ou autobiográfico, na maioria das vezes, ele
resultou de testemunhos e vivências dos escritores ou de jornalistas que sofreram
com a tortura e com o exílio. Muitos escritores, ao comporem suas obras, migraram
para esse estilo como uma possibilidade de, através da escrita, recuperar e
(re)organizar, em sua memória, o passado vivido. Se, no romance jornalístico, os escritores desvinculavam-se muitas vezes da ficcionalização do romance para transformá-lo num transmissor de notícias proibidas, no romance memorialista, eles faziam o
caminho inverso, pois, na ânsia de dar seus testemunhos e falar de fatos reais, atribuíam uma forte carga de ficção a tais relatos. São algumas obras significativas dessa tendência: Baú de ossos (1972), de Pedro Nava; Confissões de Ralfo (1975), de
24
SILVERMAN, Malcolm. Protesto e o novo romance brasileiro. 1995. p. 25-210.
31
Sérgio Sant’Anna; Armadilha para Lamartine (1976), de Carlos Sussekind; Quatroolhos (1976), de Renato Pompeu; Em câmara lenta (1977), de Renato Tapajós, e O
que é isso companheiro? (1979), de Fernando Gabeira.
O classificado romance de massificação aborda temas referentes ao desenfreado crescimento urbano que assola as cidades, transformando os indivíduos em
meros produtos da sociedade enlouquecida. Para Renato Franco, esse tipo de romance estabelece uma crítica contundente à ideia de progresso, uma vez que esta
sublima, na visão dominante, a permanência do horror e da barbárie na estrutura social25. É trazida à tona, nesse tipo de produção, a situação desigual em que se encontram os indivíduos perante o que a classe dominante chamava de progresso. Têm-se
casos como o consumismo desenfreado praticado por aqueles que tinham melhores
condições de vida, em oposição à frustração dos menos favorecidos financeiramente.
Nessas situações, pode-se observar a crítica às circunstâncias que a sociedade muitas vezes tenta ocultar, mas que continua segregando a grande parcela de oprimidos.
Tudo isso pode ser observado em romances como Babel que a cidade comeu
(1968), de Ignácio de Loyola Brandão; O caso Morel (1973), de Ruben Fonseca; e A
festa (1976), de Ivan Ângelo.
O romance de costumes urbanos irá percorrer um caminho em alguns momentos semelhante ao romance de massificação no que se refere ao trato com os seres
humanos. Nesse tipo de produção, o protagonista pode ser um indivíduo ou um grupo
de indivíduos que relatam seus problemas existenciais enquanto seres que vivenciam
dramas e preocupações decorrentes da situação instaurada com o golpe militar de
64. São considerados alguns dos representantes dessa vertente: Dona Flor e seus
dois maridos (1966), de Jorge Amado; As meninas (1973), de Lygia Fagundes Telles; e Simulacros (1977), de Sérgio Sant’Anna.
A quinta categoria mencionada por Malcolm Silverman trata-se do romance
intimista. Essa denominação abarca aquelas obras que se enveredaram pelo sagaz
caminho da representação dos dramas vividos por uma determinada classe social e
dos conflitos decorrentes das imposições políticas da época aos quais o sujeito estava exposto. Dentre os principais expoentes dessa tendência, destacam-se: Sargento
Getúlio (1971), de João Ubaldo Ribeiro, e Os sinos da agonia (1974), de Autran
Dourado.
25
FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: A festa. 1998. p. 171.
32
Classificado de romance regionalista-histórico, as obras dessa vertente constituem-se de narrativas que abordam a reconstituição da história, dos costumes, da
geografia e dos demais elementos que compõem o cenário de um determinado espaço, geralmente rural. É também característica desse tipo de narrativa o registro das
sagas regionais, genealógicas e políticas de um determinado lugar. É possível observar tais particularidades em produções exemplares da época tais como: Os guaianãs
(1962-1975), de Benito Barreto; O coronel e o lobisomen (1964), de José Cândido
de Carvalho; Mad Maria (1980), de Márcio Souza; A república dos sonhos (1984),
de Nélida Piñon; e Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro.
O romance realista-político, dentre as nove tendências, é o que pode ser considerado como o que exige uma maior atenção do leitor para poder ser assim classificado. Esse romance requer certa sensibilidade e conhecimento prévio acerca do tema abordado, pois parte de um presente totalmente metaforizado para tratar de assuntos de um passado distante ou de um passado bem recente. Em função disso,
para que o leitor seja capaz de captar tal informação, precisa estar atento. É muito
comum nesses livros a presença da sátira em relação à situação política da época.
Algumas das obras que representam essa tendência são: O senhor embaixador
(1965), de Erico Verissimo; Sombras de reis barbudos (1974), de José J. Veiga;
Galvez, o imperador do Acre (1976), de Márcio Souza; e A cidade dos padres
(1986), de Deonísio da Silva.
O romance de sátira política absurda e o romance de sátira política surrealista
podem ser elencados quase que paralelamente pelo fato de ambos elegerem o modo
paródico de se fazer crítica social. Nessas produções, o incomum aparece como corriqueiro e banal, o inesperado e até mesmo o sobrenatural são características recorrentes nessas produções. O humor é abundante e se sobrepõe à seriedade que o
momento exige, expondo, quase sempre, os fatos reais ao ridículo e à gozação. A
única diferença possível de ser observada dentre essas duas tendências é que a primeira envereda para a verossimilhança, voltando sua ficção para fatos relacionados
diretamente com a ditadura imposta em 64 e, para isso, faz uso de elementos extraídos da realidade factual como nome de cidades e datas. Farda, fardão, camisola de
dormir (1979), de Jorge Amado, é um bom exemplo dentro desta linha. Já o romance
de sátira política surrealista preocupa-se em narrar os diversos problemas sociais,
porém através da utilização de espaços e personagens totalmente imaginários e até
mesmo grotescos, como é o caso de Incidente em Antares (1971), de Erico Verissimo.
33
Já Renato Franco, por sua vez, ao estudar a produção ficcional dos anos da
ditadura, caracteriza-a em dois períodos significativos. O primeiro compreende os
anos de 1969 a 1974 e é denominado Cultura da Derrota. Este se refere aos primeiros anos da tomada do poder pelos militares, configurando-se no momento em que
diversos setores ligados à vida cultural do país sofreram repressão. O segundo momento abrange os anos de 1975 a 1980 e ficou conhecido como Época de Resistência ou também Época de Abertura, por coincidir com a política de abertura imposta
pelo regime. Esse período caracterizou-se por uma recorrente luta pela resistência às
imposições da censura numa tentativa desesperada contra o silenciamento26.
De acordo com a classificação proposta por Renato Franco, o período da Cultura de Derrota constituiu-se, por um lado, pelo romance de impulso político e, por
outro, pelo romance que, por tratar prioritariamente de aspectos diversos da vida urbana, pôde ser identificado como o romance da desilusão urbana. Para esse período,
destacam-se como principais expoentes os livros: Quarup e Pessach, ambos de Antonio Callado, publicados em 1967; Engenharia do casamento (1968) e Paixão bem
temperada (1970), os dois de Esdras do Nascimento; Bebel que a cidade comeu
(1968), de Ignácio de Loyola Brandão; Cural dos crucificados (1971), de Rui Mourão; As meninas (1973), de Ligia Fagundes Telles27.
Os romances de desilusão urbana representam os impasses e as transformações experimentadas pela classe média urbana, decorrentes das dificuldades de adequação em relação às novas exigências de atuação e de comportamento requeridas pela rápida modernização que abalava e gerava insegurança à sociedade. Já os
romances de impulso político, que foram plausíveis de veiculação somente no início
do período ditatorial, são os que caracterizam o romance da Cultura da Derrota. Essas obras representam a angústia e a desilusão dos escritores em relação ao que
escrever e a como escrever uma vez que eles se encontravam em plena vigência do
AI 5. A produção ficcional desse período buscava privilegiar a tarefa literária de constituir a memória por meio da recomposição do passado enquanto ruína, que, relembrada no presente, atualiza esse passado, fazendo ecoar seu grito no aqui e agora:
modo, portanto, de a literatura opor-se tanto ao esquecimento – sempre socialmente
provocado – quando à “história oficial”28.
26
FRANCO, Renato. Ficção e política no Brasil: os anos 70. 1992. p. 8-13.
FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: A festa. 1998. p. 28.
28
FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio
(Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 358.
27
34
Com o início do governo de Ernesto Geisel, em 1975, os rumos da estratégia
política do Estado sofrem algumas alterações, pois, com o objetivo de solidificar ainda
mais o regime instaurado, o governo decreta o fim do estado de exceção (estratégia
do governo anterior) e desenvolve a “política de abertura”. Tal estratégia, na verdade,
significou a manutenção da censura prévia e de uma disposição repressiva ainda
mais contundente em relação aos primeiros tempos do regime. Segundo Renato
Franco, essa prática adotada por Geisel nada mais era que a face moderna de sua
organização repressiva e um meio privilegiado para prolongar ainda mais seu caráter
ditatorial29. Nesse período, surge um considerável número de obras, cuja maior parte
caracteriza-se pelo memorialismo, justamente por serem produzidas por militantes
políticos que sofreram a tortura e/ou exílio e que, ao retornarem, tentaram recuperar
suas memórias e reorganizar suas vidas através da escrita. É nessa segunda fase
que a prosa de ficção sofre uma considerável expansão, cuja variedade de obras
rompe com a tradição literária e percorre novos caminhos e procedimentos literários.
Franco confere, então, àquelas produções mais comprometidas com a veiculação e a
utilização de elementos de cunho político a denominação de Literatura de Resistência.
A Literatura de Resistência, aliás, adotou um estilo de linguagem bastante singular, pois incorporou, em sua constituição, signos, elementos do presente como cartazes, manchetes de jornais e procedimentos técnicos originários de outros meios de
expressão, como da rádio, da televisão e do cinema. Assim, esse romance nascia da
montagem dos artifícios de que dispunham os escritores, da fragmentação e da multiplicação dos distintos pontos de vista narrativos da história política da época. Dentre
as muitas obras desse período, o autor destaca: Confissões de Ralfo (1975), de
Sérgio Sant’Anna; Quatro-olhos (1976), de Renato Pompeu; Em câmara lenta
(1977), de Renato Tapajós; e Zero (1979), de Ignácio de Loyola Brandão.
Obras como essas buscaram não só dar respostas às atrocidades do período
ditatorial como também instigar a produção de uma consciência literária original em
relação à condição e ao alcance do romance enquanto manifestação cultural em meio
a uma sociedade autoritária. Ao tratar de assuntos como a tortura, a perseguição política, a repressão violenta, as prisões, os sequestros, o funcionamento do sistema repressivo do Estado, a violência cotidiana a que estavam vulneráveis todas as pessoas, o sofrimento das camadas populares, a loucura a que chegavam os militantes
29
FRANCO, Renato. Ficção e política no Brasil: os anos 70. 1992. p. 11.
35
presos, tais livros dão o testemunho das situações de barbárie praticadas pelo Estado. A maioria desses escritores enveredou pelo caminho de lembrar os horrores e
narrá-los, a fim de não esquecer seu sofrimento e também como forma de acusar o
inimigo pela violência perpetrada, na tentativa de impedi-lo a continuar adotando tais
práticas. Essa produção ficcional, composta por obras de ex-militantes revolucionários, que, após serem presos e torturados, resolvem relatar suas experiências, constitui-se em literatura de testemunho, o que Franco, assim como Seligmann-Silva30, entre outros autores, chegam a denominar de Literatura do Trauma. Isso porque tais
livros fazem muito mais do que narrar as experiências vividas pelos escritores; eles
representam, através da escrita, o trauma sofrido por seus narradores-personagens31.
Segundo Márcio Seligmann-Silva, o trauma é um acontecimento que não pode
ser assimilado nem enquanto ocorre, nem mesmo em tempos posteriores, a não ser
de modo pouco satisfatório32. Para o autor, o trauma é resultante de uma incapacidade do indivíduo de recepção de um evento que vai além dos limites da percepção
humana e que se torna algo sem-forma, atemporal, sempre retornando à consciência
da vítima. Em relação à representação do trauma na literatura, o estudioso desenvolve, em seu estudo A história como trauma, questões relativas à temática do Holocausto e sua relação direta com a representação estética33. Nessa linha, afirma que a
experiência humana moderna está imersa num acúmulo de barbáries e catástrofes e
que o artista ou o escritor, no momento de representarem tais experiências, debatemse entre a necessidade de escrever para perpetuar tal evento e a consciência da impossibilidade de cumprir tal tarefa justamente pela falta de um aparato conceitual capaz de levá-lo à assimilação de tal evento. O autor ainda enfatiza que a dificuldade de
recepção de um evento ocorrido bem como a incapacidade de sua assimilação concorrem, numa perspectiva psicanalítica, para o problema do trauma, é definido por ele
como “uma ferida na memória”34, a qual permanece sempre presente na mente, passando a afetar diretamente a linguagem do indivíduo e, consequentemente, sua escrita.
Theodor W. Adorno, em Teoria estética, ao abordar questões relativas à arte,
à sociedade e à estética, afirma existirem vínculos entre as barbáries das quais a so30
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A literatura do trauma. Cult, 1999.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA,
Márcio (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 361.
32
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A literatura do trauma. Cult, 1999. p. 40-47.
33
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. Pulsional, Revista de Psicanálise, dez.jan., 1998/99.
34
Idem. Ibidem. p. 46.
31
36
ciedade foi vítima e as produções artísticas. Para o autor, os dilemas do indivíduo,
que não são plausíveis de resolução ou de assimilação na realidade, irão retornar às
manifestações artísticas não somente como fatores temáticos, mas configurados em
problemas de forma35. A proposta teórica desenvolvida por Adorno, ao abordar a desestruturação estética do romance, aponta para tal característica como consequência
da situação social a que o artista estaria submetido no momento da produção.
Nessa perspectiva, a dificuldade de assimilação da barbárie unida à necessidade da escrita acaba por influenciar diretamente na ordem estética da produção.
Assim, algumas obras literárias, ao representarem ou apresentarem esse indivíduo
problemático, condicionado historicamente, o fazem através da fragmentação, característica recorrente em muitos dos romances da década de 70. Dentre eles, destacam-se Quatro-olhos, de Renato Pompeu, e Em câmara lenta, de Renato Tapajós,
romances que, por suas propriedades testemunhais, remetem à constante presença
da problemática da escrita de seus narradores-personagens enquanto vítimas da
barbárie e do trauma sofrido, decorrentes da Ditadura Militar.
1.3 As obras de Renato Pompeu e Renato Tapajós: estudos críticos acerca
de Quatro-olhos e Em câmara lenta
[I]nsatisfeito com a minha história pessoal até então e também insatisfeito com o meu provável e mediano futuro, resolvi transformar-me em outro homem, tornar-me personagem.
(Confissões de Ralfo, Sérgio Sant’Anna)
A literatura produzida nos anos truculentos da Ditadura Militar, apesar de ainda pouco estudada e divulgada, contribui significativamente para a construção de
uma versão da história do país a qual a ideologia dominante insiste em apagar ou
mascarar. Os romances Quatro-olhos e Em câmara lenta representam um tipo de
fazer literário que tematiza não apenas os vários aspectos originários da vida política
da década ou da modernização econômica conservadora e autoritária dos anos 70,
mas, sobretudo, expressam-se através de procedimentos literários pouco usuais para
35
ADORNO, Theodor W. Teoria estética. 2008. p. 18.
37
a época, como é o caso da narrativa altamente fragmentada, da presença de múltiplos pontos de vista narrativos e, ainda, da utilização da montagem. Esses livros são
escritos não simplesmente para veicular certos tipos de informações, mas para tentar
transmitir experiências. Funcionam, também, como contraponto a versões oficiais
legitimadas em benefício próprio dos poderes constituídos ou usurpados. Naturalmente, além de exercerem um papel de contribuição pública, realizam o processo
particular de narração de episódios traumáticos.
Esse tipo de ficção, que integra a linha do chamado Romance de Resistên36
cia , oferece uma possível resposta ao caos social instaurado bem como promove
uma luta contra o esquecimento, procurando recuperar o material histórico recalcado
pelo brutal sistema repressivo da ditadura. Dessa forma, a literatura, enquanto produção cultural, cumpre com seu papel perante a sociedade, qual seja, despertar a consciência crítica frente às mazelas sociais e históricas. Apesar da insistência de alguns
críticos de que a literatura produzida nos anos iniciais da ditadura permaneceu com
suas “gavetas vazias”37, a própria censura suscitou nos artistas o desejo de escrever,
externalizar, de algum modo, através da arte, a situação social e histórica vivenciada
naquele momento. Assim como a literatura, o cinema também contribuiu significativamente para a representação da situação ditatorial em que se encontrava o país.
Nessa perspectiva, o filme Batismo de sangue (2006), de Helvécio Ratton, ilustra a perseguição, a prisão e as brutalidades a que eram submetidos jovens militantes nas secretas salas de tortura do Departamento de Ordem Política e Social
(DOPS). Com fortes cenas de violência, a obra trata da perseguição dos militares a
todos aqueles que se mostrassem contrários ao sistema ou que tentassem qualquer
manifestação capaz de desestabelecer a ordem imposta pelo Estado. Perpassado
por um clima tenso de perseguições, ameaças, violência e morte, o filme chama atenção para a dificuldade de um personagem, Frei Tito, libertar-se das lembranças
dos momentos terríveis por que passou nas mãos dos torturadores. A sensação de
perseguição e de intimidação é uma constante no dia-a-dia desse personagem que
somente vê no suicídio uma possível libertação desse trauma. A opção por mencionar Batismo de sangue no início desta discussão não é gratuita: ocorre em função
da sua grande proximidade com o modo como o trauma vivido é representado pelo
36
Cf. FRANCO, Renato Bueno. Ficção e política no Brasil: os anos 70. 1992.
Expressão usada para se referir aos primeiros anos de Ditadura Militar, quando se acreditava
que não havia surgido nenhum tipo de produção artística capaz de representar essa época. Cf.
PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. 1996.
37
38
narrador de Quatro-olhos e, como isso desenvolve nele outros problemas de ordem
psicológica.
Cabe dizer, no entanto, que Quatro-olhos apresenta diversas possibilidades
de leitura e interpretação, não ficando condicionada apenas à questão traumática que
envolve o narrador. Dentre algumas possibilidades investigativas do romance, têmse: a destruição do sujeito por parte do sistema autoritário, a luta do protagonista contra o esquecimento ocasionado pelo trauma da tortura, a loucura como uma possibilidade de lucidez, a melancolia que assola e isola o personagem do mundo bem como
fatores de ordem estética como a construção literária (des)organizada pela fragmentação.
Quatro-olhos foi escrito entre os anos de 1968, inicialmente quando Pompeu
escreveu à mão todo o primeiro capítulo, e, mais tarde, em 1975, quanto ele retoma o
livro após um tratamento psiquiátrico de um ano e meio. Através de sua divisão tripartida, composta de três partes, sendo a primeira Dentro (24 capítulos), narrada em
primeira pessoa, e as duas últimas, Fora (4 capítulos) e De volta (capítulo único), narradas em terceira pessoa, Quatro-olhos avança pelas sinuosas sendas do regime
autoritário, abordando de forma veemente o alto grau de dificuldade de narrar e organizar o pensamento, tendo em vista a problemática do esquecimento perante o apagamento da memória decorrente da violência das torturas praticadas durante o regime militar.
Publicado em 1976, um ano depois da divulgação da Política Nacional de Cultura, iniciativa da Política de Abertura do governo Ernesto Geisel, a narrativa trata da
tentativa do personagem-narrador em reescrever um livro que lhe fora tomado pela
polícia. Embora não tenha atingido um numeroso público leitor na época, essa obra,
devido à sua originalidade, ocupa um lugar de destaque no rol das produções literárias e é considerada pela crítica como um dos romances mais instigantes da década
de 70. Seu prestígio se dá por conseguir reunir em sua estrutura não só elementos
temáticos capazes de externalizar a realidade social e histórica do período, mas também elementos significativos de ordem estética capazes de levar o leitor ao conhecimento e à compreensão da realidade psicológica a que ficaram condicionadas as
vítimas da violência cometida pela ditadura, desde a censura até o ponto mais extremo do autoritarismo, a tortura física e mental.
A fábula dessa obra é a seguinte: o protagonista Quatro-olhos é um escritor
que tem seu apartamento invadido pela polícia que procurava prender sua mulher,
39
uma professora universitária e militante revolucionária que consegue fugir. Entretanto,
nessa invasão, a polícia vasculha a residência e apreende um livro escrito disciplinadamente por ele, dos seus 16 aos 29 anos “durante todos os dias, exceto numa segunda-feira em que fora acometido de forte dor-de-cabeça”38. Em função disso, é
preso e, de acordo com certos indícios dados pela narrativa, é torturado. O texto confiscado e a mulher desaparecida eram as únicas ligações do protagonista com a realidade e, com a perda deles, que eram as únicas fontes de prazer e refúgio, em meio
ao desconforto social do cotidiano, o protagonista torna-se transtornado e completamente alheio à realidade, chegando a ser internado numa clínica de saúde mental. Ao
se reabilitar e voltar à vida social, o personagem entende que precisa reaver o livro
perdido e, após inúmeras buscas sem sucesso, conclui que precisa reescrevê-lo. Ao
retomar a escrita, na tentativa de reconstruir seu trabalho original, chega à conclusão
de que tal atividade configura-se numa tarefa impossível, pois, o que lembra de sua
obra original, são apenas fragmentos isolados e, com isso, conclui que jamais poderá
reconstituí-lo integralmente devido à perda de memória sofrida. A única narrativa que
resulta do seu esforço é a narrativa fragmentada, provinda de suas vagas e tumultuadas lembranças.
Para Malcolm Silverman, Quatro-olhos pertence à condição de romance memorialista39 e, segundo os pressupostos teóricos desenvolvidos por Seligmann-Silva,
ele integra o grupo das obras que compõem a Literatura do Trauma40. Essa classificação se justifica devido à manifestação de indícios no texto que demonstram a destruição do sujeito dentro do sistema autoritário vigente e também pelo fato de o livro
apresentar uma construção literária calcada basicamente na fragmentação e na luta
contra o esquecimento.
Para Renato Franco, Quatro-olhos é um dos melhores representantes do que
se considerou como literatura engajada nos anos 70, uma literatura como atividade
de resistência e crítica. Para o estudioso, esse livro, na verdade, narra um nãoacontecimento, pois o narrador, mesmo conhecendo todos os obstáculos que o impedem de escrever, em virtude de uma quase impossibilidade, decide escrever,
“mesmo que para nada”41. Em síntese, Franco avalia Quatro-olhos como uma obra
elaborada e bastante singular por articular várias narrativas simultâneas, fragmenta38
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 15.
SILVERMAN, Malcolm. Protesto e o novo romance brasileiro. 1995.
40
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A literatura do trauma. Cult, 1999. p. 40-47.
41
FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: A festa. 1998. p. 48.
39
40
das e pouco vinculadas a um eixo cronológico. Devido à sua linguagem antirrealista,
o crítico classifica esse romance como resultado de uma experiência traumática socialmente imposta ao narrador-protagonista42. Isso conduz à ideia de que o pensamento e a visão histórica e social da época são apresentados de forma estilhaçada, através de trechos fraseológicos desconexos, o que demonstra um fenômeno vinculado
ao caráter alegórico da obra a serviço da condição melancólica do sujeito.
Dito em outros termos, a composição fragmentada desse livro não é aleatória.
Ela procura estabelecer relações com a não-superação do trauma da tortura vivido
pelo narrador, bem como com a representação do sujeito melancólico imerso nas
adversas situações sociais impostas. Além disso, não deixa de externalizar, através
dos fragmentos, a tentativa desesperada de um indivíduo que, muito mais do que
tentar reconstruir seu trabalho, busca reconstruir seu passado através da memória.
Para Franco, a narrativa dilacerada apresentada em Quatro-olhos não é gratuita,
mas constitui-se na mímese da estrutura repressiva da atual vida social43. Ainda de
acordo com o crítico, “o alvo secreto do narrador não é mais recuperar o material esquecido, o saber e a experiência nele eventualmente contidos, mas o de denunciar
que algo de fundamental foi esquecido”44.
Janete Gaspar Machado vê Quatro-olhos como um romance que tematiza a
loucura como uma forma de sensibilidade apontada para a problemática da composição literária em sua dificuldade de escrever sobre a realidade, sem deixar de abordar
as formas de expressão anuladoras do homem45. Para a autora, a prática da construção do livro é uma estratégia que o narrador encontrou para se manter vivo dentro do
contexto social opressor como complementa:
sua [de Quatro-olhos] fuga para a escrita e para a Literatura vai resultar numa atitude de transgressão da ordem vigente, transgressão
aos padrões habituais de comportamento, ao mesmo tempo que se
expõe como possibilidade de libertação [...]. A transgressão, contudo
não se limita à subversão de padrões de comportamento. O romance, como um todo, efetua, a despeito da loucura, e através dela, a
crítica lúcida ao contexto cultural, aproximando-se do discurso histórico, quando tematiza forças ideológicas que agem contra a individualidade e contra a comunidade. São essas forças opressoras que
42
FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio
(Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 365.
43
FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: A festa. 1998. p. 112.
44
FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio
(Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 371.
45
MACHADO. Janete Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70: fragmentação social e
estética. 1981. p. 111.
41
empurram o personagem para o refúgio da escrita, decidem sua
perda de racionalidade46.
Ainda na visão de Machado, é no refúgio da escrita que se observa o conflito
existente entre o real e o irreal, entre o conteúdo do romance perdido e o do romance
reescrito, o que acaba gerando a fragmentação estrutural do relato, uma vez que agrega a mistura de rememorações do texto perdido à realidade presente. Fato é que
a ordenação ou a fusão de tais perspectivas distintas gera várias narrativas – uma em
função da outra; uma, muitas vezes, contrastando com a outra –, ao invés de um único relato. Em suma, a autora aponta Quatro-olhos como um romance que, ao combinar rebeldia e denúncia, tematiza a angústia de um indivíduo e sua luta para a libertação das condições a que foi submetido, vendo na escrita e, particularmente, na literatura, o único refúgio plausível para externalizar suas angústias e única possibilidade
para reconstruir e retomar sua vida47.
Quanto à temática de Quatro-olhos, a analogia se dá com muitos romances
do período. Entretanto, observa-se a estreita relação que ele estabelece com Em
câmara lenta, de Renato Tapajós, uma vez que este texto também compõe o quadro
de obras classificadas como Literatura do Trauma. Uma versão, não do livro, mas do
drama relatado nesse texto, também teve espaço no cinema. Araguaya: a conspiração do silêncio (2004), do cineasta Ronaldo Duque, delineia o pouco preparo e o
fracasso de uma organização de guerrilheiros que pretendiam vencer as imposições
da ditadura através de uma luta que se iniciaria no campo – em particular, na selva
amazônica – e avançaria até os grandes centros urbanos, onde a repressão se fazia
sentir com maior brutalidade. Contudo, a grande maioria desses idealizadores são
capturados, torturados e mortos, fazendo com que se sintam desolados e melancólicos.
Em câmara lenta, de Renato Tapajós, foi publicado em 1977 pela AlfaÔmega, uma editora de oposição ao regime militar. Assim que foi divulgado em todo
o país, o livro despertou a fúria de diversos setores conservadores, o que ocasionou
a prisão de Renato Tapajós em São Paulo. A referida prisão foi justificada pela acusação de que a obra se mostrava como um instrumento de guerra revolucionária. Inicialmente, a circulação do romance não foi proibida e não teve, do ponto de vista legal, nenhum impedimento à sua circulação; entretanto, após alguns dias da prisão de
46
47
Idem. Ibidem. p. 112-113.
Idem. Ibidem. p. 119.
42
Tapajós, o texto foi censurado e teve sua venda proibida. Escrito parcialmente na
prisão do Carandiru, em 1973, quando Tapajós esteve preso, esse texto foi a primeira
obra nacional produzida por um escritor que atuou na esquerda armada. Em função
disso, é uma obra que reflete criticamente acerca das estratégias da guerrilha e denuncia o brutal emprego da tortura por parte da repressão. Essa obra inclina-se pela
via estética para desenvolver a narração do trauma fundamental sofrido pelo narrador-personagem. O trauma, no caso, resulta da prisão e da bárbara tortura sofrida
pela companheira do narrador-personagem – que, assim como ele, era também militante da mesma organização revolucionária –, seguida de sua execução cruel em
estabelecimento militar. Dessa forma, o núcleo do trauma que perpassa essa obra, a
saber, a execução, sob cruel tortura, da sua companheira, nomeada na obra como
Ela, traz à narrativa a frequente repetição desse evento traumático na obra, o qual se
dá como se fosse um flashback cinematográfico exibido em câmara lenta. A narração, portanto, configura-se em duas tentativas: por um lado, de tentar esclarecer tal
tragédia e, por outro, de narrar sua própria prisão e o simultâneo desmoronamento do
projeto político revolucionário acalentado pela organização em que militou.
A trama é difícil e sinuosa, e as ações relatadas entrecruzam-se em fragmentos e a narrativa remete a um quebra-cabeça, que, aos poucos, por meio do acréscimo de detalhes – na medida em que a narração avança – adquire a configuração do
todo. Composta fragmentariamente, essa obra, assim como muitas outras produzidas
sob a atmosfera repressiva e violenta dos anos 70, apresenta várias narrativas paralelas através das quais o narrador reflete sobre o sentido da luta, os impasses enfrentados pelos militantes frente à brutalidade da repressão e dos tropeços do movimento
guerrilheiro. Na medida em que o relato segue em frente, é possível observar a descrição feita pelo narrador a fim de demonstrar a brutalidade cotidiana do Estado militar através de sua mais usual prática terrorista: a tortura, indiscriminadamente praticada na obscuridade dos porões. Tendo em vista o alto teor denunciativo desse livro,
muitos foram os posicionamentos críticos ocorridos ainda em 1977, logo após sua
publicação, estendendo-se até os dias atuais.
Talvez uma das primeiras manifestações sobre Em câmara lenta que merece
ser abordada nesse trabalho refere-se àquela formulada por Antonio Candido na oportunidade em que elaborou um parecer acerca da obra, o qual foi parte integrante
da defesa de Renato Tapajós quando esteve preso. Segundo as palavras do crítico:
43
[t]endo sido indicado como Perito no Processo movido conta o escritor Renato Tapajós, por causa da publicação de seu romance Em
câmara lenta, penso que os pontos importantes, no caso, são os
seguintes: 1. este livro é subversivo? 2. a sua leitura induz a uma atitude subversiva, ou à prática de atos subversivos?
Antecipo que a resposta é – “Não”, – pelos motivos abaixo discriminados48.
Após essas palavras, Candido prossegue sua defesa explicitando os argumentos capazes de mostrar aos censores o equívoco que estavam cometendo ao considerar o livro subversivo. Ele alega que se trata de um romance e, por isso, tem seu
discurso marcado pela função poética cujo único objetivo está em “realçar as qualidades estéticas da palavra”49, não sendo possível, portanto, tomá-lo como informativo
ou como documento. Ao se referir ao segundo questionamento apontado, posicionase argumentando que a obra não é capaz de induzir a práticas subversivas, pois o
máximo que pode acontecer, é despertar no leitor o interesse pelos dramas pessoais,
pela sucessão de atos, pelo suspense das cenas, pelas imagens poéticas ou, ainda,
pelo mistério que paira nela e que se desvenda lentamente e, diante disso, conclui
sua defesa: “não vejo, em momento algum, convite à prática, induzimento ou sequer
sugestão por meio do embelezamento ou realce do que é escrito”50.
Outra contribuição importante a respeito dessa obra também é dada por Sérgio Buarque de Holanda, quando escreve ao advogado de Renato Tapajós, Lins e
Silva. Sérgio Buarque comenta no documento que, apesar de não ter concluído a
leitura do livro de Tapajós, mas que, pelo muito que dele já percorreu, não sente dúvidas em afirmar que, a despeito da moldura ficcional que o autor lhe atribuiu, trata-se
de um impressionante depoimento sobre alguns aspectos da era da violência em que
a sociedade se encontrava. Acrescenta, ainda, tratar-se de um romance no qual os
historiadores futuros encontrarão um indispensável documentário sobre o Brasil daquela época e que, por isso mesmo, em sua opinião, não vê nesse texto nada que se
pareça com o incitamento à guerrilha51.
Por meio da composição de Em câmara lenta, Tapajós demonstra que sua
escrita não se restringira apenas à veiculação e à expurgação de suas conflituosas
48
CANDIDO, Antonio. Parecer. In: MAUÉS, Eloísa Aragão. Defesa notável. Teoria e Debate,
2007. p. 36.
49
Idem. Ibidem. p. 36.
50
Idem. Ibidem. p. 38.
51
MAUÉS, Eloísa Aragão. Em câmara lenta, de Renato Tapajós: a história do livro, experiência
histórica da repressão e narrativa literária. 2008. p. 197.
44
pulsões emocionais. Muito além disso, o autor busca alcançar a catarse através de
uma construção que objetiva mostrar as constantes tensões ocorridas na militância,
segundo a observação que faz Tânia Pellegrini ao discorrer sobre o assunto:
um dos personagens mais importantes da narrativa em questão é
mesmo o próprio autor que, através de seu relato, sai em busca de
uma catarse ao mesmo tempo particular e coletiva, junto ao público.
Todavia, a procura de purgação, de descarrego, não minimiza por si
essa literatura; explica-a, apenas, assinalando mais um aspecto,
parte integrante e indispensável do contexto que a gerou52.
Já Renato Franco não vê essa obra como uma produção ficcional cujo principal valor seja de ordem autobiográfica, capaz de encerrar seu interesse no relato histórico de caráter político53. Ao contrário, aposta em sua estrutura temática e estética
com o intuito de valorizar um tipo de narrativa cuja preocupação está na originalidade
com que conduz, ao longo do relato, a reflexão acerca dos dilemas da guerrilha e a
apresentação dos mais variados e minuciosos detalhes dos combates armados.
Quanto à estrutura fragmentada do texto, o crítico o avalia como resultado da dificuldade de o narrador relatar a história inteira e reconstruir completamente a memória
de um passado histórico também fragmentado e desprovido de qualquer nexo lógico.
Assim, o ato de narrar é visto como um intrigante jogo de armar que – pouco a pouco,
através do lento acréscimo de mínimos detalhes, por meio de procedimentos técnicos
originários do cinema, como o flashback e a câmara-lenta – vai ganhando uma configuração mais nítida54.
Janete Gaspar Machado, por sua vez, ao estudar a obra em apreciação, considera-a como um veículo de informação, explicitando, é claro, não se tratar de um
romance composto pela mesma linguagem utilizada no jornal, mas por aproveitar a
função do jornal, qual seja, divulgar e tornar conhecidas as informações, o que, para
a autora, foi impedido aos veículos de informação, a fim de preservar os interesses
da ideologia do poder55. Entretanto, a crítica reconhece na obra uma linguagem jorna-
52
PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. 1996. p. 29.
FRANCO, Renato. Ficção e política no Brasil: os anos 70. 1992. p. 48.
54
Idem. Ibidem. p. 112.
55
MACHADO. Janete Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70: fragmentação social e
estética. 1981. p. 76.
53
45
lística, mas enriquecida por valores de significação, tratados com muito mais profundidade em comparação a uma reportagem jornalística56.
