3
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: A ÉTICA DO DISCURSO E A
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO MORAL
Neste capítulo me proponho, inicialmente, a apresentar alguns elementos
da ética do discurso de Jürgen Habermas, priorizando alguns aspectos de seu
pensamento, que possuem maior relevância para o presente estudo. Apesar do
indiscutível reconhecimento de sua teoria moral, são muitas as críticas que seu
pensamento tem recebido, dentre as quais merecem destaque as objeções
apresentadas aos conceitos universalistas de moral. É com objetivo de considerar
a teoria habermasiana com um olhar mais atento que, em um segundo momento
serão apresentados, mesmo que sucintamente, os argumentos do filósofo
canadense Charles Taylor que contesta, partindo de uma ética de cunho
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
aristotélica, em especial, a pretensão de universalidade da ética do discurso.
Em seguida serão apresentados os principais elementos da teoria do
desenvolvimento moral do psicólogo norte-americano Lawrence Kohlberg, cuja
escolha se deveu, além da riqueza e amplitude de seus estudos, ao diálogo entre
sua teoria e as éticas neo-kantianas, dentre as quais, a ética do discurso. Também
objetivando lançar um olhar crítico a sua teoria, será apresentado em um quarto
momento, uma dentre as muitas objeções que a teoria de Kohlberg vem
recebendo. Optei por pela psicóloga, também norte-americana, Carol Gilligan, e
sua crítica à possível tendência sexista da teoria kohlbergiana, por possuir estreita
relação com a temática das diversidades.
Encerrando o capítulo teço algumas considerações sobre as possíveis
implicações do pensamento de Habermas e Kohlberg para a educação e para o
tratamento das questões referentes às diferenças presentes no cotidiano das
escolas.
3.1
A filosofia moral de Habermas
Nosso agir tem ocupado um lugar de destaque nas preocupações humanas
desde o momento em que nos demos conta que podemos escolher entre o bem e o
mal, entre o certo e o errado. A filosofia moral de Immanuel Kant representa um
marco no pensamento ético ocidental, ao fundamentar nos conceitos de dever e de
39
autonomia da vontade toda a arquitetônica de uma moralidade puramente racional.
Nesses dois séculos que nos separam de Kant, foram muitas as críticas que seu
sistema recebeu. Entretanto, seu pensamento conserva sua vitalidade e tem sido o
ponto de partida para novas tentativas de elucidar os fundamentos do agir
humano. Dentre os contemporâneos, o alemão Jürgen Habermas é um dos
herdeiros de sua tradição. Propõe uma ética baseada na argumentação moral, a
qual denominou, juntamente com Karl-Otto Apel, de ética do discurso.
O filósofo alemão Jürgen Habermas, nasceu em 1929, tornando-se
assistente de T. W. Adorno, um dos fundadores da Escola de Frankfurt, já aos 27
anos. Mesmo não sendo um de seus fundadores é considerado um herdeiro da
Escola, que mantém atualizadas as discussões das questões e fundamentos da
teoria crítica. Combinando um profundo conhecimento da tradição filosófica e sua
grande abertura à variedade das teorias sociais e filosóficas contemporâneas,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
Habermas pode ser considerado um dos mais importantes pensadores ainda vivos,
cujas idéias transitam por diferentes campos, dentre os quais se destacam a moral,
a teoria literária, a economia e a política pública.
Na sequência me proponho a situar sua teoria moral dentro da tradição
ética ocidental, para que se possa compreender de onde Habermas parte, e em que
sua teorização contribui para pensar a moral no mundo contemporâneo.
3.1.1
A ética do discurso e a tradição kantiana
A ética do discurso encontra-se inscrita nas éticas cognitivistas que vêm,
desde Kant, defendendo a idéia de que as questões práticas podem ser fruto de
fundamentações racionais, em uma relação análoga às fundamentações da verdade
dos enunciados teóricos sobre as questões de fato (HABERMAS, 2003). A
abordagem habermasiana considera o fundamento da moral kantiana do
imperativo categórico2, porém propõe que sua legitimação seja dada pelo diálogo
2
O imperativo categórico é um princípio formal, elaborado por Kant como fundamento de uma
moralidade universalizável. Assim se expressa uma de suas formulações: “Age apenas segundo
uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal”. (Kant,
1986, p.59)
40
entre todos os envolvidos em um possível discurso3 sobre os princípios que
deveriam orientar as ações.
Ao corroborar Kant, propondo um caminho dialógico e uma consequente
superação do caráter monológico da moral, Habermas se afasta ainda de uma
possível subjetividade dos princípios de orientação das ações humanas. Estabelece
um “princípio” que necessita pressupor um acordo entre todos os indivíduos
possivelmente envolvidos nas conseqüências da aceitação de determinada norma
de ação, afirmando que:
de acordo com a ética do Discurso, uma norma só deve pretender validez quando
todos os que possam ser concernidos por ela cheguem (ou possam chegar),
enquanto participantes de um discurso prático, a um acordo quanto à validade
dessa norma (HABERMAS, 2003, p.86, grifos do autor).
É importante ressaltar que, em decorrência do estabelecimento desse
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
princípio, segundo o qual a aceitação das normas depende do diálogo, cada
indivíduo não realiza sua reflexão apenas levando em conta os interesses de todos
os envolvidos, mas, além disso, entra em um processo de cooperação com os
demais na busca de um consenso.
A expressão “ética do discurso”, segundo Habermas (1999), pode suscitar
interpretações equivocadas sobre sua concepção do uso prático da razão. Faz-se
necessário, portanto, proceder a um esclarecimento sobre como sua teoria do
discurso se relaciona com questões relativas ao uso pragmático, ético e moral da
razão prática.
3.1.2
Os diferentes usos da razão prática
Ao retomar a tradição filosófica, o filósofo da Escola de Frankfurt lembra
que são três as principais fontes do campo da filosofia prática, a saber: a ética de
Aristóteles, o Utilitarismo e a Ética Kantiana. Em sua análise, cada sistema de
pensamento privilegia um desses três modos, segundo os quais a razão prática
opera, e que se referem às perspectivas do Bom, do Pragmático e do Justo.
3
O termo discurso é o mais utilizado para traduzir Diskurs do alemão. Entretanto é importante
observar que não é a qualquer fala ou interação lingüística que Habermas se refere ao utilizá-lo,
mas às falas que problematizam e buscam resolver controvérsias, quando duas ou mais opiniões
entram em conflito. Neste sentido não é sempre que se conversa que, se está participando de um
discurso na acepção habermasiana.
41
O uso pragmático da razão é aquele que se dirige aos problemas práticos,
os quais devem ser solucionados em função de um determinado fim já aceito e
reconhecido pelo agente em uma perspectiva teleológica. Nesta situação a decisão
que se deve tomar está já, em parte, determinada pelo objetivo final que se quer
alcançar. A vontade já está condicionada pelos desejos e valores, estando aberta
apenas ao processo de avaliação dos diferentes meios alternativos para se atingir o
seu objetivo. O que entra em seu cálculo são as técnicas e estratégias, de origem
empírica, que se referem ao melhor modo de se proceder para a solução mais
eficiente possível do problema que se apresenta. Aqui o “dever fazer” é
relativizado por uma vontade subjetiva e arbitrária de um sujeito que procura agir
com prudência em direção a suas atitudes e preferências. Não há a
problematização dos interesses e orientações axiológicas que motivam sua ação,
pois são já previamente aceitos e estabelecidos. Os discursos pragmáticos,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
segundo os quais são fundamentadas as técnicas e estratégias, possuem, segundo
Habermas (1999), proximidade com os discursos empíricos. Sua validade é
dependente da aceitação do fim a ser atingido e de sua eficiência em atingi-lo e,
neste sentido, aproxima-se da tradição ética utilitarista.
O uso ético da razão prática, por sua vez, refere-se às escolhas relativas ao
tipo de vida que se queira levar e ao tipo de pessoa que se deseje ser. Habermas
toma emprestado de Taylor (2005) a terminologia “valorização forte” para
distinguir a orientação ética de uma orientação pragmática (que seria uma
valorização fraca). As valorizações fortes dizem respeito à compreensão de si, ao
caráter, à própria identidade. São escolhas que aludem ao tipo de pessoa que se é
ou que se queira tornar. Por se referir a decisões existenciais, as escolhas do uso
ético da razão possuem importância especial e necessitam, consequentemente, de
serem fundamentadas. Como “decisões axiológicas de importância” são tratadas,
pela tradição aristotélica, “como questões clínicas do bem viver” (HABERMAS,
1999, p.104, grifos do autor), ou seja, como decisões que indicam e orientam uma
forma de vida que seja possível de ser fundamentada e identificada com o ideal de
bom, não apenas com o possível ou o oportuno.
Neste contexto de autocompreensão em que as valorizações fortes estão
enraizadas, a consciência que se tem de si depende tanto de sua autocaracterização como dos ideais aos quais ambiciona atingir. Esta é uma
compreensão existencial que procede a valorações, em que se entrelaçam dois
42
elementos: a apropriação da história de vida individual, que carrega o
“componente descritivo da ontogênese do Eu” (HABERMAS, 1999, p.105) e as
tradições e circunstâncias nas quais essa história de vida se concretizou, que
compreende o componente “normativo do ideal do Eu” (Idem, Ibidem). A
autocompreensão hermenêutica a partir da apropriação desses dois componentes
não é neutra, mas faz opções por modos de vida considerados bons em detrimento
de outros, opções estas que podem ser fundamentadas pela interpretação daqueles
elementos constitutivos da compreensão de si mesmo.
O “dever fazer” ético tem o sentido de ser “bom” em longo prazo e sua
orientação se dirige exclusivamente para quem faz a escolha sobre o tipo de vida
que se queira viver. Por se referir ao telos de sua vida, mantém, entretanto, uma
relação estreita com a perspectiva egocêntrica. Os outros, suas histórias de vida e
seus interesses estão relacionados a estas escolhas na medida em que participam
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
das histórias e relações em que cada sujeito está envolvido. Neste sentido, as
opções sobre o tipo de vida que se considera bom têm relação com todos aqueles
que compartilham o mesmo espaço social, as mesmas relações. Por outro lado,
sofrem interferência desses, já que “minha identidade é cunhada por identidades
coletivas e a minha historia de vida está enraizada em formas de vida de âmbito
histórico” (HABERMAS, 1999, p.106).
Diversamente do uso pragmático, existe uma relação interna entre razão e
vontade nos discursos ético-existenciais na qual “a gênese e a validade já não
podem se separar como acontecia com as recomendações técnicas e estratégicas”
(Idem, p.112), pois são as fundamentações racionais sobre o que é considerado
bom para minha vida que motivam uma mudança de atitude em direção a
realização desta escolha. Há uma reciprocidade de determinação entre razão e
vontade, sendo que esta última mantém suas raízes plantadas no terreno do
contexto de nossa história de vida.
Mesmo que a escolha se dirija apenas à minha vida, enquanto sujeito que
escolhe, e que não possa ser representado pelo outro nesse processo de reflexão e
escolha, Habermas (1999) adverte que só somos capazes de nos distanciarmos
reflexivamente de nossa própria história, na perspectiva de vidas partilhadas com
outros indivíduos que participam de nosso contexto. É nesta acepção que se pode
falar de discursos ético-existenciais, os quais funcionam como um processo
“terapêutico” de análise de nossa compreensão sobre o tipo de vida que vivemos;
43
da história que percorremos para chegar a ele; bem como sobre o bem viver que
almejamos, o qual consideramos digno de ser defendido e fundamentado como
tal.
Distinguindo-se do uso pragmático e do uso ético, o uso moral da razão
prática muda o sentido da reflexão sobre “o que devo fazer”. Agora entram no
cálculo das escolhas os interesses dos outros, o que pode conduzir a conflitos que
devem ser regulados com imparcialidade, em função não do que é útil ou bom
para mim, mas do que é justo para todos os envolvidos. Seguindo a tradição da
ética kantiana, o uso moral da razão prática prima pela busca de critérios de
justiça que possam ser aceitos e fundamentados racional e universalmente.
No centro da reflexão ética está o tipo de vida que se deseja viver e o
respeito próprio que determinado modo de ser possa construir. De modo diverso, a
centralidade da reflexão moral é determinada pelo “respeito simétrico que cada
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
um revela em relação à integridade de todas as outras pessoas” (HABERMAS,
1999, p.106). Neste sentido, as máximas estabelecem um cruzamento entre o uso
ético e o uso moral da razão prática, já que podem ser avaliadas simultaneamente
a partir de ambos os pontos de vista. Quando se avalia se uma máxima é
justificável por estar em acordo com o tipo de pessoa que se é ou que se deseja
que seja reconhecida como tal, realiza-se uma reflexão ética. Entretanto, no
momento em que a avaliação leva em conta se a ação decorrente desta máxima é,
segundo meu ponto de vista, justa para todos, está se procedendo a uma reflexão
moral, embora neste caso em sentido restrito, posto que se encontra ainda sob a
perspectiva de um indivíduo em particular. Somente com a possibilidade de
generalização sob a perspectiva de todos é que determinada máxima pode adquirir
o assentimento geral e ser digna de reconhecimento moral amplo. O caráter de
imperativo das obrigações explicitadas por esta máxima é considerado como um
dever independente de quaisquer preferências subjetivas, ou ainda relativas a um
modelo ideal de vida boa. Deriva sua obrigatoriedade do fato de ser justo agir
desta forma e não de quaisquer outras, e o conceito de justiça, que funciona agora
como regulador, pressupõe necessariamente que se considere de maneira
recíproca a relação com o outro.
A avaliação moral de condutas e máximas cumpre o papel de esclarecer
expectativas de comportamento, consideradas legítimas diante de conflitos
interpessoais originários de interesses antagônicos, com possibilidade de
44
desestabilizar a convivência em comum. Neste sentido o discurso prático-moral
busca um acordo sobre soluções justas para conflitos na esfera de ações reguladas
por normas. O que significa que a avaliação moral busca sopesar quais normas
podem ser consideradas justas sob a perspectiva de todos os envolvidos.