Ao discorrer a respeito da ordem estética composicional de Em câmara lenta,
a autora chama a atenção para o fato de a fragmentação que compõe a obra ser o
resultado e a representação da impossibilidade de o narrador lembrar seu passado e
retomar sua vida, dificultados pelas imposições da censura:
[s]ua forma narrativa objetiva recuperar a totalidade de um fato
guardado na memória, através da recordação. A única possibilidade
de coordenação dos movimentos da narrativa é a oferecida pelo narrador-personagem, que guarda na memória a sequência dos fatos, e
os vai apresentando numa ordem que obedece a uma espécie de livre associação de ideias, a qual parece ser ditada por uma impossibilidade ideológica – força da censura – de apreender a totalidade
em sua sequência causal lógica. Isto não quer dizer, simplesmente,
que a censura é a única responsável pelos desvios formais operados
na narrativa. Quer dizer (e também) que as forças repressoras, agindo continuamente, criam um bloqueio na própria memória do narrador-personagem, dificultando o relato [...]. Isto explica porque os
trechos que compõem a narrativa parecem estáticos [...]. [E]sta
fragmentação do texto é que leva o leitor a refletir, por sua vez, sobre as razões dos cortes e enxertos do curso lógico do texto, sobre a
própria linguagem do texto e dos significados que ela produz57.
O romance exige uma reflexão acerca da linguagem reproduzida no texto da
mesma forma que atenta para uma tomada de consciência sobre um passado próximo. Por meio de sua estrutura calcada em fragmentos, ao representar seu próprio
dilaceramento formal, enquanto texto, representa também o dilaceramento da sociedade, conclui Machado. O próprio Renato Tapajós, quando fala de sua obra, comenta
ser esta “uma reflexão emocionada, porque tenta captar a tensão, o clima, as esperanças imensas, o ódio, e o desespero que marcaram uma tentativa política desesperada e extrema em nosso país: um romance a respeito da ingênua generosidade daqueles que jogaram tudo, inclusive a vida, na tentativa de mudar o mundo”58.
Através das palavras de Tapajós, é possível a reflexão acerca do que em específico e de modo mais urgente, tenha instigado escritores como ele e Pompeu, entre tantos outros, a escreverem a respeito de suas experiências dentro do contexto
político ditatorial da época. Nesse sentido, o desejo de retorno a esse passado, mui56
Idem. Ibidem. p. 77.
Idem. Ibidem. p. 77-78.
58
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977.
57
46
tas vezes, pode ser suscitado pelo simples fato de se lembrar de algum ou de vários
episódios e os relatar. Entretanto, nas obras que constituem o corpus deste trabalho,
nota-se claramente que o objetivo não é a recordação prazerosa e descompromissada, mas a reflexão crítica de um momento histórico traumático. De certo modo, as
rememorações de Pompeu e Tapajós, ao relatarem fatos encravados em um determinado período político, especialmente um período de autoritarismo, buscam, através
do registro da vítima e do oprimido, fornecer subsídios e preencher as lacunas deixadas pela ideologia dominante na compreensão da história da nação brasileira.
47
2 A ESCRITA DA DOR: LINGUAGEM E SILÊNCIO NA NARRATIVA
DOS ANOS 70 NO BRASIL
A necessidade de contar “aos outros”, de tornar “os outros” participantes alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter
de impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras
necessidades elementares. O livro foi escrito para satisfazer essa
necessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de liberação interior. Daí, seu caráter fragmentário: seus capítulos foram
escritos não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência. O
trabalho de ligação e fusão foi planejado posteriormente.
Acho desnecessário acrescentar que nenhum dos episódios foi
fruto de imaginação.
(É isto um homem? Primo Levi)
2.1 O romance no século XX
Chega um momento em que o narrador precisa ajustar melhor suas linhas, tencionar melhor o seu arco, tirar alguns efeitos técnicos. Todos esperam isso dele, sobretudo na hora da emoção. Mas
o narrador já aprendeu, com o tempo, que um livro, um longo relato, não é apenas uma sucessão de histórias que se contam num
punhado de páginas brancas. Um livro não se controla.
(O que é isso companheiro? Fernando Gabeira)
Em suas reflexões teóricas, Anatol Rosenfeld, Theodor W. Adorno e Walter
Benjamin, dentre outros, discutem mudanças significativas no que diz respeito às
formas de representação estética, em particular, aquelas observadas no romance.
Para esses críticos, o que deve ser observado, para a compreensão de tal premissa,
é o fato de que a obra literária estará sempre, de uma forma ou de outra, vinculada a
fatos e a ocorrências da realidade social e histórica de uma determinada época e cultura. Em outros termos, o texto literário, enquanto fenômeno cultural, jamais pode vir
48
a existir por si só, mas como produto originário e representativo de uma determinada
realidade.
Ao traçar suas considerações acerca do surgimento do romance moderno,
Rosenfeld discute algumas hipóteses instigantes a esse respeito. Num primeiro momento, o crítico se apoia na tese de que, para cada fase histórica da humanidade, há
um espírito unidificador que coloca em contato todas as manifestações culturais59.
Para o estudioso, ao se tomar como paradigma a cultura ocidental, mesmo sendo
esta complexa e caracterizada pela autonomia em diversas esferas da vida social,
histórica e científica, existe certa interdependência e influência entre os diferentes
campos, o que acaba por gerar certa unidade de espírito e de vida capaz de impregnar e influenciar, dentre outras atividades, a atividade literária.
Em um segundo momento, Rosenfeld julga o fenômeno da “desrealização”, inicialmente observado na pintura, como de grande importância para a compreensão
das transformações estruturais ocorridas no âmbito literário. Ao transferir o sentido do
vocábulo “desrealização” da pintura para o domínio da literatura, o crítico está se referindo ao abandono e à recusa da mera cópia ou reprodução da realidade tal como
esta se apresentava60. Em outras palavras, conforme o autor,
[i]sso, sendo evidente no tocante à pintura abstrata ou não-figurativa,
inclui também correntes figurativas como o cubismo, expressionismo
ou surrealismo. Mesmo estas correntes deixaram de visar a reprodução mais ou menos fiel da realidade empírica. Esta, no expressionismo, é apenas “usada” para facilitar a expressão de emoções e visões subjetivas que lhe deformam a aparência; no surrealismo, fornece apenas elementos isolados, em contexto insólito, para apresentar a imagem onírica de um mundo dissociado e absurdo; no cubismo, é apenas ponto de partida de uma redução a suas configurações geométricas subjacentes. Em todos esses casos podemos falar
de uma negação do realismo, se usarmos este termo no sentido
mais lato, designando a tendência de reproduzir, de uma forma estilizada ou não, idealizada ou não, a realidade apreendida pelos nossos sentidos61.
No que tange às proposições elaboradas, na visão de Rosenfeld, a arte deixa
de ser cópia fiel da realidade, pois a perspectiva já não é mais a mesma, uma vez
que sofreu certas distorções como podem ser observadas a partir da pintura moder59
ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: ____. Texto/contexto. 1969. p.
73.
60
Idem. Ibidem. p. 74.
61
Idem. Ibidem. p. 74.
49
na, na qual o ser humano passa a ser dissociado no cubismo e deformado no expressionismo. Desse modo, ao discutir as profundas alterações presenciadas no
campo da pintura e que desencadearam o desaparecimento do “retrato”62 – reprodução fiel e plastificada da realidade sensível –, o autor segue uma linha de raciocínio
muito semelhante em relação aos rumos que toma o relato romanesco no século XX,
e trata, mais especificamente, da questão da fragmentação do romance moderno.
Ao discutir as transformações sofridas pelo gênero romanesco63, na passagem
do século XIX para o XX, o crítico conclui que se trata de uma modificação muito semelhante à observada na pintura moderna e que a característica principal da narrativa contemporânea é o surgimento de uma manifestação artística em que a cronologia
e a continuidade temporal foram abaladas, enfim, “os relógios foram destruídos”. Ainda segundo o autor, “[o] romance moderno nasceu no momento em que Proust, Joyce, Gide, Faulkner começam a desfazer a ordem cronológica, fundindo passado, presente e futuro”64. Para o estudioso, não é mais possível observar claramente a ordem
cronológica dos fatos, pois a continuidade temporal dos acontecimentos foi abolida da
mesma forma que o espaço, ou pelo menos a ilusão de espaço, que se tinha no romance realista.
O narrador já não é mais alguém que tudo sabe e tudo apreende, mas que vê
o mundo e a realidade a partir de uma perspectiva, de um ângulo muitas vezes distorcido e deformado pela realidade social e histórica. No romance, não é mais possível demarcar as fronteiras entre passado, presente e futuro, uma vez que é próprio do
fazer literário moderno a fusão entre os tempos, tendo em vista que o narrador “passeia” entre estes numa contínua intercalação de fatos e relatos, ora do passado, ora
do presente, ora de sua própria imaginação. Tal fenômeno muitas vezes conduz o
leitor a certas dificuldades de adaptação a esse tipo de produção, pois nega o compromisso com um mundo de aparências tido até então como real e absoluto, regido
pelo tempo e pelo espaço até o momento determinado pelo realismo tradicional e
pelo senso comum.
Rosenfeld, ao se valer dos elementos da pintura a fim de compreender as mudanças estruturais do romance, está traçando linhas distintivas entre o romance que
era produzido no século XIX e aquele que emergiu no século XX. Ao mencionar a
62
Idem. Ibidem. p. 75.
O vocábulo “romanesco”, tal como empregado neste trabalho, refere-se ao gênero moderno
“romance”, e não ao gênero medieval, que recebe denominação similar.
64
Idem. Ibidem. p. 78.
63
50
questão da perspectiva e da reprodução fiel que a pintura representava, está também
se referindo às produções romanescas tradicionais, cuja funcionalidade principal era
possibilitar ao leitor um saber total, já direcionado pelo narrador, e uma ampla visão
dos elementos que pertenciam à sua estrutura. Por outro lado, quando menciona a
abolição da plasticidade, da cópia fiel da realidade circundante e da mudança de
perspectiva, está fazendo uma menção às tendências do romance moderno. Para
tanto, apoia-se em pressupostos de que a arte deve não só acompanhar as transformações do mundo, mas apresentar o homem a ele mesmo e à sua realidade através
de outra perspectiva, revelando não só uma nova temática, mas, acima de tudo, uma
nova estrutura estética capaz de suscitar estranhamento no indivíduo para, a partir
disso, levá-lo à assimilação e à compreensão dos episódios.
As narrativas modernas apresentam como principal oposição em relação ao
romance realista a ruptura com suas características fundamentais que são a temporalidade e a causalidade. Em Rosenfeld, a argumentação capaz de justificar e mesmo
explicar as transformações observadas no romance surgido no século XX reside no
fato de tal gênero, assim como qualquer outra expressão artística, representar um
mundo em constantes transformações e em crise. Na visão do crítico, para a compreensão da narrativa moderna, deve-se estar atento aos vínculos que ela mantém
com as mudanças estruturais observadas na sociedade.
Assim, de acordo com os argumentos propostos por Rosenfeld, as alterações
ocorridas no gênero narrativo não se deram gratuitamente. O estudioso explica que
foi o mundo que sofreu grandes transformações desencadeadas por guerras, por avanços de pensamento científico e tecnológico, por mudanças de dogmas e crenças
mitológicas e religiosas, dentre tantos outros colapsos. Frente a isso, a realidade, ao
se transformar e avançar rapidamente, deixa para trás lacunas que precisavam ser
elucidadas, e os artistas, então, precisaram adaptar suas formas estéticas de modo a
contemplar e representar o maior número possível de fatores, ações e pensamentos
em suas obras65.
Em notas semelhantes às de Rosenfeld, Erich Auerbach, em seu texto Mimesis, também discute pressupostos acerca das mudanças ocorridas no gênero romanesco no século XX. Nesse estudo, Auerbach analisa um trecho do livro To the Lighthouse (1927), de Virginia Woolf, a fim de traçar sua linha argumentativa acerca das
novas tendências do romance moderno. Nessa reflexão, as proposições do autor são
65
Idem. Ibidem. p. 77-78.
51
inicialmente delineadas com base na situação em que são apresentados os personagens no relato. Assim, ao contrário do que se poderia imaginar, segundo o romance
tradicional, os personagens eram apresentados dentro de contextos sistemáticos,
através da exposição ou até mesmo da introdução, para, com isso, facilitar o entendimento da linha de raciocínio lógico que o narrador queria causar no leitor. Aqui, o
personagem em questão, Mrs. Ramsay, aparece através de formas enigmáticas. Segundo Auerbach, a exemplo desse trecho da obra de Woolf, é perceptível que “[o]
escritor, como narrador de fatos objetivos, desaparece quase que completamente;
quase tudo o que é dito aparece como reflexo na consciência dos personagens do
romance”. Tampouco é comunicado ao leitor “o conhecimento que Virgínia Woolf tem
da essência de Mrs. Ramsay, mas reflexos dessa essência e dos seus efeitos sobre
diferentes figuras do romance, junto ‘aos espíritos sem nome’”66.
Para Auerbach, o modo ordenado e claro de como eram mostrados os acontecimentos nas produções literárias e de como eram utilizados na construção do romance por escritores do século XIX e até mesmo do início do século XX já não pode
mais ser encontrado nas tramas do romance moderno desse século67. O poder de
representação da palavra literária entra em crise, e o romance perde a capacidade de
ser um espelho do mundo. O narrador do romance moderno, por sua vez, perde a
crença no mundo perante as diversas modificações e, assim, passa a encenar o conflito entre sua condição precária que se resume em falta de autoridade para narrar e a
necessidade deste narrar.
No romance realista, a pretensão do narrador era de dizer como as coisas aconteciam, mesmo que todo o relato fosse fantástico. O narrador era o sujeito que
dominava a experiência e, por isso, selecionava os fatos mais importantes e confiáveis, ordenando-os em uma narrativa lógica e coerente. Assim, o leitor acreditava
nessa ordem que lhe era apresentada e na capacidade do narrador de transformar
episódios dispersos em uma narração única e completa, aceitando a ilusão de que se
tratava de um relato confiável68. A narrativa contemporânea, em contrapartida, está
longe de ser una e linear, uma vez que o próprio narrador não possui mais total domínio da matéria nem da forma.
66
AUERBACH, Eric. A meia marrom. In: ____. Mímesis: a representação da realidade na literatura
ocidental. 1971. p. 469.
67
Idem. Ibidem. p. 470-471.
68
SANSEVERIANO. Antonio Marcos Vieira. Realismo e alegoria em Machado de Assis. 1999.
p. 55-56.
52
O próprio escritor, ao criar o narrador da trama, já não o faz objetivamente
como alguém que relata, observa e interpreta os pensamentos, anseios e atitudes
dos seus personagens. Abre-se espaço no romance contemporâneo para um narrador sapiente, mas com olhos duvidosos, interrogativos:
aqui, onde o escritor atinge a impressão mencionada colocando-se a
si próprio, por vezes, como quem duvida, interroga e procura, como
se a verdade acerca do seu personagem não lhe fosse mais bem
conhecida do que aos próprios personagens ou ao leitor. Tudo é,
portanto, uma questão da posição do escritor diante da realidade do
mundo que representa; posição que é, precisamente, totalmente diferente da posição daqueles autores que interpretam as ações, as situações e os caracteres dos seus personagens com segurança objetiva, da forma que, anteriormente, ocorria em geral. Goethe ou Keller, Dickens ou Meredith, Balzac ou Zola comunicavam-nos, partindo
de um conhecimento seguro, o que os seus personagens faziam, o
que pensavam ou sentiam ao agirem, de que forma deveriam ser interpretadas as suas ações ou pensamentos69.
Tendo em vista a complexidade e as particularidades que compõem não só a
estrutura do texto literário moderno, mas também os fatores sócio-históricos que se
entrecruzam na sua composição, torna-se importante a busca de suportes teóricos
capazes de tentar explicar a complexidade de certas ocorrências literárias que as
teorias tradicionais já não dão mais conta. Para tanto, unem-se às proposições já levantadas por Rosenfeld e Auerbach posicionamentos críticos formulados por filósofos
da Escola de Frankfurt como Theodor W. Adorno e Walter Benjamin. Esses autores
dedicarem-se ao estudo e à compreensão do fenômeno estético, em particular, do
romance.
Theodor W. Adorno, em seu livro Teoria estética, ao discutir questões relativas à arte, à sociedade e à estética, enfatiza que as obras de arte mantêm uma estreita ligação com a vida social. Dessa forma, o crítico aponta para a existência de um
vínculo permanente entre as barbáries que a sociedade enfrenta ou enfrentou e as
produções artísticas. Para Adorno, uma tensão externa não resolvida irá motivar, no
romance, uma tensão interna, que se revelará em formas específicas de representação estética. Segundo o autor, “os antagonismos não resolvidos da realidade retornam às obras de arte como problemas imanentes da sua forma. É isto, e não a trama
69
AUERBACH, Eric. A meia marrom. In: ____. Mímesis: a representação da realidade na
literatura ocidental. 1971. p. 470.
53
dos momentos objetivos, que define a relação da arte com a sociedade”70. De acordo
com a proposta teórica elaborada por Adorno, é possível entender que o artista, ao
estar em contato com uma determinada realidade social, a internaliza, e, se essa realidade for caracterizada por conflitos e tensões, da mesma forma será a representação artístico-cultural, não só em nível temático, mas principalmente formal.
Para Adorno, a realidade não é percebida como algo harmônico, logo sua representação também não pode ser harmoniosa, pois, se assim o fosse, ter-se-ia uma
falsa projeção dessa realidade. Com isso, rompe-se com o conceito de perspectiva
mantido pelo romance realista, e surge uma nova forma de expressar ou representar
as experiências. A linearidade e a logicidade que definiam o romance realista são
abolidas, e o que o romance moderno incorpora, são fragmentos e estilhaços de imagens e de pensamentos formulados a partir da realidade, negando a ideia de que a
arte deve ser concebida e entendida como totalidade:
[a] arte de elevada pretensão tende a ultrapassar a forma como totalidade, e desemboca no fragmentário. A indigência da forma deveria
expressamente acabar de se fazer sentir na dificuldade da arte temporal [...]. Uma vez desembaraçada da convenção, nenhuma obra
de arte pode já manifestadamente concluir de modo convincente,
enquanto que os desenlaces tradicionais apenas procedem como se
os momentos singulares se associassem a com o ponto final no
tempo para constituir a totalidade da forma. Em numerosas obras da
modernidade que, entretanto, forma objeto de ampla recepção, a
forma manteve-se habilmente aberta, porque queriam provar que a
unidade da forma já não lhes era garantida71.
A posição do narrador no romance contemporâneo é outro item analisado pelo
crítico frankfurtiano. Para ele, o fato de narrar implica a necessidade de “ter algo especial a dizer”, entretanto, na contemporaneidade, isso é impedido pelo mundo administrado pela estandardização e pela mesmidade. No romance contemporâneo, é
preciso considerar a impossibilidade do narrador de contar sua participação em certos episódios traumáticos. A experiência desintegrou-se, e a vida articulada e contínua em si mesma já não pode mais ser apresentada sem fissuras. Para Adorno, a
ideia de que alguém possa se sentar para ler um bom livro é ultrapassada, pois o que
precisa ser considerado no mundo contemporâneo não deve ser somente a coisa
70
71
ADORNO, Theodor W. Teoria estética. 2008. p. 18.
Idem. Ibidem. p. 171.
54
comunicada, mas a forma como é apresentada72. Frente a isso, o artista fica condicionado à parcialidade dos fatos e suscetível ao engano, ao esquecimento e às rupturas do relato. O romance realista, por outro lado, ao reproduzir uma visão absoluta e
consistente do real, ficava condicionado à reprodução da fachada, enganando e mascarando a realidade ao apresentá-la através de uma aparência de totalidade, sem
lacunas e sem cortes.
Walter Benjamin, crítico ligado à Escola de Frankfurt, dentre seus estudos de
filosofia, estética, religião e história, também se dedicou à teoria literária e, em particular, às transformações da arte moderna. Em seus ensaios, o autor reflete acerca da
sociedade, de seus processos de industrialização, modernização, guerras e demais
conflitos históricos. Assim, as compatibilidades teóricas entre Benjamin e Adorno são
visíveis uma vez que ambos examinam a produção artística sob o impacto das diversas situações históricas e sociais ocorridas no século XX.
Em seu ensaio Sobre o conceito da história, Benjamin observa algumas das
formas como a história tem sido narrada e concebida. Segundo ele, nem a historiografia progressista nem a historiografia burguesa cumprem com a tarefa adequadamente, pois, enquanto a primeira procura enfatizar uma ideia de progresso histórico
inevitável e cientificamente previsível; a segunda, que diz respeito ao historicismo,
oriundo da grande tradição acadêmica, objetiva reviver o passado através de uma
espécie de identificação afetiva do historiador com o seu objeto. Essa última tenta
contar um passado sem questionar a posição do historiador ou a forma como a matéria é narrada e realizada.
Perante essas correntes, Benjamin entende que somente a voz dos dominadores e vencedores é contada e, por isso, acredita que a verdadeira história fica suprimida e abafada. O crítico enfatiza que essa forma de narrar a história deve ser abandonada e substituída pelo materialismo histórico, o qual não mascara a barbárie cometida pelo poder opressor. O materialismo histórico resulta da visão e da forma de
narrar dos vencidos, e principalmente das vozes caladas e soterradas em meio aos
escombros do passado, violento e repressor. Benjamin destaca que a imagem do
passado é de ruínas, porque a civilização foi concebida a partir de episódios de destruição, de massacre e de barbárie, ou melhor, a civilização teve como alicerce o
72
ADORNO, Theodor W. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: ____ et al. Textos
escolhidos. 1983. p. 269-270.
55
sangue de muitos povos. Todas as sociedades são marcadas fortemente por tensões
e conflitos dos quais o intelectual não pode se eximir.
Diante disso, a proposta que Benjamin apresenta para uma nova escrita da
história é de que a narração deve estar comprometida na causa contra as barbáries
cometidas ao longo dos tempos. O crítico sugere que o olhar do narrador deve estar
sempre voltado para a história como catástrofe, como “ruína sobre ruína”73, e, assim,
relatá-la, fora de uma certa lógica e de um nexo causal, mas em fragmentos, como
que de forma a reconstituir os cacos da história.
Na visão de Adorno e Benjamin, o caminho para se entender a narrativa moderna está em se pensar e considerar problemas de teoria da literatura e acontecimentos da experiência humana, sem deixar de levar em conta o contexto em que
uma determinada obra fora produzida, bem como seu impacto sobre as formas literárias. Em outras palavras, as proposições de ambos os teóricos servem para explicar
que os problemas de ordem estética de determinadas narrativas – como ruptura da
linearidade, fragmentação, descontinuidade temporal, tais como observados nas obras que compõem o corpus desta pesquisa, ou seja, Quatro-olhos, de Renato
Pompeu, e Em câmara lenta, de Renato Tapajós – podem ser entendidas através da
ótica de um contexto bárbaro, turbulento e violento que circundava o momento de sua
produção.
Ignácio de Loyola Brandão, ao discutir sobre as tendências e as características do romance moderno, observa que, no Brasil, esse tipo de produção literária foi
influenciado fortemente pelo jornalismo, pelo documentário, por depoimentos e por
acontecimentos cotidianos oriundos da situação ditatorial e violenta do país pós-64.
Devido a isso, então, as obras de ficção foram marcadas pelo desejo sincero de retratar tais episódios antes que fossem esquecidos ou que se perdessem por algum motivo proveniente da censura. O principal objetivo dos escritores era “evitar que escoassem para o esgoto da história, fornecendo um álibi ao sistema duro e desumano
que imperava o Brasil”74.
Para Brandão, a década de 70, no Brasil, desenvolveu na mentalidade dos
escritores uma nova forma de encarar a realidade e, consequentemente, de reproduzi-la. Um novo público formava-se e reunia-se para falar de literatura brasileira, mas
73
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política.
2006. p. 226.
74
BRANDÃO. Ignácio de Loyola. Literatura e resistência. In: SCHWARTZ, Jorge; SOSNOWSKI,
Saul (Orgs.). Brasil: o trânsito da memória. 1994. p. 178.
56
também de política e da situação do país. Esse novo público, formado principalmente
por escritores-jornalistas, costumava ter em mãos as notícias censuradas, as fotos e
as reportagens proibidas de serem veiculadas pelos meios de comunicação. Frente à
presença da censura e da necessidade de driblar esse sistema opressor, o crítico
pondera que a literatura sofria uma brusca transformação, cuja forma de composição
e expressão migrava em direção ao fantástico e ao metafórico. Já os conceitos de
realismo, verossimilhança e logicidade, que compunham os romances tradicionais de
até então, são abalados de forma que perdem seus limites e passam a ganhar elasticidade. Ou seja, o escritor ganha maior liberdade na escrita e rompe com barreiras e
conceitos quase que intransponíveis do romance realista75.
Outrossim, cabe acrescentar que, ao se tratar das tendências do romance
moderno, deve-se ponderar o fato de que a forma estética de apresentação de certas
narrativas representa a intenção essencial do escritor de não impor à vida, ao seu
tema, uma ordem que ela própria não oferece76. Em outras palavras, seria quase impossível representar ou apresentar o decurso completo de uma vida ou de um conjunto de episódios, que merecessem ser contados, sem que os lapsos de memória do
escritor ou do narrador não interferissem na narrativa. Contudo, é possível esperar
que relatos de poucos personagens, ocorridos em curtos espaços de tempo, possam
ser contados ou reproduzidos com maior perfeição, assim como episódios, muitas
vezes aleatórios, sem um nexo cronológico definido, mas que apresentam detalhes e
fatores que, ao serem relatados, transformam-se em grandes reflexões sobre a vida
social e/ou histórica do homem.
O romance moderno, ao apresentar elementos fragmentados, desconexos e
por não seguir uma ordem linear, seja ela de tempo ou de causalidade, busca instigar
o leitor à interpretação da vida que, por sua vez, surge também de fatos do cotidiano
e de experiências de vida tampouco organizadas cronologicamente. A literatura moderna forma-se a partir das distintas experiências encontradas em pensamentos, na
consciência humana, nas palavras e em ações, que geralmente se configuram em
episódios desordenados. Provavelmente, este seja o desafio dos escritores modernos, ou seja, representar, através da arte, e em particular através do romance, a essência da vida humana e de tudo que a cerca e, assim, possibilitar ao leitor ou ao
75
Idem. Ibidem. p. 179.
AUERBACH, Eric. A meia marrom. In: ____. Mímesis: a representação da realidade na
literatura ocidental. 1971. p. 481.
76
57
expectador da arte sua própria interpretação e conclusão de determinadas situações,
uma vez que
dentro de nós realiza-se incessantemente um processo de formação
e de interpretação, cujo objeto somos nós mesmos: a nossa vida,
com passado, presente e futuro; o meio que nos rodeia; o mundo em
que vivemos, tudo isso tentamos incessantemente interpretar e ordenar, de tal forma que ganhe para nós uma forma de conjunto, a
qual, evidentemente, segundo sejamos obrigados, inclinados e capazes de assimilar novas experiências que se nos impinjam, modifica-se constantemente de forma mais rápida ou mais lenta, mais ou
menos radical77.
Nesse sentido, pondera-se olhar para o romance moderno assim como fazem
os escritores no momento de sua produção e buscar a interpretação dos fatos relatados a partir do entrecruzamento, da contradição e, por que não, da complementação
resultante dos episódios apresentados. O processo de construção do romance contemporâneo segue pelas sendas instintivas da inteligência, que observa e representa
uma realidade que não é única, mas dissolvida em múltiplos e distintos reflexos da
consciência humana. Sendo assim, a emergência de determinadas características
que se podem observar em romances que surgem durante a Ditadura Militar no Brasil
não é de difícil entendimento, já que traduz um sintoma da confusão e do desconserto da sociedade da época.
Portanto, ao se observarem obras esteticamente fragmentadas como Quatroolhos e Em câmara lenta, produzidas no calor do regime autoritário e violento, reforçam-se as teses defendidas por Adorno e Benjamin, segundo os quais o romance
moderno possibilita um novo jeito de tratar de questões históricas, políticas e sociais,
em que a temática não é o principal eixo da trama, mas a fusão desta com a forma de
organização da obra. A tentativa desses escritores está em não mais impor um narrador que organize o caos e o relate, mas fazer com que o leitor, através dos destroços da narrativa, despedaçada e desarticulada entre si, consiga observar a situação
de sua perspectiva e chegar ao seu próprio conceito de verdade e de realidade.
77
Idem. Ibidem. p. 482.
58
2.2 Fronteiras da narrativa: ficção, história e testemunho
Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos; ninguém restará para dar testemunho, mas, mesmo que
alguém escape, o mundo não lhe dará crédito [...]. Ainda que fiquem algumas provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão que
os fatos narrados são tão monstruosos que não merecem confiança: dirão que são exageros e propaganda aliada e acreditarão em
nós que negaremos tudo, e não em vocês. Nós é que ditaremos a
história dos Lager (campos de concentração).
(Os afogados e os sobreviventes, Primo Levi)
A história e a ficção, durante séculos, trilharam caminhos semelhantes, pois
ambas eram responsáveis por apresentar e recontar os acontecimentos das civilizações. Tal responsabilidade, por um lado, marcava a aproximação entre essas duas
áreas do saber; por outro, estimulava determinadas divergências entre elas. Diante
disso, a relação entre narrativa histórica e narrativa ficcional apresenta-se à humanidade em constantes diálogos e debates, no intuito de refletir acerca das singularidades de cada uma, bem como chamar atenção para os elementos que unem tais discursos.
Ao se tomar como ponto de partida dados como a ação de escrever a história,
(re)contar os fatos e interpretar o mundo, percebe-se que tanto a história quanto a
ficção apresentam-se capazes de ordená-los a fim de narrar o que deve ser relatado;
entretanto, a forma como essa escrita pode se configurar é o que irá variar. A história
e a literatura compartilham os mesmos elementos para as suas composições, a saber, fato, personagens, espaço, tempo, ações. Contudo, o procedimento em organizá-los é muito variável entre essas duas formas de narrar, distinguindo assim história
de literatura, sem, no entanto, conferir mais ou menos autenticidade de uma em relação à outra. Para tanto, a filosofia da história e a teoria literária têm procurado entender e esclarecer os laços que unem ficção e história, bem como os fatores que as
divergem, numa busca constante para compreender de que modo essas áreas elaboram e relatam uma mesma temática e que tipo de recursos narrativos podem ser encontrados em suas diegeses.
Assim, se as relações entre literatura e história encontram-se no centro do
debate da atualidade, e as fronteiras entre essas duas áreas parecem cada vez mais
fluídas, torna-se importante destacar que a segunda metade do século XIX é tida co-
59
mo referência quando o assunto é ruptura entre esses dois campos do conhecimento,
uma vez que se instaura o modelo de interpretação positivista da história. Toma-se,
então, a história como um sistema científico, dotado de verdades absolutas, e a literatura como arte, tida unicamente como lugar do fictício, do subjetivo e do imaginário.
Frente a isso, observa-se a sobreposição do cientificismo como prática da verdade,
opondo-se categoricamente à arte literária, conferindo a esta a posição produtora de
inverdades.
Roland Barthes, ao discutir o que seria o discurso histórico, enquanto lugar de
“verdades”, refere-se a uma tessitura capaz de comportar em sua unidade fatores
“existentes” e “ocorrentes”78. Tal classificação é exemplificada através de Heródoto,
cuja definição de “existentes” inclui dinastias, príncipes, generais, soldados, povos e
lugares, e, para a de “ocorrentes”, ações como as de devastar, submeter, reinar, devastar, aliar-se e fazer expedições, consultar oráculo, etc79. Nesse sentido, o autor
afirma: “[s]endo essas coleções (relativamente) fechadas, devem oferecer-se a certas
regras de substituição e de transformação, e deve ser possível estruturá-las – tarefa
de maior ou menor dificuldade, evidentemente, conforme os historiadores”80.
Com base nessa categorização, que organiza a narrativa histórica, entende-se
que tais conjuntos de elementos apresentam-se restritos ao campo da história, cabendo ao historiador a tarefa de arranjá-los da forma que melhor lhe pareça adequada. Dá-se a liberdade para que o historiador constitua seu discurso de acordo com
sua ideologia e com seu ponto de vista, podendo tanto enfatizar e glorificar um evento, quanto denegri-lo ou depreciá-lo, dependendo da ênfase que confere aos dados
de que dispõe.
Entretanto, ainda com base na definição de Heródoto acerca dos elementos
composicionais da história, itens considerados até então específicos ao domínio da
história também podem ser encontrados na ficção. Assim, acredita-se ser impossível
delimitar categoricamente o que incumbe à literatura e o que é próprio do discurso
histórico. Isso porque as fronteiras entre essas duas áreas revelam-se muito fluídas,
uma vez que elementos tidos como característicos da história migram para a ficção, e
a história, por vezes, migra “para uma forma metafórica”81. Desse modo, a partir do
momento em que se observa que as mesmas categorias podem servir tanto à história
78
BARTHES, Roland. O discurso da história. In: ____. O rumor da língua. 2004. p. 171.
Idem. Ibidem. p. 171.
80
Idem. Ibidem. p. 171.
81
Idem. Ibidem. p. 175.
79
60
quando à literatura, a teoria da história concebida até então é posta em xeque. A propósito da definição do discurso histórico, Barthes ainda acrescenta:
[o]s próprios processos históricos (seja qual for o seu desenvolvimento terminológico) levantam – entre outros – um problema interessante: o de seu estatuto. O estatuto de um processo pode ser assertivo, negativo, interrogativo. Ora, o estatuto do discurso histórico
é uniformemente assertivo, constativo; o fato histórico está ligado
linguisticamente a um privilégio de ser: conta-se o que foi, não o que
não foi ou o que foi duvidoso. Enfim, o discurso histórico desconhece
a negação (ou conhece raramente, de maneira excêntrica). [...] Pode-se dizer que, em certo sentido, o discurso “objetivo” (é o caso da
história positivista) alcança a situação do discurso esquizofrênico;
num caso como no outro, há censura radical da enunciação82.
Em outros termos, Barthes está chamando atenção para o fato de que a história sempre será positivista, capaz de relatar o que aconteceu, sem se preocupar com
aquilo que deixou de acontecer, com os fatos que foram encobertos. Ou seja, sempre
haverá algum tipo de censura na enunciação histórica, seja por ideologia do historiador ou por necessidade de uma certa classe ou por outro motivo qualquer. Fato é
que, para que o historiador consiga concatenar as informações selecionadas de que
dispõem, em uma certa ordem lógica e aceitável, ele precisa dar significação a tais
subsídios, isto é, precisa interpretá-los de acordo com seus conhecimentos e com
seu ponto de vista. Sem a interpretação, a narrativa não tem significação:
[p]ara que a História não signifique, é necessário que o discurso se
limite a uma pura série inestruturada de anotações: é o caso das
cronologias e dos anais [...]. No discurso histórico constituído (“forrado”, poderíamos dizer), os fatos relatados funcionam irresistivelmente quer como índices, quer como núcleos cuja sequência mesma
tem valor indicial [...]. No discurso histórico da nossa civilização, o
processo de significação visa sempre a “preencher” o sentido da história: o historiador é aquele que reúne menos fatos do que significantes e os relata, quer dizer, organiza-os com a finalidade de estabelecer um sentido positivo e de preencher o vazio da série pura83.
Como se observa, Barthes vê o discurso histórico como fruto da elaboração
ideológica e principalmente da elaboração imaginária do historiador, confirmando as82
83
Idem. Ibidem. p. 173.
Idem. Ibidem. p. 176.
61
sim o papel que tem a ficção para a composição do discurso histórico. Tal proposição
serve para ratificar que a metaforização que se faz presente na ficção também irá ser
encontrada na narrativa histórica, postulando que, em nenhum momento, elementos
da ficção ou da história são fatores determinantes para a caracterização de uma e
para a exclusão da outra, mas que cada vez mais essas duas áreas do saber parecem interligadas.
Hayden White, em Trópicos do discurso, ao discutir questões relacionadas à
natureza humana, como cultura, sociedade e história, postula que o registro histórico
é algo muito compacto e ao mesmo tempo difuso demais, e que, por isso, compartilhando da mesma visão de Barthes, o historiador é alguém que geralmente precisa
interpretar os elementos de que dispõem a fim de conseguir narrar o processo histórico de modo coerente e verossímil, bem como preencher possíveis lacunas84:
o historiador deve “interpretar” os seus dados, excluindo de seu relato certos fatos que sejam irrelevantes ao seu propósito narrativo. De
outro lado, no empenho de reconstruir “o que aconteceu” num dado
período da história, o historiador deve inevitavelmente incluir em sua
narrativa um relato de algum acontecimento ou conjunto de acontecimentos que carecem dos fatos que poderiam permitir uma explicação plausível de sua ocorrência. E isto significa que o historiador
precisa “interpretar” o seu material, preenchendo as lacunas das informações a partir de inferências ou de especulações85.
Dessa forma, a narrativa histórica, ao passar pela interpretação do escritor, resulta numa organização de eventos explicados adequada ou inadequadamente. Fatos inferidos pelo historiador e estabelecidos como representação são tomados como
explicação para o processo narrativo da história. Assim, as narrativas históricas passam a ser “ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos
e cujas formas assemelham-se à literatura”86.
White, ao reler Collingwood, afirma que o historiador era acima de tudo um
contador de histórias e que sua sensibilidade era manifestada através de sua capacidade de, a partir de fatos que muitas vezes se apresentavam desorganizados e carentes de sentido, criar uma história dotada de sentido. Para Collingwood, o registro
histórico sempre será fragmentário e incompleto e, por isso, o historiador precisa usar
84
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. 2001. p. 65.
Idem. Ibidem. p. 65.
86
Idem. Ibidem. p. 98.
85
62
sua imaginação construtiva. Entretanto, o crítico observa nos historiadores a tendência para o relato de testemunho a partir do senso das formas possíveis que os diferentes tipos de situação humana podem assumir. Na visão de White, os acontecimentos históricos, ao serem relatados, eram organizados através da supressão de alguns
elementos e do realce de outros, de acordo com o ponto de vista do narrador e com
as estratégias ideológicas que este lograva contemplar. Em suma, o texto histórico
reunia as técnicas que normalmente se esperava encontrar na composição da trama
de um romance ou de uma peça87. White complementa a observação de Collingwood:
nenhum acontecimento histórico é intrinsecamente trágico; só pode
ser concebido como tal de um ponto de vista particular ou de dentro
do contexto de um conjunto estruturado de eventos do qual ele é um
elemento que goza de um lugar privilegiado. Pois na história o que é
trágico de uma perspectiva é cômico de outra [...]. [O]s acontecimentos históricos são de valor neutro [...]. O mesmo conjunto de eventos
pode servir como componentes de uma estória que é trágica ou cômica, conforme o caso, dependendo da escolha, por parte do historiador, da estrutura de enredo que lhe parece mais apropriada para
ordenar os eventos desse tipo, de modo a transformá-los numa estória inteligível88.
De acordo com as ideias levantadas por White e Collingwood, pode-se inferir
que o acontecimento histórico nada mais é do que um conjunto de fatores capaz de
possibilitar ao escritor uma série de sequências narratológicas dotadas de sentidos
diferentes, provenientes das mais distintas concepções de seus historiadores. A configuração de uma determinada situação histórica requer do historiador muita sutileza
a fim de harmonizar seu enredo e conferir-lhe sentido. Trata-se, portanto, de uma
espécie de apropriação, por parte do historiador, da operação literária, da prática criadora de ficção.
White, ao citar Levi-Strauss, argumenta que esse autor, em um de seus ensaios sobre historiografia, discute que, quando se trata de escrever um relato abrangente de um determinado período temporal, o historiador deixa-se levar por “esquemas
fraudulentos”, “abstrações”, pois só é possível construir uma história compreensível
do passado mediante o abandono de alguns fatos. Assim, a explicação do processo
histórico é determinada mais pelo que se deixa de fora da “representação” do que
87
88
Idem. Ibidem. p. 100.
Idem. Ibidem. p. 101.
63
pelo que nele é incluído. O crítico conclui, dessa forma, que uma história considerada
clarividente jamais escapa completamente à natureza da imaginação89.
Tais pressupostos são acolhidos por White quando complementa que a narrativa histórica é uma narrativa simbólica, pois não reproduz os eventos que descreve,
apenas aponta a direção que os acontecimentos devem ser pensados, trazendo, com
isso, à mente, imagens dos eventos que indica, assim como faz a metáfora90. Segundo White, aceitar o teor ficcional no discurso histórico não deprecia o status dessa
narrativa em sua concepção de fornecedora de um tipo de conhecimento. A respeito
dessa relação de elementos históricos e literários que se entrecruzam no ato de narrar a história, o crítico reconhece a necessidade de cada vez mais se debater a respeito da produtiva relação que essas áreas podem possibilitar. Para White, essa discussão joga luz ao verdadeiro passado histórico, pois se em cada relato histórico há
um elemento ficcional, em cada elemento da ficção também irá se encontrar um ou
mais fatos históricos que merecem ser observados.
De acordo com o crítico, a antiga distinção entre ficção e história, na qual a
ficção era concebida como a representação do imaginável, e a história como a representação do verdadeiro, “deve dar lugar ao reconhecimento de que só se pode conhecer o real comparando-o ou equiparando-o ao imaginável”91. Assim, a narrativa
histórica, por ser uma estrutura complexa, abre-se para um vasto mundo de experiências que ela se propõe a apresentar de modos distintos. Logo, a história do mundo
real adquire sentido da mesma forma que o romancista confere aspecto e forma reconhecível à sua ficção. Portanto, “[n]ão importa se o mundo é concebido como real
ou apenas imaginado; a maneira de dar-lhe um sentido é a mesma”92.
O que se percebe com base em Barthes e também em White, é que o caminho do conhecimento tanto para a história quanto para a literatura não se encontra
nas divergências entre elas, mas na tentativa de borrar tais distinções. White, em especial, ao defender a prática da semelhança, postulando as similaridades entre história e literatura, defende a política da afinidade entre tais discursos, opondo-se ao sistema conceitual que concebeu à historiografia maior similitude às ciências naturais.
Nessa sinuosa fronteira entre ficção e história, parece não haver espaço para
afirmações categóricas, pois, se, em White, a narrativa histórica é concebida como
89
Idem. Ibidem. p. 107.
Idem. Ibidem. p. 108.
91
Idem. Ibidem. p. 115.
92
Idem. Ibidem. p. 115.
90
64
um tipo de arte e, se, para Collingwood, tanto no romance quanto na história, é imprescindível a imaginação a priori por parte do escritor, infere-se que os laços que
unem história e literatura tornam-se cada vez mais estreitos e fluidos93. De um lado,
tem-se a história, que se usa das ferramentas literárias a fim de compor sua narrativa;
de outro, a literatura, em especial a produzida no século XX, que é vista como um
espaço de autorreflexão da linguagem, não meramente para representar o “real”, mas
para dar forma a ele94. Seligmann-Silva classifica essa literatura do “real” como literatura de testemunho, justamente pela presença, em sua tessitura, do entrecruzamento
de elementos literários e do mundo fenomênico.
A caracterização de literatura de testemunho surgiu em países europeus, principalmente na Alemanha e na França, referindo-se às narrativas literárias associadas
aos relatos testemunhais que se propunham a narrar o evento da Shoah, dos campos
de concentração e extermínio da Segunda Guerra Mundial. Esta literatura de testemunho não pode ser meramente classificada como um gênero, mas como uma face
da literatura que surge em meio a uma época de catástrofes, fazendo com que, após
séculos, o conceito de literatura de autorreferência seja questionado, bem como seu
compromisso com o “real”. Este “real” a que se refere a literatura de testemunho não
deve ser confundido com a realidade antes pensada pelo romance realista e naturalista, mas deve ser olhado sob a luz freudiana do trauma, como “um evento que justamente resiste à representação”95.
Esclarecidos tais conceitos, é hora de tratar do testemunho. Testemunho pode
ser definido de duas formas em latim: testis ou supertes. Essa segunda nomenclatura
é também conhecida como mártir em grego. A primeira definição significa o depoimento de um terceiro em um processo. A testemunha é aqui alguém que dá sua versão dos fatos vivenciados, é alguém que sobreviveu a uma catástrofe, mas que não
consegue dar conta do vivido, porque ficou traumatizado (elemento subjetivo) devido
à dimensão da catástrofe (elemento objetivo). Quanto à segunda definição, esta refere-se a alguém que passou por uma provação, ou seja, o sobrevivente96. Sendo assim, a ideia de testemunha remete à verificação da verdade, ou seja, sua existência
só é possível quando houver indícios de dúvida e possibilidade de mentira. A literatu93
COLLINGWOOD, Robin George. Idea de la historia. 1952. p. 238.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. O testemunho: entre a ficção e o “real”. In: ____ (Org.). História,
memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 372.
95
Idem. Ibidem. p. 273.
96
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção.
In: ____. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. 2005. p. 84.
94
65
ra de testemunho configura-se, portanto, na literatura do trauma, pois concentra-se
na tentativa de representar o irrepresentável e buscar, através da língua, alguma
possibilidade de testemunhar aquilo que foi visto, mesmo que para isso seja preciso
recorrer às estratégias da ficção. Dessa forma, a literatura de testemunho surge para
tentar trazer à esfera da realidade tudo aquilo de mais terrível que possa ter sido encoberto pelo discurso dos vencedores.
Em seu ensaio Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção, Seligmann-Silva discute que a literatura de testemunho deve ser olhada como a
representação de uma “cena”, como o testemunho, escrito ou falado, de uma “cena”
violenta, de um acidente ou de uma guerra97. Para o crítico, entretanto, sempre que
se tratar de um testemunho, a representação não pode ser entendida como uma descrição realista do ocorrido, devido à impossibilidade de a testemunha apresentar a
totalidade da cena vivenciada. Outrossim, o testemunho irá instigar uma possível reorganização sobre aquela cena que não conseguiu ser completamente simbolizada
pela mente do indivíduo que a vivenciou ou presenciou. O olhar da testemunha traz
para a tessitura narrativa aquelas informações que não são encontradas nos arquivos
da história. Com isso, a testemunha revela-se, através do texto literário, num arquivo
vivo repleto de informações capazes de indicar uma nova (re)leitura da história.
A literatura de testemunho sempre irá implicar a presença de uma testemunha
ocular, de alguém que passou por uma experiência traumática. Para tanto, essa literatura irá exigir uma nova ética de representação, que se caracteriza pela presença
de imagens mudas, impossíveis de serem representadas, a não ser através de uma
nova performance da linguagem98. Portanto, a literatura de testemunho é a transposição para a forma escrita do caráter individual e intransferível da vivência da catástrofe. Essa forma de ficção deve ser vista como uma narração necessária não só em
termos individuais, mas principalmente pela sua esfera universal, funcionando assim
como um testemunho à posteridade.
A essência da literatura de testemunho não se encontra mais na imitação da
realidade, mas numa espécie de manifestação de uma cena não simbolizada e entendida no campo da memória. Não se trata de transpor de modo imediato essa cena
ou o “real’ para a literatura, mas fazer da trama literária um espaço para que, através
da linguagem, seja possível representar na ficção esse “real” enquanto trauma, en97
Idem. Ibidem. p. 105.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção.
Letras, 1998. p. 22.
98
66
quanto uma “perfuração” na mente, ferida que não se fecha, diante da memória do
sofrimento vivido99:
[é] um chavão dizer que essas experiências-limite são indescritíveis:
mas não é menos verdade que elas foram carimbadas na mente de
sobreviventes aos quais escapava a nossa capacidade cotidiana de
simbolização. A onipresença da morte faz com que a linguagem se
torne mais “concreta”: as pessoas num campo de concentração são
queimadas literalmente, a fome mata literalmente, o mais forte é literalmente dono de você etc. Não há espaço para metáfora – apenas
para a metamorfose. Daí por que essas imagens formam como que
hieróglifos indecifráveis para os testemunhos (e para os leitores desses textos). Hieróglifos (um misto inseparável de imagens e conceitos) ou simplesmente imagens que, como diz Wilkomirski, “voltam
com frequência à minha mente”, de modo descontrolado e desordenado100.
Nesse sentido, a literatura de testemunho pode ser considerada uma ramificação da própria história, narrando a “contrapelo”101 os (des)caminhos trilhados pela
história tida como objetiva e verdadeira. Por sua vez, a literatura de testemunho reitera o comprometimento em “desenterrar” um passado que poderia estar destinado a
permanecer em ruínas. O mundo e os indivíduos passam a ser (re)construídos através dessa forma de ficção. Poder-se-ia dizer que é uma forma de narrativa dedicada
ao resgate das experiências de um indivíduo ou de um grupo, a fim de reintegrar sua
memória e sua identidade.
Walter Benjamin, ao discutir questões acerca da arte de testemunho, aponta
para essa forma de ficção como sendo um trabalho da memória. Dito em outro termo,
a literatura que dedica sua ficção ao testemunho é por excelência literatura da memória. Cabe destacar, no entanto, que não se trata de uma mera rememoração do passado, mas de uma tarefa comprometida com a necessidade do lembrar e de sua impossibilidade. O autor desenvolve suas proposições contra o historicismo que apenas
reproduz a alienação entre a experiência e o indivíduo, e reitera a força do trabalho
da memória na reconstrução do passado histórico através do testemunho. Para o
estudioso, a literatura de testemunho faz o caminho inverso da historiografia tradicional, pois, ao invés de seguir uma certa linearidade clara e de percurso ascendente,
sua narrativa se dá em fragmentos, possibilitando ao expectador um espaço aberto
99
Idem. Ibidem. p. 382-383.
Idem. Ibidem. p. 110.
101
Cf. expressão utilizada por BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e
técnica, arte e política. 1994. p. 223.
100
67
para diversas (re)leituras do que é narrado. A reflexão de Benjamin sobre história e
consecutivamente sobre a arte chama atenção para a cesura do tempo, para a quebra da prosa linear. O tempo, sob essa ótica, não pode ser considerado algo vazio,
mas denso, carregado de sentido e matéria102.
Para finalizar, retomam-se as proposições elencadas por Seligmann-Silva
quando o autor enfatiza que o significativo número de produções literárias surgidas
após o evento da Shoah sugere um pensar permanente acerca da relativização do
processo narrativo histórico enquanto puro e objetivo. Para o estudioso, não é possível pensar em um texto puramente histórico e quase científico, de um lado, e um puramente fictício, de outro, se se levar em consideração a diversidade de obras consideradas literatura de testemunho que surgiram no último século. Para o autor, pensar
sobre literatura de testemunho implica diretamente repensar acerca da visão que se
tem da história, do fato histórico enquanto acontecimento e manifestação narrativa. O
testemunho que surge na ficção literária deve ser acolhido não como a narração objetiva
e plastificada dos fatos violentos, mas como resistência à compreensão deles.
Em suma, tanto o historiador quanto o romancista estão expostos e cercados pelo
mundo real e imaginário, transformando-o em ponto de referência para a composição de
suas narrativas. Dessa forma, seus discursos se sobrepõem, pois “as técnicas ou estratégias de que se valem na composição de suas narrativas são substancialmente as
mesmas”103. Vivencia-se, portanto, a ficcionalização da história como explicação pelo
mesmo motivo que se vivencia a grande ficção como iluminação para um mundo em ruínas. Em ambas, reconhecem-se as formas pelas quais a consciência humana constitui e
povoa o mundo que ela própria busca habitar confortavelmente104.
A ficcionalização da história pela literatura não prejudica o pacto narrativo entre autor e escritor, tampouco na literatura o uso da história não significa substituir a
emoção pela razão. Com isso, a narrativa histórica e a ficcional se interpenetram,
completando-se. Os personagens ficcionais ganham vida no sentido de agir e refletir
sobre sua ação histórica. O universo fictício que coexiste com a narrativa histórica
não se sobrepõe ao histórico, mas interage com ele de várias formas. O historiador
produz sua obra representando acontecimentos históricos com inferências de sua
imaginação, o que constitui o lado ficcional da narrativa, de cuja realidade que envolve a imaginação é impossível fugir. Da mesma forma, o romancista, principalmente
102
Idem. Ibidem. p. 221-228.
WHITE, Hayden. As ficções da representação factual. In: ____. Trópicos do discurso: ensaios
sobre a crítica da cultura. 2001. p. 137.
104
Idem. Ibidem. p. 116.
103
68
escritor da literatura de testemunho, não tem como se desviar dos elementos históricos que se impõem à sua volta. Quem escreve, seja o historiador ou o romancista, dá
voz à sua narrativa e, nesta voz, afloram os sentimentos de quem vive uma realidade
de lembranças e momentos significativos de seu mundo. Por isso, história e ficção
trilham os mesmos caminhos, completando-se mutuamente e intrinsecamente para
uma melhor compreensão do mundo social.
2.3 As narrativas do trauma no século XX
Chega um momento da vida em que, entre todas as pessoas que
conhecemos, os mortos são mais numerosos que os vivos. E a
mente se recusa a aceitar outras fisionomias, outras expressões:
em todas as faces novas que encontra, imprime os velhos desenhos.
(Cidades invisíveis, Ítalo Calvino)
A história da humanidade do século XX apresenta-se caracterizada por uma
série de avanços no âmbito científico e tecnológico, oferecendo, com isso, uma série
de possibilidades aos indivíduos. Entretanto, paralelo a tais conquistas, não se pode
deixar de mencionar que esse mesmo período foi cenário dos mais violentos atos de
barbárie praticados no mundo e no Brasil. Com essa colocação, não se pretende apagar dessa mesma história a memória dos genocídios e das guerras ocorridas nos
séculos anteriores, muito menos inocentar tais atos. Porém, tal século supera em todos os sentidos o nível de violência e o número de vítimas dizimadas pelos massacres. Tanto é que recebeu denominações como “era dos extremos” e “era dos cataclismos”, “era das catástrofes” e “era do totalitarismo”, confirmando, assim, a fatalidade desse período sobre a humanidade105:
[n]o último século, o homem inventou a bomba atômica, cometeu o
Holocausto, travou as mais violentas e mortíferas guerras de todos os
tempos. Antes dele, houve muitos combates, mas nenhum tão monstruoso e destruidor. Somente na Primeira Guerra Mundial, dez milhões de vidas foram dizimadas, e isso seria menos de um quinto do
número de pessoas que morreria poucas décadas depois, na Segunda Guerra. A carnificina estava longe de acabar. Antes, durante e de105
CORNELSEN, Elcio Loureiro. O testemunho na chave do trauma: aspectos teóricos. In:
UMBACH, Rosani Ketzer; CALEGARI, Lizandro Carlos (Orgs.). Estética e política na produção
cultural: as memórias da repressão. 2011. p. 10.
69
pois das guerras mundiais, incontáveis embates eclodiram nos cinco
continentes – uma quantidade tão grande que não caberia de modo
algum em nossas páginas106.
Para Márcio Seligmann-Silva, esse numeroso conjunto de barbáries, que integrou a história da humanidade, suscitou uma série de eventos que ficaram conhecidos como “pós” catástrofes, a saber, pós-massacre dos armênios, pós-Primeira
Grande Guerra, pós-Segunda Guerra Mundial, pós-Shoah, pós-gulag, pós-guerras de
descolonização, pós-massacres no Camboja, para citar somente alguns. Tal prefixo,
entretanto, não remete à ideia de superação do passado, mas, conforme complementa o estudioso, “[e]star no tempo ‘pós-catástrofe’ significa habitar essas catástrofes”,
num constante chocar-se contra elas e reviver todo o terror do trauma desse suposto
“passado”107.
Diante de tantas atrocidades, prestar testemunho ou relatar para outras pessoas e gerações as experiências vividas por aqueles que passaram por algum desses
episódios tornam-se tentativas de resgatar, através da memória, a outra versão dos
fatos e estabelecer um contradiscurso. Tal premissa é relevante porquanto visa a superar as fissuras deixadas pelo discurso oficial, geralmente ancorado à política do
esquecimento, do silenciamento e da desmemória. É nesse contexto violento e diante
da necessidade de dar testemunho do terror, que se torna importante refletir sobre a
literatura de testemunho do século XX e a sua relação direta com o trauma, ou seja,
pensar na literatura de testemunho como narrativa do trauma desse século.
A literatura de testemunho, enquanto possibilidade de acesso direto ao “real”
(conforme definição proposta por Freud), implica não uma visão positivista dos eventos ocorridos, calcada no progresso e passível de plena aceitabilidade por parte da
sociedade. Ao contrário, ela se volta para uma concepção de realidade, através do
conceito de trauma, que permite a intelectuais e expectadores o retorno à história
sem máscaras e livre da alienação positivista do historicismo oficial.
A literatura de testemunho, como uma nova forma de se conceber a história,
não adere às premissas do historicismo; antes, é correlata ao conceito de materialismo histórico. Walter Benjamin, a propósito, é um dos teóricos que aborda tal questão.
106
OLIVEIRA, Fabiana de Toledo. Cem anos de contradição. Guerras e conflitos do século 20,
2009. p. 4.
107
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura e trauma: um novo paradigma. In: ____. O local da
diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. 2005. p. 63.
70
Segundo o autor, o cronista deve voltar-se para uma narrativa dos acontecimentos
sem distinção entre os grandes e os pequenos eventos, sem privilegiar uma determinada ideologia ou deixar esquecidas as vozes dos oprimidos. Conforme Benjamin,
“nada do que um dia aconteceu no passado pode ser considerado perdido para a
história”108, o sofrimento do passado de uma nação deve ser não só recuperado, mas
conhecido no presente para só então mudar o que precisa ser mudado a fim de construir um futuro sem cometer os mesmo erros. Como complementa,
[a]rticular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como
ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminescência, tal como
ela relampeja no momento de um perigo [...]. O dom de despertar no
passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança
se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer109.
Benjamin postula que todo o sistema é opressor, de modo que a sociedade
passa a ser vítima de uma minoria que conta a sua versão dos fatos e a impõe como
única e verdadeira. Segundo a avaliação proposta pelo autor, não existe cultura sem
barbárie e, por isso mesmo, ele acredita que é através do materialismo histórico que
o passado dos vencidos pode ser conhecido, uma vez que esta possibilidade de narração, contrária ao método proposto pelo positivismo, relata uma outra versão da história oficial a contrapelo110.
Na tese IX do ensaio Sobre o conceito da história, o crítico frankfurtiano representa metaforicamente sua teoria a respeito do olhar que se deve ter para a narração
da história. Nessa tese, ele descreve um quadro de Paul Klee, intitulado Angelus Novus (ver anexo à pág. 156), o qual mostra um anjo completamente desfigurado, de
olhos escancarados, boca dilatada e asas abertas, tendo seu rosto voltado para o
passado, vendo o acumular de ruínas como resultado de uma catástrofe:
[o]nde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos
e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e
108
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política.
1994. p. 223.
109
Idem. Ibidem. p. 224-225.
110
Idem. Ibidem. p. 225.
71
prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao
qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o
céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso111.
Com base nessa imagem do Angelus Novus, que volta seu olhar para trás,
entende-se que o passado da civilização não pode ser concebido livre de tragédias e
barbáries, mas encarado como catástrofe. O olhar do anjo chama a atenção para a
necessidade de se observarem os escombros do passado como um acúmulo de ruínas e tentar perceber, através desse amontoado catastrófico, aqueles eventos que
ficaram escondidos sob os escombros da história oficial. Para Benjamin, o método
proposto pelo historicismo positivista torna-se insustentável diante do assombro que
acometeu o século XX.
Com isso, reforça-se a necessidade de as vítimas das catástrofes históricas
darem testemunho de seu passado de modo a se resgatarem das ruínas aquelas vozes soterradas e silenciadas. Como resultado, tem-se uma nova concepção da história que, segundo alguns críticos, pode e deve ser avaliada sob a perspectiva do trauma. É possível, ainda, que, pelo fato de a voz testemunhal não se referir a um relato
universalizante, mas a uma posição específica, ela situa seu interesse político em
contrariedade ao autoritarismo, colocando-se em oposição ao discurso oficial e às
repressões institucionais.
Em seu ensaio Experiência e pobreza, Benjamin menciona que, após a Primeira Guerra Mundial, grande parte dos soldados sobreviventes, ao retornarem a
seus países, apresentavam um comportamento muito diferente em relação ao que
tinham antes de partir. O ponto comportamental mais crítico observado nesses soldados dizia respeito a distúrbios mentais e impossibilidades de elaboração de discursos
racionais acerca das situações vividas nos campos de batalha. A problemática que
gira em torno da organização de ideias no testemunho passa a ser a triste característica e sinal do desconcerto mental do sobrevivente, isto é, da testemunha112.
É Freud quem, através de seus estudos psicanalíticos, irá jogar luz a esse
campo do desconcerto mental do sujeito que passou por algum tipo de situação
traumática. Em suas Conferências introdutórias sobre a psicanálise (1915-1917), es111
Idem. Ibidem. p. 226.
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 1984. p.
114-115.
112
72
crita em plena Primeira Guerra Mundial, o psicanalista direciona sua atenção às neuroses traumáticas dos soldados e sobreviventes da guerra, observando que essas
vítimas apresentam
fixação no momento do acidente traumático que está na sua base.
Esses doentes repetem nos seus sonhos regularmente a situação
traumática. Quando ocorrem ataques de tipo histérico, que permitem
uma análise, percebe-se o ataque correspondente a uma total transposição naquela situação. É como se esses pacientes não tivessem
se desvencilhado a situação traumática, como se ela estivesse diante
deles como uma tarefa (Aufgabe) não dominada e nós aceitamos
com toda seriedade esse ponto de vista113.
É, em 1920, contudo, através do seu ensaio Para além do princípio de prazer,
que esse estudo das neuroses pós-guerras é enriquecido plenamente ao ser desenvolvido sob a reflexão sobre as pulsões. Nessa etapa, Freud reúne uma série de elementos capazes de dar conta dos acontecimentos traumáticos oriundos das catástrofes. Nesse texto, o psicanalista aborda a relação existente entre o trauma e o pavor
(“schreck”, como ele denomina), implicando, também, a ruptura da “prontidão angustiada” do indivíduo, uma espécie de angústia positiva que o prepara para o desconhecido. Em Freud, o trauma é caracterizado como uma fixação psíquica que permanece presa à situação de ruptura, sempre retornando simbolicamente ao evento causador desse trauma, seja através de seus pensamentos involuntários ou através de
imagens oníricas: “é como se esses pacientes não tivessem findado com a situação
traumática, como se ainda estivessem enfrentando-a como tarefa imediata ainda não
executada”114.
Através de tais observações, Freud apresenta seu conceito de experiência
traumática, concluindo ser a que, “em curto período de tempo, aporta à mente um
acréscimo de estímulo excessivamente poderoso para ser manejado ou elaborado de
maneira normal, e isto só pode resultar em perturbações permanentes da forma em
que essa energia opera”115. O fato de a situação causadora da neurose traumática
ser algo novo – algo para o qual o sujeito não estava preparado para enfrentar, como,
113
Extraído de FREUD, Sigmund. Freud-Studienausgabe. 1970. p. 274. Conforme tradução de
Rosani Ketzer Umbach.
114
FREUD, Sigmund. Fixação em traumas – o inconsciente. In: ____. Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 1976a. p. 323.
115
Idem. Ibidem. p. 325.
73
por exemplo, desastres ferroviários, acidentes que envolvem risco de vida, guerras116
– faz com que esse indivíduo não saiba como lidar com esses acontecimentos, que
passam a ser internalizados, mas não compreendidos ou simbolizados por ele. Essa
premissa, de acordo com Freud, justifica tanto o constante retorno mental à cena
traumática por parte do sujeito quanto a sua dificuldade para organizar de forma coerente e lógica seu discurso.
Seligmann-Silva, ao fazer uma releitura de Bohleber, observa que o trauma é
caracterizado pelo enfraquecimento da capacidade de organização dos traços mnemônicos nos representantes objetais da mente do sujeito traumatizado. Os fatos vividos não são reconhecidos como parte do ego, a capacidade de representação interna
falha. Com isso, ocorre o registro, mas não a representação, isso porque o trauma
representa “uma espécie de quisto autônomo que representa um núcleo duro resistente à simbolização e ao significado”117. Baseando-se nos estudos de Freud, o crítico brasileiro classifica o trauma como uma incapacidade de recepção de um evento
extremo e sem qualquer limite. Ele é visto como algo desprovido de forma e, sendo
assim, a repetição da cena traumática é recorrente no sobrevivente. Isso acontece
uma vez que o trauma está diretamente ligado tanto ao choque quanto ao fato de ser
um “distúrbio de memória no qual não ocorre uma experiência plena do fato vivenciado que transborda a nossa capacidade de percepção”118.
De acordo com essas proposições, o campo sobre o qual a literatura do trauma se debruça apresenta-se dúbio, pois, de um lado, impera a necessidade de narrar
uma experiência vivida, de outro, tem-se a percepção da dificuldade para articular a
linguagem perante o conjunto de fatos a serem contados, muitas vezes inenarráveis,
justamente pelo seu caráter excepcional e, por vezes, inverossímil. O testemunho,
segundo Seligmann-Silva, apresenta-se sob o signo da simultânea necessidade e
impossibilidade119, devido ao excesso de realidade testemunhado que, por vezes, ao
apresentar-se tão imponente, o indivíduo não consegue simbolizá-lo verbalmente,
causando a ruptura entre evento e linguagem. A lacuna “impreenchível” que passou a
existir entre a experiência traumática e sua narração confirma que um possível relato
de tal experiência somente será possível de materialização – ainda que parcial e pro116
FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. In: ____. Obras psicológicas completas.
1976b.
117
SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença. 2005. p. 71.
118
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. In: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANNSILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação. 2000. p. 85.
119
SELIGMANN-SILVA, Márcio. O testemunho: entre a ficção e o “real”. In: SELIGMANN-SILVA,
Márcio (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 46.
74
blemática – através da ficção. Por meio da ficção, o sobrevivente do choque traumático encontra um modo de tentar permanecer vivo e estabelecer relação com os outros
e com a sociedade. A escrita de suas memórias passa a ser uma forma de guardar e
lembrar a experiência vivida.
Néstor A. Braunstein, ao discutir a questão do testemunho à luz do trauma, filia-se à ideia de que, na situação traumática, o sujeito é alguém que atravessou uma
situação na qual poderia ter morrido, mas não o fez. Em virtude disso, tem-se um sobrevivente, “[u]m morto potencial que apesar disso continua vivendo. Alguém que vive
além do momento em que deveria ter morrido. Está ‘entre duas mortes’. Uma que já
passou e outra que está por chegar”120. Para Braunstein, o trauma é um acontecimento que divide a vida em duas etapas, antes e depois do trauma, pois o sujeito que
sobreviveu depois já não é mais o mesmo de antes, mas um outro que ficou em seu
lugar, portando seu nome e suas memórias.
Para Cathy Caruth, o trauma, além de ser apresentado como uma patologia,
assim como observado por Freud, é, em sua definição genérica, uma resposta a um
evento violento inesperado ou arrebatador, que não é inteiramente compreendido
quando acontece, retornando mais tarde em flashbacks, pesadelos e outros fenômenos repetitivos121. A autora acredita que o trauma não pode ser considerado uma ferida no corpo, uma cicatriz que pode ser curada e desaparecer com o passar do tempo, mas uma marca deixada na memória eternamente. Para a crítica, o fato de o sobrevivente ter passado por experiências inexplicáveis e inverossímeis é o que ocasiona na memória essa ferida aberta que sempre irá retornar incessantemente – e, agora, comungando das proposições de Freud e Seligmann-Silva – através de pensamentos, ações repetitivas, pesadelos, dificuldade de assimilação dos acontecimentos,
organização ilógica e até mesmo através de silêncios à mente do sobrevivente.
A propósito de tais ponderações, Caruth complementa seu pensamento afirmando que, na maioria das vezes, o sobrevivente enlouquece, pois não consegue
superar a dor do trauma e o estágio da loucura, algo que acaba corrompendo a própria identidade do sujeito. A loucura, portanto, passa a ser o correlato do trauma para
o qual o sujeito não conseguiu encontrar ou organizar uma linguagem capaz de definir tal experiência. “Enlouquecer é ser submetido à angústia e ficar prisioneiro do uni120
BRAUNSTEIN, Néstor. Sobrevivendo ao trauma. s. d. p. 1.
CARUTH, Cathy. Modalidades do despertar traumático (Freud, Lacan e a ética da memória). In:
NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação. 2000 p.
111-120.
121
75
verso do não sentido, em que nossa linguagem fica aquém da possibilidade de interpretar o que experimentamos”122.
Na literatura de testemunho enquanto narrativa do trauma, encontra-se, como
um dos principais expoentes representativos dessa manifestação traumática e consequentemente enlouquecedora, o relato testemunhal de Primo Levi, sobrevivente da
Segunda Guerra Mundial. Primo Levi, enquanto testemunha dos campos de concentração nazistas, apresenta em seus relatos uma complexa combinação de perplexidade e necessidade de fala. Seu trabalho está pautado na dura batalha entre memória e esquecimento, uma vez que o reencontro com o que foi vivido pode trazer, em
seu interior, um risco de repetição do sentimento de dor, pois o testemunho nada
mais é do que narrar a proximidade da morte.
Com isso, trava-se a necessidade de rememorar com o intuito de organizar a
mente e entender a experiência vivida como forma de se firmar um compromisso com
aqueles que já não podem mais falar. Jaime Ginzburg argumenta que a escrita do
sobrevivente sempre estará vinculada à memória daqueles que não sobreviveram e,
por isso, é uma modo de dar “túmulo aos mortos”, para que não sejam esquecidos.
Isso reforça a necessidade de narrar como uma forma de compromisso moral com
aqueles que já não podem mais fazê-lo. O registro ficcional do sobrevivente se faz
necessário como condição elementar na tentativa de elaboração de suas vivências e,
em função disso, o autor acredita que estudar a literatura de testemunho implica diretamente uma noção de linguagem intrínseca ao trauma. A escrita não pode ser concebida na literatura de testemunho como lúdica, mas comprometida com o sofrimento
e seus fundamentos, mesmo que estes sejam por vezes obscuros e repugnantes123.
“[E]ntre o impacto da catástrofe e os recursos expressivos, pode haver um abismo intransponível, de modo que toda formulação pode ser imprecisa ou insuficiente”124. Para tanto, o valor da narrativa do trauma muitas vezes não está em sua capacidade de ser comprovada, como se fosse posta à prova em termos científicos, mas é
a representação da tentativa de resgate da identidade do sujeito da enunciação, que
fora perdida em função do trauma. Sem identidade, o sobrevivente faz uso da narração como forma de atribuir um sentido não antecipadamente definido e, por isso, a-
122
BIRMAN, Joel. O lugar do psíquico na experiência da loucura. Ciências Hoje, 1983. p. 30-36.
GINZBURG, Jaime. Linguagem e trauma na escrita do testemunho. Conexão Letras, 2008.
124
Idem. Ibidem. p. 61.
123
76
presenta um “discurso instável, híbrido, em que os conflitos sociais são incorporados
aos fundamentos expressivos”125.