No uso moral da razão prática, vontade e razão se identificam, visto que “o
dever categórico das obrigações morais está direcionado para a vontade livre”
(HABERMAS, 1999, p.109, grifos do autor), vontade de quem age
autonomamente segundo suas próprias regras ou normas morais. Não há distinção
entre vontade e razão porque o que determina o agir é a avaliação racional sobre
sua justeza em relação aos envolvidos na ação, estando a razão isenta da
influência das disposições contingentes de determinada história de vida ou
identidade individual. Neste sentido, a vontade autônoma é completamente
racional, o que não significa, como pensou Kant, que seja uma vontade
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
onipotente. Para Habermas, vontade autônoma é aquela cuja motivação das boas
razões, apesar de ser uma vontade fraca, impõe-se sobre o domínio de outras
determinações. Esta vontade se realiza, segundo a perspectiva da Ética do
Discurso, “a partir dos pressupostos comunicativos de um discurso de âmbito
universal” (op. cit. p.112) do qual todos os supostos envolvidos façam parte e
atuem argumentativamente diante de normas e atitudes que se tornaram
hipoteticamente problemáticas. Somente deste modo se pode constituir uma intersubjetividade de nível superior, fruto da superação da perspectiva individual de
cada participante por intermédio de um intercruzamento com a perspectiva de
todos, sem que neste processo se perca o vínculo com a atitude performativa de
cada um. Desse modo se procede a uma análise objetiva das perspectivas
individuais, não como um observador ideal, que teria o acesso ao conhecimento
intuitivo do mundo da vida obstruído, mas de uma perspectiva do interior desde
universo vivido.
A interpretação discursiva que Habermas faz do imperativo categórico
kantiano se concentra em questões de fundamentação, deixando em aberto
problemas referentes à aplicação das normas consideradas universalmente válidas
em um discurso prático-moral. Essa universalização das normas só é possível pela
sua descontextualização e consequente abstração de todas as situações concretas e
motivações particulares com as quais estejam envolvidas. Desse modo abstrato só
podem ser aplicadas a situações padronizadas e também ideais cujas
45
características foram contempladas no processo de fundamentação. Respondendo
ao questionamento sobre sua aplicação no mundo empírico, Habermas (1999)
propõe que a razão deve ser informada dos contextos e motivações presentes em
cada situação concreta para, por um discurso, ainda puramente cognitivo, optar
pela norma que melhor se aplica a cada caso particular.
A partir dessa distinção entre os três usos da razão prática, pode-se
concluir que a ética do discurso se propõe a elaborar uma teoria do uso moral da
razão. É importante, por conseguinte, procedermos a um detalhamento do modo
como o filósofo da Escola de Frankfurt compreende esse uso moral, bem como de
suas justificativas. Por ser uma moralidade racional, de filiação kantiana, a ética
do discurso deve poder ser fundamentada a partir de argumentos racionalmente
construídos, de modo semelhante aos enunciados teóricos das diversas ciências. A
seguir será apresentado como Habermas compreende esta fundamentação racional
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
da moral.
3.1.3
A possibilidade de fundamentar a moral racionalmente
Habermas argumenta que as questões práticas podem ser fruto de
fundamentações racionais por um procedimento análogo às fundamentações da
verdade dos enunciados teóricos sobre as questões de fato, faz-se necessário,
portanto, explicitar em que sentido esta semelhança se coloca.
Antes de explicitar tal semelhança, entretanto, é importante esclarecer que
as fundamentações de verdade também enfrentam algumas dificuldades. Segundo
Habermas (2004, p. 281), neste processo “não podemos escapar à ascendência da
linguagem”, o que significa dizer que nossas explicações de determinado objeto
são dependentes de enunciados factuais e a verdade de tais proposições só pode
ser fundamentada ou refutada a partir de outras opiniões ou asserções, que por sua
vez são também enunciados factuais. Neste sentido, parece-nos que é a coerência
entre enunciados que assegura sua própria verdade. Todavia, a condição de
coerência entre enunciados é insuficiente, pois não dá conta de explicar o fato de
justificações brilhantes, em determinado momento, terem se revelado falsas com o
passar do tempo.
Habermas opta por um conceito pragmático de verdade, segundo o qual, a
verdade está além de toda possível justificação, e aponta na direção de condições
46
que só podem ser preenchidas pela própria realidade. Mas como isso é possível, se
o acesso à realidade é sempre mediado pela linguagem, através da enunciação de
fatos? Para Habermas, toda e qualquer justificação ocorre somente em discursos,
nos quais são apresentados argumentos sobre “fatos” considerados problemáticos,
que têm sua validade colocada em suspenso. Por outro lado, a verdade em seu
sentido pragmático tem sua âncora em um mundo objetivo comum, que por sua
vez se baseia no uso comunicativo da linguagem. É a possibilidade de
comunicação entre falantes e ouvintes, pela qual há entendimento sobre o mundo,
que nos permite admitir que “existe” um mundo de objetos que é comum a todos e
sobre o qual enunciamos fatos. Esta instância pragmática da certificação da
verdade, interpretada realisticamente a partir da suposição de um mundo objetivo
comum, é suspensa no nível reflexivo dos discursos, no qual são colocadas
interpretações conflitantes do mundo. Aqui uma asserção resiste à prova somente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
à luz de razões e argumentos. Entretanto, a consciência falibilista de que se pode
errar mesmo quando se fundamenta bem as opiniões tem sua origem no realismo
do cotidiano, que penetra no âmbito do discurso. É o mundo da vida que mantém
desperta entre os interlocutores do discurso a consciência da falibilidade de nossas
interpretações. Neste sentido,
apenas o entrelaçamento dos dois diferentes papéis pragmáticos que o conceito de
verdade bifronte desempenha em contextos de ação e discursos pode explicar por
que uma justificação bem-sucedida em nosso contexto leva a pensar que uma
opinião justificada é verdadeira independentemente do contexto (HABERMAS,
2004, p. 258-259).
Seguindo este raciocínio, a verdade de uma asserção é “posta à prova” de
maneiras diferentes no discurso e no mundo da vida. No discurso, a prova se
efetua no jogo das argumentações e apresentação de razões. Já no mundo da vida
ocorre quando a asserção funciona sem decepções, quando se chega “ao bom
termo com o mundo” (op. cit. p. 257). Aqui os atores podem ser, de certo modo,
realistas, pois precisam chegar a um consenso sobre o mundo comum em que
vivem. Há que se ter como pressuposto que todos se referem ao mesmo mundo
objetivo.
A correção dos juízos morais, por seu lado, estabelece-se de forma
semelhante que a verdade de enunciados descritivos, isto é, pela argumentação.
Do mesmo modo que não temos acesso direto aos fatos, pois somos mediados
47
pela linguagem, também não acessamos sem mediação as condições de
reconhecimento universal das normas morais. Tanto a validade dos enunciados
factuais como das asserções morais só podem ser demonstradas ou justificadas
através de discursos nos quais são apresentadas razões. Todavia, a mesma
limitação, exposta para a validade dos enunciados factuais, também se aplica às
normas morais: não basta uma argumentação moral coerente e fundamentada para
se garantir seu reconhecimento universal. Falta às pretensões de validade desses
enunciados a referência a um único mundo objetivo, fundada no uso comunicativo
da linguagem, que os enunciados factuais dispõem. O que garante, portanto, que
uma norma bem fundamentada em um discurso prático deva ser reconhecida
como válida universalmente? O que abona as pretensões de validade morais, se
estas são levantadas para relações de um mundo social que não é independente
dos atores morais como o mundo objetivo o é?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
É de outra maneira que as convicções morais resistem à prova do mundo
da vida – “não pelo sucesso da manipulação de processos autônomos, mas pela
solução consensual de conflitos de ação, que só pode ser bem-sucedida contra o
pano de fundo de convicções normativas intersubjetivamente partilhadas”
(HABERMAS, 2004, p. 289, Grifos do autor). O pôr-à-prova ocorre em um
contexto semelhante ao do próprio discurso, “no médium da comunicação
linguistica” (Idem, Ibidem). A possível resistência, que coloca à prova a validade
de tais enunciados, tem sua origem na falta de consenso com os outros indivíduos
e só pode ser vencida por processos de aprendizagem moral, os quais possibilitam
que as partes em conflito ampliem o mundo social, que cada vez mais se torna
seu, e se incluam de forma recíproca.
Por não haver do lado das normas morais algo que se equivalha a uma
interpretação ontológica referente à verdade, sua validade pode ser “medida” pela
“natureza inclusiva” de um possível consenso obtido por meio de razões. Quando
no discurso prático todas as pessoas envolvidas chegam à convicção de que um
determinado modo de agir é igualmente bom para todos, o que ocorre não é o
estabelecimento de algum fato, mas a fundamentação de uma norma, a qual
merece um reconhecimento intersubjetivo. “Não compreendemos a validade de
um enunciado normativo no sentido da existência de um estado de coisa,
pensamos apenas que a norma correspondente, que deve reger nossa práxis,
merece reconhecimento” (HABERMAS, 2004, p.291).
48
Seguindo este raciocínio, tal acordo sobre normas ou ações, atingido
através do discurso em condições ideais, a saber: a participação de todos os
envolvidos, direitos iguais para todos os participantes, ausência de coação e
orientação para o entendimento mútuo, teria uma força que garantiria a correção
dos juízos morais. Devemos reconhecer, entretanto, que este acordo não deve ser
visto como infalível. Podemos nos enganar a respeito dos pressupostos da
argumentação quando algumas das condições ideais não são satisfeitas, ou por
olvidar que, por mais que fundamentemos as normas, estas ainda necessitam de
complementação através de discursos de aplicação, os quais podem revelar
circunstâncias imprevistas. Esta última limitação pode nos levar a um
“provincialismo
existencial em relação
necessariamente
desestabilizar
“nossas
ao
futuro” o
convicções
qual não deve
morais
enquanto
as
circunstâncias supostas nos discursos de fundamentação não são perceptivelmente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
desmentidas pela história” (HABERMAS, 2004, p.293).
Ao ter como referência para a validade dos juízos morais, um acordo entre
as partes em conflito que inclua todos os envolvidos, temos a pretensão de nos
orientar rumo a uma “única resposta correta”. Desse modo, partilhamos da
suposição de que a moral que deve ser considerada válida se estende a um mundo
social, também comum, o qual deve incluir, em condições de igualdade, todas as
pessoas e suas pretensões. Como consequência, este mundo social comum, que
projetamos idealmente, no qual as relações interpessoais são reguladas de forma
legítima, pode ser tomado como análogo ao mundo objetivo, partilhando com ele
uma de suas determinações, a identidade. Não partilha, entretanto, a
disponibilidade, já que sua existência depende das relações entre os atores morais.
Este mundo social deve ser visto, todavia, mais como uma tarefa do que como um
dado, pois “na dimensão social, os envolvidos devem apenas produzir uma
perspectiva do nós inclusiva4, mediante a adoção recíproca de suas perspectivas”
(HABERMAS, 2004, p. 294).
Outro passo precisa ser dado para que a partir da possibilidade de se
estabelecer a validade de normas e juízos morais, possa-se pressupor sua
universalidade. Faz-se necessário encontrar um conceito que sirva de ponte entre
4
Essa perspectiva pode ser compreendida a partir do conceito piagetiano de “descentração”, que se
refere ao processo de considerar cada vez mais as perspectivas dos outros, rumo a uma hipotética
inclusão completa de todas as perspectivas possíveis.
49
consensos axiológicos particulares a alguns contextos e a possibilidade de um
consenso universalmente aceito. O conceito de justiça, à luz dos questionamentos
universalistas, é retirado de seus contextos concretos e toma uma forma
procedural5, pela qual ocorre uma convergência entre a perspectiva da justiça e a
perspectiva que todo participante adota em discursos racionais ideais, a saber, de
levar em conta de forma imparcial os interesses e pontos de vista de todos os
envolvidos.
Diferentemente das sociedades tradicionais, nas quais a justiça tinha como
referência relações e regras de convivência claras e determinadas pela tradição,
nas sociedades modernas multiculturais, a partir do embates entre culturas,
movimentos de reflexão e abstração, surgem as “implicações universalistas de
justiça”, o que faz com que se fundem as idéias de justiça e de fundamentação
imparcial das normas. Esse processo provoca o desgaste progressivo de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
concepções tradicionais de justiça e sua consequente purificação como um
conceito procedural, sem que com isso se torne menos exigente. Justiça passa a
ser conceituada como a garantia de imparcialidade e esta compreendida como a
igual consideração de todos os interesses afetados.
Retomando a analogia entre a justificação das pretensões de verdade dos
enunciados factuais e das pretensões de correção dos enunciados morais, ambas as
fundamentações se dão em discursos nos quais são apresentadas razões e
argumentos, após serem hipoteticamente colocadas em dúvida, por concepções
divergentes. O que mantém a falibilidade e a condição de verdade dos enunciados
factuais é sua referência a um mundo da vida objetivo, o qual, pelos pressupostos
da linguagem, é comum a todos os participantes do discurso. Os enunciados
morais, entretanto, não contam com esse mundo objetivo como referência, mas
com o mundo social, que se baseia na suposição de que normas e juízos morais
considerados válidos devem se estender de forma inclusiva a todas as pessoas e
suas pretensões.
Após explicitar em que sentido as questões práticas podem ser fruto de
fundamentações racionais, por procedimento análogo às questões factuais, me
5
A justiça é tomada apenas como processo, como um procedimento para se chegar a juízos que
possam levar em conta os interesses e necessidades de todos os envolvidos. Neste sentido utilizaria
como critérios as ideias de igualdade, equidade e reciprocidade.
50
proponho a apresentar a fundamentação habermasiana da possibilidade de uma
moralidade que almeje ser universal.
3.1.4
A possibilidade uma moral universal
A pretensão de universalidade das normas morais é um dos pontos de seu
pensamento, herdado de Kant, que necessita ser fundamentado. Neste caminho,
Habermas (2003) afirma que nas relações cotidianas já estão postas intuições que
fundamentam uma universalidade de concepções morais, pois quando se opta por
uma ação, diante de um dilema, acredita-se que qualquer pessoa que estivesse no
mesmo lugar, em situação semelhante, deveria fazer a mesma escolha. A
aceitação da tese de que as normas que orientam o agir moral são particulares, e
relativas a cada contexto ou situação, jogaria por terra qualquer pretensão de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
fundamentá-las universalmente, pois a defesa de qualquer norma ficaria refém de
contextos e preferências empíricas particulares. O conflito entre fundamentar as
ações em normas e regras universais, ou em noções de certo e errado particulares,
surgiram em vários momentos durante a realização dos grupos focais, o que
aponta para a pertinência dessa questão para o presente estudo.
É importante ressaltar que somente a partir das atitudes performáticas entre
os participantes de interações que os fenômenos morais se desvelam. O
sentimento de indignação diante de uma ofensa, por exemplo, não está presente
apenas na pessoa do ofendido, mas também em um observador “imparcial” não
envolvido diretamente na ofensa. O que motiva este sentimento, tanto no
ofendido, quanto nesta terceira pessoa não é apenas sua discordância particular
com o ato ofensivo, mas sua pressuposição de que a ação efetuada vai contra o
que se espera de qualquer agente. Neste sentido o pedido de desculpas serve para
se reparar o dano causado ao ofendido, bem como para demonstrar o
reconhecimento, por parte do ofensor, de uma norma considerada válida, a qual
foi rompida com a ofensa.
Habermas (2003, p.79) define como comunicativas as interações, em que
há acordo sobre a coordenação dos planos de ação, sendo que este acordo se
baseia
no
“reconhecimento
intersubjetivo
das
pretensões
de
validez”,
compreendidas como pretensão de verdade, correção e sinceridade. Os envolvidos
51
nessas interações devem aceitar como pressuposto que seus interlocutores dizem o
que acreditam ser verdadeiro e correto. Estabelece-se entre falante e ouvinte uma
relação de confiança sobre as pretensões de verdade e correção, bem como de
sinceridade. No caso das primeiras, a comprovação se dará discursivamente pela
adução de razões. Na segunda, pela consistência do comportamento do falante,
por sua prática cotidiana. Esta confiança do ouvinte no falante mobiliza
determinadas “obrigações relevantes para a seqüência da interação que estão
contidas no significado do que foi dito” (Idem, p.80).
A universalização de princípios morais, a partir de normas e valores
particulares necessita de um princípio que possibilite sua generalização. Proceder
por processos dedutivos pela análise de enunciados a partir de suas conseqüências
lógicas nada de substancial acrescenta ao anteriormente afirmado; e apoiar-se em
experiências empíricas para proceder, posteriormente, a generalizações, gera o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
problema da relativização, inerente a diferentes sistemas descritivos, não
oferecendo, deste modo “nenhum fundamento último” (HABERMAS, 2003, p.84,
Grifo do Autor).
Habermas lembra que Kant resolveu este problema introduzindo o
imperativo categórico como princípio que possibilita a universalização das
máximas que podem ser consideradas morais, e descarta como não morais, as que
não podem, segundo o imperativo, ser universalizadas.
Aceitando a necessidade de universalização já colocada por Kant,
Habermas considera que o caráter subjetivo e solitário do imperativo possui
limites que devem ser superados. A imparcialidade necessária à universalização só
pode ser atingida, quando há espaço para um “reconhecimento intersubjetivo”. O
princípio de universalização (U) que propõe, prevê, portanto, que uma norma para
ser considerada válida deve depender de que as consequências e possíveis efeitos
colaterais, dela resultantes, que satisfaçam os interesses de cada indivíduo, devido
ao fato de ser universalmente seguida, sejam aceitos por todos os concernidos, em
detrimento de outras alternativas.
A necessidade do diálogo entre todos os concernidos, para a validação das
normas, é defendida por Habermas, por considerar que só na argumentação com
apresentação de razões a “vontade comum” pode ser constituída. Não basta que
cada indivíduo reflita sobre se a norma responde ao interesse de todos. É
necessário que apresente seus argumentos e ouça os argumentos dos outros. É a
52
partir daí que o consenso deve ser construído. A participação de todos possui uma
dupla importância: (1) permite que cada um reveja a perspectiva de seus próprios
interesses pela confrontação com os interesses dos demais e (2) possibilita que sua
perspectiva esteja exposta às críticas dos outros.
Habermas (2003, p.86, grifos do autor) estabelece, ainda, o que denomina
“princípio ético discursivo (D)”, segundo o qual, “uma norma só pode pretender
validez quando todos os que posam ser concernidos por ela cheguem (ou possam
chegar) enquanto participantes do discurso prático, a um acordo quanto à
validade dessa norma”. Algumas regras do discurso já devem ser aceitas como
pressupostas quando qualquer agente entra em uma argumentação. Estas regras
não devem ser vistas, entretanto, como constitutivas do discurso, mas representam
pressuposições pragmáticas, estabelecidas de maneira tácita e intuitiva, “de uma
prática discursiva privilegiada” (Idem, p.114), a qual supere as limitações
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
espaciais e temporais dos discursos realizados nos diferentes contextos sociais
reais. A primeira regra estabelece a constituição do círculo dos participantes do
discurso como compreendendo todos os sujeitos capazes de participar de
argumentações. A segunda garante a todos os interlocutores as mesmas chances
de argumentar e apresentar seus argumentos como válidos. A terceira exige que as
condições de comunicação tornem possível que prevaleça o acesso universal e
chances iguais de todos os interlocutores a participarem do discurso, sem
nenhuma forma de repressão, ou seja, de forma igualitária.
Segundo Habermas, o próprio cético moral6, ao apresentar suas objeções à
possibilidade de fundamentar racionalmente as normas, já aceita como
pressupostas estas regras da argumentação, pois pressupõe que está sendo ouvido
e ao ouvir e refutar as argumentações apresentadas pelo cognitivista moral está
seguindo as regras da argumentação.
É importante advertir que o princípio da Ética do Discurso, por referir-se a
um procedimento, é um princípio formal. Não pretende fornecer normas
substantivas e justificadas, mas presta-se ao exame da validade de normas
propostas e consideradas como hipóteses, no horizonte do mundo da vida, dentro
de determinado grupo social, no qual surgem conflitos de ação em determinadas
6
O cético moral defende a impossibilidade de se fundamentar a moralidade, seja ela universal ou
particular. Neste sentido difere do relativista moral para quem só se pode fundamentar a
moralidade partindo de referências culturais particulares.
53
situações. O discurso prático só tem sentido quando os agentes consideram como
sua a tarefa de buscar soluções consensuais em uma matéria controversa, a qual
interessa a todos.
Por possuir este caráter puramente formal e procedimental, a ética do
discurso é alvo de muitas críticas por pensadores que atribuem importância
fundamental aos ideais e crenças na orientação das ações. A seguir serão
apresentados alguns argumentos das objeções de Charles Taylor apresenta ao
pensamento moral habermasiano.
3.2
A crítica de Charles Taylor
Nascido em 1931, o filósofo canadense Charles Taylor pode ser
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
considerado um dos mais importantes pensadores comunitaristas, ao defender a
importância das identidades culturais e uma política que abra espaço para que se
decida publicamente sobre os aspectos de identidade individual que são
partilhados, pelo menos em potencia, com os demais cidadãos. Neste sentido é um
feroz crítico do liberalismo, pois este concebe o indivíduo de forma “atomística”,
como se sua identidade e seus fins fossem constituídos de forma autônoma. A
defesa de suas ideias não se limita à academia, tendo se candidatado para o
Parlamento Federal Canadiano e sido escolhido para o Conseil de la Langue
Française no Quebec. A crítica que Taylor dirige ao pensamento moral de
Habermas está intimamente ligada a sua visão comunitarista e cultural da política
e da moral.
Para Taylor (2005), o pensamento de Habermas faz parte de uma corrente
da filosofia contemporânea que possui uma visão muito restrita da moralidade,
cuja função seria apenas indicar o caminho da ação correta, definindo a validade
de uma obrigação, em detrimento da “natureza do bem viver” (Op. Cit., p.110), e
que considera irrelevante para o agir moral a noção de uma vida boa e desejável.
Antes de expor em mais detalhes a crítica de Taylor, convém proceder a
uma breve exposição de seu pensamento, para que algumas de suas objeções
sejam compreendidas a partir do lugar em que são formuladas.
54
3.2.1
A teoria ética de Taylor
Taylor parte do pressuposto de que possuímos intuições “espirituais e
morais” formadas por concepções e atitudes relativas a temas como justiça,
respeito à vida, à dignidade e ao bem estar das pessoas. Estas intuições estão
profundamente arraigadas em nosso espírito a ponto de termos a impressão de que
fazem parte de um instinto, e são diferentes de outras reações morais que nos
parecem ser fruto de um processo de socialização. Além dessas intuições, Taylor
(2005, p.16) faz alusão a questões morais que nos remetem a um sentido que se
situa na base da própria dignidade humana e que “torna a vida digna de ser
vivida”. Estas questões envolvem o que ele denomina “avaliações fortes”,
compreendidas como julgamentos valorativos, ou bens dignos de serem
reverenciados, os quais são legitimados por “desejos, inclinações ou escolhas”, e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
que possuem, entretanto, existência independente destes e oferecem os próprios
padrões pra julgá-los.
Taylor considera que nosso pensamento moral é constituído por três eixos:
(1) o respeito pelos outros, que abarca todas as obrigações para com os outros
indivíduos e que colocam em destaque as idéias de liberdade e responsabilidade
para com estes; (2) a compreensão do que consiste uma vida plena, ou seja, uma
vida rica de significados em que os talentos e capacidades sejam desenvolvidos
em suas potencialidades; e (3) um conjunto de noções relativas à própria
dignidade, ao que faz com que se acredite merecedor, ou não, do respeito de seus
semelhantes. Segundo Taylor, esses três eixos, ou dimensões, possuem igual
importância na reflexão e compreensão da moralidade, embora o respeito aos
outros seja, com frequência, colocado em destaque por muitos filósofos
contemporâneos em detrimento das outras duas dimensões.
Ao buscar em que se baseiam os juízos e o agir moral, Taylor (2005, p.42)
apresenta o conceito de “configuração”, compreendido como o que proporciona o
“fundamento, explícito ou implícito, de nossos juízos, intuições ou reações morais
em qualquer das três dimensões”. Por configuração o autor entende uma
totalidade crucial de “distinções qualitativas”, um conjunto de bens que são
incomparavelmente superiores a outros mais comuns e de alcance imediato. Essas
configurações se remetem ao anteriormente denominado “avaliação forte”, cuja
55
existência independe dos desejos e inclinações, mas são padrões de seu
julgamento.
O pensador canadense defende a tese, segundo a qual não é possível a
algum ser humano prescindir dessas configurações, que são constitutivas do agir
humano, e das quais depende o reconhecimento da pessoa em sua integralidade.
Fora deste horizonte, dentro do qual há a possibilidade de se determinar o que se
avaliza como bom ou a que se opõe como mau, é impossível tomar uma posição,
não há como agir moralmente. São as configurações que proporcionam uma
orientação para a ação moral, o que é “essencial para se ser um interlocutor
humano capaz de responder por si mesmo” (TAYLOR, 2005, p.46). São as
distinções qualitativas, pelas quais as configurações são definidas, os pressupostos
básicos dos juízos e reações morais. Assim, os contextos dão sentido a essas ações
e reações.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
Essas configurações, entendidas a partir de distinções qualitativas,
constituem os bens com os quais a maioria das pessoas convive e cumpre a função
de orientar sua vida. Há que se considerar, entretanto, que há uma hierarquização
desses bens, de modo que alguns deles adquiram uma importância suprema em
relação aos outros. Dentre os bens que ocupam essa posição superior na sociedade
contemporânea, Taylor elege como uma hipótese inicial o culto a Deus e o valor
da justiça. Independentemente que qual bem ou bens sejam colocados nessa
posição superior, estes ocupam uma posição inigualável na vida das pessoas,
propiciam as referências para a direção de suas vidas e se vinculam de forma
estreita à definição de suas identidades. Esses bens superiores, denominados por
Taylor de “hiperbens”, são reconhecidos como tais mesmo por quem não esteja
obstinadamente com eles comprometido e possuem o estatuto de definir a “moral”
nas culturas modernas e contemporâneas.
Taylor adverte, entretanto, que a existência de hiperbens provoca conflitos,
e aqueles que são hoje reconhecidos como tais nasceram de uma superação de
outros bens considerados superiores no passado. O ideal de justiça e benevolência,
aceitos por muitos na atualidade como valores universais, por exemplo, nem
sempre foram estimados como tais pelas sociedades antigas e medievais. Esse
reconhecimento se deu em diversas etapas, através de lutas intensas e vencidas a
custa de muitos sacrifícios, e cumpre ainda hoje o papel de criticar visões
56
contemporâneas que em alguns momentos se mostram contraditórias em relação e
esses princípios.
Uma ética que se fundamente em torno de um hiperbem gera conflitos e
tensões porque o bem supremo não apenas se situa acima dos outros, mas pode
tender a rejeitá-los, o que provoca intensos desacordos e dilemas na vida moral.
Para Taylor , a estratégia apontada por Aristóteles de ratificar todos os bens
parece ser a mais adequada, pois com essa posição assume a impossibilidade de
alguém se colocar como juiz e ter a pretensão de afirmar quais bens, dentre
aqueles que estão presentes e desenvolvidos no meio social, têm ou não valor.
Como consequência “o bem viver deve ser entendido, portanto, como aquele que
de algum modo combina no maior grau possível todos os bens que buscamos”
(Taylor, 2005, p.93-94). Isto não significa, todavia, que todos os bens tenham
igual valor, visto que o próprio Aristóteles concorda com a superioridade de uns
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
sobre outros. Todavia, sua ascendência se dá em termos de “alta prioridade”, e
não de uma perspectiva que negue os demais.
Para Taylor são fortes os argumentos a favor dessa estratégia aristotélica,
contudo, as dificuldades de levá-la adiante são abundantes porque envolveria o
respeito a todas as práticas e “bens interiores” que a humanidade produziu nas
diversas sociedades e não se pode deixar de admitir a existência de sociedades e
modos de intercâmbio social com muitos vícios, ou com práticas que não se
conciliam, em hipótese alguma, com o ideal de justiça ou de dignidade humana.