Diante da impossibilidade de narrar o evento traumático, Seligmann-Silva, em
seu ensaio Testemunho de Shoah e literatura, enfatiza a singularidade existente na
catástrofe com base em duas proposições que se opõem constantemente, a saber,
por um lado, a descrição sempre será parcial, e, por outro, ela nunca poderá dar conta da experiência do sobrevivente. Ou seja, cada sujeito que entrou em choque com a
barbárie a recebeu de uma forma: para cada um, o que se passou foi único. Já a linguagem, em contrapartida, é concebida a serviço do universal e deixa de lado o particular, não dando conta de suprir a carência da representação. O crítico ainda menciona desabafos acerca da carência de linguagem, observados em obras como a de
Ruth Klüger, Paisagens da memória: autobiografia de uma sobrevivente do holocausto, na qual a narradora postula que, diante de tamanha barbárie, “justamente
sobre tais vivências extremas pode-se falar impressionantemente pouco. A fala humana foi criada e pensada para outra coisa”126.
Seligmann-Silva, ao citar Sarah Kofmann, comenta que em seu livro Paroles
suffoquées, essa autora menciona: “Sobre Auschwitz e depois de Auschwitz, não é
possível narração, se por narração entende-se: contar história de eventos fazendo
sentido”127. Por outro lado, o evento existe e precisa ser narrado porque o sobrevivente sente necessidade de contar e porque os crimes precisam ser registrados. Contudo, a escrita, para o sobrevivente, assume um papel duplo segundo Seligmann-Silva,
pois “ela é disposição, inscrição, memória no sentido de recolhimento e armazenamento de dados, mas é também um ato de separação desta memória. No ato de escritura o passado é como que passado adiante”128. Ou seja, a testemunha, no momento de narrar sua experiência, ao transmitir o que viveu, sente uma espécie de
alívio por fazer isso. O peso da carga traumática é parcialmente diminuído no momento em que divide com o outro e com a sociedade seu sofrimento de fato vivido e
aquele revivido no ato de narrar sua experiência.
Ainda de acordo com Seligmann-Silva, entende-se que o sobrevivente de um
evento traumático não é alguém que vê o que poderia ser trivialmente aceito pelo
senso comum, mas alguém que está diante de uma excepcionalidade que exige ser
125
GARCÍA, Gustavo V. La literatura testimonial latinoamericana. 2003. p. 50.
In SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho da Shoah e literatura. 2007. p. 5.
127
Idem. Ibidem. p. 6.
128
Idem. Ibidem. p. 7.
126
77
relatada. No entanto, o fato de ter atravessado um sofrimento desmedido abala a relação que existia entre a língua e o pensamento, de modo que a linguagem passa a
ser concebida como traço indicativo de uma ausência. O sobrevivente da experiência
traumática não possui em sua memória a imagem total do ocorrido, mas episódios
em fragmentos. Em função disso, a experiência traumática não pode ser assimilada
por completo pela vítima, gerando a repetição constante da cena que ocasionou o
trauma129.
Assim, em concordância com Seligmann-Silva, infere-se que aquele que testemunha defronta-se a cada dia com a árdua e ambígua tarefa de rememorar a tragédia e enlutar os mortos. Tarefa essa que o coloca sempre frente a frente com a
ferida aberta do trauma, desencadeando a resistência e a tentativa de superação,
bem como a busca por um consolo completamente inalcançável130:
[a]quele que testemunha sobreviveu – de modo incompreensível – à
morte: ele como que a penetrou. Se o indizível está na base da língua, o sobrevivente é aquele que reencena a criação da língua. Nele
a morte – o indizível por excelência, que a toda hora tentamos dizer –
recebe novamente o cetro e o império sobre a linguagem131.
Diante disso, observa-se que o sobrevivente encontra na imaginação um meio
para a narração, ou seja, a “imaginação é chamada como arma que deve vir em auxílio ao simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma”132. Tal premissa se
justifica pelo fato de que o sujeito traumatizado não consegue em hipótese alguma
relatar de modo íntegro e linear os acontecimentos sobre o trauma tendo em vista
que as lembranças são recorrentes, fazendo-o reportar-se sempre ao momento traumático e sofrer uma vez mais. Entre o real traumático e o ato de narrar, sempre existirá uma distância muito grande capaz de impossibilitar a narrativa linear, interromper a
sequência lógica do pensamento e transportar o narrador continuamente ao seu interior ligado ao passado, passado este nunca plenamente realizado.
Perante tais considerações, cabe destacar um trecho da obra brasileira de Olga Papadopol, que narra sua sobrevivência após a permanência no campo de con129
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão. In: ____ (Org.). História, memória e
literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 47.
130
SELIGMANN-SILVA, Márcio. O testemunho: entre a ficção e o “real”. In: ____ (Org.). História,
memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 52.
131
Idem. Ibidem. p. 52.
132
Idem. Ibidem. p. 70.
78
centração. No livro, a narradora se dá conta da impossibilidade para relatar o vivido
diante do abalo traumático: “Quero me convencer de que a melhor forma para poder
viver é tentar esquecer, mas como encontrar a fórmula para apagar as lembranças?
O esquecimento é de fato impossível”133. Para o sobrevivente, o fato de não ser capaz se livrar das memórias do trauma bem como ter dificuldade de narrar tudo o que
precisa ser externalizado faz com que, muitas vezes, o próprio sobrevivente entre em
choque consigo mesmo a ponto de se questionar e ficar em dúvida quando da credulidade de seus próprios fatos que são narrados.
As palavras não são suficientes para dar conta do relato do trauma. Em razão
disso, o sujeito traumatizado sufoca-se entre a insuficiência da linguagem e a necessidade de narração. Tal necessidade, a rigor, vai muito além de uma simples transmissão de informações. Ela se compromete em se livrar, mesmo que parcialmente,
do peso do passado, sepultando os que morreram. Assim, a narração é tomada como
uma possibilidade de denúncia, como um legado para as próximas gerações e, por
fim, como um sinal humanitário capaz de servir à memória, no intuito de evitar uma
possível repetição de semelhantes atrocidades.
Em suma, pode-se compartilhar das ideias dos críticos mencionados de que
não há palavras para dizer tudo o que se quer. Entretanto, o que ocorre é um esforço
de se dizer o indizível. Isso pode acontecer e ser observado, nas obras literárias, através das fissuras da narrativa, das pausas, dos fragmentos, das recorrentes repetições, das reticências, dos silêncios interpostos pelo narrador, através das frases curtas, da não-linearidade, bem como de tantos outros recursos estéticos notados nas
narrativas do trauma. Com isso, essa relação de impossibilidade liga-se ao compromisso do testemunho que é de resgatar o que existe de mais terrível no “real” para
apresentá-lo, mesmo que para isso precise da literatura e de recursos estéticos que
somente a ela são permitidos, sendo talvez essa a única condição possível de narrar
encontrada pelo sujeito traumatizado.
133
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho da Shoah e literatura. 2007. p. 11.
79
3 MEMÓRIA, MELANCOLIA E FRAGMENTAÇÃO EM
QUATRO-OLHOS E EM CÂMARA LENTA
Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa língua
não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um
homem. Num instante, por intuição quase profética, a realidade
nos foi revelada: chegamos ao fundo. Mais para baixo não é possível. Condição humana mais miserável não existe, não dá para
imaginar. Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos,
até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão – e, se nos escutarem, não nos compreenderão. Roubarão também o nosso nome,
e, se quisermos mantê-lo, deveremos encontrar dentro de nós a
força para tanto, para que, além do nome, sobre alguma coisa de
nós, do que éramos.
(É isto um homem? Primo Levi)
3.1 Memória e esquecimento em Quatro-olhos e Em câmara lenta
E pela primeira vez tentou captar algumas lembranças da vida
passada – mas o vácuo é enorme, o vazio, um túnel sem saída.
[...] Se ao menos pudesse pensar no passado. Mas tudo parecia
estar em branco para trás... Os guardas passaram uma esponja
no meu passado, lavaram a minha mente – só tenho que suportar
as algemas, o escuro, o simples prato de sopa incolor...
(Os que bebem como cães, Assis Brasil)
A palavra memória, de origem latina, deriva de menor e oris, e significa “o que
lembra”, ligando-se, dessa forma, ao passado; logo, ao já vivido. Em nível individual,
a memória é a capacidade de um conjunto de funções psíquicas que possibilitam
conservar certas informações, graças às quais o homem pode atualizar impressões
ou informações passadas, ou que ele concebe como passadas134. Henrique Serra
Padrós, ao fazer releitura de Schacter, aponta para o fato de que, ao lembrar, o sujei134
LE GOFF, Jacques. História e memória. 1996. p. 423.
80
to pode libertar-se dos imperativos imediatos do tempo e do espaço, percebendo,
novamente, o passado, e imaginando o futuro à vontade135.
Fato é que nem sempre (re)visitar o passado, através da memória, foi uma
tarefa fácil de ser realizada. As dificuldades impostas pela censura, como repressão e
violência, através de torturas físicas e psicológicas, durante o período da Ditadura
Militar no Brasil, foram algumas das estratégias utilizadas a fim de agir como barreiras interpostas entre as memórias do pretérito e as ações do presente, e, assim, impedir que lembranças de um passado sombrio fossem conhecidas. Através da repressão, punição, violência moral e física, o governo militar inibia toda e qualquer
manifestação artística que podia oferecer algum tipo de perigo à ordem imposta pelo
regime, bem como à versão de história que a ideologia dominante pregava. Durante
as duas décadas em que os militares permaneceram no poder, o povo brasileiro pouco ou nada sabia a respeito do sistema de “interrogatórios” aplicado nos porões do
país, tampouco das reais versões dos desaparecimentos repentinos de cidadãos
considerados subversivos.
É somente a partir de 1979 que essa realidade começa a mudar ou, pelo menos, começa a ser – mesmo que de forma muito penosa – divulgada. Através da
promulgação da lei da Anistia e com o retorno de muitos exilados ao país, inicia-se
um longo processo de relatos de torturas e de maus-tratos sofridos pelos sobreviventes. Testemunhos esses que vieram a público através de um significativo número de
obras de ficção consideradas autobiográficas ou memorialísticas, assim como é o
caso de Quatro-olhos, de Renato Pompeu, e Em câmara lenta, de Renato Tapajós.
O romance Quatro-olhos, de Renato Pompeu, foi publicado em 1976, logo
após a divulgação da Política Nacional de Cultura do governo Ernesto Geisel. Essa
estratégia política, na prática, configurava-se na manutenção da censura prévia já
instaurada no país e aderia a métodos de repressão ainda mais incisivos que aqueles
inaugurados nos primeiros anos do regime. Diante de tal realidade, o livro de Pompeu, ao ser publicado, não só se posiciona contrário a essa política e a suas respectivas práticas violentas, como também burla a extrema vigilância imposta pela censura.
De modo muito análogo a Quatro-olhos, a obra Em câmara lenta, publicada em
1977, apresenta-se comprometida com a denúncia acerca das atrocidades empreendidas durante o regime militar, bem como radica em torno da necessidade de reme-
135
PADRÓS, Enrique Serra. Usos da memória e do esquecimento na história. Letras, 2001. p. 80.
81
morar o passado a fim de contribuir para a (re)construção e para o aclaramento de
uma outra versão da história da sociedade brasileira.
Nessas obras, a constante tentativa de recuperação do passado, na medida
em que atenta para a história dos vencidos, configura-se também no ataque ao inimigo que oprime e faz calar. Sendo assim, tais narrativas não se restringem à mera denúncia do abuso de poder, ratificado através das barbáries e das atrocidades cometidas e por elas reveladas. Elas vão muito além, pois lutam, com um esforço descomunal, pela busca e pela recuperação das memórias apagadas, com o compromisso
não só de levar ao conhecimento da sociedade o que se passou, mas, além disso,
como uma espécie de obrigação com aqueles sujeitos que passaram pela mesma
experiência, mas que já não podem mais falar, nem exercer seu direito civil de deixar
seu próprio depoimento à sociedade.
A partir de tais apontamentos, nota-se que, em narrativas memorialísticas como Quatro-olhos e Em câmara lenta, oriundas de vivências traumáticas dos tempos
da Ditadura Militar no Brasil, equilibram-se dois objetivos básicos por parte de seus
escritores para com o ato de narrar. Trata-se da necessidade de elucidação de acontecimentos repressivos negados pelos órgãos do governo militar e da prestação de
contas para com a própria consciência, numa tentativa de avaliação dos erros e acertos das ações decorrentes da postura antiditatorial. Com isso, para que aconteça a
narração dos fatos, os narradores precisam retornar ao ocorrido, esmiuçando os fatos
e atribuindo-lhes valores específicos. A rememoração, por sua vez, transporta o escritor para o seu passado e o coloca novamente diante daquilo que o atormentou e que,
no momento da rememoração, torna a torturá-lo, fato esse pelo qual muitos escritores
deixaram de registrar suas experiências.
Renato Franco, ao discorrer acerca de Quatro-olhos, enfatiza a originalidade
do livro no que diz respeito à problemática do esquecimento. Para o autor, a trama da
obra direciona para o duplo sentido da narrativa: por um lado, a tentativa de reescrever o livro; por outro, a sua dificuldade para lembrar, o que representa, também, a luta
pela recuperação da identidade do protagonista136. O duelo que o protagonista trava
na obra para reconstituir o seu original perdido é o mesmo duelo travado na tentativa
de recuperar a memória de sua vida, unir o presente ao passado e, assim, integrar-se
novamente à sociedade. Segundo a proposição de Franco, “o alvo secreto do narra136
FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio
(Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 366.
82
dor não é mais recuperar o material esquecido, o saber e a experiência nele eventualmente contidos, mas o de comunicar que algo de fundamental foi esquecido”137.
Com base na leitura de Quatro-olhos, é possível inferir que seus aspectos
constitutivos, estéticos e temáticos concorrem para o desvelamento e para a denúncia de práticas ligadas ao esquecimento, bem como buscam revelar a conturbada
relação entre memória e esquecimento. A tentativa de rememoração, nesse romance,
é evidenciada já na primeira página da narrativa, da mesma forma que a imponente
dificuldade para a realização de tal atividade:
[p]erdi os originais há muitos anos, em circunstâncias que não me
convém deixar esclarecidas. Do trabalho, tão importante, guardo apenas memória vaga; de que havia, indubitavelmente, um tema, ou
vários temas, e mesmo um ou outro personagem, mas não consigo
reproduzir um único gesto, nenhuma situação ou frase. Às vezes,
sinto dúvidas e hesitações138.
Diante da percepção das poucas memórias ou das “memórias vagas”, como o
próprio protagonista nomeia sua falta de conteúdo memorialístico, fica evidenciado
que algum tipo de evento significativo aconteceu e abalou decisivamente o narrador,
de modo que todo o conteúdo foi esquecido. Por sua vez, o fato de ele não querer
expor, inicialmente, as circunstâncias em que perdeu seu romance remete para o
pensar na censura e consequentemente na violência provinda dela. Ou seja, o ato de
confiscar o livro sugere que algo de importante ou de ameaçador ao poder dominante
poderia estar presente naquela obra. Sendo assim, ao fazer com que ela desapareça,
pode-se inferir que tal atitude é mais uma estratégia por parte dos censores para apagar a história nela contida, silenciá-la a fim de que não permaneça nenhuma versão da realidade além daquela contada pelo poder dominante. Diante disso, percebese o esforço do narrador-protagonista em tentar vencer o esquecimento supostamente imposto. Entretanto, fica claro também que seu empenho em lembrar não é recompensado pela sua memória, pois ele não consegue sequer afirmar com clareza
quanto à existência de um ou mais temas em seu romance, tampouco da existência
ou não de personagens. Tamanha é sua dificuldade para lembrar, que o protagonista,
por vezes, chega a duvidar de si próprio, se realmente foi capaz de produzir, em um
determinado momento, uma obra-prima como ele acreditava.
137
138
Idem. Ibidem. p. 367.
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 15.
83
De maneira similar, observa-se, em Em câmara lenta, os problemas de memória que atingem o protagonista. Em Quatro-olhos, o narrador luta constantemente
contra o esquecimento, numa tentativa de rememoração de um tempo pretérito, através das vagas reminiscências desse passado que vêm à sua mente e trava uma dura
batalha, tentando reconstruir e entender esse tempo e assim recuperar sua identidade perdida. Em contrapartida, em Em câmara lenta, tem-se um narrador que tenta,
por meio da memória, reavaliar o passado marcado pelo fracasso e também chegar à
compreensão deste e dos acontecimentos bárbaros ocorridos em seu meio e que o
perturbam constantemente. Nessa narrativa, a memória do protagonista, embora muito fragmentada, apresenta-se menos turva que a de Quatro-olhos, porém, não menos problemática, assim como pode ser observado no seguinte fragmento:
[é] muito tarde.
A imagem já se perdeu no tempo, mas está bem viva – como um
corte de navalha [...].
É muito tarde.
Mesmo que todas as informações reconstruam os fatos, mesmo que
saiba exatamente quem estava lá, mesmo que o ódio atravessado
na garganta possa encontrar rostos a serem destruídos. Não foi apenas uma pessoa que morreu, foi o tempo. De repente o mundo está cheio de algodão, espesso e pegajoso, as palavras não fazem
mais sentido porque não nomeiam coisas – apenas soam como ecos, prolongados por ouvidos acostumados a classificá-los. O tempo
acabou, mas os gestos continuarão a ser feitos, repetidos e aperfeiçoados139.
Nota-se que o protagonista conserva mais nítida em sua mente a memória do
passado, conforme se evidencia pelo retorno que faz no tempo de sua existência, um
tempo em que, embora pareça distante, permanece preso ao seu presente e em sua
memória. Essa percepção de um tempo que já se foi revela não só o seu compromisso em relatar tal passado, mas principalmente a sua impotência em tratar de um tempo que não pode ser consertado no presente. É possível inferir, através do discurso
do narrador, sua consciência em relação ao passado e as marcas deste deixadas,
que impedem o presente de seguir seu curso normal. A tentativa de compreender e
reavaliar o passado através da memória confere ao narrador a tomada de consciência de que, mesmo que ele consiga obter todas as informações possíveis e reorganizar, através de sua memória, tudo o que se passou, mesmo que encontre os culpados pelas atrocidades e violências cometidas, jamais conseguirá encontrar linguagem
139
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 13-15.
84
suficiente para expressar todo o sentimento de perda que restou em sua memória.
Para o narrador, somente ficará aprisionada em sua memória a presença de gestos e
de ações incompreensíveis.
Enrique Serra Padrós, ao discorrer sobre os usos da memória enquanto reconstrução do passado histórico, afirma que, mesmo que a memória seja composta
por experiências pessoais, as lembranças sempre serão o resultado da interação com
outras pessoas. Dito em outros termos, a memória é construída ligada às lembranças
das experiências e dos laços afetivos de pertencimento a um determinado coletivo
social, e tais laços, a rigor, irão produzir, induzir e reforçar as lembranças comuns à
memória social. Sendo assim, ocorrerá o surgimento de diversos grupos sociais,
marcando e reforçando a consciência de fronteiras socioculturais vinculadas ao reconhecimento do seu pertencimento e de sua identidade. Ao considerar a memória como uma construção, o autor afirma que “ela é perpassada por mediações que expressam relações de poder hierarquizadas de acordo com os interesses dominantes,
sejam eles aspectos de classe, políticos, culturais, etc”140.
Nessa linha de pensamento, o autor acrescenta que a capacidade de lembrar
possibilita a preservação dessa base comum de elementos – sejam eles políticos,
sociais ou culturais – transformados em referência e identidade nas relações sociais.
O ato de lembrar preserva as experiências históricas para as novas gerações. Assim,
a ação de lembrar, realizada por um determinado grupo social ou por um indivíduo
desse grupo, a fim de transmitir a outras gerações esse legado de experiências acumulado, muitas vezes, não é condizente e tampouco agrada à ideologia dominante
responsável pela história positivista. Tal ação, por sua vez, irá fazer com que a elite
dominante lance mão de estratégias para “apagar” da memória de determinados indivíduos o que convém ser esquecido ou desconhecido da sociedade141.
Segundo Jacques Le Goff, uma das grandes preocupações das classes, dos
grupos e dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas, é tornarem-se detentores da memória e do esquecimento142. Para tais classes vinculadas ao
poder, lembrar o que lhes é conveniente assim como deter o esquecimento e os silêncios da história resumem-se também a formas de manipulação da memória coletiva. O esquecimento, os silêncios e os não-ditos podem ser formas de ocultar o que
não se quer revelado. Diante disso, é válido lembrar que o desconhecimento é tam140
PADRÓS, Enrique Serra. Usos da memória e do esquecimento na história. Letras, 2001. p. 81.
Idem. Ibidem. p. 80-83.
142
BURKE, Peter. Variedades de história cultural. 2000. p. 426.
141
85
bém uma forma de apagamento da memória, pois impede o posicionamento consciente e faz com que o sujeito permaneça na inércia do esquecimento coletivo143.
Com base na problemática do apagamento da memória, nota-se, em Quatroolhos, que, através do trabalho de reescritura, a tentativa do narrador-protagonista é
justamente resistir a essas formas de supressão da memória. Para tanto, centra-se
na denúncia da situação social que assombrava o país, referindo-se não só à violência física, mas também à violência moral, em relação às quais ele se sente vitimado.
Por meio da narração, o protagonista busca um espaço em que possa criar um
novo mundo menos nebuloso que aquele que estava à sua volta. O mundo que ele
procura criar em sua obra é aquele em que pessoas com mentalidade e postura crítica têm coragem de enfrentar as adversidades tais como se apresentavam anteriormente. Por outro lado, a própria tessitura do texto mostra como a sociedade da época
ditatorial encontrava-se perdida e carente de informação referente à real situação do
país, e como as pessoas eram alienadas em relação à sua realidade, bem como confirma a repressão quanto aos setores educacionais como escola e universidades, que
não repassavam nem se preocupavam com o desenvolvimento do senso crítico dos
cidadãos:
[m]as quando conto essas coisas me parece viver fantasias, o livro
cresce a meus olhos como muito mais real do que minha pobre vida.
Seus personagens eram muito mais complexos, tinham muito mais
domínio sobre as condições circundantes do que eu jamais tive na
escola [...]. Tinha também dificuldades para acompanhar as conversas, já que citavam muitos nomes de autores que eu desconhecia.
Me espantava como podiam ser finos, esses revolucionários, o
quanto importante para eles era a pronúncia correta de nomes estrangeiros [...]. Nessas ocasiões meus dentes doíam em riso coprofílico a alguma observação esculachada, de que eram pródigos os
presentes. Mas me sentia mais a vontade conversando com meu
amigo funileiro, colega do primário que eu encontrava às vezes em
sua oficina – ou então trocando ideias com vendedores de algodãodoce ou artistas de circo mambembe. Em casa, afagava os objetos,
cinzeiros de cristal, sofá de couro, aparelhos de som de brilho opaco, punha algum licor rosa num copo fino para combinar e me sentia
dono144.
143
Entretanto, mesmo concordando com Jacques Le Goff, cabe fazer uma indagação acerca do
fato de por que, ainda na atualidade, mesmo a classe dominante que já é de certa forma integrada
por pessoas que fizeram parte do grupo dos vencidos de outrora, ainda continua encobrindo,
ocultando e dificultando o acesso aos documentos e aos registros de épocas de violência, como
foi o caso da Ditadura Militar no Brasil.
144
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 100.
86
Observa-se, com essa passagem de Quatro-olhos, como o narrador procura
(re)criar sua obra de modo cuidadoso, bem como imaginar personagens de mentalidade e conhecimento superior às pessoas e a ele próprio. Tal ação, para ele, era algo
tão primoroso e complexo e, por isso, não se equiparava a nada daquilo que tinha
aprendido nos bancos escolares, uma vez que julgava tais conhecimentos alienados
e superficiais.
Quando ele menciona as reuniões com revolucionários, organizadas por sua
esposa e que aconteciam em sua casa, deixa evidente a admiração que tinha com o
conhecimento que demonstravam os militantes e quão grande era sua dificuldade
para entender o que eles falavam nessas reuniões, haja vista que ele não adquirira
formação similar que lhe possibilitasse fazer parte das conversas. Tanto é, que ele
revela sentir-se bem na presença de seu amigo funileiro – colega de primário, como
enfatiza – ou, então, conversar com vendedores de algodão-doce ou artistas de circo.
No entanto, a condição de pobreza intelectual, com que se apresenta o narradorpersonagem, é ornada com a presença de objetos fúteis como cinzeiros de cristal,
sofá de couro e aparelhos de som de brilho opaco. Além disso, observa-se a ação de
colocar licor rosa num copo fino, simplesmente para combinar, aludindo, assim, uma
crítica às práticas e costumes burgueses da época, que se sobrepunham aos muitos
interesses sociais.
Em câmara lenta – ao cumprir seu papel de veículo de denúncia contra as
violências praticadas durante o regime militar, mesmo que de forma menos elaborada
e agressiva que Quatro-olhos, mas nem por isso de menor qualidade denunciativa –
trata também da questão da alienação dos sujeitos em relação à conturbada realidade social. Nessa obra, tal problemática refere-se à fracassada organização guerrilheira:
[o]s seis guerrilheiros tinham pela frente uma floresta imensa e desconhecida, armas ineficazes, uma ignorância quase total a respeito
do que queriam fazer. Mas acreditavam [...]
Sonâmbulos de uma ideia grandiosa, meia dúzia de adolescentes
exaustos, cambaleando para explodir um continente145.
145
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 17 e 40.
87
Com base no fragmento, nota-se a presença do grande ideal que nutria os
guerrilheiros, que objetivavam a organização de uma grande guerrilha no norte do
país, em plena floresta amazônica. Esses revolucionários acreditavam que, saindo da
cidade e indo ao campo, iriam conseguir um grande número de adeptos à luta armada contra a Ditadura Militar. Entretanto, não é bem isso o que acontece: o pequeno
grupo de seis guerrilheiros não consegue encontrar pessoas dispostas a unir-se a
eles e a lutar contra o regime imposto. Diante do fracasso da organização guerrilheira, da qual o narrador-protagonista também participou, ele se dá conta de quão ingênuos e sonhadores foram em almejar tal ação:
[a]gora eu sei, sozinhos, fazendo ações sem ir buscar os outros, os
que sabem, os que precisam, os que querem, os que podem, assim
sozinhos nós só poderíamos chegar onde chegamos, acabar um a
um, perder tudo, a vontade, a esperança e viver somente com ódio e
uma amargura [...]. Ele me disse que nesse tempo, dois anos a organização assentou, cresceu [...]. [E]u compreendi de repente uma
verdade simples, óbvia, que eu devia ter sabido sempre, mas é preciso que morra um monte de gente, é preciso sacrifício e sangue pra
se entender uma coisa simples, fácil e óbvia que nem essa, que nem
isso tudo, apenas que é o povo, a massa, o proletariado que faz a
revolução e não nós sozinhos que o que nós temos pra fazer é buscá-los e ensinar, educar, organizar e eles se levantarão e derrubarão
tudo. E nós não entendemos, nem soubemos fazer isso e também
que, para fazer isso, é preciso saber o que ensinar, como organizar
e isso eu não sei, eu só aprendi outras coisas146.
Através da rememoração desse passado em que o pequeno grupo de estudantes pretendia vencer uma legião de militares, ele se dá conta do despreparo e do
desconhecimento que tinham em relação ao sistema político e social em que se encontravam. O narrador entende que não poderiam ter tido outro destino além daquele
que tiveram – em que alguns foram mortos, outros presos e torturados –, pois não
receberam um preparo adequado, não tinham desenvolvido uma organização capaz
de tal atitude. Após um tempo transcorrido, o narrador-personagem entende que o
que eles deveriam ter buscado antes de pegar em armas era conhecimento, era o
contato com pessoas que podiam lhes ensinar o verdadeiro sentido de lutar em prol
de justiça para aí sim levar esse mesmo conhecimento até outras pessoas, até a
grande massa. A desilusão do protagonista radica em torno do quão despreparados
146
Idem. Ibidem. p. 159-160.
88
eram “esses sonhadores”, pois não aprenderam a desenvolver o espírito crítico, viveram alienados do conhecimento capaz de verdadeiramente revolucionar, e só lhes
restou, em atitude desesperada, pegar em armas.
A questão da alienação social em que a grande parte da população vivia emergida encontra seu ápice de denúncia quando o narrador narra a situação em que
viveram quando chegaram a um pequeno vilarejo isolado em meio à floresta amazônica. Nesse relato, o narrador lembra como foi o contato com aquelas pessoas que lá
se encontravam:
[o]s guerrilheiros pararam e o venezuelano começou a falar, um discurso que misturava português e espanhol. Os outros se dispuseram
em círculo em torno dele. Falou da miséria em que os caboclos viviam e os caboclos não sabiam que em sua vida havia miséria. Falou
da exploração a que o povo era submetido e os caboclos sequer imaginavam que fossem explorados ou que pudessem sê-lo: desde
sempre viviam assim. Ele falou ainda da luta para derrubar os opressores, convidando a que aderissem à guerrilha e os caboclos
não sabiam contra quem lutar nem porquê147.
Fica nítido com tal fragmento que, se os próprios estudantes encontravam-se
desorientados e sem preparo para enfrentar o problema da repressão e do regime
militar, quanto mais as pessoas simples que viviam em meio à floresta e distante de
tudo. Pode-se inferir, através de uma passagem como essa, a crítica que o narrador
faz ao próprio sistema político desenvolvimentista que propunham os militares. Ora,
se o país se direcionava para grandes avanços em todos os setores, segundo as
propostas dos militares, como aceitar que pessoas ainda vivessem extremamente
isoladas e alheias a tudo, “ali como a floresta e como o rio [...], presos à terra como
árvores”148. Nota-se que o narrador enfatiza como falaram a essas pessoas sobre a
miséria, sobre a exploração e da importância de lutar contra tudo isso. Entretanto,
parecia que esses indivíduos nada estavam entendendo, pois como sempre haviam
vivido assim, não sabiam que outra vida mais justa e mais digna era possível.
Diante de tais eventos, o trabalho meticuloso a que se propõem os narradoresprotagonistas tanto de Quatro-olhos quanto de Em câmara Lenta representa não
147
148
Idem. Ibidem. p. 41.
Idem. Ibidem. p. 40.
89
um simples lembrar o passado, mas “recordá-lo”149 por meio do processo de escrita
literária. Para tanto, ao se falar da criação literária pautada no resgate da memória,
levam-se em consideração os pressupostos levantados por Maurice Halbwachs, um
dos críticos precursores a defender a ideia de que o resgate da memória individual
sempre estará diretamente interligada à memória coletiva150. Para o autor, a memória
coletiva, enquanto constitutiva da história, somente acontece a partir das lembranças
de cada um dos indivíduos pertencentes a uma determinada coletividade. Dessa forma, a memória individual está sempre relacionada ao meio social, e as lembranças
individuais devem ser entendidas como provenientes e também constitutivas da vida
social.
Michael Pollak, por sua vez, em seu artigo Memória, esquecimento, silêncio,
ao comentar o conceito de memória coletiva tal como proposto por Halbwachs, argumenta que o que este autor propõe, a partir de tal conceito, é não um processo de
seletividade de memórias individuais, mas um trabalho de “negociação” entre memória coletiva e memórias individuais:
[p]ara que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que
eles nos tragam seus testemunhos: é preciso também que ela não
tenha deixado de concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras para que a lembrança
que os outros nos trazem possa ser reconstruída sobre uma base
comum151.
Dessa forma, as memórias individuais, aqui apresentadas através da narração
dos protagonistas de Quatro-olhos e de Em câmara lenta, são entendidas de acordo com a crítica de Halbwachs, uma vez que as lembranças dos narradores, ao se
apresentarem individualmente, são constituídas de acordo com um contexto social
comum. Suas lembranças compõem um quadro dos acontecimentos sociais e coletivos da época, e as memórias de ambos os protagonistas concorrem para a referência
a uma versão (des)conhecida do passado de uma coletividade.
Nos dois romances, as tentativas recorrentes de rememoração do passado
apresentam formas e conteúdos semelhantes entre si, representando, pois, a memó149
Para Benjamin, “lembrança” significa “lembrar” – Andenken –, e “recordar” significa “ter
presente” – Eingedenken. Cf. UMBACH, Rosani Ketzer. Memórias da repressão e literatura:
algumas questões teóricas. In: ____ (Org.). Memórias da repressão. 2008. p. 15.
150
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 1990. p. 32-65.
151
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, 1989. p. 3.
90
ria de uma coletividade diretamente relacionada ao meio social. A referência à violência física e às torturas representa, desse modo, as cíclicas rememorações similares
dessas narrativas, assim como pode ser observado através da seguinte passagem de
Quatro-olhos:
[t]odos estavam condenados à tortura, em ambientes infectos e sujos e poucos protestavam, pois sempre havia a hora de escovar os
dentes, o intervalo das refeições; à noite havia o lazer fabricado vindo de longe, sempre elétrico, e não era proibido urinar. A vida era
suportável nos intervalos das torturas [...]. As torturas eram o caminho concreto para a libertação, pelo menos era o que se comentava.
Antes de chegarem a determinado grau, ou melhor a grau indeterminado, era impossível fazer qualquer coisa. Os graus variavam para
cada um, ou talvez fosse sempre o mesmo grau, alguns o atingindo,
outros não – para o meu amigo funileiro, o momento chegou cedo
demais. Eu particularmente nunca sofri muito, a não ser quando estava fazendo o livro152.
O relato do protagonista deixa evidente como era a realidade da época da ditadura no que se refere às torturas físicas como prática de repressão e silenciamento.
Nota-se a referência ao ambiente caótico a que eram submetidas as vítimas presas.
Contudo, observa-se que o narrador se vale de certa sutileza, mas sem deixar de
lado o sarcasmo, para referir-se à cadeira elétrica, também conhecida como cadeira
do dragão, um instrumento de tortura, que disparava altas descargas elétricas nas
vítimas e era utilizada pela polícia do Brasil, pelo Departamento de Ordem Política e
Social (DOPS) e pelo Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), durante o regime militar. Para referir-se a tal
instrumento, ele faz menção ao lazer que vinha de longe à noite, sempre elétrico, ao
qual não era proibido urinar, remetendo, assim, ao grau exagerado da violência praticada com esses instrumentos. Lembra inclusive como o grau era diferente entre um e
outro preso. Analisando a referência que faz o narrador a respeito dos determinados
graus de tortura a que eram submetidas as vítimas, pode-se entender também que
alguns não resistiam por muito tempo tais práticas violentas e morriam, como no caso
de seu amigo funileiro, ao qual o narrador se refere dizendo que o tempo para aquele
chegou cedo demais, pois não aguentou vivo por muito tempo as torturas.
Em Quatro-olhos, observa-se a denúncia das torturas e das violências praticadas durante a ditadura, geralmente de modo muito sutil, em que o narrador152
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 23.
91
protagonista, na maioria das vezes, usa-se de estratégias discursivas capazes de
disfarçar o tom da denúncia em relação a tais situações. Já em Em câmara lenta, o
testemunho da violência física aparece de maneira mais explícita e audaciosa, conferindo à narrativa um tom desesperador de denúncia perante tais violências:
[c]om um esforço, continuava calada. Eles puxaram-na pelo braço
quebrado, obrigando-a a sentar-se. Amarram-lhe os pulsos e os tornozelos, espancando-a e obrigando-a a encolher as pernas. Passaram a vara cilíndrica do pau-de-arara entre seus braços e a curva interna dos joelhos e a levantaram, para pendurá-la no cavalete.
Quando a levantaram e o peso do corpo distendeu o braço quebrado, ela deu um grito de dor, um urro animal, prolongado, gutural,
desmedidamente forte. Foi o único som que emitiu durante todo o
tempo [...]. Os choques incessantes faziam seu corpo tremer e se
contrair, atravessavam-na como milhares de punhais e a dor era tanta que ela só tinha uma consciência muito tênue do que acontecia.