Reconhecendo estas dificuldades, o filósofo canadense afirma que ao se
posicionar em uma perspectiva moral do “respeito igual e universal”, considera a
condenação de atos que firam a dignidade humana, como por exemplo, a
circuncisão feminina em algumas culturas, não apenas como expressão de um
modo de ser da cultura ocidental, porém de uma perspectiva moral que engendra
críticas contundentes a crenças e práticas desta própria sociedade que estejam em
desacordo com o ideal de justiça e respeito universal.
Apesar das dificuldades que se apresentam, o filósofo advoga em favor de
uma ética do bem, ou melhor, de uma moralidade que tenha como referência bens
superiores dos quais o raciocínio prático tenha que ser capaz de oferecer
argumentos favoráveis. A razão prática tem que ter a capacidade de “convencer da
justiça de nossa causa pessoas que não partilham absolutamente nenhuma de
nossas intuições morais básicas” (TAYLOR 2005, p.101), sob o risco de não
57
possuir utilidade alguma. Isto não significa, entretanto, que se considere que
determinada visão seja absolutamente correta, mas que é possível que uma seja
mais adequada que outras. Ele argumenta que o desenvolvimento do raciocínio
prático se dá por transições, partindo de um bem que no passado foi considerado
como valoroso para outro, que durante um percurso das histórias de vida, se
mostra digno de maior valoração. Neste sentido “os hiperbens surgem por meio de
superações”, sendo que, “a convicção que trazem consigo vem de nossa leitura
das transições para eles, de certa compreensão do crescimento moral” (Idem,
p.102). Como consequência a perspectiva que temos se define por nossas
intuições morais, pelo que nos move moralmente, sem o que não somos capazes
de compreender os argumentos morais, não somos capazes de agir moralmente.
Ao fazer esse breve e limitado “passeio” pelo pensamento ético de Taylor,
é possível perceber alguns de seus desacordos com a ética do discurso. Na
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
sequência serão explicitadas algumas de suas críticas e os argumentos que utiliza.
3.2.2
A crítica à ética do discurso
Suas críticas se dirigem tanto às éticas de cunho utilitaristas, quanto às que
seguem a tradição kantiana. Em sua avaliação essas duas tradições tendem a
menosprezar, quando não desprezar totalmente as distinções qualitativas, tão caras
a sua concepção de moralidade. Tais concepções dirigem o foco para os
princípios, determinações e padrões de orientação para a ação, negligenciando
previamente as concepções do bem. Para o filósofo canadense, essas “teorias da
ação obrigatória” são determinadas por motivações epistemológicas, bem como
por motivações morais importantes, a saber, a defesa da vida cotidiana e do
desejo, a concepção moderna de liberdade e a aspiração por uma ética universal.
Kantianos e utilitaristas, por partirem de algumas destas motivações, partilham de
uma concepção ética procedimental, que se caracteriza muito mais pelo modo
como se constrói o pensamento e a argumentação, em oposição a uma concepção
substantiva que considera o resultado da reflexão que se identifica com um
sentido ou ideal de bem.
Segundo Taylor (2005), a motivação mais forte que justifica a mudança
para uma ética procedimental, em detrimento de uma concepção substantiva, é a
“idéia moderna de liberdade”, a qual segue a mesma ótica dos contratualistas
58
modernos, que privilegiaram o consenso como critério de legitimidade, em
detrimento de alguma concepção de boa sociedade. Em sua avaliação, o
pensamento de Habermas, por ser um procedimento dialógico, segundo o qual
uma norma só se justifica quando todos podem, livre de qualquer coerção, entrar
em acordo, é um avanço em relação ao imperativo categórico de Kant, todavia
está fundado nos mesmos princípios do contrato social dos modernos.
Ao excluir as distinções qualitativas, ou seja, o ideal de bem, essas
tendências éticas, segundo Taylor, deixam em aberto lacunas importantes e
perturbadoras, que merecem ser preenchidas. Pecam por não apreender uma
compreensão que subjaz a qualquer crença de que se deve agir de alguma maneira
determinada: a noção de que algo que se preza está envolvido. Permanece sem
justificação a prioridade de se proceder a um raciocínio moral, em lugar de não
fazê-lo, e a justificativa de Habermas, segundo a qual esta prioridade é fruto de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
uma maturação seja do indivíduo seja da cultura, ainda não responde à questão
sobre “por que se deveria ser moral ou esforçar-se por alcançar a ‘maturidade’ de
uma ética ‘pós-convencional’” (TAYLOR, 2005, p.120).
Taylor
reconhece
a
importância
da
existência
no
pensamento
habermasiano, de uma fronteira entre as questões referentes à “justiça
interpessoal” e as relativas ao “bem viver”, que se refere à distinção entre
exigências de universalidade e concepções particulares de bem. Para o canadense
esta diferenciação se constitui, na visão de Habermas, uma defesa ímpar contra a
possibilidade da ofensiva etnocêntrica por parte de determinada tradição ou
cultura e por esse motivo deve ser preservada.
Segundo a análise de Taylor, um dos maiores limites dos teóricos
kantianos e utilitaristas é sua incapacidade de trazer à luz as raízes de seu
pensamento, as quais se encontram mergulhadas nos mais vigorosos ideais morais
da modernidade: liberdade, altruísmo e universalismo. Estes ideais são os
“hiperbens” consensuais que distinguem o pensamento ocidental moderno, e, por
uma contradição pragmática, esses teóricos negam ou deturpam os próprios bens
que estão na origem de sua motivação.
A crítica de Taylor considera, igualmente, que o princípio da prioridade do
certo sobre o bom, aceito pelas éticas de orientação kantiana, deve ser
compreendido a partir de duas acepções diferentes de “bem”. Quando o bem é
concebido em termos de resultado, segundo a orientação utilitarista, é justificável
59
que perca a posição de prioridade para o certo, pois assim a ação correta adquire
um caráter de obrigação moral. Entretanto, no momento em que o bem inclui
aquelas distinções qualitativas que servem de base para as concepções morais, a
saber, os “hiperbens”, deve ter prioridade sobre o certo, “no sentido de que é
aquilo que, em sua articulação, dá o sentido das regras que definem o certo”
(TAYLOR, 2005, p.123).
Em síntese, a principal crítica que Taylor faz à Ética do Discurso, dirige-se
à negação, considerada por ele inconsistente, dos “hiperbens”, os quais subjazem
às motivações das ações morais. Neste sentido, em sua avaliação a ética defendida
por Habermas não apresenta fundamentos que justifiquem a necessidade e nos
mobilizem a agir moralmente. Taylor somente um bem que seja colocado como
meta superior a se atingir, a saber, uma perspectiva de uma boa vida, pode
motivar os seres humanos a agirem moralmente. De sua perspectiva, a Ética do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
Discurso, por possuir um caráter puramente formal e procedimental, oferece uma
teorização limitada da moralidade, visto que juntamente com outras filosofias
morais contemporâneas nos impõem:
vendas que nos impedem de reconhecer a força dos bens, não nos deixam ser
movidos por eles ou, caso o sejamos, induzem-nos a identificar isso erroneamente
como alguma emoção não moral. O foco negativo do bem como fonte de culpa
esmagadora ou, alternativamente, de um sentido presunçoso de superioridade
termina por nos tornar resistentes a admitir que um bem constitutivo possa nos
interpelar, nos mover, nos impelir (TAYLOR, 2005, p.140).
A crítica de Taylor chama nossa atenção para o importante problema da
motivação, questão essa que não nos parece ser uma preocupação da Ética do
Discurso. Parece não se atentar, igualmente, para a distinção que Habermas
(1999) faz entre os usos moral e ético da razão prática. Este não desconsidera a
importância das escolhas que se referem à forma de vida que se queira viver, as
quais são fruto das relações com todos aqueles que compartilham nosso espaço
social, e das identidades coletivas forjadas historicamente. Ao fazer a distinção
entre esses dois usos da razão prática, Habermas deseja escapar do equívoco de se
colocar uma concepção de vida boa, ainda que seja partilhada por um grande
número de pessoas ou mesmo por diversas culturas, como o referencial a ser
imposto a culturas ou povos considerados minorias.
A preocupação de Habermas (1999), ao propor um caminho procedimental
para a fundamentação da moralidade, é evitar que por uma posição etnocêntrica
60
que não se assuma enquanto tal, um estilo de vida, ou que um “Bem” considerado
supremo, o qual sempre será assim considerado por um ponto de vista de
determinado contexto, seja colocado como acima de qualquer outro bem, que na
perspectiva de outras culturas deveriam ser colocados em lugar de destaque.
Se a filosofia pudesse, como dantes, ater-se à sua pretensão clássica de emitir
afirmações de validade universal sobre o sentido de uma vida boa ou não
malograda, então tampem teria de ser capaz de privilegiar um determinado modo
de vida. (HABERMAS, 1999, p. 172)
Ao estabelecer o “justo” como referência no lugar do “bom”, Habermas
(1999) não cai, como supõe Taylor (2005), no equívoco de trocar uma “avaliação
forte”, como valor substantivo, por outra. A idéia de justiça que Habermas (1999,
2003, 2004) adota como referência para a Ética do Discurso é um conceito
procedural, sem referência alguma a normas ou costumes originários de contextos
concretos. Um conceito que se refere à garantia de imparcialidade, compreendida
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
como a igual consideração de todas as perspectivas e interesses afetados. O justo,
em sua concepção, não é considerado como um bem em si, mas como uma forma
imparcial de, nos discursos práticos, os interesses e pontos de vista de todos os
envolvidos, serem levados em conta.
Pode-se, todavia, concordar com Taylor (2005) quando este afirma que a
Ética do Discurso não responde à questão sobre o porquê agir moralmente, sobre
as justificativas e motivações para se buscar uma vida conforme a moralidade.
Esta resposta pode sim ser encontrada no desejo de se viver uma vida que
consideremos digna, na qual o auto-respeito esteja presente. Para Habermas
(1999, p. 179, grifos do autor), em função de “um pluralismo de projetos e de
formas de vida moralmente justificados, os filósofos já não podem fornecer, por
sua própria conta, instruções universalmente vinculativas sobre o sentido da vida”,
cabe-lhes apenas uma reflexão metodológica pela qual “as questões éticas podem
ser respondidas em geral”.
Sua preocupação, ao propor, seguindo o caminho de Kant, uma ética
procedimental, é responder àqueles que já estão motivados a agir moralmente.
Propõe-se a oferecer uma maneira de se decidir o caminho a seguir quando, diante
de um dilema, indica que se opte por agir por um princípio que inclua os pontos
de vista de todos os concernidos, e mais ainda, que partilhe de um diálogo no qual
todas as posições e pretensões sejam pesadas com imparcialidade. Isto exige, por
certo, que os agentes morais tenham em mente um conceito de justiça pós-
61
tradicional, ou melhor, pós-convencional. Pressupõe que tenham a capacidade e
abertura de espírito para colocarem em suspenso suas próprias crenças, ou seja,
suas “avaliações fortes”, e discutindo os argumentos apresentados por seus
interlocutores, busquem o consenso possível, o qual poderá exigir que revejam
seus próprios valores.
Alguém poderá objetar, ainda, que este agente moral é uma idealização,
um sujeito que não existe concretamente. É aqui que a Filosofia Moral se encontra
com a Psicologia do Desenvolvimento, que oferece caminhos para se
compreender como ocorre o processo de aprendizagem moral, pelo qual, a criança
em estado de anomia, em um nível de desenvolvimento moral que sequer
reconhece as convenções sociais, faz seu percurso para se tornar um adulto
autônomo moralmente, que compreende as convenções sociais, as reforça ou as
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
refuta, tendo como referência os princípios de justiça.
3.3
A psicologia do desenvolvimento moral de Kohlberg
O psicólogo norte-americano Lawrence Kohlberg, nascido em 1927 e
falecido em 1987, foi durante 19 anos, até sua morte, professor da Universidade
de Harvard. Pretendendo inicialmente se dedicar à psicologia clínica, foi
provocado pelas teorias de Jean Piaget a se dedicar ao estudo do desenvolvimento
moral de crianças e adolescentes. A base de sua teoria, os estágios de
desenvolvimento moral, foram identificados em sua tese de doutorado de 1958, e
até o fim de sua vida se dedicou a revê-la e, junto com outros colaboradores,
reformulá-la e aperfeiçoá-la. Sua visão estruturalista, que propõe uma sequência
invariante de estágios e seu universalismo moral, representaram uma mudança
radical em relação às teorias do desenvolvimento moral da época, que seguiam
orientações psicanalíticas ou behavioristas.
Kohlberg (1992) parte dos estudos de Jean Piaget, segundo os quais o
desenvolvimento moral da criança se constrói em estágios. É importante destacar
que o critério último do desenvolvimento moral de ambos é, concordando com
Kant (1986) a autonomia moral. A criança se livra, aos poucos, da coação adulta e
passa a aceitar os deveres morais como seus em função de sua relevância e
importância. Em seu estudo inicial, Kohlberg objetiva aplicar a proposta de
investigação iniciada por Piaget com crianças, à fase da adolescência.
62
Kohlberg aprofunda a idéia dos estágios do desenvolvimento moral
apresentada por Piaget e estabelece três níveis de juízos morais, os quais se
subdividem em dois estágios cada um. Concorda com Piaget no entendimento de
que os níveis e estágios se desenvolvem em uma seqüência e se constroem por um
processo de aprendizagem a partir da interação do indivíduo com seu meio social
e cultural.
Ao aceitar e defender que o desenvolvimento moral ocorre de forma
sequencial, rumo a um nível mais elevado de construção moral, Kohlberg
necessita fundamentar porque o nível seguinte é melhor que o anterior. A
Psicologia é capaz de explicar, a partir de observações empíricas como alguns
sujeitos resolvem questões morais por determinados caminhos, e outros as
resolvem por outros, e demonstrar as diferenças entre as diversas opções de
resolução. Não pode, entretanto, afirmar qual dos caminhos é o melhor, ou
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
moralmente mais aceitável. Esta referência Kohlberg vai buscar na Filosofia,
tomando como critério um princípio de justiça compreendido como regulação
igualitária e recíproca dos direitos e deveres, regulação esta que proporciona o
equilíbrio das ações e relações sociais. A seguir serão apresentados alguns
pressupostos filosóficos que fundamentam alguns critérios utilizados por
Kohlberg em seus estudos sobre o desenvolvimento moral.
3.3.1
Pressupostos filosóficos
Kohlberg (1992) considera que existem quatro grupos de orientações
morais: (1) ações baseadas em normas e regras estabelecidas com o objetivo de
manter a ordem moral e social; (2) ações referenciadas nas consequências boas ou
más para o bem estar dos agentes e dos demais envolvidos; (3) ações definidas
pela imagem de um “eu ideal” e virtuoso, pelos motivos ou virtudes do agente
moral; (4) ações referenciadas na liberdade, igualdade e reciprocidade que
determinam o ideal de justiça. Ao optar por esta última orientação não
desconsidera que todos podem ser utilizados por um indivíduo para pautar suas
ações, todavia afirma que em sua essência a estrutura da moralidade é a justiça.
El sentido de justicia de uma persona es lo que es más distintivo y
fundamentalmente moral. Uno puede actuar moralmente y cuestionar-se todas
las normas, se puede actuar moralmente y cuestionarse el bien mayor, pero no se
63
puede actuar moralmente e cuestionarse la necesidad de justicia. (KOHLBERG,
1992, p. 197)
Kohlberg considera que existem alguns pressupostos filosóficos ou metaéticos que devem ser aceitos para que um estudo, como o seu, que se utilize dos
conceitos de níveis e estágios de desenvolvimento seja efetuado. Esses
pressupostos posicionam o pesquisador frente a questões que não possuem caráter
científico, nem ético-normativo, mas analítico e crítico, questões lógicas,
epistemológicas ou semânticas, sobre, por exemplo, o significado de expressões
como “moralmente correto” e de termos como “bom”. São questões meta-éticas
no sentido de se perguntar criticamente sobre o lugar de onde e a partir de que
visão de moralidade o pesquisador parte.
A seguir serão apresentados os nove pressupostos filosóficos que ajudarão
a compreender e fundamentar a teoria do desenvolvimento moral por níveis e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
estágios de desenvolvimento.
i. Importância da não neutralidade das definições de moralidade.
Segundo este pressuposto, Kohlberg se afasta de qualquer tipo de relativismo
moral, defendendo que existem sistemas de pensamento moral mais válidos que
outros e que o avanço de determinado sistema em direção a outro pode ser visto
como uma evolução. Kohlberg acredita que um sistema moral considerado mais
válido é aquele que melhor satisfaz os critérios de validez propostos, em especial
por filósofos de tradição formalista. Ao afirmar que alguns sistemas de
pensamento moral podem ser mais desenvolvidos que outros, Kohlberg (1992, p.
279) toma este termo no sentido de “un cambio hacia una mayor diferenciación,
integracíon y adaptacíon”, não enquanto atribuição de valor a determinados
conteúdos e crenças morais.
ii. O pressuposto do fenomenalismo.
Kohlberg considera o caráter
consciente do raciocínio moral, já no uso da linguagem comum, como critério
para se imputar ao agente a valorização moral de seus atos. Para ele, a conduta
moral é motivada por juízos e deliberações, apesar de reconhecer que nem sempre
um juízo se traduz em ação. Com esse pressuposto ele se contrapõe aos teóricos
behavioristas e psicoanalíticos. Para os primeiros o valor de uma ação moral é
determinado por suas consequências para o agente e para os outros, sem que
sejam consideradas as intenções; para os segundos a essência da moralidade é
uma ilusão do inconsciente, o qual forja o sentimento de culpa. Para Kohlberg, o
64
estudo da conduta e do desenvolvimento moral deve levar em conta os motivos e
os significados morais que se expressam nas ações.
iii. O pressuposto do universalismo. Consiste em aceitar que em
condições sociais e culturais adequadas ao desenvolvimento moral, existe uma
forma universalmente válida, pela qual o processo de pensamento moral racional
poderia ser articulado por todas as pessoas. Os estudos empíricos que realizou
junto com seus colaboradores demonstram que as diferentes culturas utilizam
normas e elementos morais semelhantes em uma sequência evolutiva estrutural
idêntica, com tendência à universalização. Reconhecendo que as ações morais e os
costumes variam de uma cultura para outra, Kohlberg (1992, p. 285). supõe que
sob essas variações existem formas universais de estabelecer juízos e valorações,
e que “el desarrollo de las estructuras del razonamiento de la justicia es um
desarrollo universal”
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
Há que se diferenciar dois tipos de relativismos, o relativismo cultural que
assevera que os princípios morais são culturalmente mutáveis, posição esta
partilhada por Kohlberg, e o relativismo ético que, a partir da primeira
constatação, afirma que essas diferenças são logicamente inevitáveis, e têm como
consequência a impossibilidade de se encontrar princípios e métodos racionais
que possam conciliá-las, cabendo a cada um viver segundo seus próprios
princípios e costumes. Em seu entendimento o relativismo ético é inaceitável
porque cai na chamada “falácia naturalista” ao cometer uma confusão lógica entre
questões de fato e questões de valor, ou seja, confunde “la idea de que ‘cada uno
tiene sus propios valores’ y la idea de que ‘cada uno debe de tener sus propios
valores’” (KOHLBERG, 1992, p. 283). O erro de raciocínio se dá pela confusão
entre o caráter descritivo e factual, fruto de observações e generalizações, da
primeira afirmação e o caráter prescritivo da segunda, produto de expectativas e
pretensões sobre como a realidade deveria ou poderia ser.
iv. O pressuposto do prescritivismo. Significa dizer que os juízos morais
possuem, fundamentalmente, a função de dirigir, de obrigar a agir de determinada
maneira, embora não sejam simplesmente ordens dirigidas a ações concretas, mas
imperativos derivados de determinadas regras ou princípios de ação. O caráter
prescritivo dos juízos morais os diferencia dos juízos de fato, considerados
descritivos, diferenciação importante para se evitar a citada “falácia naturalista”
65
cometida por muitos relativistas. Um juízo descritivo se refere a fatos, ao “que é”,
enquanto o prescritivo aos valores, ao “que deve ser”.
v. O pressuposto do cognitivismo. A partir deste pressuposto defende-se
a idéia de que os juízos morais, não obstante não sejam descritivos, possuem
características cognitivas e são baseados em raciocínios. Neste sentido, a
formulação dos juízos morais envolve princípios prescritivos, os quais são
justificados e aplicados em reflexões racionais. Kohlberg não nega o papel que
determinadas emoções desempenham no raciocínio moral, alerta, entretanto, que
não diminuem o caráter cognitivo, de apresentação de razões, que é constitutivo
desses juízos. Para ele, os afetos são sempre estruturados por processos
cognitivos, tal como o de se colocar no lugar do outro, que pode se manifestar
como simpatia por uma vítima ou indignação ante um agressor. O cognitivismo
significa que os julgamentos morais se desenvolvem de modo que podem levar a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
formulações de juízos e princípios, a partir de operações cognitivas como a
reversibilidade e a equidade.
vi. O pressuposto do formalismo. O pressuposto do formalismo parte de
uma distinção inicial entre forma e conteúdo dos juízos morais. Neste sentido, o
formalismo psicológico de Kohlberg (1992, p. 290) parte de uma concepção
filosófica, a saber, de uma ética normativa, segundo a qual “lo correto es solo una
cuestión de la forma universal del principio seguido”. O formalismo pode ser
considerado uma postura meta-ética que definiria o ponto de vista moral de modo
que se possa estar “de acordo racionalmente” sem que se aceite, necessariamente,
os conteúdos ou princípios substantivos de determinado pensamento moral.
Tomar um ponto de vista moral poderia significar, em sua visão, não ser egoísta,
agir por princípios universalizáveis e considerar com equidade o bem de cada um.
Neste sentido, cada estágio ou nível de desenvolvimento moral possui
determinadas características formais, ou seja, determinadas formas de raciocínio,
que podem chegar a conclusões ou juízos favoráveis ou contra ações particulares,
não sendo, entretanto racionalmente inconsistentes.
vii. O pressuposto da principialidade.
O psicólogo norte-americano
considera que uma teoria moral de caráter prescritivo e não substantiva deve partir
de “um ponto de vista moral”, baseado em alguns princípios. Princípio é definido,
não como uma regra substantiva de ação previamente estabelecida, mas como
referência para se julgar situações morais particulares, que buscam “alcanzar um
66
equilíbrio reflexivo” (KOHLBERG, 1992, p. 297). Neste sentido em uma
moralidade de princípios a escolha não está prescrita por “absolutos”, pois há o
entendimento de que o valor implícito no princípio necessita ser interpretado ao se
deparar com situações e contextos concretos. Os princípios de justiça, liberdade e
igualdade são tomados por ele como referência para se resolver dilemas morais.
Seu ponto de vista admite que estes “principios universales que se aplican
contextualmente no son por eso arbitrarios, a pesar de circunstancias históricas
cambiantes” (Idem, p. 296).
viii. O pressuposto do construtivismo. Segundo este pressuposto tanto as
regras como os princípios morais não são constitutivos da moralidade, como um
conjunto a priori que não poderia aceitar exceções, nem tampouco são elaboradas
de forma arbitrária a partir de generalizações empíricas. Devem ser considerados
como construções, no mesmo sentido de Piaget em sua teoria do desenvolvimento
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
cognitivo. Neste sentido, os princípios são construídos e reconstruídos por um
processo reflexivo que busca alcançar o equilíbrio entre um princípio já
estabelecido e situações problemáticas que nos são apresentadas. Se a solução que
nos parece mais aceitável para um dilema concreto entra em contradição com
nossos princípios, temos a possibilidade de buscar uma solução que esteja em
consonância com eles, ou reformulá-los. É segundo um processo de desequilíbrio
e acomodação, conforme a terminologia piagetiana do construtivismo cognitivo,
que Kohlberg concebe a elaboração dos princípios morais, considerando com
Piaget que:
las estructuras mentales no son ni biológicas innatas a priori ni hábitos
inductivos aprendidos de forma pasiva a partir de experiências sensoriales, sino
que son más bien consruciones activas de experiências que se assimilan mientras
que se acomodam a ellas (KOHLBERG, 1992, p. 297).
ix. O pressuposto de justiça. O pressuposto da justiça como a essência da
estrutura da moralidade, possibilita à teoria de Kohlberg coerência e coesão entre
os demais pressupostos meta-éticos apresentados. A centralidade da justiça deriva
de sua concepção prescritiva dos juízos morais, e de sua preocupação em que
possam ser universalizados. A busca pela universalidade implica que se encontre
algumas mínimas concepções de valor que possam ser aceitas por todos
independentemente de seus distintos objetivos ou ideais de bem. A centralidade da
justiça deriva também da opção por uma via cognitiva, racional, da moralidade,
67
posto que juízos de justiça exigem razões e justificativas objetivas para as
escolhas.
Kohlberg (1992, p. 301) considera a justiça como “la característica más
estrutural del juicio moral”, posto que as interações pessoais ideais se estruturam
em operações de reciprocidade, igualdade e reversibilidade que são constitutivas
da justiça. Neste sentido, a opção pela primazia dos juízos de justiça em sua
metodologia cumpre o papel de definir seu campo de investigação e proporciona a
operacionalização de níveis de raciocínio moral.
Em cada estádio, las operaciones de justicia y sus expresiones elementales se
articulan dentro de diferentes perspectivas de justicia. Estas perspectivas de
justicia y los constrastes entre ellas son fundamentales em nuestra valoración de
la transición evolutiva del estádio (KOHLBERG , 1992, p. 307).
A explicitação dos pressupostos que fundamentam filosoficamente as
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
opções que Kohlberg faz em seu estudo sobre o desenvolvimento moral
possibilita a compreensão de seus critérios de classificação dos raciocínios
morais, bem como sua concepção de uma possível moralidade que possa ser
considerada universal, o que não o isenta de possíveis discordâncias e críticas. Ele
mesmo reconhece que filósofos e psicólogos podem discordar de sua
pressuposição da primazia da justiça na definição do raciocínio moral, ou dos
critérios que utiliza para dizer que uma forma de raciocínio moral é mais
adequada ou mais racional que outra, a saber, equidade, reversibilidade e
universalidade.
Sua teoria do desenvolvimento moral situa-se entre as teorias cognitivoevolutivas, as quais se utilizam do conceito de reorganização sequencial ou
estágios ligados à idade para compreender o desenvolvimento das atitudes morais.
Como uma teoria cognitivo-evolutiva pressupõe ainda que: (1) o julgamento
moral tem um componente básico constituído de estruturas cognitivas; (2) a
moralidade tem como motivação formas generalizadas de aceitação, competência,
auto-estima e auto-compreensão; (3) os aspectos mais importantes do
desenvolvimento da moralidade estão presentes em todas as culturas; (4) são as
experiências de interação social que dão origem às normas e princípios morais
básicos, ou seja, os estágios morais se definem por estruturas interativas entre o eu
e os outros; (5) o desenvolvimento moral sofre influências do ambiente, que são
68
definidas, entretanto, pela qualidade e extensão do estímulo social e cognitivo
durante o desenvolvimento da criança.
O modo como o ambiente influencia o desenvolvimento moral, em uma
compreensão cognitivo-evolutiva, difere da visão de outras teorias denominadas
de “aprendizagem social” ou de “socialização”, para as quais, em linhas gerais, a
moralidade se desenvolve por adaptações e interiorizações das normas e regras
sociais vigentes, o que coloca o desenvolvimento moral como culturalmente
relativo.
Para as teorias cognitivo-evolutivas a criança ou o adolescente não se
adapta simplesmente ao ambiente, mas são por ele estimulados e provocados a
reorganizar suas estruturas de pensamento ao vivenciar situações de conflito
cognitivo. Neste sentido, existem fatores sociais que contribuem para o
desenvolvimento das estruturas de raciocínio moral. O primeiro fator a ser
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
destacado pode ser denominado como “oportunidades de troca de papéis”, ou seja,
a inserção em ambientes sociais nos quais possa se colocar no lugar dos outros e
estar consciente de seus pensamentos e sentimentos. Esta vivência de troca de
papéis
envolve
aspectos
cognitivos
e
afetivos,
requer
uma
relação
conscientemente organizada entre o eu e os outros e exige uma maior
compreensão da relação entre os diversos papéis sociais dos quais se é parte. Para
Kohlberg, as chances de se vivenciar experiências de troca de papéis variam em
função das relações em família, com os grupos de amigos, no espaço da escola, ou
ainda em estruturas mais amplas da sociedade.