Os policiais continuavam a bater-lhe no rosto, no estômago, no pescoço e nas costas, gritando palavrões entremeados por perguntas e
ela já não poderia responder nada, mesmo que quisesse [...]. Um
deles enfiou na cabeça dela a coroa-de-cristo: um anel de metal com
parafusos que o faziam diminuir de diâmetro [...]. O policial começou
a apertar os parafusos e a dor a atravessou, uma dor que dominou
tudo, apagou tudo e latejou sozinha em todo o universo como uma
imensa bola de fogo [...]. Quando os ossos do crânio estalaram e afundaram, ela já havia perdido a consciência, deslizando para a morte com o cérebro esmagado lentamente153.
Nota-se, em tal fragmento de Em câmara lenta, como o narrador-personagem
se preocupa em relatar a violência em todos os seus detalhes. A forma como ele
descreve as etapas da violência até culminar com a morte da vítima, sua companheira, é clara e destituída de qualquer máscara ou disfarce capaz de burlar a censura.
Entretanto, o fato de tal passagem, repleta de detalhes, aparecer em sua narrativa
apenas nas últimas páginas da obra pode inclusive ser vista como uma estratégia de
ataque quando nada mais faz sentido, quando o narrador percebe que sua organização fracassou e que também perdeu sua companheira para o sistema repressivo e
violento. Nessa etapa da narrativa, infere-se que o narrador-personagem já não se
preocupa mais com o que lhe pode acontecer por denunciar de modo tão explícito as
barbáries, pois nada mais tem a perder, e o que lhe resta é levar ao conhecimento
dos outros o que ele agora sabia em relação às torturas e às mortes de pessoas inocentes.
153
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 171-172.
92
Com base em tais excertos, que apelam à memória como ferramenta primordial para emitir juízos e versões sobre os fatos do passado, pode-se acrescentar que
a obra literária enquanto ficção não busca negar por completo a autoridade da história. Contudo, a obra literária que se pauta na rememoração preza pela liberdade em
lançar novas luzes sobre os eventos do passado, a fim de estabelecer uma nova relação entre memória e história, para, dessa forma, reconstruir um passado não alicerçado somente em fontes históricas embasadas na ideologia dominante, mas também
de um modo subjetivo, através da memória individual e coletiva, e, assim, reerguer a
história sob outro foco, sob a perspectiva da “história vista de baixo”, conforme expressão utilizada por Peter Burke154.
Rosani Ketzer Umbach, em seu artigo Memórias da repressão e literatura: algumas questões teóricas, aborda as definições elencadas por Astrid Erll acerca da
memória nos estudos literários, em que o crítico distingue-a em três categorias: 1)
memória da literatura; 2) memória na literatura; 3) literatura como “veículo da memória coletiva”155. A primeira classificação pauta-se na imagem metafórica de “memória
do sistema simbólico literatura”, ou seja, a memória é manifestada nos textos por
meio de referências intertextuais, quando, em uma obra literária, a literatura anterior é
rememorada, através da intertextualidade, de esquemas, de pensamento ou de expressão. Nessa categoria, inclui-se ainda a “memória do sistema social literatura”, a
qual é representada por meio da história da literatura e pelo cânone, institucionalizando, assim, a memória de uma tradição literária no mundo social. A segunda classificação, a memória na literatura, refere-se à “mímese da memória”. Esta remete à
encenação da memória, tratando de recordações e lembranças em textos literários.
Tal memória traz à mostra o funcionamento, processos e problemas da memória (individual e coletiva) no campo ficcional por meio de procedimentos estéticos. A terceira classificação trata da literatura como veículo da memória, atuando na formação de
versões do passado, na construção de identidades coletivas, na negociação de memórias concorrentes e, inclusive, agindo como instância de supervisão crítica de processos culturais que tenham relação com a memória.
154
Cf. BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. 1992.
UMBACH, Rosani Ketzer. Memórias da repressão e literatura: algumas questões teóricas. In:
____ (Org.). Memórias da repressão. 2008. p. 12.
155
93
Diante de tais classificações, a autora atenta para a relação que deve existir
entre os estudos da memória na literatura com a construção da história156. Tal premissa é justificada pelo fato de que o século XX, por ser caracterizado pela violência
e repressão extremadas, tanto na Europa quanto na América Latina, gerou inúmeras
vítimas, mas deixou também sobreviventes, cujas memórias apresentam-se “de suma
importância para a conscientização das gerações posteriores a respeito da intolerância, das perseguições e dos extermínios que ocorreram”157. Dessa forma, a autora
chama a atenção para a importância da produção literária memorialística para o resgate de tais eventos históricos associados à violência, à catástrofe e ao trauma. Tal
resgate, do seu ponto de vista, estaria a serviço da reconstituição da história, não a
tradicional, mas aquela defendida por Walter Benjamin158, a qual, pautada na memória das ruínas do passado, busca uma reconstituição dessa memória e, consecutivamente, da história dos vencidos, daqueles deixados à margem da sociedade pela
historiografia oficial.
Márcio Seligmann-Silva, ao desenvolver estudos acerca da memória, direciona
seus argumentos para o fato de que não é possível existir memória sem seu correlato: o esquecimento159. A respeito de tais considerações propostas pelo autor, observa-se que, tanto em Quatro-olhos quanto em Em câmara lenta, ocorre uma relação
muito forte entre lembrar e esquecer, pois os protagonistas, ao mesmo tempo em que
se esforçam para rememorar o passado na tentativa de entendimento e assimilação
deste, percebem que nem tudo o que gostariam de relatar está ao alcance de sua
memória, já que muitos fatos foram esquecidos.
Em Quatro-olhos, tem-se um narrador-protagonista que se debate na tentativa de narrar em seu livro lembranças as quais lhe parecem de extrema importância e
que, por isso, não deveriam ficar de fora de seu manuscrito. Entretanto, depara-se
com o esquecimento que assombra sua memória e o impede de organizar de forma
harmônica os fatos que sobressaltam sua mente, impedindo-o de identificar com clareza quando está falando do seu passado ou quando está se referindo ao conteúdo
de sua obra original que fora perdida:
156
UMBACH, Rosani Ketzer. Estética e política nos espaços comparatistas. 2011. [no Prelo].
Palestra proferida pela autora durante as atividades do II SINEL, III SENAEL e III SELIRS
realizadas na URI-FW durante os dias 10 a 13 de maio de 2011.
157
UMBACH, Rosani Ketzer. Memórias da repressão e literatura: algumas questões teóricas. In:
____ (Org.). Memórias da repressão. 2008. p. 17.
158
Idem. Ibidem. p. 17.
159
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Reflexões sobre a memória, a história e o esquecimento. In: ____
(Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 60-63.
94
[e]la, porém, me amava, o que só vim a perceber muito recentemente, no intervalo do primeiro para o segundo tempo de um jogo a que
eu estava assistindo muito depois de tê-la visto pela última vez. Continuo porém a comportar-me como se ela me amasse ainda hoje, do
que aos poucos fui adquirindo imutável certeza. Mas foi nesse instante, lá no estádio a caminho da cerveja do meio-tempo, que me lembrei não só que ela me amava mas também do livro. O rebate do telefonema não fora verdadeiro. A roda de mãos dadas é recordação
de adulto. As crianças, como se sabe, não têm infância e nunca brincam. A fila de ônibus, porém, realmente existiu. O rapaz chegou para
a moça da fila e disse: “Te trago um embrulho cor-de-maravilha”. Era
uma lata de goiabada, disso me lembro perfeitamente, mas acho que
não fazia parte do livro. O homem estava morto na avenida. Acho
que no romance não havia rosas.
É certo, no entanto, que se tratava de um campo de concentração.
Nem sempre tinha sido assim. Agora aliás não estou falando do meu
trabalho, acima e além de tudo, restrito ao puro cuidado de criar, distante de qualquer confissão. É o que me lembra no momento, mas às
vezes me surgem lembranças inadequadas; não sei onde foi parar o
livro, mas em algum lugar eu o deixei. Agora estou pensando em outras coisas: dedos desprezíveis me tocaram, mais de uma vez [...]. E
lembrava, não sei se do livro ou da vida160.
Em tal passagem, é possível perceber como o narrador-protagonista não consegue ordenar e expor com clareza suas lembranças. Ele começa a narrar a respeito
de sua vida pretérita – lembrando os momentos da vida real que passou com sua
mulher e dos sentimentos que ambos nutriam um pelo outro –, mas, logo, sua narração migra, de forma muito repentina, para outras recordações, as quais não consegue identificar se são de sua própria vida ou do livro que escrevera. Em sua mente,
as imagens se confundem, e as lembranças de pessoas que ele não lembra se fizeram parte de sua vida ou de seu livro surgem e mesclam-se constantemente. Com
certo esforço, lembra que havia um local específico para a realização das torturas e
que essa lembrança que, por ora, assombra sua mente, não se refere somente ao
conteúdo do livro, mas a um acontecimento de sua própria vida. Tece inclusive vagas
lembranças acerca das brutalidades praticadas nesse local onde parece que esteve.
As lembranças inadequadas vêm à sua mente – inadequadas porque o fazem sofrer
novamente a violência que “dedos desprezíveis” praticaram por muitas vezes. Ressalva-se, portanto, o dificultoso trabalho de Quatro-olhos para relatar o passado, tanto
da vida quanto do livro, e sua tentativa em manter-se lúcido diante dessas memórias
embaralhadas que lhe atormentam.
160
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 20 e 31.
95
O narrador-protagonista de Em câmara lenta revela também sua dificuldade
para organizar seus pensamentos e suas memórias. Tal constatação pode ser comprovada com passagens como:
[o] que fizeram com ela? O tempo bate nos ouvidos, passa gota a
gota, o mundo arrebentado em milhares de pedaços, a casa vazia. O
sorriso e as mãos, uma expressão tranquila, e de repente. A vida rachou no meio, ficou lá toda certeza possível. O próprio gesto, agora,
é um movimento hesitante feito de diversas repetições. Como um
vaso que cai: estilhaçado em pedaços irregulares. Alguma vez ele
esteve inteiro? Estilhaços. Misturados no chão com uns restos de vida, um pedaço de rosto, uma frase, um livro rasgado. O tempo nos
ouvidos: é muito tarde. O que deixou de ser feito, nunca mais será
feito. É tarde. O que fizeram com ela? [...]
O gesto continuava estilhaçado, espalhado aos pedaços pelo chão
da casa e é impossível reunir as peças para reconstituir seu sentido.
Para restituir a forma ao jogo de armar. Os elementos acumulados e
ordenados pelo tempo se arrebentaram, explodiram em mil fragmentos no momento em que ela [...]. Então agora: tudo muito de repente,
tudo de uma vez fragmentado e não há mais tempo para nada. O
espelho foi de novo colocado, mas agora ele está trincado em mil
pedaços e devolve uma imagem partida. Uma imagem que não é
mais do mundo, mas de uma solidão voltada sobre si mesma. O
gesto incompleto, estilhaçado, no momento em que ela161.
Nesse discurso, nota-se a constante presença da dúvida que paira sobre os
pensamentos do narrador. Inicialmente, a indagação por não saber o que aconteceu
com sua companheira, o que fizeram com ela e como foi morta. A constante verificação de uma vida que não pode mais seguir seu curso normal – pois algo de muito
grave aconteceu e fez com que tudo perdesse o sentido – vem à mente do narrador
de forma muito fragmentada. Ele se dá conta da problemática que está enfrentando,
de que não consegue reunir as informações suficientes para entender o que aconteceu no passado para, talvez com isso, encontrar um sentido e seguir a vida. As imagens e lembranças que ele tem não são suficientes para lhe fazer entender a atual
sensação de perda e desilusão em que se encontra.
Tudo agora é muito vago, a memória em si é muito vaga e incompleta, pois ele
lembra de algumas vidas, de rostos, de frases ditas e de um livro rasgado, mas não
consegue unir esses estilhaços da memória a fim de entender o que se passou. A
vagueza e a incompletude das informações apontam para um pensar acerca de que
forma o esquecimento passou a dominar sua memória, bem como a notória falta de
161
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 38-43.
96
informações da qual se sentia vítima. Contudo, a lembrança do livro rasgado que fulgura em sua mente pode servir para questionar e propor uma reflexão sobre as formas de silenciamento utilizadas pelo poder. A menção ao livro pode ser analisada
como uma metáfora em relação à imposição do esquecimento por meio da violência,
à destruição de conteúdos e ao apagamento de mensagens que o poder não queria
que fossem divulgados e conhecidos.
A dificuldade para organizar de forma coerente e lógica o passado, bem como
as poucas lembranças deste, demonstra a quão árdua era a tarefa de trazer esse
passado até o presente, mesmo que isso se fizesse necessário para ajudar os protagonistas a reerguerem suas vidas. De acordo com Walter Benjamin, sempre existirá
uma relação intrínseca entre ações do presente em relação aos fatos do pretérito.
Assim, pelo fato de os protagonistas não conseguirem lembrar com clareza as suas
histórias de vida, evidencia-se como suas mentes foram abaladas pelos acontecimentos desencadeados pelo poder dominante e pelas práticas de repressão, comprometidas com o apagamento da memória, provindas do regime ditatorial.
A impossibilidade de se estabelecer um elo entre o passado e o presente retoma uma vez mais a ideia de correlação entre a memória e o esquecimento, tal como defendida por Seligmann-Silva. Essa mesma ideia é ratificada por Renato Franco,
quando enfatiza que tentar lembrar daquilo que fez parte do seu passado é uma forma de colocar o indivíduo diante de sua condição de homem cindido. Ainda segundo
o autor, o conteúdo do esquecimento está relacionado à sua própria identidade, ao
que, no passado, ele mesmo foi. Torna-se, assim, consciente de como está dilacerado, incapaz de unir o passado ao presente162.
Essa tensão existente entre lembrança e esquecimento, entre revelação e
ocultamento dos eventos violentos, é discutida também por Loiva Otero Felix. A autora afirma que, ao se estudar a memória, não se está apenas tratando da perpetuação
de eventos, mas do esquecimento, dos silêncios e dos não-ditos163. Segundo a pesquisadora, lembrança e esquecimento estão imbricados, não há uma oposição entre
o que é verdadeiro e o que é falso, e o que ocorre não é uma contradição, mas uma
zona intermediária entre esses dois polos, em que a verdade (alétheia) se desloca
progressivamente em direção ao esquecimento (léthe), e assim reciprocamente. Ao
se olhar para o esquecimento como um elemento fundador, não se pode deixar de
162
FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio
(Org.). História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 366.
163
FELIX, Loiva Otero. História e memória: a problemática da pesquisa. 1998. p. 45.
97
perceber que ele nunca se dá de forma neutra em relação ao que deve ser esquecido
ou a quem deve ser imposto o esquecimento164. Usar-se das estratégias de esquecimento é, sem dúvida, uma possibilidade de manipulação da memória pelo poder. Cabe ressaltar ainda que “esquecimento ou silêncio é a potência da morte que se ergue
frente à potência da vida, Memória”165. Lembrar, portanto, é uma atividade desafiadora da vida em relação à morte.
A narrativa de Quatro-olhos, ao tentar resgatar a memória para reconstituir
fatos e assim cumprir também com um compromisso social, concorre, inclusive, para
a representação de práticas que visavam ao ocultamento da violência praticada: “Volta o veterano e, da derrota triunfa: ‘Enquanto os senhores ouviam meu colega, as
manchas de sangue foram lavadas; o cadáver há muito foi recolhido. Partículas de
hemoglobina, porém, ficarão para sempre agregadas a esse trecho de asfalto’”166.
Essa é uma passagem lembrada pelo protagonista e que estava em seu livro
perdido. A crítica aqui pode ser feita no seguinte sentido. Enquanto a grande maioria
da população, naquele momento, ocupava-se com discursos de progresso dos militares, propagados pelos meios de comunicação de massa como televisão e rádio, muitas pessoas desapareciam, eram torturadas e mortas sem que a sociedade se desse
conta da real situação em que se encontrava o país.
Já o protagonista de Em câmara lenta atenta para uma denúncia mais incisiva no que se refere às formas como o sistema vigente da época se manifestava em
relação aos desaparecimentos e mortes de pessoas que eram presas e possivelmente torturadas:
[p]rincipalmente agora, com toda essa gente sendo “atropelada”, caindo debaixo de caminhões ou mesmo da escada até virar uma coisa sangrenta, pasta de gente [...]. Porque com quase todos foi assim, todo mundo sabe que a notícia do jornal é uma mentira, o que
fizeram com ela?167.
A referência à tentativa de ocultamento da violência que era praticada contra
os presos militantes fica explícita quando o narrador, através do uso da palavra “atropelada”, ironiza a frieza com que eram tratados os casos de pessoas que apareciam
164
Idem. Ibidem. p. 51.
In Idem. Ibidem. p. 45.
166
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 19.
167
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 18.
165
98
mortas. Da mesma forma, estende sua crítica a como eram divulgadas essas notícias
nos jornais. Isso porque, apesar de as pessoas saberem que os mortos que apareciam completamente desfigurados não poderiam ter sido simplesmente vítimas de atropelamentos ou outro acidente qualquer, eram essas as versões que predominavam
nos meios de comunicação de massa, ocultando a verdade e mascarando a violência
praticada.
Nelly Richard, ao tratar de questões ditatoriais chilenas semelhantes às ocorridas no Brasil, discute como o país buscou o ocultamento das barbáries ditatoriais e
como tais estratégias possivelmente foram estendidas a outros países. A autora discute que, no Chile, a elite dominante procurou restabelecer a ordem, impondo uma
espécie de consenso entre as oposições, eliminando, com isso, os desajustes da
memória que recordavam experiências traumáticas do passado e criando “uma história social e cultural falsamente reconciliada consigo mesma”168. Segundo Richard,
colocar lado a lado as classes distintas foi uma forma de suprimir as memórias do
passado que poderiam atacar a elite dominante e, consequentemente, o poder vigente.
Loiva Otero Félix também traça caminhos de discussão acerca do ocultamento
ou do encobrimento das memórias do passado com base no que se refere à anistia
política. A respeito disso, a autora comenta que essa era uma forma de fazer com
que a lembrança dos sujeitos que passaram por provações extremas fosse esquecida, a fim de que houvesse o perdão das lembranças dolorosas169. Contudo, tal estratégia concorre para a possibilidade de se estabelecer uma relação entre verdade e
engano, ou seja, a verdade torna-se uma propriedade da elite, que passa a ser a detentora da “verdade” é também do poder de enganar. Enfim, o objetivo da classe dominante é fazer uso de um discurso para construir uma realidade que seja livre de
qualquer opacidade capaz de macular o consenso histórico positivista170.
Em Quatro-olhos, a necessidade de rememoração é tão grande, que o narrador sente que convém deixar registrado em sua narrativa o dia em que não foi autor,
o dia em que não conseguiu lembrar de nada para escrever. Conforme nota-se a seguir:
168
RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. 2002. p. 57.
FELIX, Loiva Otero. História e memória: a problemática da pesquisa. 1998. p. 45.
170
Idem. Ibidem. p. 46.
169
99
[n]ecessidades de ordem prática, me levaram naquela desprimorosa
segunda-feira a deixar de lado o trabalho. Muito positivamente, estava desprovido do instrumental imprescindível à consecução da tarefa. Desmesura explicar que me faltavam papel e tinta, de modo que,
nessa segunda-feira certa, nada escrevi. Interessante lembrar com
pormenor as horas em que não fui autor, quando nada recordo do livro171.
Essa certa segunda-feira, em que ele não conseguiu escrever nada, elucida a
constante batalha que se travara em sua mente entre a necessidade de lembrar e a
constatação dessa dificuldade para fazê-lo. O fato de o narrador nada conseguir escrever nesse referido dia o distancia ainda mais da realidade, pois, lembrar para ele
era uma forma de voltar a sentir-se vivo, voltar a relacionar-se com o mundo,
(re)construir um mundo aceitável para viver. Querer escrever, não encontrar em sua
mente “instrumental imprescindível à consecução da tarefa” e dar-se conta de que as
palavras não são suficientes para expressar o que ele gostaria de colocar no livro
fazem com que Quatro-olhos desista dessa tarefa naquele dia. Isso porque, como ele
mesmo afirma, as palavras pareciam entrelaçadas e distantes, de tal modo que sua
contribuição à ciência naquele momento seria muito mais o silêncio que a vã tentativa
para escrever.
Também para o narrador-protagonista de Em câmara lenta, por algumas vezes, as palavras lhe parecem destituídas de qualquer sentido e inúteis para lhe ajudar
na tarefa de rememoração e de denúncia. Assim como se observa:
[n]ao foi apenas uma pessoa que morreu, foi o tempo. De repente o
mundo está cheio de algodão, espesso e pegajoso, as palavras não
fazem mais sentido porque não nomeiam coisas – apenas soam
como ecos, prolongados por ouvidos acostumados a classificálos172.
Para o narrador de Em câmara lenta, o mundo que o cerca já não apresenta
mais nenhum sentido, de forma que a própria linguagem também já lhe parece carente de significado e de importância. Para as lembranças recuperadas através de poucas e vagas informações, que eventualmente lhe são oferecidas em relação ao seu
171
172
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 38.
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 15-16.
100
passado, ele não consegue encontrar palavras adequadas para externalizá-las em
seu relato, ficando sempre frases por concluir e perguntas sem respostas.
O sujeito sente necessidade de contar o que viveu, mas é incapaz de organizar os fatos em seu pensamento. O trauma da violência, sofrido pelos protagonistas,
opera uma cisão na memória, o que os impossibilita não só de lembrar o passado,
mas principalmente de encontrar linguagem apropriada para narrá-lo devido à grandiosidade do evento. Os narradores não são capazes de organizar os episódios de
maneira harmônica, e isso se dá em razão das circunstâncias históricas em curso,
em especial a repressão e as torturas sofridas por eles. Tais mecanismos traumáticos
não permitem que o sujeito posicione-se criticamente como seria seu desejo, contribuindo inclusive para o esquecimento de muitos episódios e desencadeando uma
narrativa esteticamente problemática, destituída de integridade e linearidade.
Entretanto, discutir o processo narrativo tanto de Quatro-olhos quanto o de
Em câmara lenta permite que se avalie a penosa luta, por parte de seus narradores,
contra o esquecimento imposto pelo poder. Diante disso, torna-se imprescindível observar como tais narrativas se constituem em tentativas de (re)organização e de
(re)estruturação de histórias de vida marcadas pela violência. Assim, os narradoresprotagonistas de ambos os romances buscam, através da recuperação da memória e
da possibilidade de narrá-la, uma forma de (re)integração social e um espaço para
expor a sua versão da história, mesmo que em desacordo à versão oficial.
Walter Benjamin, ao discorrer sobre o conceito de história, o que consiste
também numa teoria da memória, insiste na reconstrução da história através da rememoração. Para o teórico, torna-se imprescindível trazer à tona o passado deixado
à margem pelo método historicista, o qual se preocupa em narrar somente a versão
dos vencedores, abafando a verdadeira história das sociedades oprimidas173. Em
outros termos, conforme explica Jeanne Marie Gagnebin, o historicismo acaba por
mascarar a luta de classes e por contar a história dos vencedores, culminando, assim, no apagamento da memória dos excluídos, isto é, dos esquecidos da memória
oficial174. Ainda segundo a autora, cabe ao historiador materialista não deixar essa
memória dos excluídos esquecida, mas zelar pela sua conservação e assim contribuir
na reapropriação desse fragmento de história. “Cada geração recebe assim uma ‘tê173
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política.
1994. p. 223-224.
174
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória e libertação. In: ____. Walter Benjamin: os cacos da
história. 1982.
101
nue força messiânica’, porque cabe a cada presente resgatar o próprio passado; não
apenas guardá-lo e conservá-lo, mas também libertá-lo”175, reforça a autora com base
na Tese II de Benjamin.
Para finalizar, cabe retomar Nelly Richard quando afirma que recordar a tensão e os dilaceramentos da arte da memória é uma forma de resgatar dessa memória
um campo de forças plurais e divergentes, para assim abrir uma multiplicidade de
pontos de vista176. Para a autora, as contradições históricas oriundas dos distintos
pontos de vista não podem permanecer silenciadas de acordo com a vontade de uma
ideologia que busca abolir qualquer “corpo estranho”177 que se apresente como ameaça à clarividência de uma história social e cultural falsamente harmonizada consigo
mesmo.
Assim, narrar as memórias das experiências vividas por parte dos protagonistas de Quatro-olhos e Em câmara lenta configura-se em pequenas peças de um
grande quebra-cabeça que, muitas vezes, toma-se desconhecido ou não acontecido.
Com isso, ao se retomar a ideia de que as diversas formas abusivas de repressão e
violência praticadas sob a forma de tortura, durante o período ditatorial, resultavam
no apagamento da memória dos indivíduos e, consequentemente, no apagamento de
uma história que a elite não queria que fosse lembrada e repassada, reforça-se a necessidade cada vez maior de se (re)visitar esse passado e trazê-lo novamente ao
presente. Assim, através da percepção dos distintos pontos de vista desse passado,
a sociedade pode compreendê-lo e, da mesma forma, entender o presente e planejar
o futuro de modo a evitar acontecimentos semelhantes.
3.2 A melancolia nas obras de Pompeu e Tapajós
À proporção que declinava o dia e que as sombras cobriam o céu,
esse vago inexprimível da noite no meio das ondas, a tristeza e
melancolia que infunde o sentimento da fraqueza do homem em
face dessa solidão imensa de água e de céu, se apoderavam de
meu espírito.
(Cinco minutos, José de Alencar)
175
Idem. Ibidem.
RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. 2002. p. 57.
177
Idem. Ibidem. p. 57.
176
102
A brutalidade a que foi exposta grande parte da sociedade em virtude da implantação da Ditadura Militar no Brasil, na medida em que afetou a memória das pessoas envolvidas, suprimindo, através do esquecimento imposto, uma série de lembranças importantes para sua própria existência e para a sociedade, provocou também uma série de perdas. A ideia de perda que por ora é elencada, se, por um lado,
permanece relacionada à noção de perda de memória individual e coletiva por parte
de uma significativa parcela da sociedade que sofreu as consequências da repressão, por outro, remete às figuras do desaparecimento e da ausência física de muitos
militantes revolucionários, políticos, artistas, intelectuais, estudantes, dentre outros
que se mostravam contrários ao regime imposto.
Diante disso, torna-se importante refletir acerca dos sentimentos que são desencadeados pelo sujeito quando este é afetado por uma perda. O sujeito, quando
perde seu objeto de investimento libidinal, seu objeto de amor, atravessa um processo de intenso sofrimento. Segundo Nelly Richard, as perdas, sejam elas de que natureza forem, podem desenvolver no sujeito bloqueios psíquicos, paralisações afetivas
e inibições da vontade178, em função da sensação de irrecuperabilidade do objeto
perdido. Frente a tal situação, principalmente quando ocasionada em meio a uma
condição histórica marcada pela violência, o sujeito passa a viver um luto tensional e
mergulha numa espécie de tristeza sem fim, sentimento esse denominado de melancolia.
O termo melancolia179, definido por Hipócrates como um estado de tristeza e
medo de longa duração, deriva do grego mélas kolé, “humor negro”, e é considerado
o estado psicológico típico do temperamento atrabilioso – de atrabilis ou bílis negra.
Para o filósofo, o melancólico é alguém cujo estado mental apresenta-se perturbado180. Já Aristóteles, ao discorrer sobre a melancolia, a define como a natureza (physis) e o hábito (ethos) do filósofo. Não como doença, o temperamento melancólico
passa a ser associado à personalidade de exceção, à genialidade, aos espíritos excepcionais. De acordo com o filósofo, existiria uma ligação entre a postura melancólica e o pensamento contemplativo, necessário à filosofia. Aristóteles também aponta
178
RICHARD, Nelly. Políticas da memória e técnicas do esquecimento. In: MIRANDA, Wander
Melo (Org.). Narrativas da modernidade. 1999. p. 325.
179
Convém destacar que a pretensão desse estudo não é fazer um prolongado levantamento
acerca das distintas concepções de melancolia que se apresentaram ao longo dos tempos.
Entretanto, acredita-se ser plausível o levantamento de algumas das principais concepções, bem
como dos distintos pontos de vista acerca desse sentimento, para assim tornar mais produtivo o
entendimento dos romances em análise.
180
GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante – elementos melancólicos em Lira dos vinte
anos, de Álvares de Azevedo. 1997. p. 45.
103
para o fato de que é a bile negra a responsável pelo desenvolvimento do sentimento
melancólico. Segundo ele, a bile negra tem por propriedade a inconstância e, por isso, ela pode se comportar de modo variável, por vezes muito quente, por vezes muito
fria, a ponto de causar efeitos diversos e geralmente contraditórios, sendo assim o
melancólico, por natureza, um ser contraditório181.
Entretanto, é Constantinus Africanus, autor árabe medieval, quem desenvolveu um importante estudo acerca do sentimento melancólico. O estudioso partiu da
premissa de que a melancolia compõe-se de um misto de medo e tristeza que confunde a alma: tristeza pela perda de algo muito amado e medo pela suspeita de que
algo possa causar no sujeito um dano futuro182. Com base nisso, observa-se que,
tanto em Hipócrates como em Constantinus, a melancolia é apresentada como uma
doença. Para o primeiro, ela é decorrente de uma degradação do sangue, de uma
putrefação que desordena o funcionamento do corpo. Para o segundo, o sentimento
melancólico seria o resultado de excessos ou faltas, ou seja, o sujeito possui um modelo de equilíbrio humano, que é a sua capacidade de dosagem na vida, entre o movimento e a quietude, o sono e a vigília, a comida e a bebida, etc., e o excesso ou a
falta de algum desses elementos pode gerar no corpo efeitos nocivos. Para o autor,
até mesmo o excesso de meditação e a tentativa de investigar o incompreensível podem provocar a melancolia183.
Susana Kampff Lages, ao fazer releitura de Jean Starobinski, atenta para o
fato de que a história da melancolia pode se resumir em três períodos históricos até o
século XIX. Tais períodos subdividem-se em: o da Antiguidade clássica, o que se estende da Idade Média até o século XVIII e, finalmente, a época moderna, que abrange os séculos XVIII e XIX, em que se origina a moderna psiquiatria, da qual derivará
a psicanálise freudiana, e dela então o mais moderno conceito de melancolia que se
tem184.
A concepção moderna da melancolia, citada por Lages, encontra-se profundamente ligada às suas bases antigas. A hipótese de que existe uma conexão entre a
experiência de perda e a condição melancólica, levantada por Africanus, é a base
principal para a abordagem psicanalítica elaborada por Freud em 1917, quando da
publicação de seu ensaio Luto e melancolia, escrito em 1915. Tal estudo pauta-se na
181
ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia: o problema XXX, I. 1998.
GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante – elementos melancólicos em Lira dos vinte
anos, de Álvares de Azevedo. 1997. p. 46.
183
Idem. Ibidem. p. 47.
184
LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. 2002. p. 32.
182
104
questão psicológica da melancolia em cuja análise o autor desenvolve uma distinção
entre os dois sentimentos que podem se manifestar diante da experiência de uma
perda: o luto e a melancolia. Para o autor, esses dois sentimentos apresentam muitas
semelhanças, e é através dessa correlação existente entre suas características análogas, que Freud traça também os pontos divergentes entre os sentimentos de luto e
de melancolia. Segundo o psicanalista,
[a] correlação entre a melancolia e o luto parece ser justificada pelo
quadro geral dessas duas condições. Além disso, as causas excitantes devidas a influências ambientais são, na medida em que podemos discerni-las, as mesmas para ambas as condições. O luto, de
modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante [...]. Também vale a pena notar que, embora o luto envolva graves afastamentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida, jamais nos ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica
e submetê-lo a tratamento médico. Confiamos em que seja superado
após certo lapso de tempo, e julgamos inútil ou mesmo prejudicial
qualquer interferência em relação a ele185.
Ao expor as causas e as características do luto, que servirão de base para a
discussão acerca da melancolia, Freud explicita que este é ocasionado diante de uma
perda objetal irreversível. Diante dessa perda, embora o sujeito sinta-se imensamente
desolado, o luto não pode ser considerado uma patologia, pois, após algum tempo, o
sofrimento vivido é superado, uma vez que o indivíduo passa a transferir seu investimento libidinal a outro objeto, substituindo dessa forma o objeto perdido.
Com base em tais apontamentos, Freud adentra na natureza da melancolia,
elencando os principais traços que a distinguem do luto, bem como defendendo o
lado patológico desse sentimento. Segundo Freud,
[o]s traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a
perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima a ponto de encontrar expressão em autorrecriminação e autoenvilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição. Esse quadro torna-se
um pouco mais inteligível quando consideramos que, com uma única
exceção, os mesmos traços são encontrados no luto. A perturbação
185
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: ____. Obras psicológicas completas. 1977. p. 249.
105
da autoestima está ausente no luto; afora isso, porém, as características são as mesmas186.
Ao fazer uso dos elementos encontrados no luto para esclarecer a melancolia
e ao contrapor esses dois afetos, Freud observa que os traços mentais similares
aparecem em ambos. Porém, a divergência observada nesse paralelo é que, no luto,
o indivíduo consegue chegar à superação do seu estado. Nesse período, o
psicológico é extremamente afetado pelo vazio deixado pelo ser ou pelo objeto
amado que não existe mais na realidade, e isso começa a exigir do indivíduo que
todo o seu investimento libidinal seja retirado daquele objeto, passando a ser
desviado para outro que se faz presente. Já na melancolia, não ocorre uma perda
objetal como no luto, mas ideal, ou seja, o sentimento melancólico é ocasionado não
necessariamente pela morte de alguém, do objeto amado, mas pela perda de algo
enquanto objeto de amor. No luto, o indivíduo sabe exatamente o que perdeu, já na
melancolia, mesmo que o paciente esteja consciente de que houve a perda de algo
ou alguém, ele não consegue identificar o que exatamente perdeu com isso. Assim, o
sujeito passa a conservar por muito tempo, em alguns casos pela vida inteira, esse
sentimento, pois, como não tem definido com exatidão a sua perda, não consegue
encontrar substitutos para ela.
Na visão de Susana Kampff Lages187, Freud, ao estabelecer um paralelo entre
luto e melancolia, coloca-se a favor da hipótese da existência de uma melancolia
“positiva”, a qual consegue ser superada pelo sujeito, e a existência de uma
melancolia “negativa”, da qual o indivíduo sofre profundamente para libertar-se. Em
ambos os casos, a perda se configura no momento em que o objeto desaparece do
campo de investimento do enlutado. Contudo, se, no luto, o sujeito consegue
desligar-se do objeto por ora desinvestido e investir em novos objetos, na melancolia,
esse sujeito não se desenlaça, perdendo-se psicologicamente no vínculo com o
objeto de amor perdido.
Em relação aos mencionados traços melancólicos, nota-se que, tanto na obra
Quatro-olhos, quanto em Em câmara lenta, tem-se a presença de narradoresprotagonistas marcados por sentimentos considerados melancólicos, cujos laços psicológicos permaneceram, mesmo após muito tempo, atrelados aos objetos de amor
já desaparecidos do campo de investimento dos sujeitos. De acordo com as já men186
187
Idem. Ibidem. p. 250.
LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. 2002. p. 53.
106
cionadas características melancólicas elaboradas por Freud, no que se refere ao surgimento da melancolia como uma reação à perda de um objeto amado, observa-se
que, em Quatro-olhos, o sentimento melancólico que toma conta da vida do protagonista resulta, principalmente, da perda de seu livro, objeto que ele considerava como sua obra-prima e que o mantinha dentro de um certo equilíbrio e ligação com a
realidade. Poder-se-ia acrescentar ainda a esse episódio a fuga de sua mulher, bem
como a própria situação ditatorial, que fazia com que ele se sentisse um verdadeiro
derrotado perante essa realidade tão particular. Entretanto, o fato de ter perdido o
livro e sua impossível recuperação, diante da tentativa frustrada de tentar reescrevêlo e não conseguir lembrar de seu conteúdo, deixa Quatro-olhos completamente frustrado e melancólico, assim como se pode observar na passagem a seguir:
Mais ou menos dos 16 aos 29 anos passei no mínimo três a quatro
horas todos os dias, com exceção de um ou outro sábado e de certa
segunda-feira, escrevendo não me lembro bem se um romance ou
um livro de crônicas. Recordo com perfeição, porém, tratar-se de obra admirável, a por a nu de modo confortavelmente melancólico a
condição humana universal e eterna, particularizada com emoção
discreta nas dimensões nacionais e de momento [...]. Às vezes sinto
dúvidas e excitações188.
As lembranças que vem à mente do narrador e que aparecem logo no primeiro
parágrafo da obra já dão indícios do quão importante era para ele o romance que
escrevera e que fora confiscado pela polícia. O protagonista evidencia que passou
boa parte de sua juventude dedicado à incessante escrita dessa “obra admirável”.
Entretanto, as lembranças que vêm estilhaçadas à mente do narrador e que remetem
a episódios de um passado triste, do qual ele não consegue se libertar, justamente
por não conseguir recordá-lo com clareza, associam-se diretamente ao esquecimento, possivelmente imposto. Diante de tal episódio, a perda da memória por parte do
narrador configura-se juntamente com a apreensão do seu manuscrito original, nas
causas de seu estado melancólico, destituindo-o então de qualquer interesse pela
realidade, fazendo com que seu mundo psicológico e físico passe a girar em torno
dessa infindável e profunda tristeza. O ego do protagonista apresenta-se totalmente
destituído de qualquer valor, pois, por não se recordar de seu passado, sente-se desprezível e inferior, e chega até mesmo a duvidar de sua própria capacidade de composição.
188
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 15.
107
Na mesma proporção, é possível observar, em Em câmara lenta, como os
aludidos elementos melancólicos que perturbam o narrador-protagonista são evidenciados em seu discurso. Este também é um livro marcado pela perda e pela ausência, e, precisamente por ser a sequela primeira da falta de algo e/ou de alguém, a
melancolia se faz presente na narrativa. Esse romance, assim como Quatro-olhos, é
construído dentro da mesma condição histórico-social violenta do regime ditatorial, e
tem, em sua narração, a apresentação do sofrimento psíquico que perturba o sujeito
em função da dor causada pelo sistema opressor. Nesse sentido, a perda, em Em
câmara lenta, refere-se à frustração por parte do narrador em relação à organização
guerrilheira que pretendia atacar a Ditadura Militar e que fracassara, bem como à
perda de sua amada que fora morta, sob tortura, nas mãos de militares. De acordo
com tais apontamentos, observa-se, já no início dessa obra, como o discurso deixa
transparecer a melancolia do narrador:
[é] muito tarde.
A sensação de perda é física, como se faltasse a laringe ou o esôfago e não vai passar porque se, ao menos, tivesse servido para alguma coisa. Mas não, simplesmente acabou, e com isso acabou o
tempo [...]. Nada deu certo, o fogo de artifício iluminou o céu, mas
pouca gente entendeu, nem podia entender e agora estamos sozinhos, vinte, trinta, sei lá [...]. Não foi apenas uma pessoa que morreu, foi o tempo189.
O constante refletir do protagonista, durante o discurso acerca da fracassada
organização guerrilheira, remete para a sua tomada de consciência em relação à derrota que obtiveram perante a inexperiência do grupo de militantes. A decadência do
grupo é perceptível, pois é denunciada pelo próprio narrador. Tal declínio marca nesse sujeito o sentimento de desamparo e angústia frente à perda do tempo que passou, perante a vã tentativa de guerrilha. Entretanto, expressa principalmente a perda
de um ideal e a sensação de que nada mais é plausível de sentido diante de tamanha
frustração, restando apenas as poucas e vagas lembranças melancólicas de um tempo obscuro que não pode ser modificado nem recuperado.
Em relação à perda de sua amada, averigua-se, ao longo da narrativa, a dor
pela qual passa o narrador frente ao desconhecido. Diante do que ignora, observa-se
189
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 13-15.
108
a constante tentativa, também frustrada, de conhecer o que lhe foi ocultado acerca
dessa morte:
aquele corpo, o que fizeram com ela? Talvez agora já soubessem de
mais alguma coisa, no ponto o companheiro talvez tivesse uma informação nova. Mais depressa. Chegar lá e saber. Mas saber pra
quê? Para alimentar ainda mais o ódio, o desespero, a solidão? É
tarde demais, mas é preciso continuar vazio, um sentimento oco190.
Nota-se, nessa passagem, que o protagonista busca explicações para o que
aconteceu com sua amada, travando uma luta constante com suas próprias memórias e tentando buscar, através de outras pessoas, informações que pudessem lhe
amenizar tal sofrimento. Porém, o desconhecimento e a cansativa luta por saber verdadeiramente o que aconteceu, que o fez vítima de tamanhas perdas, acabam gerando no protagonista todo um sentimento de desorientação e desalento, despertando e alimentando, inclusive, sentimentos de desprezo, raiva e ódio, muitas vezes,
direcionados a si próprio.
Segundo os pressupostos levantados por Freud, a “perda ideal” que ocorre no
sujeito melancólico afeta diretamente seu ego, deixando-o totalmente enfraquecido.
Ou seja, no melancólico, há uma diminuição de sua autoestima, um empobrecimento
de seu ego em grande escala; em contrapartida, no luto, é o mundo que se torna
pobre e vazio. Em função desse empobrecimento do ego, o sujeito melancólico
apresenta um caráter tendencioso a autoacusar-se e recriminar-se constantemente
por ser alguém tão desprezível. Esse quadro de um delírio de inferioridade
(principalmente moral) é completado pela insônia e pela recusa a se alimentar, e – o
que é psicologicamente notável – por uma superação do instinto que compele todo
ser vivo a se apegar à vida191.
Ainda de acordo com as definições propostas por Freud, o sujeito melancólico
é alguém cujo prazer está em demonstrar a sua própria precariedade. Nos romances
em apreciação, são evidentes as demonstrações, por parte dos narradores, de seus
sentimentos de dor, frustração, desânimo, incerteza e fragilidade. Em Quatro-olhos,
é possível notar essa problemática em determinadas passagens:
190
191
Idem. Ibidem. p. 14.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: ____. Obras psicológicas completas. 1977.
109
e eu comecei a chorar no meio da rua, ou melhor, sentei na calçada
e comecei a chorar, mas não era comentário nem revolta, me
parece, apenas reação natural das glândulas lacrimais ante
poderosos estímulos ópticos, e não sentia nenhuma vontade de
louvar em ação de graças a graça de nascer e viver, e meu rosto
começou a ficar negro de óleo e rugoso de pedrinhas, e triste, muito
triste, porque todo mundo era filho de pai e mãe, e todas as coisas
eram filhas das mãos de todos, mas eu não me sentia agradecido192.
O fragmento descreve uma cena em que Quatro-olhos, já cansado de tanto
procurar seu livro perdido, entra em desespero devido à inutilidade de seu esforço.
Este trecho ilustra de maneira muito conveniente a sensação de debilidade do
protagonista diante do sentimento de dor ocasionado pela perda de seu manuscrito e
revela como ele se sentia diante da impossibilidade de recuperá-lo, em meio ao
sistema político violento que vigorava. Nota-se que o narrador é tomado por uma
profunda tristeza e igual desinteresse a ponto de não se importar com o fato de
demonstrar esses seus sentimentos em público e começa a chorar “no meio da rua”.
A trivialidade com que vê seus próprios sentimentos e até mesmo sua própria
existência demonstra um sujeito cujo ego está empobrecido e altamente abalado,
sendo que, para ele, a exposição da sua própria fragilidade e do seu empobrecimento
passa a ser sua única alternativa de prazer existencial.
Passagens similares podem ser encontradas em Em câmara lenta, quando o
narrador também deixa transparecer episódios de desalento e debilidade em função
de sua situação melancólica. Assim, observa-se:
[h]oje o pensamento está seco, o desespero é uma coisa calma,
uma coisa que não grita e nem explode, uma coisa que se arrasta
com a inevitabilidade da permanência. O companheiro disse que eu
estava estranho e eu estou [...]. Eles tombaram e pronto. Ela
também. E isso é irreversível, perdi a ponte que dá passagem ao
futuro e estou acorrentado aos fantasmas. E não quero quebrar
essas correntes porque pertenço a eles, a ela [...]. Sobreviver seria
válido para vingá-los, para destruir seus destruidores, mas não
acredito mais nisso [...]193. Eu fiquei sepultado na madrugada,
ancorado, preso, comprometido com os que tombaram e com os que
vão tombar194.
Nesse fragmento, observa-se como o narrador descreve todo o seu
sentimento de dor e de tristeza pela perda de seus companheiros e também de seu
192
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 31.
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 83-84.
194
Idem. Ibidem. p. 86.
193
110
ideal. O protagonista faz questão de permanecer ligado a aqueles ou a aquilo que já
não existe mais. Transpor a barreira que separa o passado do presente é algo que
lhe é praticamente impossível, pois ele vê, nesse passado perdido, sua única
possibilidade – e que já não existe mais – de vida. Entretanto, apesar de revelar sua
dor e ao mesmo tempo expor seu ódio e desespero, é plenamente notável o
enfraquecimento psicológico do narrador diante de tais eventos ocasionados pela
repressão violenta do regime militar. Assim como em Quatro-olhos, o narrador não
se limita a simplesmente viver e sentir o seu luto e a sua perda. Antes, faz questão de
expor sua melancolia como uma possível forma de amenizá-la e também mostrar
como sua própria vida foi aniquilada e como seu ego destruído sofre diante da
impossibilidade de reversão desse triste quadro.
Considerando as proposições freudianas, é possível inferir que o melancólico
é alguém cujo ego adoeceu e, diante disso, não consegue retomar sua vida e encontrar esperanças no futuro, pois se acredita incapaz, indigno e sem condições de qualquer tipo de realização, devido à sua baixa autoestima. Em virtude disso, o melancólico sente uma grande necessidade de expor sua depressão, sua precariedade, bem
como recriminar-se e punir-se pela situação que enfrenta. Entretanto, as recriminações e as acusações direcionadas a si próprio, na verdade, dirigem-se a outra pessoa
que é, foi ou deve ser amada pelo melancólico, ou ainda refere-se a um tempo e a
uma situação pretérita que ele não consegue mais recuperar. O fato de o paciente as
dirigir a si mesmo ocorre devido ao que o autor chama de processo de identificação
narcisística com o objeto amado e perdido, cuja relação foi rompida ou frustrante, e
pelo qual ele passa a nutrir, inconscientemente, sentimentos ambivalentes de amor e
ódio195.
Sobre o processo de identificação narcisística, Julia Kristeva argumenta que o
estado patológico em que se encontra o melancólico repousa sobre uma complexa
dinâmica de idealização e de desvalorização de si e do outro e, por isso, o
melancólico, inconscientemente, exige a presença de um superego fortíssimo: “[p]ois
é identificando-me com o outro amado-odiado, por incorporação-introjeção-projeção,
que instalo em mim sua parte sublime, que se torna meu juiz tirânico e necessário,
assim como sua parte abjeta, que me rebaixa e que desejo liquidar”196, complementa
a autora. Para a psicanalista, esse processo narcisístico pode ser entendido como o
esconderijo da agressividade contra o objeto perdido. Esse processo de queixa
195
196
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: ____. Obras psicológicas completas. 1977.
KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. 1989. p. 17.
111
contra si seria, pois, uma queixa contra o outro e a autocondenação à morte, um
disfarce trágico do massacre de um outro. De acordo com Kristeva, ao voltar-se
contra si, o sujeito melancólico, na verdade, mesmo que inconscientemente, está
atacando o objeto de amor que se encontra dentro dele e que fora perdido.
Outra característica recorrente observada nos sujeitos melancólicos dos
romances em apreciação diz respeito à forte ligação que eles mantêm com seus
passados e à consciência diante da percepção da passagem do tempo. Tal afirmação
pode ser comprovada a partir de fragmentos como o abaixo citado, retirado de
Quatro-olhos:
[m]uito embora não creia não ser possível condenar o presente em
nome do passado, pois o passado já passou e o presente está
passando; muito embora julgue prevenir acidentes dever de todos,
ou seja, a condenação do presente deve ser marcada em nome do
futuro – na verdade, não encontro, no fundo do meu coração até
onde posso ir, não encontro em meu coração outro recurso. Disfarço
com esperteza essa minha limitação, eu não poder condenar em
nome do que virá, avanço com solércia o insolente subterfúgio de
que falo do que não foi. Incapaz de defender o futuro, defendo o
futuro do passado – com essa argumentação tento encobrir meu
ataque ao presente197.
De acordo com essa passagem, nota-se, no discurso de Quatro-olhos, como
a temporalidade é encarada pelo narrador-protagonista. Ele vê com tristeza um
passado que, além de comprometer seu presente, impõe obstáculos à chegada do
futuro. Mesmo ao ver com profundo pesar um passado destruído e destituído de
qualquer sentido, em função das perdas que este lhe causara, o narrador não
consegue libertar-se daquele tempo. O fato de o protagonista sentir que foi
extremamente prejudicado no passado não permite que ele anseie por um futuro sem
danos. A dor que sente, proveniente das perdas que tivera, faz com que ele
conserve, mesmo que de modo bastante fragmentado, os laços com seu passado,
numa tentativa de conservar, mesmo que na mente, tudo aquilo que fora perdido.
No romance de Tapajós, a ligação com o passado é uma recorrente no
discurso do narrador. A vinculação do protagonista a um tempo em que ele estava
em companhia de pessoas, às quais já não existem no presente e ideais que também
foram destruídos, passa a ser o refúgio do narrador, numa constante tentativa de não
197
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 28.
112
só resgatar em sua íntegra esse passado, mas talvez compreendê-lo em sua
plenitude. Com base nisso, observa-se em Em câmara lenta:
[s]e o gesto falhou. Em algum lugar em algum momento, deve ter
havido um erro. Não é possível pensar direito com esse ruído surdo
que bate nos ouvidos, a dor e o desespero, os olhos e o rosto que
voltam sempre e agora são inatingíveis. Mas deve ter havido um erro
[...]. Havia muita gente há apenas três anos e hoje o que há é um
monte de mortos, uma multidão de exilados no exterior e algumas
solidões tentando continuar. Algumas pessoas dispersas que pouco
se encontram, quase nunca discutem e se contentam em
sobreviver198.
A incansável volta do narrador ao tempo pretérito de sua vida demonstra
também sua tentativa de não só rememorar esse tempo, mas também encontrar
respostas plausíveis para toda a destruição que vinha enfrentando. O narrador
demonstra que sente dificuldade em pensar com clareza, pois seus pensamentos são
afetados pelos ruídos, pelas vozes e até mesmo pelos rostos daqueles que faziam
parte da sua vida no passado e que agora se encontram “inatingíveis”, enfim, é uma
referência aos mortos e aos desaparecidos. Sendo assim, a tentativa de descobrir o
que falhou, o que em específico destruiu o ideal que o narrador e seu grupo de
militância tinham, é um pensamento cíclico notado no discurso do protagonista. Na
medida em que a narrativa avança, esse pensamento e essas lembranças o jogam
para o campo perdido do passado e o fazem perseguir e reviver, incessantemente,
esse passado perdido.
De acordo com o observado, o sujeito melancólico é alguém que não consegue se desligar do passado e, assim, suas lembranças, ao permanecerem presas a
esse tempo que não pode mais existir, nem ser resgatado, fazem com que o quadro
patológico do melancólico agrave-se ainda mais. Ao ser prisioneiro de uma idealização do tempo passado, o melancólico sofre, como argumenta Susana Kampff Lages,
na pele e na alma, de um mal-estar que provém da consciência demasiado aguçada
de sua situação199. Ele é envolvido por um passado que o atrai e o remete ao já vivido satisfatório e um futuro que se apresenta a ele como uma miragem, algo muito
distante do objeto desejado.
198
199
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. p. 48-49.
LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. 2002. p. 45-60.
113
Julia Kristeva também discute questões acerca dessa debilidade sentida pelo
melancólico em relação ao seu não desvinculamento com o passado. Segundo a
autora, o melancólico vive numa temporalidade descentrada, cujo vetor antes/depois
não o governa, não o conduz de um passado para uma finalidade. O sujeito
melancólico é alguém que permanece “fixado ao passado, regressando ao paraíso ou
ao inferno de um experiência não ultrapassável, é uma memória estranha: tudo findou
ele parece dizer, mas eu permaneço fiel a esta coisa finda, estou colado a ela, não há
revolução possível, não há futuro”200. No melancólico, o passado ocupa todas as
dimensões da continuidade psíquica do sujeito, retirando qualquer perspectiva em
relação ao futuro e, ao mesmo tempo, direcionando a memória do melancólico para
um processo de incubação do objeto narcisístico dentro de “um túmulo pessoal sem
saída”201.
Ainda em relação a essa característica do melancólico, cabe acrescentar as
proposições de Kant202, quando ele se refere à ideia do surgimento da melancolia
como dependente muito mais de um tempo do que de um lugar. Assim, o autor,
quando caracteriza o nostálgico, diz que este, ao voltar-se para o passado, não
deseja ter de volta o lugar de sua juventude, mas sua própria juventude, enquanto um
tempo a ser recuperado, e não enquanto coisa203. O melancólico quer seu passado
de volta e, enquanto habitante de um tempo incompleto e que não pode ser
recuperado, torna-se necessariamente um habitante do seu imaginário, de seus
próprios pensamentos enquanto tentativa de recuperar esse passado.
A necessidade que sente o sujeito enlutado de voltar-se para dentro de si e
manter-se ligado à sua imaginação, à sua memória, relaciona-se diretamente ao
isolamento e à tendência ao apego por ambientes mórbidos. Dessa forma, o apego
pela noite é uma característica constante na narrativa de Quatro-olhos:
[à] noite eu saia para andar e me sentia embrulhado pelas luzes no
escuro, o ar mortiço em volta piscando brilhos, ar embaçado escorregando pelos meus músculos, luzes viscosas como óleo nos olhos;
ficam assim noite avançada [...]. A noite acontece mas é uma convenção e minha mulher a ignorava, nunca prestava atenção no ar de
cinzas do fim do dia. Em meu livro arranjava cenas no fim de tarde
200
KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. 1989. p. 61.
Idem. Ibidem. p. 61.
202
Apud KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. 1989.
203
Idem. Ibidem. p. 62.
201
114
para cantar a noite. Como a em que passava bela moça no luscofusco pardo da rua José Bonifácio204.
A situação de apego à noite demonstra a tentativa de fuga do sujeito melancólico. A sensação de sentir-se bem em meio às trevas noturnas que expressa o narrador, a busca por refúgio na noite, metaforiza a procura por algo que o retire da realidade triste em que se encontra. Tal inclinação por ambientes noturnos pode remeter
também à representação do desejo de morte. Para o melancólico, a escuridão, as
trevas, são tomadas como símbolo de finitude e resolução para a sua situação. O
sujeito melancólico é alguém que reflete acerca do tempo em que se encontra no que
se refere à insatisfação do tempo presente e da falta de perspectiva para com o futuro, e, para tal atividade, o ambiente sombrio e silencioso da noite pode servir de refúgio e lhe auxiliar nesse encontro com seu interior.
Na obra Em câmara lenta, assim como em Quatro-olhos, o apego à noite
fica evidente como uma opção por parte do narrador, principalmente para sair em
busca de informações acerca do passado desconhecido. Tal situação aponta para o
possível perigo de ser visto à luz do dia, diante da violência que era praticada contra
todo aquele que pudesse despertar desconfiança e uma provável ameaça ao sistema
vigente. Entretanto, o apego do sujeito melancólico de Em câmara lenta a ambientes
sombrios e espaços solitários fica mais bem evidenciado através de passagens como
a seguinte:
essa casa vazia, de repente enorme. Andar da sala para o quarto,
do quarto para o banheiro, do banheiro para o outro quarto [...]. O
sofá está lá, imóvel, morto, vazio. E, do outro lado dele, o cinzeiro no
chão. Continua lá, esperando o cigarro que não vem mais. Não adianta mudar nada. Para quê? [...]. Os olhos que veem o cinzeiro estão vazios, são olhos vazados de um corpo morto que continua passeando seu ódio e seu desespero [...]. Essa casa é um monte de escombros e de corpos mortos amontoados em cada canto. Não há
nada para fazer: andar, comer, esperar [...]. Porque hoje não há nada para fazer senão andar pela casa [...]205.
Nesse excerto, o narrador não demonstra uma ligação com a noite propriamente dita, mas, ao relatar determinadas situações em que se encontra solitário em
sua própria casa, agora silenciosa, carente de qualquer resquício de vida, vazia e
204
205
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 63.
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 47-49.
115
praticamente abandonada, remete a um pensar nesse ambiente como uma representação da noite que se abate sobre ele. O gélido e sombrio ambiente da casa vazia e
silenciosa que o envolve se assemelha ao ambiente noturno que o sujeito melancólico procura para completar sua tristeza e sua desolação. A própria casa vazia, que
remete à ausência de alguém ou de algo que antes a habitava e a preenchia, metaforiza esse ambiente de vagueza e de solidão que a noite por si só representa.
Inserido em um ambiente noturno e propício ao isolamento, o sujeito melancólico encontra o ambiente ideal para solidificar-se em sua situação de autorrecriminação e autopunição, conforme apontado por Kristeva. Dentro desse processo de empobrecimento do ego, em que o melancólico faz questão de demonstrar sua precariedade206, ele também se mantém fixo a uma imagem de finitude do tempo. Logo, a
insatisfação de ver o tempo passar, a presença de um presente bárbaro e a impossibilidade de mudança para um futuro melhor fazem com que esse sujeito se fixe num
horizonte marcado pelo desejo de finitude e de morte. Em Quatro-olhos, é possível
perceber várias passagens que apresentam o protagonista imerso nessa ideia:
[f]ora do livro, a vida espelhada em grandes rasgos tinha muitas
faces em combate e não conseguia formar um todo coerente. No
baile de formatura do científico, comecei a pensar nos meus ossos
descarnados décadas depois e no meio das valsas isso era a única
coisa que fazia sentido [...]. Eu me apalpava e pensava: esses ossos
ainda hão de ser enterrados. Percebi que todos aqueles que
dançavam haviam de morrer e pus-me a imaginá-los mortos. Um
morto com um copo de cuba-libre passou atabalhoado por mim e me
deu um empurrão; uma morta de vestido vaporoso deixou a
garganta exposta ao lançar a cabeça para trás numa gargalhada
lúbrica207.
Diante disso, observa-se o olhar atento do protagonista em relação à situação
social à sua volta, quando ele menciona que “fora do livro” a vida apresentava-se
como um grande combate e fragmentada. Devido ao contexto em que fora escrito o
romance, tal referência possivelmente alude à situação de violência, tortura,
massacres e repressão que vigorava durante a Ditadura Militar. Nota-se como
mergulhado em tal contexto, o narrador-protagonista logo migra para uma narração
em que prevalece a ideia de finitude da vida e tendência à morte. A percepção do
protagonista melancólico, diante da caótica situação social, é de destruição e de
206
207
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: ____. Obras psicológicas completas. 1977.
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 117-118.
116
degradação. Ao imaginar que seu próprio corpo iria se degradar e ao imaginar as
pessoas à sua volta como mortas, como indivíduos que aos poucos vão se
desfazendo, infere-se a sua visão frustrada diante da vida. A imagem das pessoas
mortas que vem a mente do narrador demonstra a sua tristeza e desilusão perante a
realidade violenta da época e diante de uma sociedade que aos poucos também vai
se degradando, desaparecendo e morrendo.
Em Em câmara lenta, a tendência à morte também se faz presente em função
de o narrador não suportar mais a dor imposta e o desespero em que se encontrava
diante dos acontecimentos que ocasionaram perdas importantes em sua vida. O ego
do sujeito apresenta-se tão empobrecido e destituído de qualquer tipo de esperança
em relação ao futuro, que ele não encontra mais razões para seguir lutando por
qualquer objetivo, apenas vê a vida como uma espera da morte:
[e]le quer conversar, não apenas contar como foi e eu não sei que
conversa é essa. Talvez ele tenha esperança e ache que há saída
para essa situação toda. Sei lá. E nem importa. Mesmo que ele
tenha. Quem não tem mais sou eu, porque tudo acabou. A vida é
apenas, hoje, um adiamento da morte próxima, uma pausa entre
quem sobrevive e aqueles que já morreram, porque eles levaram o
que havia de futuro208.
Nessa passagem, o narrador-protagonista externaliza sua falta de esperança
em relação à vida e em relação ao futuro. Para ele, nada mais faz sentido, pois sofre
com a perda e com a ausência de algo. O ideal revolucionário fora suprimido e, diante
disso, ele vê seu mundo dilacerado e acabado, cuja vida, agora, destituída de
qualquer valor, já não pode mais seguir adiante. Nota-se, a partir de fragmentos como
o acima citado, como o personagem sente-se insatisfeito com o momento presente e
ao mesmo tempo sem qualquer perspectiva em relação ao futuro, pois acredita que
qualquer futuro, plausível de realização, foi extinto com aqueles que morreram.
Jaime Ginzburg, ao retomar os conceitos de melancolia levantados por
Constatinus Africanus, argumenta que a noção de tristeza profunda que é
desenvolvida a partir de uma perda desencadeia no sujeito uma espécie de pontochave tenso. Segundo o autor, esse quadro melancólico é extremamente difícil de ser
revertido ou curado, e nada pode ser pior do que uma mente perturbada por esse
208
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 83.
117
sentimento209. Geralmente, o melancólico é alguém que sofreu a perda de filhos,
amigos queridos ou algo muito precioso e que não pode recuperar210. Em função
disso, o sujeito enlutado permanece preso a um passado o qual vê com sofrimento e
pesar, devido às perdas que teve, e também se perturba com o futuro, por temer
novamente outro dano. Envolvido nessa angústia, em função da experiência negativa
do passado e por temer mais sofrimento no futuro, o melancólico não consegue
encontrar tranquilidade e vê na autodestruição a única saída. Segundo Guardini, a
ausência de referências de orientação, que tornam o presente do sujeito tão penoso,
é o que o leva ao desejo de deixar de existir, transformando a morte num alívio para a
dor da existência211.
Embora originalmente vista como uma patologia por Constantinus e Freud, a
melancolia produz uma situação que, para alguns autores, como Aristóteles e Walter
Benjamin, apresenta fatores positivos, pois é capaz de desenvolver no melancólico
uma atitude contemplativa. A respeito dessa tendência, é Benjamin quem, em seu
livro sobre o drama barroco alemão, disserta sobre o elo existente entre melancolia e
contemplação212. Em Quatro-olhos, é possível perceber passagens, como a abaixo
citada, que demonstram a tendência do melancólico de permanecer em seu quadro
de isolamento e de profundo pensar, em estado meditativo:
de manhã não queria acordar e prezava a posição horizontal acima
de tudo, envolto em lençóis e colchas que me separavam do mundo
acidentado. A meditação presa procurava um ponto fixo, perfeito, um
ponto de luz num mundo escuro, Deus ou o que fosse213.
Essa passagem demonstra que o sujeito melancólico é alguém que busca o
distanciamento do mundo real. O não querer acordar pela manhã remete a um não
querer voltar a fazer parte de um mundo caótico, e a necessidade que demonstra
Quatro-olhos de permanecer no silêncio de seu quarto, longe “do mundo acidentado”,
evidencia o seu desejo de também não querer fazer parte daquela situação social
que se apresentava. O isolamento contemplativo que busca o melancólico é também
uma tentativa para compreender o mundo à sua volta. A partir desse aparente distan209
GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante – elementos melancólicos em Lira dos vinte
anos, de Álvares de Azevedo. 1997. p. 46.
210
Idem. Ibidem. p. 46-47.
211
Apud Idem. Ibidem. p. 64.
212
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. 1984. p. 163-169.
213
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 70.
118
ciamento da realidade, as situações de autoritarismo e repressão não passam despercebidas ao melancólico. É através da reflexão e da contemplação que o protagonista procura encontrar explicações aceitáveis para a real situação histórica que o
cercava.
Nesse sentido, o fumo é também outro fator que caracteriza a ação contemplativa do sujeito: “[s]entei-me à cadeira do quarto e fiquei até a madrugada fumando,
sentindo o peso do paletó em meus ombros e acariciando as mangas, pensando naquela vida que se fora dentro daquele paletó”214. Uma cena como essa demonstra
uma situação bem típica do sujeito melancólico, uma vez que, diante de grande frustração e de comportamento alterado, passa a manifestar de forma intensa seu desânimo. Nesse caso, a representatividade através do ato de fumar remete à imagem do
sujeito desesperado, que até mesmo inconsciente tenta fazer mal contra si próprio.
Por outro lado, o cigarro serve para marcar ainda mais a condição de debilidade do
melancólico, desligado do mundo à sua volta e imerso na contemplação.
Situação similar é encontrada em Em câmara lenta, quando, por vezes, o narrador-protagonista demonstra estar só, em estado de meditação ou simplesmente em
busca de suas próprias convicções já perdidas ou desencontradas. Assim é possível
perceber:
[o] vazio, outra vez, como agora, sozinho em casa, sentado na beira
da cama, olhando a parede. Quase escuridão, um zumbido surdo, a
pele se esticando, os olhos mortos cansados de ver e vendo, ainda
uma vez, na parede o rosto dela, os cabelos curtos, os olhos ligeiramente estrábicos dando um ar de distanciamento no rosto branco,
como se visse o mundo de longe, com segurança e certeza do que
via215.
Aqui, o protagonista demonstra seu isolamento e a reflexão oriunda desse estado. Apresentar-se sozinho em seu quarto diante de uma “quase escuridão” expressa a busca do narrador pelo reencontro com seus pensamentos e com suas memórias perdidas. A reflexão, ou o simples ato de parar para pensar em tudo o que aconteceu, é característica recorrente desse sujeito, pois ele tenta, através de suas memórias, reencontrar o objetivo e assim suprir sua ausência, mesmo que por momentos. O voltar-se para o tempo passado, um tempo que não pode mais ser recuperado
214
215
Idem. Ibidem. p. 118.
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 24.
119
no presente, é uma forma de tentar recuperar algo perdido. E, assim como o exposto
por Freud, o maior desejo do melancólico resume-se em eliminar completamente as
marcas do tempo e incluir no seu presente outras dimensões temporais, sem o sofrimento decorrente do reconhecimento dessa impossibilidade e da realidade inquestionável da separação216.
Através do isolamento e da meditação, o sujeito é capaz de chegar a um profundo entendimento da verdade. Walter Benjamin, em seus argumentos, aponta para
a questão de que o melancólico mantém uma pré-disposição muito grande à contemplação e destaca que a meditação é própria do sujeito enlutado 217. Segundo o autor,
tal pressuposto está amparado por dois elementos básicos. Em primeiro lugar, pela
associação que faz da melancolia à bílis negra e, posteriormente, pela gravura de
Albrecht Dürer, que representa a melancolia, a Melancolia I (ver anexo à pág. 157).
De acordo com Benjamin, a bílis negra, que é a substância fisiológica caracterizada
dentro da patologia dos humores pelo excesso do elemento seco e frio no organismo,
é a responsável pelo desenvolvimento da melancolia bem como é capaz de motivar o
espírito enlutado à meditação.
Benjamin ainda acrescenta a esse elemento o fato de que a teoria da
melancolia está diretamente associada à doutrina das influências astrais, sendo que,
nesse quadro, Saturno é o planeta que governa o melancólico. Sendo assim, ao ser
compreendida na perspectiva de Saturno, que é o planeta mais alto e o mais afastado
da vida cotidiana, responsável por toda a contemplação profunda, a alma do sujeito
melancólico é convocada para a vida interior, afastando-se das exterioridades,
levando-a a subir cada vez mais alto e inspirando-lhe um saber superior e um dom
profético218. Em relação ao segundo elemento que representa a melancolia enquanto
propícia à meditação, refere-se ao quadro de Dürer, a Melancolia I, o qual trás um
personagem, situado em meio a uma série de objetos dispersos pelo chão, que tem
seu rosto apoiado em uma das mãos, olhar distante e perdido, alheio a tudo à sua
volta. Tal figura ilustra, segundo Benjamin, a imagem convencional da tristeza e um
símbolo do homem contemplativo, em busca da verdade profunda.
Friedrich Schiller, em seu texto Acerca do sublime, argumenta que a
imensidão do universo contrasta com a finitude do ser humano. Diante disso, a
sensibilidade que emanaria do sujeito estaria atenta à grandiosidade, justamente
216
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: ____. Obras psicológicas completas. 1977.
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. 1984. p. 163.
218
Idem. Ibidem. p. 171-172.
217
120
voltada para a demanda de superar limitações inevitáveis219. De acordo com o autor
alemão, a contemplação retira o espírito do melancólico do cativeiro da realidade
opressiva de sua vida física e representa uma recusa da imponente condição em que
vive.
Tais apontamentos, que não deixam de retomar algumas proposições já
iniciadas por Aristóteles e Constantinus Africanus, contribuem para a compreensão
de situações, hábitos, atitudes e comportamentos expressados pelos narradoresprotagonistas de Quatro-olhos e de Em câmara lenta. Nos respectivos romances,
os protagonistas, imersos em um sistema autoritário e violento, lutam constantemente
contra as amarras impostas às suas existências. Dentro desse plano, nota-se que
ambos os protagonistas demonstram ciência da condição de fracasso humano em
que se encontram e, diante disso, é possível observar que, por vezes, seus
comportamentos oscilam. O caráter dos protagonistas, não raras vezes, passa a ser
determinado por um dualismo intenso, cuja personalidade ora apresenta-se forte e
poderosa, ora frágil e precária.
Em Quatro-Olhos observa-se esse espírito dual, de acordo com o abaixo
exposto:
[e]m meio à empreitada, me detinha por vezes em esquinas e as
sombras das nuvens me ultrapassavam, de modo que eu ficava às
vezes sombrio e outras iluminado. Não ventava, mas nos momentos
em que a sombra saía de mim (pois não era eu que estava à
sombra, ela passava por mim) ou quando a luz corria por mim, de
repente e só nesses momentos eu me sentia me movimentando,
embora estivesse parado. E lembrava, não sei se do livro ou da
vida220.
Nota-se a dificuldade que o sujeito melancólico tem para administrar situações
referentes ao espírito e ao corpo. Nesse estado, o melancólico sofre uma ruptura do
seu universo interior com os elementos exteriores que o cercam. A dualidade está
em, mesmo tendo consciência da realidade que o cerca, o sujeito melancólico
permanece no seu universo íntimo e triste, como alguém que procura o refúgio dentro
de si próprio. Nessa cena, o melancólico é alguém dividido entre o desejo da ação e a
dificuldade para realizá-la. As ideias contraditórias invadem seu pensamento, e sua
personalidade passa a migrar de um extremo emocional para outro: ora o narrador
219
220
SCHILLER, Friedrich. Acerca do sublime. In: ____. Teoria da tragédia. 1991. p. 54.
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 31.