Um segundo fator a ser destacado é a “atmosfera moral”, compreendida
como a percepção que os membros de determinada instituição (família, escola,
orfanato7...) possuem do modo como são tratados os direitos e os deveres
fundamentais, e de como é administrada a cooperação social. Nesta compreensão
entra a forma como as crianças e adolescentes vêem os comportamentos e ações
de seus pares e dos adultos diante de problemas e conflitos morais, ou seja, seu
estágio de desenvolvimento moral percebido. Para Kohlberg, se um indivíduo em
um determinado estágio percebe que aqueles com quem convive estão em estágios
7
Um de seus estudos comparou a percepção da atmosfera moral das crianças de um orfanato
norte-americano e de um kibutz israelense. O estudo constatou que as formas como as crianças
israelenses interagiam entre si, e com os adultos, com cooperação e diálogo, poderia ser tomada
como explicação para o maior amadurecimento de seu raciocínio moral.
69
inferiores não se sente provocado a avançar, pois tende a rechaçar um raciocínio
abaixo de seu próprio. Entretanto, se convive em ambiente com pessoas em
estágios à frente, vivencia situações de conflito cognitivo que podem provocar seu
crescimento.
A possibilidade de vivenciar conflitos cognitivo-morais nas experiências
sociais é um terceiro fator que possui grande influência no desenvolvimento moral
para sua teoria. O conflito cognitivo pode ocorrer quando se é exposto a situações
que provocam contradições internas na estrutura de raciocínio utilizada para a
resolução de problemas. Quando a solução encontrada pela estrutura já construída
não resolve todas as contradições do dilema presente, ou quando a criança ou o
adolescente entra em contato com soluções mais elaboradas, que até então não
havia cogitado.
Como podemos perceber, o papel e a influência do ambiente no
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
desenvolvimento do raciocínio moral não são desprezados pela teoria cognitivoevolutiva de Kohlberg. O ambiente não se impõe ao indivíduo como uma
realidade dada, à qual ele deve se adaptar, mas proporciona e provoca situações
que o mobilizam a reorganizar suas estruturas de raciocínio e avançar para um
estágio mais avançado, segundo os critérios de justiça.
3.3.2
Níveis e estágios de desenvolvimento moral
O desenvolvimento do raciocínio moral se situa em uma sequência mais
ampla de desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo, dentro da qual se
encontram também o desenvolvimento do raciocínio lógico e da percepção social.
Kohlberg (1992) considera os três estágios básicos do desenvolvimento do
raciocínio lógico, segundo Piaget (intuitivo, operatório concreto e operatório
formal),
como
condições
necessárias,
porém
não
suficientes,
para o
desenvolvimento do raciocínio moral. Este desenvolvimento depende, igualmente,
do nível de percepção social, ou seja, de como o indivíduo vê e interpreta os
pensamentos e sentimentos dos outros e o lugar que cada um ocupa na sociedade.
Segundo sua teoria cognitivo-evolutiva há uma sequência vertical ascendente a
partir dos níveis e estágios mais baixos de desenvolvimento moral rumo ao mais
alto, e uma sequência horizontal que se inicia com o raciocínio lógico, passando
pela percepção social, pelo raciocínio moral e se encerraria na ação moral.
70
Kohlberg adverte, entretanto, que assim como o raciocínio lógico formal não é
suficiente para garantir um raciocínio moral avançado, este último também não é
suficiente para a conduta moral. Outros fatores motivacionais entram na
determinação do agir. Porém a identificação dos estágios de desenvolvimento
morais de sua teorização baseia-se somente no raciocínio moral.
A partir de seus estudos Kohlberg estabelece seis estágios morais, os quais
se agrupam em três níveis, definidos em função da relação dos indivíduos com as
normas, expectativas e acordos da sociedade, ou seja, com as convenções sociais e
morais estabelecidas. No primeiro nível, denominado pré-convencional, em que se
encontram a maioria das crianças menores de nove anos, alguns adolescentes e
muitos adolescentes e adultos que comentem crimes ou contravenções, o
indivíduo não compreende as normas e convenções sociais bem como sua
importância para o convívio em sociedade e as vêem como algo externo a eles. No
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
nível convencional, no qual se encontra a maioria dos adolescentes e adultos de
muitas sociedades, ocorre a conformidade e manutenção da autoridade, das
normas e acordos sociais, pelo simples fato de estarem estabelecidos enquanto
tais. Ocorre aqui uma identificação entre o “eu” e as regras e expectativas dos
outros, em especial das autoridades. No terceiro e mais elevado nível de
moralidade, que é alcançado apenas por uma minoria de adultos, o indivíduo, em
geral, mantém e compreende as regras e normas sociais e morais, mas esta
aceitação está baseada em princípios que as fundamentam. Este nível é
denominado pós-convencional, pois o indivíduo se posiciona além da regra, além
da convenção social, avaliando e validando-as mais a partir de princípios do que
pelo fato de serem acordos já estabelecidos.
Os seis estágios, por sua vez foram delineados a partir da aplicação de
dilemas morais por Kohlberg e seus colaboradores, os quais fazem referência a
três problemas ou aspectos de justiça, já identificados por Aristóteles na “Ética a
Nicômaco”. Seus dilemas tratam de problemas referentes à justiça distributiva, ou
seja, a forma como são distribuídos os bens desejáveis da comunidade, que se
utiliza de operações de igualdade, mérito ou equidade. Tratam também de
questões de justiça comutativa, centradas em acordos voluntários e contratos
estabelecidos. Um terceiro problema de justiça tratado em alguns dos dilemas se
refere à justiça corretiva que administra a restituição ou compensação em função
de um direito violado. Por fim, em sua descrição dos estágios, Kohlberg identifica
71
um aspecto da justiça que se aplica aos três anteriores, que é a questão da justiça
processual, derivada das preocupações com o equilíbrio das perspectivas, que por
sua vez possibilita a verificação da validade do raciocínio moral, pelas operações
de reversibilidade e universalidade.
Na descrição dos estágios morais, há ainda que considerar as operações de
igualdade, equidade, reciprocidade, troca de papéis e universabilidade da justiça,
que se desenvolveriam idealmente apenas no sexto e mais maduro estágio de
desenvolvimento. A operação de igualdade pode ser definida pelo reconhecimento
de que todas as pessoas possuem o mesmo valor moral e tem idêntico direito aos
bens e à consideração de seus interesses. A equidade é compreendida como uma
distribuição desigual que objetiva compensar uma desigualdade pré-existente à
situação atual, através de uma distribuição de bens ou consideração de interesses
de forma desproporcional, privilegiando aqueles que anteriormente estavam em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
desvantagem. A reciprocidade é uma operação de justiça que implica igualdade e
equidade e considera o justo como o merecido, em função do mérito, da virtude
ou do desvio da conduta. Neste sentido, a recompensa ou o castigo devem ser
distribuídos em consonância com o grau de bem ou mal de determinada postura.
A operação de troca de papéis possibilita que o agente moral leve em conta as
perspectivas dos outros, buscando e aceitando a solução para determinado dilema
independentemente de sua situação particular. A universabilidade é uma operação
que se encontra estreitamente vinculada à igualdade e à equidade, pois se refere ao
questionamento sobre a possibilidade de todos poderem considerar como válida
ou correta determinada postura ou ação.
Estas cinco operações e os quatro problemas ou aspectos da justiça são
utilizados como critérios que constituem as descrições dos estágios, juntamente
com as perspectivas sócio-morais sobre as normas, ou seja, a postura considerada
boa ou aceitável, as razões para se agir corretamente e a percepção social. Neste
sentido, cada estágio é descrito a partir da discussão das perspectivas sóciomorais, das operações e dos problemas de justiça.
i. Nível pré-convencional – não reconhecimento das convenções sociais.
O primeiro estágio do nível pré-convencional, denominado estágio da
moralidade heterônoma, é caracterizado por um “realismo moral ingênuo”, o que
72
significa dizer que a bondade ou a maldade de uma ação é vista como inerente a
ela, portanto auto-evidente. Os indivíduos deste estágio consideram uma postura
aceitável seguir as normas simplesmente por serem normas, assim como não
causar danos materiais às pessoas ou propriedades. É o poder de uma autoridade
ou a perspectiva de castigo que motiva a obediência. Sua perspectiva em relação à
sociedade é egocêntrica, pois não faz relação entre dois ou mais pontos de vista e
não leva em consideração os interesses diferentes dos outros. Há ainda uma
confusão entre a perspectiva do “eu” e a perspectiva da autoridade.
A noção de igualdade é entendida como uma correspondência estrita
àqueles considerados de uma mesma categoria, sendo aceita uma distribuição
desigual entre pessoas de categorias diferentes. A reciprocidade, por sua vez, é
compreendida como troca de bens ou ações concretamente equivalentes, sem
levar-se em conta o valor psicológico diferenciado que determinados bens ou
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
ações possam ter para si e para os outros. Em função da natureza egocêntrica e
heterônoma do Estágio 1, estão ausentes as operações de equidade e de troca de
papéis. Entretanto, a universalidade se apresenta no sentido de que qualquer regra
ou norma é generalizada e deve valer para todos, não admitindo exceções, a não
ser por parte da autoridade, que é a responsável por sua criação e manutenção.
A justiça distributiva é guiada por uma noção de igualdade estrita que não
considera diferenças de necessidade ou merecimento, e quando há a intervenção
da autoridade, se orienta pela obediência heterônoma. As questões de justiça
corretiva são resolvidas na base da retribuição por estrita reciprocidade, sendo o
castigo visto como consequência automática da falta cometida, enquanto os
problemas que envolvem a justiça comutativa são resolvidos pela obediência às
regras, visto que são definidas externamente. A criança nesse estágio considera,
por exemplo, que o colega que não realizou cinco exercícios por não ter
compreendido o assunto, merece maior punição do que outro que deixou de fazer
um, por que estava brincando durante a aula. De modo semelhante, seria mais
grave derrubar dez copos de suco, por acidente do que derrubar apenas um
intencionalmente.
O segundo estágio, também conhecido como estágio da moralidade
individualista e instrumental, caracteriza-se por uma perspectiva individualista
concreta, que gera uma consciência dos diferentes interesses próprios, os quais
podem entrar em conflito. Como consequência se desenvolve um relativismo
73
moral, pois cada um pode apresentar justificativas diferentes para suas
reivindicações de justiça, as quais são consideradas igualmente válidas. Posto que
o objetivo primordial de cada um seja defender seus próprios interesses, este
estágio possui também uma perspectiva pragmática com ênfase em trocas
instrumentais, pelas quais os indivíduos podem coordenar suas ações em benefício
mútuo. No que se refere às normas, estas devem ser seguidas se respondem às
necessidades e interesses próprios. Neste sentido, é uma postura aceitável
perseguir seus próprios interesses, admitir que os outros façam o mesmo e
cumprir os acordos feitos. Entretanto, um importante limite deste estágio é sua
impossibilidade de resolver reivindicações e interesses conflitivos.
A operação de igualdade compreende todos os indivíduos na categoria de
“pessoas”, que possuem necessidades e desejos e podem satisfazê-los por suas
próprias ações ou através do intercâmbio com outros. A reciprocidade se expressa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
por permutas de bens equivalentes em função das necessidades de todos os
envolvidos. Neste estágio, as operações de igualdade e reciprocidade estão
coordenadas, o que não ocorre no estágio anterior. Surge agora a noção de
equidade, porém centrada apenas nas necessidades dos atores, não em suas
intenções, o que torna aceitável um tratamento diferenciado, por exemplo, para
quem rouba em função da fome. A operação de troca de papéis possibilita um
equilíbrio no sentido do reconhecimento das diferentes necessidades dos
indivíduos, porém não avança na compreensão dos conflitos entre as diferentes
perspectivas. A universabilidade, por sua vez, é utilizada para impedir que as
normas sejam burladas em função dos interesses de alguns, porque ao se permitir
uma exceção abrem-se precedentes para muitos outros, o que colocaria em
questão a própria validade da norma.
As questões de justiça distributiva requerem, em sua resolução, a
coordenação entre as operações de igualdade e reciprocidade de modo que as
demandas das situações concretas e os interesses dos envolvidos sejam
considerados. Contam ainda com a equidade ao considerar, em circunstâncias
especiais, algumas necessidades ou intenções individuais. Estas, de modo
semelhante, servem de referência para a justiça corretiva, o que pode significar o
início do reconhecimento de que a violação de uma regra pode ser aceita, a partir
do contato com o ponto de vista do outro. A justiça comutativa, por sua vez, é
baseada no intercâmbio instrumental de interesses e necessidades dos indivíduos,
74
de modo que é importante cumprir as regras e manter as promessas para que os
outros façam o mesmo ou para se evitar conflitos.
Pode-se tomar como exemplo de raciocínio desse estágio, as justificativas
dos estudantes para a prática de “tirar cola”, quando alegam que não tiveram
tempo para estudar, e que por isso o professor deveria fingir que não vê, ou então
relevar, pois já foi aluno um dia. Eles não defendem que a prática da cola é
correta, mas, argumentam que abrir uma exceção, em alguns momentos, não é tão
errado assim.
ii. Nível convencional – identificação e reconhecimento das convenções
sociais.
Este nível se inicia com o estágio da moralidade das regras interpessoais,
no qual ocorre uma coordenação entre as diferentes perspectivas dos indivíduos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
por uma perspectiva das relações de confiança mútua entre pessoas, que se
expressa em um conjunto de normas e expectativas, as quais supostamente
orientam suas vidas. Neste terceiro estágio, há uma preferência pelos interesses e
sentimentos partilhados em relação aos individuais. Entretanto não se considera a
perspectiva de um sistema de forma generalizada. As regras devem ser cumpridas
em função da aprovação social, ou seja, para manter-se reconhecido e estimado
como uma boa pessoa perante si e aos demais. Neste sentido, são valorizadas as
relações de gratidão, lealdade e confiança, bem como o princípio de fazer aos
outros o que se gostaria que fizessem a si (Regra de Ouro8). As regras cumprem
ainda, o papel de manter as relações e os cuidados recíprocos entre os membros
do grupo.