121
sente-se “iluminado” ora “sombrio”. Sua percepção aguçada da realidade, provinda
da inclinação à meditação, apresenta um sujeito tipicamente melancólico, desiludido,
profundamente triste e que sente prazer em expor sua debilidade diante das perdas
que sofrera. Contudo, essa mesma necessidade de exposição da fragilidade, de
modo muito particular, é invertida na narrativa de Quatro-olhos quando o narrador
demonstra sua insistência em recriar sua obra, em lutar contra o esquecimento e
reconstruir sua vida.
Em Em câmara lenta, o mesmo paradoxo é encontrado. O sujeito melancólico
– que, nesse caso, apresenta-se vencido e debilitado perante a derrota e que não vê
mais sentido em viver – é o mesmo que, em determinadas cenas, irá à luta numa tentativa de vingança em honra às perdas que tivera. Diante o exposto, observa-se:
[a] sensação de perda é física, como se faltasse a laringe ou o esôfago e não vai passar porque se, ao menos, tivesse servido para alguma coisa. Mas não, simplesmente acabou, e com isso acabou o
tempo [...]. [É] muito tarde. Para qualquer coisa; e, além do mais, se
chamar atenção, que é que tem? Se eles virem e atirarem e as balas
pegarem no peito, na cabeça, que é que tem? Se a dor vier e rasgar
o corpo de cima a baixo é um alívio221[...].
[L]utar. Qualquer outra alternativa é fuga, é demissão, é colaboração
com o inimigo. E isso continua valendo: qualquer escolha que a pessoa faça será uma traição se ela não escolher a luta [...].
[S]obreviver e gritar que ainda estamos vivos222.
O primeiro fragmento apresenta o narrador-protagonista extremamente debilitado diante da sua condição de sujeito derrotado pelo sistema violento e opressor. O
vazio ocasionado pelas perdas que sofrera é tão grande e doloroso, que se iguala, na
sua concepção, a um órgão vital indispensável ao funcionamento de seu corpo. Diante disso, ao dar-se conta do seu dilaceramento, o personagem não apresenta qualquer zelo pela preservação de sua própria vida, pelo contrário, chega a creditar que a
morte pode até servir como um alívio para sua dor. No entanto, no segundo trecho
citado, o narrador demonstra um pensamento contrário em relação ao primeiro. Neste, ele busca forças para continuar vivendo e lutando. Mesmo diante da dor e da violência socialmente impostas, ele demonstra a necessidade de manter-se vivo para
continuar a luta que fora perdida no passado. A renúncia a esse ideal, bem como o
221
222
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 13-14.
Idem. Ibidem. p. 49-50.
122
abandono da própria vida, passam a ser criticados pelo mesmo sujeito que em um
momento anterior parecia não se importar mais com tais elementos.
Diante da percepção das antíteses apresentadas pelos sujeitos melancólicos,
torna-se necessário retomar as proposições levantadas por Benjamin no que se
refere ao fato de existir uma associação entre o planeta Saturno, o deus Cronos e a
condição melancólica. De acordo com o conhecimento mitológico, para os gregos,
Cronos é o deus marcado pela dualidade. Por um lado, ele é um deus benéfico da
agricultura, que realiza as festas das colheitas; por outro, é um deus sombrio,
solitário, que vive na extremidade mais recolhida da terra. É o deus da morte e dos
mortos, pai dos deuses e dos homens, é capaz de gerar a vida, mas também de
devorar seus próprios filhos; por um lado, é um monstro capaz de ser vencido pela
astúcia mais vulgar, e, por outro, é o deus antigo e sábio, venerado como a
inteligência suprema223.
Assim, conforme argumenta Ginzburg, a posição do planeta Saturno, as atitudes de Cronos (criar e matar) e as suscetibilidades da bile negra (cuja principal propriedade, segundo Aristóteles, é a inconstância, oscilando entre graus intensos de
calor e frio), por caracterizarem uma articulação de extremos, suscitam também no
melancólico uma vocação para sentimentos extremos224. Tais desequilíbrios tendem
a afastar o melancólico de uma certa média equilibrada, fazendo com que este oscile
entre a ansiedade e o abatimento, desviando da norma regular e rumando sempre
aos extremos. Sendo assim, de acordo com Aristóteles, essa variação de comportamento da bile negra tornaria o melancólico um ser “polimorfo”, que agiria e sentiria
de maneiras diversas e contraditórias, capaz de oscilar entre a atimia, o desapego à
vida, e as manifestações eufóricas225: “para resumir, pela razão de que a eficácia da
bile negra é inconstante, inconstantes são os melancólicos”226.
Ginzburg ainda aponta para os estudos de Romano Guardini, Jean-Pierre Schaller e Oliver Pot ao tratar da existência do dualismo no sujeito melancólico 227. Em
Guardini, o comportamento dual do melancólico acontece em função da coexistência
paradoxal de dois instintos do sujeito: a afirmação de si, em busca de uma ascensão,
223
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. 1984. p. 172.
GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante – elementos melancólicos em Lira dos vinte
anos, de Álvares de Azevedo. 1997. p. 50.
225
ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia: o problema XXX, I. 1998. p. 99.
226
Idem. Ibidem. p. 107.
227
GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante – elementos melancólicos em Lira dos vinte
anos, de Álvares de Azevedo. 1997. p. 55.
224
123
e a renúncia à existência. Para esse autor, a dualidade ocorre em função do sujeito
melancólico, em meio à sua tristeza, ao buscar transcender suas próprias limitações,
não conseguir devido à sua precariedade. Assim, seus valores são relativizados, suas
referências passam a ser duvidosas e incertas, de modo que o sujeito sente-se desorientado consigo mesmo. Em Schaller, o dualismo do melancólico é visto como uma
frustração em decorrência da oposição entre as expectativas deste e sua realidade
frágil. O melancólico é alguém inquieto diante da finitude das coisas e aspira vencer
suas limitações; entretanto, frustra-se ao perceber os próprios limites. Por sua vez,
Pot vê a melancolia como um estado de passagem, como o reconhecimento da consciência do mover-se de uma faixa etária para outra. Em função disso, a melancolia se
apresentaria dual, pois resultaria de um processo de passagem entre dois estados228.
Outra característica significativa observada na narrativa de Quatro-olhos e de
Em câmara lenta refere-se à questão problemática da comunicação de seus narradores, provavelmente desencadeada pela perturbação de suas mentes. A respeito
dessa particularidade, em Quatro-olhos, pode-se observar passagens como:
[n]ão creio que esse gordo aparecesse outras vezes. Vêm à memória, porém, pedaços em que eu falava de calçadas ensolaradas, pisadas por pés femininos no fim da manhã. A passagem da dona
desses pés interrompeu conversa sobre galinhas, entre duas senhoras a um portão, e conciliábulo num carro, entre um despachante e
seu freguês [...]. Também me surge ao quengo ter escrito sobre corredores, espaços abertos em salas burocráticas, em que se concentravam vida e conversas na firma. Minha mulher apreciava licoreiras,
isso posso dizer com certidão; nosso apartamento dispunha de cristaleira, porta-chapéu e outros testemunhos da época mais austera229.
Através desse excerto, observa-se como a linguagem de Quatro-olhos aparece destituída de organização. Tem-se no fragmento uma mescla entre algumas lembranças por parte do narrador de trechos de seu livro original e também vagas memórias da vida cotidiana que levava com sua mulher. A fala do protagonista apresentase problemática, pois a conexão entre as passagens do livro e de sua vida real apresenta-se incompleta. Por outro lado, a rapidez com que migra de um assunto para
outro, como quando relata o que lembra de ter escrito em seu original e logo em seguida, quando começa a narrar gostos que possuía sua mulher, bem como determi228
229
Idem. Ibidem. p. 55-57.
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 84-85.
124
nados objetos que possuíam em sua casa, demonstra a precariedade de sua mente
para organizar a linguagem e definir como esta deve ser externalizada.
A narrativa de Em câmara lenta também toca nesta questão. A linguagem
inacabada, cercada por reticências e por não ditos dessa obra, ratifica a fragilidade
em que se encontra o ego do sujeito melancólico, denunciando sua quase impossibilidade de organização do discurso:
[u]ma imagem que não é mais do mundo, mas de uma solidão voltada sobre si mesma. O gesto incompleto, estilhaçado, no momento
em que ela.
O barco à deriva foi encontrado por alguns caboclos. A polícia veio
ver o corpo do piloto, encontrou os livros e o disco. Os serviços de
segurança consideraram os livros como altamente subversivos230.
Com base nesse fragmento, nota-se que em um primeiro momento o narrador
não leva seu discurso até o final e o interrompe de maneira brusca quando relata a
cena em que lembra da possível morte de sua amada. Quando a expressão “no momento em que ela” termina uma frase, que possivelmente teria continuação, entendese com isso que o narrador, em função da profunda dor que sofre, ou não quer levar
por vontade própria esse discurso até o final, ou não sabe o que dizer, devido ao seu
desconhecimento em relação a esse episódio. Aqui, tem-se também a mudança de
assunto de maneira muito rápida, e isso acontece em virtude das lembranças fragmentadas que surgem numa mente debilitada, impossibilitando uma sequência de
ideias coerentes entre si.
Segundo Kristeva, o discurso fragmentado vai ser o produto final do melancólico, pois é resultado do seu ego que também encontra-se fragmentado231. A fragmentação é então um sintoma da condição melancólica em que se encontra o sujeito.
O melancólico não consegue organizar uma espécie de relato lógico e conexo quando sua consciência está perturbada pelo sentimento de perda. O discurso do deprimido surge construído muitas vezes com signos absurdos, com sequências retardadas,
deslocadas, paradas, o que traduz o desmoronamento do sentido no não – nomeável
em que mergulha232.
230
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 43.
KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. 1989. p. 25.
232
Idem. Ibidem. p. 54.
231
125
Na obra Quatro-Olhos, o discurso aparece fragmentado e totalmente desconexo. O protagonista mescla uma série de acontecimentos que ora se confundem
com realidade, ora com delírio, ora com passagens que se encontravam no seu livro
perdido, demonstrando assim a debilidade em que se achava o sujeito e ratificando a
presença da melancolia na vida do sujeito. Por sua vez, Em câmara lenta apresenta
uma narrativa também bastante dificultosa, pois o narrador, com uma linguagem não
menos marcada pelo desânimo e pelo desalento que toma conta de si, expõe histórias que se misturam com seus devaneios e suas desilusões. Fato é que ambas as
obras mergulham profundamente nas raízes autoritárias do Brasil do período ditatorial
e geram narrativas desafiadoras e extremamente desconfortáveis, que fogem do padrão literário canônico. Tais narrativas expõem a olho nu o espírito melancólico e sem
perspectiva, instaurado nos indivíduos, devido às represálias ocasionadas pelo violento sistema político oriundo da Ditadura Militar.
3.3 Trauma e fragmentação em Quatro-olhos e Em câmara lenta
Havia em mim pedaços mortos, ia-me, aos poucos habituando à
sepultura; difícil ressurgir, vagar na multidão, à toa, como alma
penada.
(Memórias do cárcere, Graciliano Ramos)
São profundas as marcas deixadas na memória dos indivíduos que passaram
por experiências de violência, oriundas do período ditatorial brasileiro. Durante as
duas décadas, entre 1964 e 1985, em que governo militar esteve no poder, o país
assistiu e também sofreu as mais distintas e hediondas formas de violência. O autoritarismo do governo militar lançou mão de estratégias extremamente brutais a fim de
barrar qualquer manifestação, por parte da sociedade, que se mostrasse adversa ao
modo governamental vigente. O rigor com que a repressão passou a dominar a sociedade brasileira da época era marcado desde o controle de informações nos meios
de comunicação à censura a produções artísticas e culturais. Sobretudo foi através
de perseguições, prisões, e os inúmeros modos de tortura, que iam desde pressão
126
psicológica a agressões físicas, com os mais distintos instrumentos, que a brutalidade
do poder vigente foi mais incisiva e destruidora.
A tortura a que eram submetidas as pessoas suspeitas de qualquer manifestação que pudesse ameaçar o governo não só provocou dor física nas vítimas, mas foi
responsável pela destruição moral e pelo surgimento de marcas indeléveis no psicológico dessas pessoas. O fato de fazer com que os torturados chegassem ao limite
da dor física e ao extremo de seu emocional é fator determinante para as distintas
sequelas que passaram a habitar o psíquico dos sobreviventes. A tumultuada relação
entre memória e esquecimento, discutida em subcapítulo anterior, exemplificada pela
necessidade de lembrar do passado, prática que entra em choque com a dificuldade
para fazê-lo, devido ao esquecimento que confunde as lembranças, é então marca
proveniente da tortura. Da mesma forma, destaca-se o forte vínculo entre as lembranças do passado e a condição melancólica, a qual passa a se fazer presente no
emocional do sujeito em decorrência das perdas desse passado, sejam elas físicas,
como pessoas, ou emocionais, como o esquecimento.
Entretanto, a relação de choque que ocorre entre memória e esquecimento,
bem como o fator perda que desencadeia a melancolia, não podem ser observados
isoladamente. Há uma relação intrínseca entre a questão da memória, a perda ocasionada pelo esquecimento e o estado melancólico, cuja manifestação problemática e
dificultosa vai ser observada através do discurso, dos problemas de linguagem dos
indivíduos que sobreviveram às situações limites. É na linguagem fragmentada, no
discurso truncado, repetitivo e sem logicidade, que se observa quão inapagáveis são
as marcas deixadas pela violência e como podem permanecer, para sempre, impregnadas no psicológico de suas vítimas. Em outras palavras, o que se argumenta aqui é
que a linguagem fragmentada, assim como pode ser observada tanto em Quatroolhos quanto em Em câmara lenta, é também resultado da experiência traumática
suscitada pelo período ditatorial brasileiro em curso na época.
A escrita dessas obras não pode objetivamente ser classificada na ordem da
realidade, como observação empírica, mas à ordem do “real”, enquanto trauma e como uma experiência impossível de ser contada do modo como aconteceu. As lembranças que habitam tanto a mente do narrador de Quatro-olhos, quanto de Em
câmara lenta, dizem respeito à esfera daquilo que não pode ser simbolizado, pertencem ao indizível, à ordem do excesso, encontrado na origem do trauma. Este, segundo Freud, configura-se no estado psicológico que fica um sujeito que foi submetido a
127
um susto (schreck) para o qual não estava preparado. Segundo o psicanalista, é a
angústia (angst) que coloca o sujeito em estado de espera e o prepara para um perigo, mesmo que desconhecido, livrando-o de possíveis neuroses. Entretanto, a preparação não antecede o susto ou o horror, que ocorre subitamente, originando o trauma233.
Segundo Seligmann-Silva, sobreviventes de situações extremas, como é o
caso da Ditadura Militar, sentem necessidade de narrar o trauma vivenciado, o que se
configura num desejo de renascimento, uma vez que o indivíduo precisa retornar à
sua vida e reconstruí-la234. Esse relato, que ficou conhecido como “testemunho”, nem
sempre é algo fácil de ser concretizado, pois não basta, à vítima, narrar a experiência, é indispensável a presença de alguém disposto a ouvi-la. A necessidade da presença de um ouvinte pode ser suprida numa terapia, quando a dor é externalizada
diante desse ouvinte, mas também esse ouvinte não precisa ser necessariamente
uma pessoa, pode ser a própria escrita da experiência. Diante dessa estratégia, muitos são os sobreviventes que apelam à literatura de testemunho como uma tentativa
de transpor a barreira traumática e também de apresentar uma outra versão da história, questionando e colocando em xeque a versão oficial dessa história contada pela
classe detentora do poder.
Com base em tais pressupostos, observa-se, nas obras literárias em estudo,
como são representadas as situações de violência a que estavam expostas as pessoas da época. Tanto Renato Pompeu, quanto Renato Tapajós, figurantes desta época de autoritarismo que o Brasil enfrentou por conta da Ditadura Militar, vivenciaram
situações violentas ocasionadas por este sistema e buscaram, por meio da literatura,
dar testemunho às suas experiências.
Dessa forma, é possível observar, por meio do discurso testemunhal desses
autores, como a violência imperava e de que forma contribuía para a degradação da
sociedade durante o período ditatorial. Em relação a isso, destaca-se um fragmento
da obra Quatro-olhos:
[a] chuva era também objeto de distinta consideração. No meu texto,
vinha aos pingos, parecendo nunca repetir-se exatamente sobre o
233
FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. In: ____. Obras psicológicas completas.
1976b.
234
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: a questão dos testemunhos de catástrofes
históricas. Psic. Clin., 2008. p. 65-82.
128
mesmo ponto, mas acho que isso era ilusão. A chuva fria, caindo
sobre a terra seca, fazia flutuar aquele cheiro característico. A gente
chapinava onomatopeicamente nas ruas inundadas, a umidade penetrando roupa da gente dentro. Cabelos úmidos louros ficavam escuros e desmanchavam-se, alterando a fisionomia das pessoas;
ombros molhados aceitavam guarda-chuva de estranhos e pés afundavam n’água, todos andando com muita pressa. É sabido que a
velocidade dos pedestres se acelera com a deteriorização do tempo,
embora seja esse um conhecimento empírico. Seria necessário postar vários técnicos e cientistas numa esquina, munidos de trena, cronômetro e folha de anotações para saber isso com certeza científica.
Os pesquisadores determinariam uma distância qualquer, digamos
vinte metros a contar de um poste, e ficariam observando quanto
tempo as pessoas levariam para percorrê-la. Examinando alternadamente em dias de sol e de chuva, seria possível finalmente determinar se as pessoas andam mais depressa com mau tempo ou
não. Aí, eu escritor, poderia dizer com confiabilidade a frase: “todos
andando com muita pressa”, como está acima235.
O fragmento acima poderia ser visto como a descrição de uma situação trivial
do cotidiano. Entretanto, pode-se inferir, tendo em vista o contexto em que tal obra
fora produzida, que o que esse trecho sugere é um jogo de metáforas para referir-se
à violência praticada pelo poder vigente. A menção à chuva pode ser vista como uma
alusão à repressão, à violência e à tortura. Da mesma forma, a referência aos “cabelos úmidos”, que se desfazem devido à chuva e que alteram a “fisionomia das pessoas”, pode aqui ser analisada como uma alusão ao pós-tortura, uma vez que as vítimas ficavam completamente desfiguradas fisicamente, devido ao elevado grau dos
espancamentos.
O trecho ainda menciona o fato de que as pessoas apressam mais o passo
quando há chuva e que também aceitam a ajuda de estranhos para se protegerem
dela. A situação ilustrada pelo narrador demonstra que, em circunstâncias como essas, as pessoas correm porque têm medo da perseguição e da violência e, por isso,
buscam proteção para ficar a salvo. O sol também é mencionado nessa passagem;
entretanto, de maneira oposta à chuva, pois, ao se referir ao sol, o narrador discute a
questão de que, em dias ensolarados, as pessoas parecem andar menos apressadas, o que leva a pensar que essa situação é uma menção a tempos de paz e de
liberdade, em que as pessoas podem andar tranquilamente pelas ruas, sem medo.
Dessa forma, a chuva, como representação do mau tempo, é também sinônimo de
235
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 132.
129
tempos difíceis e sombrios, assim como aquele em que as pessoas viviam sob repressão e violência.
Em Em câmara lenta, também é possível perceber a preocupação do narrador em demonstrar, por várias vezes, a situação violenta e degradante em que estava
mergulhada a sociedade brasileira da época. O trecho abaixo ilustra tal colocação:
[o] mundo continua envolto em algodão, os ruídos amortecidos, as
pessoas distantes, mas tem um monte de gente, isso distrai um pouco e é preciso prestar atenção aos gestos normais. Tranquilo como
qualquer pessoa, o rosto só transmite o mesmo alheamento cansado
de todo mundo, dos que estão voltando de um dia de trabalho monótono e medíocre [...]. Mas não se deve deixar transparecer que nos
transformaram em carne moída duma vez só e o rosto não transmite
nada [...]. Por isso a gente está cada vez mais isolado, sozinho desconfiado, mas tudo isso nem tem mais importância236.
Através dessa passagem, o narrador apresenta algumas características do
cotidiano de violência e de medo em que estavam mergulhados os indivíduos. Fala
de como as pessoas viviam temerosas, pois o perigo poderia estar escondido atrás
de qualquer rosto, e, atrás da face que menos despertasse suspeita, poderia surgir o
horror. Trata-se, pois, de abordar como os militares infiltravam-se no meio de diversos grupos para poder, com maior facilidade, perseguir e prender os suspeitos ou até
mesmo saber o que estava acontecendo nas diversas esferas da sociedade, para,
assim, coibir qualquer manifestação contrária aos interesses do governo. A menção
aos rostos que nada transmitem refere-se ao silêncio a que deveriam se submeter as
pessoas para que não fossem perseguidas e presas. O importante era não demonstrar qualquer contrariedade e, mesmo aquelas que o sistema repressivo já havia se
encarregado de “interrogar”, não poderiam deixar transparecer em sua face qualquer
sinal de desfiguração, tanto física quanto moral.
As aludidas referências que ambos os narradores fazem acerca da realidade
ditatorial da época demonstram, pois, a necessidade de dividir com alguém, levar a
um possível ouvinte ou leitor o conhecimento acerca da situação social a que a população estava submetida. Segundo Shoshana Felman, a propagação do testemunho
dos tempos de crise e sua onipresença nesta “era dos extremos” apresenta-se como
uma possibilidade de transmissão de conhecimento e direcionamento para o pensar
236
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 19.
130
da história enquanto produtora de catástrofes237. Do contrário, argumenta a autora,
ao seguir preceitos teóricos benjaminianos, não buscar nas ruínas do passado respostas para o presente é uma forma de aumentar a incompreensão em relação aos
rumos da experiência humana. Jeanne-Marie Gagnebin, estudiosa das teorias de
Benjamin, explica que cada acontecimento histórico do passado espera pacientemente ser reconhecido, cuja descoberta é só uma questão de perseverança e de habilidade. A crítica ainda cita palavras de Dilthey, quando diz que a célula original do
mundo histórico é a experiência vivida238. Para ela, só a experiência é capaz de compor um continuum histórico aceitável, o que indica que o testemunho, enquanto resultado de uma experiência vivida, torna-se o caminho ou o modelo de narração capaz
de escrever uma outra história.
Seligmann-Silva também comunga da tese de que o testemunho de cenas
violentas extremas apresenta-se como um registro da história, pois pode servir como
um documento para uma contra-história ao apresentar outro ponto de vista discrepante da história oficial239. Contudo, apesar de o testemunho apresentar um considerável
conteúdo para a história e de aquele que sobreviveu uma situação extrema sentir
necessidade de testemunhar e contar o vivido, enquanto estratégia de libertação e
tentativa de retorno à vida, o testemunho é algo que não se dá de maneira tranquila
ou plena de êxito. O sujeito percebe que a linguagem, seja de forma oral ou escrita,
não consegue dar conta da tarefa de narrar o que se propôs, gerando, assim, um
grande conflito diante do querer narrar e de sua impossibilidade em função dos problemas psicológicos e de memória, ocasionados pelo evento traumático.
Em Quatro-olhos, é possível notar a necessidade que sente o narrador para
retomar um possível “curso normal” da vida. Observa-se como o protagonista debatese, através da narração, na busca pelo restabelecimento da ordem que parece ter
sido destruída. Diante disso, destaca-se:
enfim queria dar notificação de que festa é festa, advertir que ou se
está vivo ou morto, morto-vivo não funciona, eia, eia sus, vamos armar grossa farra, vamos impor a ordem nesse caos, sou partidário
convicto da ordem; faça-se a ordem, pois – alguém dê a ordem, a237
FELMAN, Shoshana. Educação e crise ou as vicissitudes do ensinar. In: NESTROVSKI, Arthur;
SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação. 2000.
238
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória e libertação. In: ____. Walter Benjamin: os cacos da
história. 1982. p. 63.
239
SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e
tradução. 2005. p. 89.
131
cione o apito, primeiro o surdo, depois as caixas, tarol, atabaque, cuíca e tamborim, haja ordem e não o caos desordenado das conversas desconexas e isoladas, para fazer isso não precisa haver reunião, fica cada um no seu canto ou cada par na sua cama que ninguém vai incomodar, é preciso acabar com essa desordem, onde está o mestre-sala, cadê a porta-estandarte240.
Através desse excerto, nota-se como o narrador ansiava pelo restabelecimento da ordem. Tal necessidade demonstra o quão fragilizado se encontrava em decorrência de tudo o que havia vivido. Suas ideias encontravam-se desconexas, a ponto
de não identificar, muitas vezes, se estava vivo ou morto. A menção aos vários instrumentos musicais remete à necessidade de provocar a harmonia, pois, assim como
os sons dos diferentes instrumentos musicais geram um só som harmonioso, inferese seu desejo de também conseguir concatenar em sua mente todas as lembranças
e informações que se apresentavam confusas e embaralhadas em função do trauma
sofrido.
Da mesma forma, nota-se, no discurso de Em câmara lenta, a preocupação
do narrador pelo restabelecimento da ordem. Assim, observa-se:
os oradores falaram dos interesses do imperialismo americano, da
resistência do povo cubano, de socialismo e liberdade. Aqueles conceitos que eu já havia lido em algum lugar começaram a tomar contornos reais. Eu conheci o mundo pelos livros, só depois aprendi a
reconhecê-lo na vida. Ali, no sentimento exaltado de revolta, no envolvimento pela emoção, aquelas palavras, que nos livros eram frias,
saltaram para dentro da vida, reais, palpáveis, vibrantes: liberdade,
revolução, socialismo. Saí de lá de madrugada, cansado, confuso e
feliz. Aquelas ideias haviam se tornado reais, mas estavam todas
desarrumadas, desarticuladas, caóticas. Levei muito tempo tentando
arrumá-las, mergulhando na vida para colocá-las na ordem. E descobri que sua ordem é a própria vida241.
Através desse fragmento, nota-se que o narrador é alguém que vê tudo desintegrado à sua volta. Ele se dá conta de que a situação que vivera durante o período
ditatorial o perturbara muito. Os acontecimentos faziam parte de sua vida e ele participara de tudo, entretanto, percebe que, por mais que tente organizar em sua mente
e entender de maneira coerente tudo o que estava acontecendo no país, não consegue êxito. O protagonista então percebe que não é possível estabelecer a ordem em
240
241
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 33-34.
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 71-72.
132
sua mente para entender de forma lógica acontecimentos e situações que já se apresentam destituídos de logicidade e coerência. A busca pela ordem que pode ser inferida com essa passagem demonstra também uma tentativa de restabelecimento de
uma ordem interior, de uma organização de ideias e pensamentos capazes de libertálo do caos psicológico em que se encontrava.
O conflito psicológico e o descontrole dos narradores, o que pode ser observado nos fragmentos acima, são tratados por Calegari como uma manifestação daquilo que representa o desconhecido, o não convencional. Ao se observar a busca
pela ordem como uma recorrente tanto em Quatro-olhos, quanto em Em câmara
lenta, pode-se dizer, de acordo com o mesmo autor, que a noção de desordem em
que se encontram os narradores é também a base para a linguagem fragmentada e
desordenada. Estar exposto a ocorrências sociais de grande impacto, como situações
de violência, faz com que a constituição subjetiva do indivíduo seja abalada, problematizando, dessa forma, o próprio ato de narrar242.
A busca pelo restabelecimento de um certo curso normal das coisas é um desejo explicitado por ambos os protagonistas. Porém, de acordo com as formulações
de Seligmann-Silva, a narrativa do testemunho sempre irá dar-se de maneira ambígua e conflituosa. Em outras palavras, por mais que o sujeito se esforce para relatar,
os traumatismos por ele sofridos foram além de sua capacidade de elaboração e assimilação. O sobrevivente não consegue atribuir legitimidade aos eventos. Dessa
forma, o desconforto diante da impossibilidade de articulação da linguagem dá origem
a um discurso marcado pela fragmentação.
Em Quatro-olhos, o discurso fragmentado e a consciência do narrador diante
da insuficiência da linguagem para narrar perpassam toda a obra. Em relação a isso
observa-se:
complexa rede de interações sociais, pois, como se diz, a palavra
nunca é alienada, materialização forçosa que é, havia naquele dia se
entrelaçado de maneira que me tirava da boca o que tinha a dizer.
Muito maior contribuição daria à ciência da estética não quem explicasse a menor vírgula dos que escrevem, mas o silêncio de quem
não cria. Esse é o problema central, a meu ver.
Naquele dia, portanto, o choque permanente de obscuras potências
sociais, a história em movimento, a luta de classes em escala internacional, as contradições entre o homem e a natureza, tolheram i242
CALEGARI, Lizandro Carlos. A literatura contra o autoritarismo: a desordem social como
princípio da fragmentação na ficção brasileira pós-64. 2008. p. 279.
133
nexplicavelmente meu astro, que disso não tinha consciência, agente mais passivo do que ativo do surdo conflito que o amoldou tal como é. A consciência das massas, durante aquele período de horas
claras no quadro de meridianos e paralelos em que gradativamente
me movimento, parecia particularmente entorpecida, a ponto de, ao
perpassar por mim o desejo de prosseguir a obra, não atingiu grau
suficiente para me levar a pegar a caneta. Talvez, no entanto, a conjuntura dos dominantes é que estivesse notavelmente intensificada à
luz daquele dia. Houve empate e fiquei imobilizado como agente social da produção. É possível, porém, que a realidade esteja sendo
transposta às avessas no meu sentir e que exatamente a ausência
de meu papel, a inexistência de meu texto, melhor conviesse, naquele momento histórico particular, aos interesses do progresso243.
Esse fragmento demonstra o problema enfrentado pelo protagonista no decorrer da escrita de sua obra. Ele sente necessidade de narrar alguns fatos que considera importantes, mas, ao mesmo tempo, depara-se com a dificuldade de organizar as
ideias. O narrador não encontra linguagem adequada para transmitir para o papel as
cenas que se “entrelaçavam” em sua memória. Afora isso, o narrador tem em sua
mente as imagens e o conhecimento a ser transcrito, bem como tem o desejo de escrever e levar adiante suas palavras que considera livres de qualquer alienação; contudo, dá-se conta do quão dificultoso se tornou concatenar com certa coerência essas
ideias que se emaranhavam em sua mente. Percebe que não consegue êxito com as
palavras e deixa transparecer em seu texto que, ao não conseguir escrever, mesmo
assim estava contribuindo à ciência, pois o silêncio por nada conseguir dizer é símbolo de sua precariedade e de sua destruição psicológica, como resultado de um sistema opressor e violento.
O romance Em câmara lenta também evidencia a problemática da insuficiência da linguagem. Em muitas cenas, é possível observar a luta interna do narrador
diante de sua percepção de que as palavras já não podem mais ser usadas com facilidade para expressar tudo aquilo que deseja. Diante disso, observa-se:
[d]e repente o mundo está cheio de algodão, espesso e pegajoso, as
palavras não fazem mais sentido porque não nomeiam coisas – apenas soam como ecos, prolongados por ouvidos acostumados a
classificá-los244.
243
244
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 38-39.
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 15-16.
134
O jogo de armar está ai, para quem puder entendê-lo e encaixar todas as peças. Eu não posso mais – nenhuma coerência quando se
destroem algumas peças: ela e a confiança245.
Ao observar o fragmento acima citado, percebe-se como o narrador encontrase deslocado em meio às situações sociais que se apresentam e das quais fora vítima. Seu discurso denuncia a forma como vê o mundo, como algo confuso, o qual ele
não consegue simbolizar, encontrar explicação plausível por meio da linguagem para
a situação em que se insere. A dificuldade para lidar com as palavras, para encontrar
uma linguagem possível de explicar como ele se sente, é expressa com profundo
pesar. O protagonista evidencia que repentinamente “o mundo está cheio de algodão”, o que pode ser entendido como uma espécie de bloqueio mental que o impossibilita de ver com clareza os acontecimentos à sua volta e também de concatenar as
palavras e o discurso. Nota-se, em função da percepção de sua carência de linguagem, a dor que o protagonista sente, a ponto de chegar à desistência e ao abandono
da tarefa de “encaixar todas as peças” na tentativa de assimilar o que acontecera e
que o perturbava tanto.
O problema encontrado pelos narradores de Quatro-olhos e de Em câmara
lenta, no que diz respeito à questão da escassez de linguagem para narrar a experiência vivida, é uma questão que pode ser analisada à luz da teoria benjaminiana. É
Walter Benjamin quem observa que a submissão do indivíduo a episódios violentos
acarreta uma problematização na linguagem, e, consequentemente, do próprio relato.
Tais pressupostos teóricos são abordados pelo crítico em seu texto Experiência e
pobreza, quando levanta hipóteses acerca do fato de os combatentes do século XX,
ao retornarem da Primeira Guerra Mundial, apresentavam-se praticamente silenciosos, pobres em comunicação, completamente incapazes de narrar o vivido246. De
acordo com os levantamentos do autor, o indivíduo, diante de uma situação de impacto violento, está sujeito a uma desordem mental. Dessa forma, o testemunho, enquanto narrativa do trauma vivido, também é influenciado por essa desordem psicológica, refletindo diretamente na representação. Diante disso, a exposição dos narradores de Quatro-olhos e de Em câmara lenta às situações violentas, provocadas
pelo regime autoritário, acaba por causar forte impacto psicológico neles, explicando,
assim, a dificuldade encontrada por eles para construírem seus relatos.
245
Idem. Ibidem. p. 87.
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 2006. p.
115.
246
135
Conforme discute Seligmann-Silva, a fragmentação textual seria então o produto final do sujeito diante de sua incapacidade de atribuir sentido à experiência vivida. O evento traumático extrapola os limites de capacidade mental do sujeito, destituindo-o de qualquer condição de assimilação plena247. Dessa forma, sem conseguir
encadear as ideias e distante de qualquer forma plausível de simbolização do trauma,
o discurso acontece em fragmentos.
E é assim, através de fragmentos, que o romance de Renato Pompeu se constitui e contribui no testemunho que se coloca em oposição ao discurso oficial do Estado e às repressões institucionais. A seguir, observa-se um trecho retirado de Quatroolhos que ilustra como se dá essa narrativa:
não sei se na vila em que crescia a roseira ou se noutra vila dei, a
certa altura, para enfiar um incêndio. Havia num extremo da vila uma
fabriqueta de cera, em cujo muro lateral que dava para o pátio de
terra ao fundo da vila, limitado pelo beco de entrada, ocorriam muitas marcas sujas de bola. Aquele pátio de terra nua, mais alto que o
leito da vila, era chão sagrado para a molecada. Certo sábado à tarde o pátio ficou coberto de densa fumarada, que se enovelara negra:
a fabriqueta tinha pegado fogo [...].
A roseira tornou-se meio escura de fuligem do incêndio. A dona de
casa em cujo jardinzinho ficava a roseira pôs-se a lavá-la quase pétala por pétala, alguma rosa se desmanchou [...]. Em certo momento,
falei da moça abandonada, que ocupou um capítulo. Era magra e
limpa, a lançar em derredor uma impressão de branco com cheiro
neutro de anil; formara-se socióloga e lidava com computadores, seu
tanto presa aos pais a morar com eles, entre begônias e hortências,
com seu quarto de paredes caiadas e lençol azul [...].
De manhã, ela anunciou que voltaria de imediato a São Paulo. Ficou
esperando que ele insistisse em retê-la, mas ele não o fez. Por isso
eu a chamava no livro de a moça abandonada. Em verdade, foi com
alívio que ela retornou às suas begônias e hortências248.
Os trechos acima mencionados foram retirados do capítulo XII da primeira parte de Quatro-olhos. Esses excertos podem sintetizar e exemplificar como se dá a
narração desse romance que se pauta na escrita enquanto estratégia para transpor a
barreira do esquecimento. Esse capítulo, que na obra ocupa em torno de duas páginas, apresenta três histórias diferentes: o incêndio de uma fábrica de cera, a roseira
que fora cuidada por uma mulher estranha e o caso da moça abandonada por um
suposto namorado. O que mais chama a atenção é o fato de que o narrador não con247
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão. In: ____ (Org.). História, memória e
literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 47-50.