A reciprocidade é compreendida a partir das idéias de obrigação, dívida e
gratidão, indo além da noção de trocas concretas do estágio anterior. O recíproco
compreende expectativas e sentimentos mútuos de gratidão ou dívida, quando se
recebe um bem ou um valor que não se pode retribuir concretamente. A operação
de igualdade provoca a construção de uma categoria de pessoas que devem se
tratar da mesma forma, como pessoas bem intencionadas. Já a equidade possibilita
8
A Regra de Ouro é considerada uma orientação moral que tem recebido diferentes formulações
desde a antiguidade, dentre as quais destaco: “Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos
façam, fazei também vós a eles” (Jesus Cristo) e “Não façais aos outros aquilo que não quereis que
vos façam” (Confúcio).
75
que sejam abertas exceções de alguns desvios pelo reconhecimento de
circunstâncias atenuantes ou pela compreensão das boas intenções. No estágio 3,
as operações de reciprocidade, igualdade e equidade se unem e se coordenam em
uma troca de papéis, ou equilíbrio de perspectivas, iniciando-se agora a utilização
da Regra de Ouro segundo a qual, só pode ser considerado bom ou justo por um
ponto de vista individual, se este puder também aceitá-lo como tal a partir do
ponto de vista de outra pessoa. A universabilidade se expressa com o objetivo de
limitar o não cumprimento das regras e normas, o que poderia interferir nas ações
e intenções das pessoas moralmente motivadas.
As questões de justiça distributiva são resolvidas pelo uso coordenado das
operações de igualdade, reciprocidade e equidade que têm como referência
normas e motivações partilhadas, ou seja, considerando as pessoas segundo suas
intenções e méritos. Do mesmo modo, a justiça corretiva insiste em tomar como
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
referência os motivos e intenções da possível transgressão, que deverá determinar
ou não a necessidade de uma retribuição ou punição. Por seu lado, a justiça
comutativa requer uma modificação da compreensão da reciprocidade, de modo
que em condições desiguais de compreensão ou acesso a informações, os acordos
vistos como aparentemente justos, por contar com a concordância das partes,
possam ser julgados injustos, caso se constate que uma dos interessados estava em
desvantagem no momento do acordo.
No quarto estágio, também denominado estágio da moralidade do sistema
social, a perspectiva sócio-moral é a de um cidadão generalizado e se baseia no
entendimento de que a sociedade é constituída por um conjunto consistente de
códigos e procedimentos que devem se aplicados a todos de forma imparcial.
Neste sentido, a defesa dos interesses pessoais só é legítima se não entra em
conflito com o sistema social e moral em sua totalidade, o qual tem a função de
mediar os conflitos de interesse e “promover o bem comum”. No estágio 4 se
espera que cada um cumpra as obrigações com as quais tenha se comprometido e
contribua com as instituições e com a sociedade como um todo. Do mesmo modo,
a motivação para o cumprimento das regras e normas é a manutenção do bom
funcionamento das instituições.
A igualdade é compreendida na relação das pessoas com a lei, de modo
que cada um é visto como um cidadão possuidor de direitos e obrigações, que são
definidos pelo conjunto da sociedade. Operar com equidade neste estágio significa
76
a possibilidade de se abrir exceções à aplicação de alguma lei ou norma ao se
considerar que os critérios da lei podem não ser sensíveis o suficiente pra se levar
em conta circunstâncias especiais. Entretanto, diferentemente do Estágio 3, é o
próprio sistema, pelo questionamento aos critérios da lei, que reconhece a
necessidade da exceção. No que se refere à reciprocidade, esta é compreendida
como um dever, uma obrigação ou mesmo uma dívida com a sociedade em função
dos benefícios que se recebe ao se viver como um membro da coletividade. Na
operação de troca de papéis, por sua vez, há um equilíbrio entre as ações
individuais e os padrões da sociedade, de modo que ao se burlar uma norma ou
regra, mesmo que por uma “boa causa”, há que se compreender a censura ou
punição da sociedade. Por outro lado, a universabilidade garante que a leis e
normas mantenham sua integridade, posto que se os cidadãos acreditarem que
podem deixar de cumpri-las por alguma discordância particular, deixarão de ter
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
validade enquanto lei.
Neste estágio, os problemas de justiça distributiva são solucionados a
partir dos critérios de imparcialidade, respeito às instituições sociais e
considerações de mérito social. Considera-se, geralmente, que o direito à
propriedade deva ser respeitado em função do reconhecimento do esforço
despendido em sua conquista. Entretanto, este direito pode ser relativizado em
virtude da responsabilidade social. A justiça corretiva também se centra na idéia
de imparcialidade da lei, a qual é vista como protetora da sociedade ao dissuadir
as ameaças a ela ou determinando como aqueles que a “ofendam” paguem sua
dívida. A imparcialidade tem o objetivo de garantir consistência na aplicação da
lei, evitando que aqueles que devem aplicá-la tomem decisões totalmente
subjetivas. Por sua vez, a justiça comutativa fundamenta-se no reconhecimento da
importância dos contratos acordados que garantem o tranquilo funcionamento da
sociedade e do valor de se manter o caráter e a integridade moral de todos.
Os raciocínios morais deste estágio consideram uma ação moralmente
aceitável, por exemplo, cometer um pequeno delito, se for para ajudar alguém que
necessita, e receber as devidas sanções ou punições, em função da ilegalidade do
ato. Neste caso, mesmo burlando a lei, ao receber a punição, sua força e
legitimidade não são questionadas.
77
iii. Nível pós-convencional – consideração das convenções sociais a partir
de princípios
O nível pós-convencional se inicia com o quinto estágio, compreendido
como o estágio da moralidade dos direitos humanos e do bem estar social, cuja
perspectiva sócio-moral é a perspectiva de um agente moral racional que possui
consciência de seus valores e direitos, os quais são universalizáveis, e funcionam
como critérios de validação das leis e sistemas sociais. O indivíduo se coloca em
uma posição anterior à sociedade, não em uma perspectiva de mantê-la, mas de
criar um sistema social ideal, baseado na cooperação e nos acordos recíprocos,
focados primordialmente nos direitos humanos e no bem estar social. Há a
consciência de que existe uma variedade de valores e opiniões que são relativos ao
próprio grupo social. Entretanto, há o reconhecimento de que alguns valores e
direitos
deveriam
ser
aceitos
e
mantidos
em
quaisquer
sociedades,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
independentemente da diversidade de opiniões, a saber: o valor da vida e da
liberdade. A obrigatoriedade do respeito às leis e normas se fundamenta em sua
função de manter e defender os direitos e o bem estar de todos, no reconhecimento
de que foram criadas por um contrato social baseado em um cálculo racional do
“maior bem possível para um maior número de pessoas”, segundo, portanto,
princípios éticos utilitaristas.
A igualdade é compreendida a partir do reconhecimento dos mesmos
direitos fundamentais (direito à vida e à liberdade) e do igual valor dos indivíduos.
Neste estágio, as operações de equidade reafirmam os interesses da igualdade
quando as leis e normas são insensíveis aos direitos humanos básicos, e
diferentemente dos estágios anteriores, não são as leis normas que fundamentam o
valor da vida e da liberdade, mas são estas noções que servem de pressupostos
para os raciocínios que fundamentam aquelas. A reciprocidade se baseia na idéia
de contratos livremente efetuados entre os indivíduos, o que proporciona o
intercâmbio de equivalentes concretos ou simbólicos. A operação de troca de
papéis, por sua vez, sublinha a necessidade de se levar em conta os pontos de vista
e interesses de todos os envolvidos, de modo que cada um tenha a mesma
oportunidade de contribuir e receber os benefícios da sociedade. A
universabilidade se expressa, no Estágio 5,
a partir da afirmação do valor
universal da vida e da liberdade humana, que devem ser assim considerados por
todos aqueles que vivem em sociedade.
78
As questões de justiça distributiva neste estágio levam em conta o respeito
aos direitos humanos fundamentais e a racionalização hierárquica dos direitos e
valores que envolvem um processo de cooperação e acordo social. Do mesmo
modo os direitos fundamentais e o bem estar social possuem centralidade na
resolução dos problemas de justiça corretiva que rechaça as noções retributivas do
castigo. Há uma estreita ligação entre a justiça corretiva e a processual, com
ênfase na preocupação com um processo legal e justo e abre-se a possibilidade de
uma orientação para a mudança social efetiva através da prudência do juiz na
interpretação da lei. Coerentemente a justiça comutativa centra-se no contrato,
baseado no respeito aos direitos das partes em acordo, como base para as relações
humanas. A obrigação de se manter e respeitar o contrato se fundamenta no
próprio direito de todos como indivíduos que possuem dignidade e valor
intrínseco como pessoas, valores estes que seriam violados pelo rompimento dos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
acordos livremente efetuados.
Raciocínios do quinto estágio subordinam o valor da propriedade aos
valores da liberdade e da vida humana. Neste sentido seria moralmente aceitável,
por exemplo, a desapropriação de bens de indivíduos que não dependem deles
para sua sobrevivência, quando sua posse limita o direito a uma vida em
condições dignas ou a liberdade de outros.
O sexto e último estágio do desenvolvimento do raciocínio moral é o
estágio da moralidade de princípios éticos gerais, universalizáveis, reversíveis e
prescritivos. Sua perspectiva sócio-moral é a do “ponto de vista moral”, um ponto
de vista ideal a partir do qual todos os seres humanos deveriam compreender os
outros como pessoas livres e autônomas. Esta perspectiva considera os interesses
e interpretações de todos os afetados pelas decisões morais a serem tomadas e,
para tanto, se submete a procedimentos que asseguram a justiça, a imparcialidade
ou a reversibilidade em uma operação de troca de papéis. Algumas formalizações
desses procedimentos foram elaboradas por importantes teorias filosóficas, entre
as quais merecem destaque “a postura original sob o véu da ignorância” de
RAWLS (2002), e a “situação de comunicação ideal” de HABERMAS (2003,
2004), e se manifestam nas declarações de igualdade e dignidade de todo ser
humano como fins em si mesmos, no uso do critério da universabilidade e na
utilização de um ou mais princípios gerais na tomada de decisões. Estes princípios
distinguem-se tanto das regras como dos direitos por serem prescrições positivas e
79
por se aplicarem a todas as pessoas e situações, como é o caso do princípio da
justiça ou respeito pela dignidade humana e do princípio da maximização do bem
estar de todos os indivíduos. A ação moral, portanto, fundamenta-se em princípios
éticos universais auto-escolhidos, que garantem a validade das leis particulares e
acordos sociais, os quais devem ser abandonados ou revistos caso violem ou
entrem em contradição com alguns dos princípios gerais. A pena de morte, que
faz parte do código penal de alguns países, por exemplo, deveria ser revogada em
função de estar em flagrante contradição com o princípio do respeito pela
dignidade humana.
Neste estágio, as operações de justiça formam um todo coordenado e
constituem-se em princípios autoconscientes de decisões morais. Como
consequência as operações de troca de papéis e de universabilidade além de
garantirem a validez das razões que fundamentam as leis ou normas morais,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
tornam-se princípios operativos que asseguram a perspectiva da justiça nos
raciocínios sobre dilemas morais. Enquanto o Estágio 5 se baseia na noção de
contrato estabelecido, o Estágio 6 se orienta em direção aos processos pelos quais
os acordos são alcançados, assim como à garantia da justiça dos procedimentos
que subjazem a tais acordos, com ênfase na importância de se manter a confiança
e unidade social, as quais são pré-condições para o diálogo e para o respeito aos
direitos humanos.
A justiça distributiva utiliza-se, além da operação de igualdade, a
equidade, que se baseia no reconhecimento das necessidades dos menos
privilegiados, em detrimento da referência a prêmios por talento ou méritos, os
quais são considerados como resultado de diferenças genéticas ou de
oportunidades sociais, ambas moralmente arbitrárias. A justiça corretiva não
possui um caráter retributivo, já que a sanção, seja pela privação de liberdade ou
pela restituição, é considerada necessária para a proteção do bem estar das reais
ou possíveis vítimas do delito. Neste sentido, aquele que comete um crime ou
infração é reconhecido como um ser humano que possui dignidade e como tal, não
pode ser submetido a sofrimentos como forma de pagamento por uma imoralidade
ou falta cometida. Por fim, a justiça comutativa está baseada no reconhecimento
da confiança e do respeito mútuo como fundamentos para promessas, que por sua
vez são as bases para os contratos. Pela promessa se afirma uma relação moral
entre as partes, o que significa que só se deve descumprir ou modificar o
80
prometido caso se mantenha a relação de respeito mútuo, quando todos os
envolvidos no acordo poderiam, pela operação de troca de papéis reversível, estar
de acordo com tal rompimento.
A teoria dos estágios do desenvolvimento moral deve ser vista como uma
tentativa de reconstrução racional da ontogênese dos raciocínios morais a partir
dos critérios de justiça. Em cada estágio os dilemas morais são resolvidos com um
maior grau de generalidade e universalização desses critérios, sendo que o sexto e
último estágio é uma construção teórica, que segundo Kohlberg (1992, p. 272),
mesmo que não se encontre evidências empíricas de sua existência, deve ser
mantido como um “estádio final para definir la naturaleza y punto final de la
classe de desarrollo que estamos estudiando”.
Sua teoria tem sido reconhecida como uma importante perspectiva
cognitivo-estrutural, entre outras razões, por considerar vários aspectos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
psicológicos e filosóficos e basear-se em dados empíricos colhidos em diferentes
culturas, o que de certo modo atenua o risco de uma postura etnocêntrica em sua
interpretação. Entretanto, foram muitas as críticas feitas desde sua divulgação.
Muitas contribuíram para seu aperfeiçoamento e outras para que se explicitassem
com mais clareza alguns aspectos que, segundo Kohlberg e seus colaboradores,
não foram bem compreendidos.