248
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 75-79 passim.
136
segue contar, dentro de uma certa ordem, as histórias que lembra. Ele migra de um
assunto para outro com muita rapidez, o que deixa o relato truncado. De acordo como
as lembranças vêm à sua mente, o protagonista as lança no romance, sem discernir
o que pertence ao início de uma história e o que faz parte do final. Tudo se apresenta
muito desordenado, quase caótico, reunindo uma série de imagens contraditórias e
confusas. Os poucos fragmentos que lembra das histórias que colocara em seu livro
original, que fora perdido, agora se entrelaçam em sua mente e lhe devolvem uma
série de cenas isoladas e obscuras. Esse universo desordenado que o narrador projeta em sua narração é, pois, o reflexo de uma sociedade também desarticulada. Diante disso, a integridade racional dos sujeitos é afetada, fazendo com que seja praticamente impossível o surgimento de uma narração que não a fragmentada ou desarticulada.
O romance Em câmara lenta, apesar de deter-se em uma quantidade menor
de fatos e de histórias, apresenta também as características de um discurso pautado
na incompletude de informações e, por que não dizer, também do esquecimento. Pode-se acrescentar que a obra é construída sob a tensão de ideias incompletas e confusas. De acordo com o exposto, observa-se o seguinte trecho desse romance:
[a]lguma coisa de profundamente errado nesse vazio, no longo can-
saço dessa espera por coisa nenhuma. Continuar arrastando os pés
calçados em botas de chumbo até o fim. Qualquer fim. Continuar
porque a marcha não pode mais ser interrompida. Esperar.
Ela olhou o mar e fez gesto amplo, carregado de liberdade e de vida.
Correu pela praia até cansar e voltou para ele, molhada de suor, o
riso cristalino. Seu gesto era um traço de alegria.
Os guerrilheiros pararam. Sujos e cansados, eles ficaram imóveis
entre as árvores, os rostos voltados para cima, a respiração suspensa. O ruído ritmado das hélices de um helicóptero chegava até eles249.
O respectivo trecho, acima citado, foi retirado na íntegra como se apresenta no
romance. Diante disso, é possível observar como o narrador, em apenas poucas linhas, se desloca, com muita rapidez, de um assunto para outro. Inicialmente, ele parece refletir acerca da situação de destruição em que se encontrava, uma vez que
sua organização guerrilheira fracassara. Logo na sequência, narra uma cena em que
lembra de sua amada, quando ela ainda estava viva e, depois disso, direciona o rela249
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 72-73.
137
to para uma outra cena em que lembra de momentos de treinamento da organização
guerrilheira. A exemplo desse trecho, toda a narrativa se dá através da intercalação
de histórias diversas. Não é possível notar com clareza quando termina um assunto e
começa outro, a narrativa avança conforme os pensamentos, lembranças e ideias do
narrador vêm à sua mente. A dificuldade de organizar o relato dentro de uma certa
coerência e linearidade ilustra como a mente do narrador encontra-se perturbada em
função dos acontecimentos pretéritos marcados pela violência.
A fragmentação textual que caracteriza o discurso de Quatro-olhos e de Em
câmara lenta demonstra a dificuldade em que se encontravam os narradores diante
da problemática do esquecimento e das rupturas psicológicas ocasionadas em função do trauma a que foram expostos. Theodor Adorno, ao elaborar suas proposições
acerca da fragmentação formal da narrativa, sinaliza para o fato de que o rompimento
dos princípios formais da arte moderna está diretamente relacionado às experiências
de desumanização e violência em períodos truculentos. Adorno argumenta em favor
da tese de que as obras de arte possuem uma ligação direta com a realidade exterior.
Segundo ele, a existência de uma tensão externa é o que motiva uma tensão interna
na obra de arte, ocasionando uma resposta em termos de estrutura. Em outras palavras, os antagonismos sociais retornariam às obras de arte como problemas imanentes de sua forma250. De acordo com o raciocínio adorniano, a percepção de uma realidade conflitiva vai levar o artista a também elaborar sua obra com tensão.
Sendo assim, os problemas, os conflitos e as tensões que podem ser observados na sociedade são motivadores das rupturas com os paradigmas estruturais das
obras de arte. Adorno argumenta que esta última, enquanto autêntica manifestação
do social, irá exibir as “feridas” da luta e as contradições do real, e, por isso mesmo, o
estilo não pode ser harmônico. Assim, em Adorno, o estilo é a ruptura e sua essência
é o fragmento. Fora isso, qualquer possibilidade de harmonia seria falsa, pois estaria
mascarando a lógica da experiência; e a experiência não é percebida como harmônica251.
Ao se seguirem os pressupostos teóricos levantados por Benjamin de que a
história não pode ser concebida como um acontecimento linear do tempo, mas pensada enquanto experiência e construída sobre as ruínas que se amontoam no tempo
e no espaço, destaca-se o papel da destruição e da falsa aparência da totalidade e
250
251
ADORNO. Theodor W. Teoria estética. 2008. p. 16.
Idem. Ibidem. p. 16-20.
138
aponta-se para a valorização da ruína e do fragmento. Para o autor, “articular o passado historicamente não significa conhecê-lo tal como ele propriamente foi, mas apoderar-se de uma lembrança na forma em que ela cintilou no instante de um perigo”252.
Dessa forma, a fragmentação é vista em Benjamin como uma possibilidade de leitura
de uma história em camadas, em ruínas, sendo o resgate desses estilhaços deixados
no tempo, a única possibilidade de entendimento e construção da história da sociedade.
Quatro-olhos e Em câmara lenta englobam em seu discurso questões relacionadas diretamente à violência e ao autoritarismo oriundos do regime político ditatorial e abrem uma discussão acerca dessa experiência traumática vivida por seus protagonistas e personagens. Desse modo, os pressupostos elencados por Adorno servem para explicar como os acontecimentos do meio social dos protagonistas foram
determinantes para a produção artística da época, principalmente no que se refere ao
surgimento da fragmentação enquanto forma estética.
Ainda segundo Seligmann-Silva, a fragmentação consistiria numa forma de
apresentar a psique cindida do traumatizado e sua incapacidade de incorporar em
uma cadeia contínua as imagens253. Também Jaime Ginzburg aponta para o fato de
que, na narrativa de testemunho, enquanto linguagem associada ao trauma, pode
haver um abismo intransponível entre o impacto da catástrofe e os recursos expressivos, de modo que, assim, toda e qualquer formulação pode ser imprecisa ou insuficiente254. O traumatizado é alguém que podia ter morrido, mas não o fez255, e o fato de
o sujeito ter chegado próximo à morte o deixa, como argumenta Ginzburg, sem uma
identidade segura. Com isso, o desejo da enunciação faz da narração do testemunho
a busca de um sentido que não foi antecipadamente definido. O testemunho, então,
fala e narra o encontro com o “real” enquanto trauma, o encontro com as experiências
do corpo que sofre. Na medida em que a dor corporal é incontornável, ocorre uma
espécie de deslocamento entre mente e corpo, ou seja, ocorre a vontade de abandonar o corpo. Para Ginzburg, em um corpo sofrido, a relação entre língua e pensamento é abalada em função da negatividade da experiência. A linguagem, por sua vez,
252
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória e libertação. In: ____. Walter Benjamin: os cacos da
história. 1982. p. 73.
253
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho da Shoah e literatura. 2007. p. 2.
254
GINZBURG, Jaime. Linguagem e trauma na escrita do testemunho. Conexão Letras, 2008. p.
63.
255
BRAUNSTEIN, Néstor. Sobrevivendo ao trauma. s. d.
139
passa a ser vista como “traço indicativo de uma lacuna, de uma ausência” 256. Com
isso, a experiência não consegue ser assimilada de modo completo, desencadeando,
em função disso, ideias incompletas e a repetição constante, por parte da vítima, da
cena do impacto257.
De acordo com os aludidos elementos teóricos expostos acima, é possível
observar que tanto em Quatro-olhos, quanto em Em câmara lenta, o momento do
choque que ocasionou o trauma nos narradores é uma cena que sempre está retornando às suas mentes. Quanto a essa problemática na narrativa de Pompeu, é possível notar trechos como o seguinte:
[t]ambém era contado o noivado da mulher com o operário, com cerveja e pasteizinhos. Em suma, eu fazia completo levantamento da
vida de subúrbio, que não me apraz repetir aqui. Novelos confusos
formam-se em minha mente e não consigo recompor meu escrito.
Mas havia algum detalhe, talvez o momento em que a mulher passava base no rosto, enfim havia um detalhe, uma pequena lantejoula
redacional, em que eu punha a minha marca de autor. É possível
que fosse a lã no colo da mulher enquanto ela fazia uma blusa para
o sobrinho – sim, porque a irmã tinha casado também, com o dono
de um bar. Mas não me recordo em absoluto258.
De acordo com essa citação, é possível observar como o narrador sempre
está referindo-se ao seu livro perdido. Ao tentar reescrevê-lo, dá-se conta de que é
incapaz, porque lembra muito pouco do conteúdo que nele continha, as referências à
perda de seu original são ainda mais intensas. Os novelos confusos a que se refere
podem aqui ser entendidos como as lacunas deixadas pelo esquecimento em sua
mente em função do trauma. O fato de não conseguir lembrar de seu passado é o
que representa a constante presença da experiência traumática vivida pelo narrador.
A experiência dolorosa que ocasionou não só a perda de sua obra prima, mas também o esquecimento, lesionou o psicológico do protagonista e o deixou para sempre
preso ao passado.
No romance de Tapajós, também é percebido com frequência o constante retornar do narrador à cena de impacto, a constante rememoração do passado que ocasionou perdas significativas ao narrador. Assim, observa-se:
256
64.
257
GINZBURG, Jaime. Linguagem e trauma na escrita do testemunho. Conexão Letras, 2008. p.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão. In: ____ (Org.). História, memória e
literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. p. 48-49.
258
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 131.
140
[e] agora outra vez, só que desta vez foi ela, e eu não escapei porque eu fiquei lá para sempre; o que escapou foi um corpo vazio, uma
casca sentada na beira da cama olhando a parede e sabendo que o
tempo acabou, mas que vai continuar se arrastando e atirando e odiando [...]. [P]orque eu também morri, lá, naquele dia, no momento
quê259.
[...]
Uma imagem que não é mais do mundo, mas de uma solidão voltada sobre si mesma. O gesto incompleto, estilhaçado, no momento
em que ela.
O barco à deriva foi encontrado por alguns caboclos. A polícia veio
ver o corpo do piloto, encontrou os livros e o disco260.
Em Em câmara lenta, o discurso do narrador é marcado pela dor do fracasso
da organização guerrilheira e pela dor da perda de sua amada. O frequente constatar
da ausência da amada faz com que o narrador volte ao passado na tentativa de compreender o que realmente aconteceu. Nota-se que o narrador permanece envolto em
uma dor muito grande e que tamanha é sua perturbação em função da perda que
sofrera que não consegue muitas vezes nem levar seu discurso até o final, deixando
frases e trechos da narrativa incompletos. Como no observado acima, o narrador, em
um determinado momento, está falando de uma cena que antecedeu a prisão e a
morte de sua amada, entretanto, de repente, migra para outro assunto e já começa a
falar de acontecimentos com o grupo guerrilheiro, deixando incompleta a primeira
linha de raciocínio que iniciara.
Contudo, é através da repetição da cena que marca a perseguição, prisão e
morte da amada do narrador de Em câmara lenta, que se pode entender com maior
facilidade a questão do retorno do trauma, enquanto um passado que não passa,
mas que permanece atrelado para sempre ao psicológico dos sujeitos. A cena é a
seguinte:
[c]omo em câmara lenta: ela se voltou para trás. Sua mão descreveu
um longo arco, em direção ao banco traseiro, mas interrompeu o
gesto e desceu suavemente na abertura da bolsa, escondida entre
os dois bancos da frente, pouco atrás do freio de mão [...]. O revólver disparou, clarão e estampido rompendo o silêncio261.
259
Idem. Ibidem. p. 24-25.
Idem. Ibidem. p. 43.
261
Idem. Ibidem. p. 16.
260
141
Esta talvez seja a cena que melhor ilustra o constante regresso à mente do
narrador da situação a qual ele permanece ligado durante toda a narrativa. Além de
outros trechos que lembram a morte de sua amada, o fragmento acima citado aparece assim, sempre escrito da mesma forma, por pelo menos 6 vezes ao longo da narrativa, sempre intercalado entre uma e outra história da organização guerrilheira. Entretanto, a cada vez que surge no relato, essa cena, ao mesmo tempo em que vem
acrescida de mais informações, deixa transparecer a dor do narrador que é intensificada a cada retorno desta. Na medida em que o protagonista avança com a narrativa,
essa cena ganha maior espaço no relato, até chegar à última página do romance, que
é quando o protagonista coloca, com todos os detalhes como fora a morte, sob cruel
tortura de sua amada. Assim, “como em câmara lenta”, o narrador vê ressurgir, com
insistência, em sua mente, o evento que o abalou. E, da mesma forma, os detalhes
são lançados aos poucos, assim “como em câmara lenta”, para que nada passe despercebido aos olhos do leitor.
Freud e Breuer, ainda em 1893, declararam que o estudo dos sonhos pode ser
considerado o método mais confiável na investigação dos processos mentais profundos. Segundo os psicanalistas, é nos sonhos que as neuroses traumáticas caracterizam-se por repetidamente levar o paciente de volta à situação que lhe causara o susto. Dessa forma, a experiência traumática, ao estar continuamente impondo-se ao
paciente, mesmo que durante o sono, demonstra a fixação do trauma na mente desse paciente. Para Freud e Breuer, “os histéricos sofrem principalmente de reminiscências”262. Conforme explicam os autores, após a fixação de um forte impacto no
subconsciente, o que ficou no nível do inconsciente, deveria tornar-se consciente,
porém isso não é completamente atingível. Dessa forma, o sujeito traumatizado não
consegue lembrar a totalidade do que nele se acha reprimido, e o que não lhe é possível recordar pode ser exatamente a parte essencial. Ao não conseguir nenhum sentimento de convicção em relação à coerência e à exatidão daquilo que recorda, para
entender que sua experiência é parte do passado, o sujeito está fadado a repetir o
conteúdo reprimido como se fosse uma experiência contemporânea, sempre presente
e não como algo pertencente ao passado263.
Conforme explicado também por Cathy Caruth, o trauma, enquanto patologia,
por não ser assimilado pela mente quando acontece, sempre irá retornar como fenô262
FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. In: ____. Obras psicológicas completas.
1976b. p. 24.
263
Idem. Ibidem. p. 30.
142
meno repetitivo à mente do traumatizado264. Assim, enquanto ferida aberta na memória, e comungando das proposições de Freud, de que o traumatizado sofre de reminiscências, Caruth argumenta em favor da tese do eterno retorno, por meio de pensamentos, ações repetidas e até mesmo de pesadelos da cena traumática.
A questão da fragmentação do discurso do sobrevivente de uma situação violenta está também diretamente ligada ao esquecimento provocado pelo evento traumático. A incapacidade de lembrar do passado como ele realmente foi faz com que
as ideias e os pensamentos do sujeito não sejam articuladas de maneira satisfatória.
Em Quatro-olhos, esse é um problema recorrente, pois o narrador tem consciência
do quanto sua memória está abalada pelo esquecimento e como seu texto fica prejudicado em função disso, pois não consegue ordenar a narração de maneira linear. A
respeito disso, observam-se as seguintes passagens retiradas do romance de Pompeu:
[c]reio que no livro falei alguma vez de cenouras, brilhos carnudos
laranja a alongar-se finos. Mais certo é ter contado a história do rapaz embriagado que se perdeu com seu carro; tinha visto a antiga
namorada a circular com outro num saguão de grêmio de faculdade
[...]. Também no livro creio ter feito referência vadia a pernas moças,
a brilhar em contracapa de revista num anúncio de cigarro. A moça
do anúncio vestia maiô marrom, ao lado do jovem também de maiô
marrom que lhe oferecia cigarros num barco a vela.
[...]
Deixei a moça assim sob a chuva na calçada ou pus alguém à janela, a imaginá-la nus sob o vestido grudado ao corpo, não posso esclarecê-lo de memória.
[...]
Memória não guardo entrementes de capítulo ou trecho, apenas batem no cérebro miniaturas em que me lembra ter posto o dedo, como cabeleiras douradas numa réstia de poeira brilhante de sol ou
gorgolejos estertorados de um velho a lavar a boca, rostos encardidos do pó de fábrica ou imagens de Nossa Senhora de manto azul
cheio de estrelas. De tudo isso dei conta e dou fé, mas a maravilha
marmórea que fui recortando só em pedaços a esmo me relampeja
na cachola265.
Segundo a citação reproduzida, percebe-se a dificuldade do narrador para
recordar-se de fatos do passado e sua consciência em relação a essa sua dificuldade. Nota-se o esforço que faz para buscar na memória eventos que ele possa simbo264
CARUTH, Cathy. Modalidades do despertar traumático (Freud, Lacan e a ética da memória). In:
NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação. 2000. p.
111-120.
265
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. 1976. p. 75-112 passim.
143
lizar de maneira coerente. Porém, essa tarefa não se apresenta possível de concretização, e os diferentes tópicos surgem entrelaçados na mente do protagonista, dificultando o surgimento de um relato íntegro. Diante disso, o narrador parece perdido em
meio às vagas lembranças que surgem em sua memória e divaga em torno de pistas
de acontecimentos e episódios que aludem ao seu passado, sofrendo, no entanto,
com a falta de memória que lhe acomete a mente.
Condição semelhante é observada no relato de Em câmara lenta. A questão
do esquecimento não é apresentada de maneira explícita pelo narrador, entretanto,
através de suas atitudes, é que se torna possível a percepção dessa problemática,
uma vez que se nota como o desconhecimento de certas situações apresentado pelo
narrador é resultado do esquecimento que lhe perturba. Para tanto, pode-se observar:
[o] gesto continuava estilhaçado, espalhado aos pedaços pelo chão
da casa e é impossível reunir as peças para reconstituir seu sentido.
Para restituir a forma ao jogo de armar. Os elementos acumulados e
ordenados pelo tempo se arrebentaram, explodiram em mil fragmentos no momento em que ela. No momento, mas não só por causa
disso. Estopin, espoleta, detonador duma carga também acumulada,
dum elemento de destruição que cresceu junto com a coerência
construída, para negá-la. Talvez a coerência fosse falsa e tudo o que
se criou em torno dela, um artifício [...]. Então agora: tudo muito de
repente, tudo de uma só vez fragmentado e não há mais tempo para
nada. O espelho foi de novo colocado, mas agora ele está trincado
em mil pedaços e devolve uma imagem partida266.
Através dessa passagem, é possível notar como o protagonista sente-se perdido diante daquilo que o cerca. Em outras palavras, poder-se-ia inferir que, o que ele
sabe em relação aos acontecimentos passados violentos, dos quais fora vítima, não é
o suficiente para formar um todo coerente em sua mente. Ele percebe que tudo parece muito fragmentado, que as informações de que dispõem apresentam-se incompletas e confusas. Sua memória não é capaz de lhe oferecer de maneira ordenada os
fatos a fim de que tudo possa ser compreendido. Observa-se como o narrador deixa
o discurso truncado quando se refere à sua amada, pois a morte dela é algo que o
perturba, não o deixando organizar seus pensamentos dentro de uma certa ordem de
causa e consequência. A vagueza com que recorda os episódios é assim transferida
para seu relato e, de repente, o narrador se vê impossibilitado de unir, numa única
266
TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. 1977. p. 42.
144
imagem, os estilhaços que afloram à sua mente, pois as lembranças que se dão em
fragmentos são partes, agora para ele, impossíveis de serem (re)integradas. Essa
vagueza que perturba o psicológico do narrador, que faz com que suas ideias confundam-se, demonstra que algo importante, capaz de completar o quebra-cabeça da
história, foi esquecido ou silenciado, e, sendo assim, a falta de algumas peças desse
“jogo de armar” impossibilitam que o relato seja completo.
Os pressupostos teóricos de Seligmann-Silva apontam para o fato de que o
testemunho, enquanto narração do evento traumático, situa seu núcleo no trabalho
da memória. Entretanto, o trabalho do testemunho permanece centrado entre a necessidade de lembrar e sua impossibilidade. Em outras palavras, o que acontece não
é uma mera oposição entre a memória e o esquecimento, mas a necessidade de
lembrar é barrada pela impossibilidade da rememoração do sobrevivente, tornando
dessa forma a descrição sempre parcial267. O sobrevivente que entrou em contato
com o “real”, que passou por um “evento” violento e chegou perto da morte, resiste à
simbolização. Esse trauma, que ficou em sua mente como uma “perfuração” na memória, dividiu o sujeito em dois: um antes e outro depois do trauma. Em função disso,
a memória se apresenta cindida, e a ferida aberta na mente impossibilita o sobrevivente de lembrar de tudo o que se passou, configurando, assim, um discurso incompleto e fragmentado. O autor ainda argumenta que a incapacidade de incorporar em
uma cadeia contínua as imagens vivas, exatas da memória do sobrevivente, marca a
narrativa do testemunho como também “uma tentativa de reunir os fragmentos do
passado, que não passa”, em busca de um nexo e um contexto para estes.
A fragmentação observada tanto na narrativa de Pompeu quanto na de Tapajós permite, em um primeiro momento, olhar para essa construção narratológica enquanto resultado de fatores patológicos decorrentes das mentes perturbadas dos narradores. A problematização da memória dos protagonistas, haja vista o esquecimento
que perturba suas mentes e que deixa lacunas, impossibilitando uma plena compreensão dos fatos, bem como o surgimento do sentimento melancólico, propiciado pelas perdas oriundas de situações de violência do período ditatorial, contribuem para a
impossibilidade de assimilação e organização das ideias, fazendo com que o discurso
surja truncado, destituído de ordem e em estilhaços.
267
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão. In: ____ (Org.). História, memória e
literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. 2003. p. 45-59.
145
A materialização da fragmentação, enquanto produto final do testemunho do
“real”, também pode ser vista como uma resposta ao contexto social desestruturado e
caótico que caracterizou as décadas do período da Ditadura Militar. Assim, enquanto
resposta ao poder autoritário e violento, o fragmento é resultado de uma sociedade
caracterizada pelo dilaceramento e pela experiência social caótica, uma vez que desordenada a conjuntura social, da qual emana a produção artística, a ruptura das
convenções da linguagem e da narrativa é também inevitável. De acordo com os preceitos adornianos, pode-se inferir que o fragmento, enquanto possibilidade de narrativa, é uma forma alegórica utilizada para representar a experiência histórica de destruição que o país experimentou durante as décadas de 60, 70 e 80.
146
CONSIDERAÇÕES FINAIS
[...] Pensem que isto aconteceu:
eu lhes mando estas palavras.
gravem-nas em seus corações,
estando em casa, andando pela rua,
ao deitar, ao levantar,
Repitam-nas a seus filhos.
Ou, senão, desmorone-se a sua casa,
a doença os torne inválidos,
os seus filhos virem o rosto para não vê-los.
(É isto um homem? Primo Levi)
Desde a antiguidade, a ênfase dada ao texto literário se resumia na preocupação com a linguagem, deixando em segundo plano o comprometimento com a verdade. Já à história era dada a credibilidade de um discurso que se queria sempre objetivo e comprometido com a verdade factual de um determinado evento. Entretanto,
com base nos apontamentos de Hayden White268, observou-se uma certa desconstrução desse conceito, quando o autor defende que a história não podia mais ser vista como uma ciência exata, de fórmulas pré-concebidas e única depositária de fatos
verdadeiros. Tal argumento filia-se ao fato de que a história não é neutra, pois, como
parte integrante da vida da humanidade, está diretamente relacionada à natureza do
homem e à sua constituição social. Nesse sentido, ela sempre será utilizada de acordo com uma determinada ideologia, geralmente de acordo com a ideologia do poder
dominante, dos vencedores, glorificando alguns eventos, mas encobrindo outros fatos
importantes que, se expostos, poderiam colocar em xeque a versão oficial. De acordo
com os pressupostos de White, história e ficção estão sempre entrelaçadas, uma vez
268
WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. 1992.
147
que a história não deixa de ser uma forma de ficção e o romance uma forma de representação histórica, principalmente quando se referir à literatura de testemunho,
enquanto produção narrativa memorialística ou autobiográfica.
Ao se tratar da literatura de testemunho, olha-se para essa produção como
uma forma encontrada pelo sujeito para tentar compreender a si mesmo e a sua vida.
Esta pode ser considerada um relato de alguém que perdeu sua própria identidade,
que não consegue mais se reconhecer ao sobreviver uma experiência traumática, e
que busca, através do relato, reintegrar-se socialmente e, por que não dizer, recuperar essa identidade perdida. Assim, o trabalho com a literatura de testemunho pautase no reconhecimento dos sujeitos deixados à margem pela história oficial, bem como
na “escuta” das vozes que foram abafadas. Olhar para a literatura de testemunho é,
antes de tudo, um compromisso de cidadania para com aqueles que sobreviveram,
bem como um ato de respeito em relação àqueles que foram impossibilitados de dar
a sua versão dos fatos em relação às adversidades e às barbáries que assinalaram
os tempos.
O século XX marcou profundamente a história da humanidade. Nesse período,
por um lado, observou-se a intensificação de conquistas no âmbito técnico, a ideia de
progresso e de desenvolvimento, por outro, impondo-se paradoxalmente a essas ideias, mas já as acompanhando, surgiram a dominação, o poder, a barbárie e a dor.
Esses episódios que caracterizam a história da humanidade em nível mundial servem
para exemplificar a série de conflitos que também fez parte da história brasileira desse século, em especial, daquelas décadas entre 1964 e 1985, em que o país ficou
sob atuação do governo militar. As considerações a respeito do autoritarismo e das
práticas de violência levantadas ao longo deste trabalho servem para elucidar como o
país enfrentou aquele nebuloso período de proibições, repressão e tortura, e como os
artistas buscaram meios para conseguir driblar as imposições da censura.
Os procedimentos narrativos observados nos romances em estudo, Quatroolhos e Em câmara lenta, incorporam a dimensão histórica coletiva da época, bem
como testemunham, acusam e condenam a história do país, uma história comum a
todos ou a muitos. Na medida em que dão testemunho, os protagonistas de ambos
os romances fazem-se ouvir enquanto detentores de um saber que deveria ser de
todos, mas que nem sempre é exposto pela versão oficial da história.
O que pode ser observado nas obras que fizeram parte desta pesquisa é a
dimensão alcançada pelas estratégias autoritárias. A fragmentação apresentada por
148
ambas as narrativas é o resultado da manifestação de mentes perturbadas pelo esquecimento ocasionado pelas práticas violentas e pelos conflitos psicológicos diante
do trauma vivenciado. As particularidades observadas tanto em Quatro-olhos como
Em câmara lenta, como a memória, o esquecimento, a melancolia, o trauma e, consequentemente, a fragmentação narrativa, articulados, fornecem uma ampla visão de
como a situação política autoritária influenciou diretamente nas formas de manifestação artísticas da época. Tais romances produzidos na década de 70 estabelecem
uma estreita relação entre realidade e discurso narrativo, fazendo com que a experiência histórica seja um elemento formador capaz de possibilitar o conhecimento de
uma etapa da história brasileira. Assim, tanto o livro de Pompeu quanto o de Tapajós
apresentam características que os situam dentro de uma vertente específica de crítica e de protesto contra o regime ditatorial brasileiro de 64. Os aludidos traços de forma e de conteúdo observados nessas obras permitem classificá-las, portanto, como
textos que não só procuraram ultrapassar as barreiras impostas pela censura, mas
atuar como forma de resistência às cadeias que prendem os indivíduos a um sistema
opressor.
As regras sociais e de conduta, ditadas pela Ditadura Militar, puderam ser sentidas na produção literária desse período que, por apresentar-se tão caótico, violento
e confuso, influenciou diretamente os romances que, produzidos nesse meio, não
tinham como fugir de determinadas características. Assim, a produção ficcional que
surgia incorporada por elementos externos buscava não só uma possibilidade de
compreensão para tal situação, mas uma possível resposta ao caos do momento.
Diante disso, a literatura de testemunho – considerada literatura “par excellence da
memória”269, não de qualquer memória, mas da memória do choque, do trauma –
surgia incompleta e também muitas vezes incerta, dando origem a um discurso entrecortado, repleto de rupturas e de fragmentos. Enfim, o discurso testemunhal, por formar-se a partir da recordação da dor, da morte, da destruição e da desumanização,
resulta fragmentado, pois é fruto de uma memória também em ruínas.
Entretanto, essa memória em estilhaço é resultado de práticas violentas oriundas do autoritarismo. Assim, a fragmentação literária que caracteriza Quatro-olhos
em Em câmara lenta representa, pois, a destruição social em que viviam imersos os
sujeitos do período ditatorial. Porém, esse não é o único fator de destruição que pode
269
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A catástrofe do cotidiano, a apocalíptica e a redentora: sobre
Walter Benjamin e a escritura da memória. In: DUARTE, Rodrigo; FIGUEIREDO, Virgínia. (orgs.).
Mímesis e expressão. Belo Horizonte: UFMG, 2001. p. 365.
149
ser percebido. A questão da memória e do esquecimento é também considerada um
fator problemático. A dificuldade encontrada pelo narrador de Quatro-olhos para
lembrar de seu passado demonstra quão debilitada estava sua memória. A tentativa
de escrever para lembrar e organizar o pensamento é uma estratégia que não encontra sucesso diante não só do esquecimento imposto, mas da impossibilidade para
encontrar linguagem adequada para ilustrar tudo o que se passara. Com algumas
diferenças, no entanto, por serem as semelhanças de maior peso, assim, em Em
câmara lenta, o protagonista é alguém que da mesma forma apresenta sua impossibilidade de narrar de modo linear. A narrativa não só apresenta rupturas como também é fortemente marcada pelo ziguezaguear das lembranças desse narrador.
A melancolia, apesar de ser mais sentida em Quatro-olhos, apresentou-se
evidente em Em câmara lenta. Em ambos os romances, pode-se observar o surgimento desse sentimento em função das perdas sofridas, da ideia de finitude, da falta
de perspectiva em relação ao futuro e do medo. No primeiro romance, pela perda do
livro, da mulher e da memória. No segundo, em função da perda da amada, do fracasso da organização guerrilheira e, com isso, a perda de um ideal. Diante da irrecuperabilidade de tudo isso, os narradores não encontram mais perspectivas para um
futuro melhor, e perante esse sentimento de desconforto e de medo, tornam-se desiludidos e melancólicos. Em ambos os livros, a condição melancólica é também motivada pela condição histórico-política vigente na época.
Tendo em vista esses apontamentos, cabe ressaltar ainda que a questão da
linguagem é tida em ambos os romances como um caminho para uma possível libertação da experiência traumática, mas também é vista como um problema. Ou seja,
através da linguagem, o sujeito vê a possibilidade para dar seu testemunho, para
passar adiante a experiência vivida. Contudo, essa mesma linguagem é questionada,
pois os autores não conseguem usá-la satisfatoriamente para narrar aquilo que precisa ser narrado. Diante disso, seja em função da memória obscura, do esquecimento
ou da melancolia, o fato é que a linguagem usada pelos protagonistas não se apresenta organizada nem completa, representando, assim, a externalização dos problemas psicológicos que afetavam a mente dos narradores. Em outras palavras, esse
problema com a linguagem, ou para melhor esclarecer, com a falta dela, configura-se
na representatividade de um mundo que se apresentava estilhaçado, impossível de
ser compreendido em sua totalidade, logo, inenarrável. Isto é, tornou-se impossível
simbolizar através da linguagem fatos que não podiam ser assimilados pela mente.
Por isso, o deslocamento de frases, as interrupções, as reticências, os fragmentos.
150
A pesquisa pautada na memória e no esquecimento, na observação do sentimento melancólico e no relato fragmentado de Quatro-olhos e de Em câmara lenta,
não se quer aqui exaustiva e definitiva. Diante do significativo número de obras que
surgiram durante os anos do regime militar, a presente investigação tem interesse em
provocar e apontar para novas indagações. Tal intenção parte do princípio de que um
período tão enigmático e sombrio como foi aquele entre os anos de 64 e 85 tem ainda
muito a ser explorado, principalmente no campo das manifestações artísticas, dentro
do qual se destaca, em especial, a literatura de testemunho por ser capaz de possibilitar uma leitura da história a “contrapelo”.
Assim, os elementos apontados nos romances que integraram o corpus dessa
pesquisa podem ser encontrados em outras obras que surgiram no mesmo período.
Problemas semelhantes aos observados em Quatro-olhos e em Em câmara lenta,
assim como distúrbios psicológicos apresentados pelos narradores, dificuldade com a
linguagem e, ainda, a problemática do relato fragmentado, podem ser encontrados
em romances como: Baú dos ossos (1972), de Pedro Nava, Confissões de Ralfo
(1975), de Sérgio Sant’Anna, Zero (1975), de Ignácio de Loyola Brandão, A festa
(1976), de Ivan Ângelo, O que é isso companheiro? (1979), de Fernando Gabeira,
só para citar alguns cujo campo investigativo pode ser semelhante ao já exposto nessa dissertação.
Entretanto, para não limitar somente a esse campo e apontar para distintas
investigações, destacam-se ainda outras obras oriundas da década de 70. Tais narrativas – ao tratarem da mesma situação social e histórica, ou seja, o regime militar –
servem para elucidar um maior número de elementos composicionais estéticos e temáticos dos romances dessa época, bem como para ratificar os problemas ocasionados pelo autoritarismo e pela violência já observados nos romances que fizeram parte
da pesquisa que ora se apresenta. Assim, chamam atenção ainda algumas obras
merecedoras de investigação: Solo de clarineta (1973), de Erico Verissimo, um livro
também de memórias; A república dos assassinos (1976), de Aguinaldo Silva, Por
que Claudia Lessin vai morrer (1978), de Valério Meinel, ambos romances jornalísticos; O caso Morel (1973), de Ruben Fonseca, Bebel que a cidade comeu (1968),
de Ignácio de Loyola Brandão – esses dois expõem questões de violência, de massificação e da miséria das grandes cidades –; As meninas (1973), de Lygia Fagundes
Telles, que trata da visão individual das pessoas acerca dos acontecimentos pósgolpe; Reflexos do Baile (1976), de Antonio Callado, Pessach (1967), de Carlos
151
Heitor Conny e O senhor embaixador (1965), de Erico Verissimo – estas, em âmbito
geral, consideradas obras de ataque à opressão política do país.
Enfim, poder-se-ia citar uma extensa lista de romances que abordam questões
referentes ao período ditatorial brasileiro e às mazelas por ele desencadeadas. Sobretudo, poder-se-ia levantar um amplo número de romances que trazem em sua
composição as cicatrizes da censura de um tempo regido pelo autoritarismo e pela
violência que não só fez ruir os pilares políticos, econômicos, históricos e sociais de
uma nação, mas abalou profundamente as estruturas pessoais e emocionais dos indivíduos. Diante disso, as possibilidades de investigação são infindas, e o que se traz
aqui são apenas algumas ideias que apontam em direção ao (re)conhecimento do
passado, à compreensão do presente e, consequentemente, à projeção de um futuro
mais correto.
152
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158
ANEXOS
159
Figura 1 – Angelus Novus, de Paul Klee
160
Figura 2 – Melancolia I, de Albrecht Dürer
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