Dentre as críticas recebidas, três merecem destaque para esta pesquisa: (1)
os questionamentos sobre a reivindicação de universalidade da teoria a partir de
pressupostos empíricos de
um relativismo
cultural (SIMPSON,
1974;
SULLIVAN, 1977; SHEWEDER, 1982); (2) as objeções à definição dos estágios
em termos de raciocínio ou conhecimento moral e consequente abandono dos
fatores emocionais e motivacionais (GILLIGAN e MURPHY, 1979; MURPHY e
GUILLIGAN, 1980); (3) o destaque que o ideal de maturação moral dá às ideias
de justiça e à consideração pelos direitos individuais, ignorando o conceito de
comunidade ideal que comporta a noções de cuidado e responsabilidade com os
outros (GILLIGAN, 1985, 1987). Esta última, em função da abordagem aqui
proposta, será objeto de uma análise mais detalhada.
81
3.4
A crítica de Carol Gilligan
A psicóloga norte-americana Carol Gilligan, nascida em 1936, doutorou-se
em psicologia social pela Universidade de Harvard em 1964. Começou a lecionar
na mesma universidade em 1967, tornando-se, no início dos anos 1970 assistente
de pesquisa de Kohlberg. Em 1982 publica “In a different voice: psychological
theory and women’s development”, sua obra mais conhecida, na qual apresenta
suas críticas à teoria kohlbergiana. Gilligan é militante da causa feminista e
atualmente é professora da Universidade de Nova York, e professora visitante na
Universidade de Cambridge.
Gilligan (1997) dirige sua crítica à ênfase que Kohlberg da à justiça em
sua teoria e introduz o cuidado e a responsabilidade como referência para se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
compreender o desenvolvimento da moralidade. Em sua crítica, ela assinala que
para a descrição de seus seis estágios, Kohlberg baseou-se empiricamente em
estudos feitos exclusivamente com homens, desconsiderando a visão feminina.
Desse modo, os estágios mais adiantados de perspectiva moral são definidos a
partir da visão masculina, pela qual as relações se subordinam a regras e
princípios universais de justiça. Consequentemente, ao realizarem julgamentos
morais a partir do critério do cuidado com os outros e do interesse em se manter
as relações interpessoais, as mulheres são avaliadas pela escala de Kohlberg no
Estágio 3, que considera como base para a ação moral o desejo de agradar ou
obter o reconhecimento dos outros.
Gilligan leva em conta a experiência das mulheres e elabora uma estrutura
de desenvolvimento e uma concepção de moralidade diversa da descrita por
Kohlberg (como também por Freud e Piaget). Para ela, os problemas morais
surgem menos de direitos em disputa do que de responsabilidades conflitantes e
exige um modo de pensar mais contextual do que abstrato. Segundo sua
concepção, o insucesso das mulheres em seu desenvolvimento dentro dos limites
do sistema de Kohlberg, deve-se à diferente estruturação que fazem do problema
moral.
Este conceito de moralidade em ligação com a atividade relativa à preocupação
com os outros, centra o desenvolvimento moral na compreensão das
responsabilidades e dos relacionamentos, tal como o conceito de moralidade em
82
ligação com a justiça vê o desenvolvimento moral apoiado na compreensão dos
direitos e das regras (GILLIGAN, 1997, p.36-37).
Na visão de Gilligan, a tendência dos estudiosos do desenvolvimento de
tomarem como referência para suas pesquisas a experiência masculina tem sua
origem em Freud, que edificou sua teoria do amadurecimento psico-sexual, e teve
como culminância a elaboração do conceito de “complexo de Édipo” a partir da
vivência de crianças do sexo masculino. Após tentativas frustradas de ajustar a
mulher à sua concepção de homem, Freud foi obrigado a reconhecer diferenças no
desenvolvimento feminino, cuja consciência considera menos impessoal e mais
dependente das emoções do que o pensamento masculino. Como consequência,
para ele, segundo Gilligan, as mulheres demonstram um sentido de justiça menor
e são mais propícias a serem influenciadas por sentimentos em seus juízos do que
os homens.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
Gilligan aponta que, também Piaget, em seu estudo sobre as regras dos
jogos infantis, considera que os rapazes ao deixarem a infância com maior
propensão à elaboração legal de regras e à resolução de conflitos por critérios de
justiça, são mais desenvolvidos que as moças, já que estas, segundo ele, possuem
uma atitude mais flexível, condescendente, mais preocupadas com as relações.
Para a psicóloga norte-americana, Kohlberg também se mantém no mesmo
caminho ao eleger a moralidade dos direitos (justiça) como uma moralidade pósconvencional, portanto mais amadurecida, classificando a moralidade da
responsabilidade (cuidado) como convencional, por conseguinte mais imatura
moralmente.
Gilligan argumenta que a suposta inferioridade moral da mulher, que se
manifesta em sua resistência em elaborar juízos concisos, pode ser resultado de
sua sensibilidade para com as necessidades e pontos de vista dos outros, para com
sua preocupação em manter a coesão das relações humanas. Por outro lado, a
maturidade, segundo as teorias que privilegiam a experiência masculina, é
intrinsecamente vinculada à autonomia pessoal, sendo considerado como uma
fraqueza feminina e indício de dependência, o interesse em manter os
relacionamentos. Essa visão aparece de forma mais explícita nos estereótipos de
masculinidade e feminilidade, que sugerem que o pensamento autônomo e a
capacidade para decidir com clareza e agir com firmeza são qualidades masculinas
83
e indesejáveis para as mulheres. Entretanto, olhando por outra perspectiva, tais
estereótipos
refletem um conceito de idade adulta que é, ela própria, desajustada, valorizando
a separação do ser individual em detrimento da relação com os outros e
inclinando-se mais para uma vida autônoma de trabalho do que para a
interdependência com o amor e o carinho (GILLIGAN, 1997, p. 34).
Gilligan assevera que, ao basear-se nas experiências masculinas para
explicar o desenvolvimento da moralidade, a teoria de Kohlberg tem dificuldade
de ajustar sua lógica à experiência das mulheres, que segundo ela, interpretam os
problemas morais priorizando as relações em detrimento das questões de justiça.
Desse modo, surge um problema de interpretação que obscurece a compreensão
do desenvolvimento feminino, o qual está marcado por uma concepção
característica das relações humanas. Para ela, a inclusão do ponto de vista
feminino na interpretação da resolução de problemas morais, pode demonstrar que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
diferentes soluções podem significar não apenas diferentes níveis de maturidade
moral, mas o mesmo amadurecimento, ainda quando apresentam discordâncias
em suas conclusões.
Comparando as análises do julgamento moral de um menino e de uma
menina de 11 anos, ambas feitas a partir das categorias da teoria de Kohlberg,
Gilligan constata que a linha e a lógica do pensamento do garoto são exaltadas,
enquanto o raciocínio da menina é menos valorizado. A pesquisadora esclarece
que ambas as crianças estavam no mesmo ano de escolaridade e possuíam elevado
nível de inteligência, educação e classe social, e foram escolhidas de uma
amostragem que tinha como objetivo realçar as variáveis de gênero e idade.
A análise do julgamento moral das crianças foi feita a partir da resolução
de um dos dilemas clássicos de Kohlberg, o Dilema de Heinz, segundo o qual o
protagonista está em conflito consigo mesmo e precisa decidir se deve ou não
roubar um medicamento para salvar a vida da esposa, já que o farmacêutico cobra
um valor muito acima de suas condições de pagar. A ambas as crianças é
perguntado se Heinz deve roubar o medicamento e suas respostas são
classificadas segundo as categorias de Kohlberg.
A resposta do garoto, que afirma que Heinz deveria roubar o
medicamento, reconstrói o dilema, segundo Gilligan, do modo como o foi por
Kohlberg, expressando um conflito entre os valores da propriedade e da vida. Ao
ser questionado sobre o fato do roubo ser uma infração à lei, ele responde que as
84
leis podem estar erradas, e que não há lei para todas as situações imagináveis. A
visão do garoto, pela a qual o protagonista do dilema deveria praticar o roubo e a
lei pode estar errada, baseia-se, segundo a avaliação de Gilligan, na convicção de
que há um acordo ou consenso entre as pessoas sobre o que é certo de se fazer.
Para ele o dilema deve ser resolvido como uma equação matemática, em que o
valor da propriedade e o valor da vida são as variáveis. Ao colocar o valor da vida
acima da propriedade o problema é resolvido de forma lógica e racional, e desse
modo deduz que qualquer pessoa deveria chegar à mesma conclusão ao se guiar
pela razão. Ao ser utilizada a escala de Kohlberg, os juízos desse garoto de 11
anos são classificados como convencionais, situando-se entre os estágios 3 e 4.
A menina, por sua vez, ao ser perguntada se Heinz deveria ou não roubar o
medicamento, pareceu aos entrevistadores evasiva e insegura, argumentando que
poderiam existir outras maneiras para resolver o problema que não fosse o roubo e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
sugerindo a busca por um empréstimo. Em sua opinião, ele não deveria roubar,
mas ao mesmo tempo não poderia deixar a mulher morrer. A justificativa que
apresenta para Heinz não praticar o roubo se centra no efeito que o roubo pode ter
na relação entre o protagonista e a esposa, pois ele poderia ir para a cadeia e de lá
não poderia ajudá-la caso ela precisasse dele novamente. Seu raciocínio
desconsidera as regras de propriedade e a lei.
Na interpretação de Gilligan (1997, p. 51), a menina não vê no dilema um
problema “de matemática com seres humanos, mas sim a descrição de relações
que se alongam no tempo, (...) a continuação da necessidade que a mulher tem do
marido e a continuação da preocupação do marido no que diz respeito à mulher”.
Ao mesmo tempo, a menina busca uma maneira de manter o relacionamento com
o farmacêutico, que se interromperia com o roubo, e considera que o problema
não está no reconhecimento ou não do direito de propriedade deste, em
contraponto com o direito à vida da mulher, mas em sua incapacidade em
reconhecer que, nas palavras da menina, “se alguém possui alguma coisa que pode
conservar a vida de outro ser, não está certo que não lho dê” (Idem, p. 52). Para
ela, se o farmacêutico compreendesse as consequências de sua postura, ele e
Heinz poderiam se entender e a esposa seria salva sem a necessidade do roubo.
Pela sequência do desenvolvimento moral de Kohlberg, os julgamentos da
menina aparentam estar na transição entre os níveis pré-convencional e
convencional, com elementos dos estágios 2 e 3 de maturidade moral. Suas
85
respostas são interpretadas como uma incapacidade para pensar de forma lógica e
sistemática os conceitos de moralidade e de lei, e como receio de se contestar a
autoridade e as verdades morais estabelecidas.
Entretanto, para Gilligan, há um paralelo entre os julgamentos e
argumentações das duas crianças. Do modo como o menino confia que qualquer
um concordaria que roubar é o que Heinz deve fazer, ela acredita na possibilidade
de um acordo entre ele e o farmacêutico; assim como o garoto considera a
possibilidade de erros na lei, ela vê o próprio dilema como um erro nas relações
pessoais, carentes de partilha e solidariedade. Embora o acordo seja considerado
necessário por ambos, é visto pela garota como fruto de um processo pessoal, pela
comunicação interna às relações, e por ele de forma impessoal, pela lógica e pelas
leis. Para Gilligan, ao passo que as hipóteses do garoto são confirmadas por sua
consonância entre suas respostas e as questões formuladas a partir das préPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
concepções da teoria de Kohlberg, as saídas propostas pela garota são
equivocadamente consideradas como indicativas de um estágio menos
amadurecido de desenvolvimento moral.
Os juízos da menina possuem, pela perspectiva de Gilligan (1997), o
essencial de uma “ética do cuidado”, do mesmo modo que os juízos do garoto
expressam a lógica de uma “ética da justiça”. A menina vê os protagonistas do
dilema como membros de uma rede de relações da qual dependem, e não como
opositores em uma disputa por direitos. Em decorrência dessa compreensão a
solução que encontra apóia-se no processo de comunicação, que deve incluir tanto
o farmacêutico como a esposa e fortalecer as ligações ao invés de rompê-las. A
lógica de sua resposta aponta para a concepção da própria entrevista, que ao ser
revista expõe que as respostas da garota não são compreendidas porque ela
responde uma pergunta diferente da que está sendo feita pelo entrevistador. Ao
responder que Heinz não deveria roubar o medicamento, ela não quer dizer que
ele não deveria agir, mas que deve buscar outra solução. Todavia, a pergunta feita
supõe haver somente uma: roubar o medicamento. Para Gilligan o que aparenta
ser uma fuga do dilema, significa a identificação do problema por outro ponto de
vista e o intento de construir uma solução mais apropriada.
Acrescentando uma nova linha de interpretação baseada no imaginário do
pensamento da rapariga, torna-se possível não só ver o desenvolvimento onde
antes não era sequer apercebido, mas também ter em consideração diferenças na
86
compreensão dos relacionamentos sem graduar essas diferenças entre melhor e
pior (GILLIGAN, 1997, p. 46).
Diferentemente de Kohlberg, que distingue seus três níveis de
desenvolvimento moral, o pré-convencional, o convencional e o pós-convencional
tendo como referência o modo como as convenções e normas sócio-morais são
compreendidas, Gilligan propõe, a partir de análises das respostas de mulheres a
dilemas morais sobre o aborto, outra referência e outra classificação de níveis de
desenvolvimento que não se definem pela compreensão e relação com as
convenções e normas, mas a partir da relação entre a preocupação consigo mesma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
e com os outros. Para ela, o modo como as mulheres elaboram o problema moral,
mais como um problema de preocupação com os outros e de responsabilidade nas
relações do que como um problema de direitos e regras, liga o desenvolvimento
do seu pensamento moral a mudanças no seu entendimento de responsabilidade e
relacionamento, tal como os conceitos de moralidade, como justiça, ligam o
desenvolvimento à lógica da igualdade e da reciprocidade. Logo, a lógica
subjacente a uma ética da preocupação com os outros é uma lógica psicológica
das relações, em contraste com a lógica formal de honestidade que é uma lógica
de regras de justiça (GILLIGAN, 1997, p.119).
Gilligan postula que também há uma sequência no desenvolvimento da
“ética da preocupação com os outros” que se inicia com uma postura egocêntrica,
que ela designa “preocupação com o próprio eu”. Após a superação dessa fase
egocêntrica, os outros aparecem como aqueles que merecem os cuidados das
mulheres, que excluem a si próprias de suas preocupações. É a fase do “cuidado
com os outros”, nível de desenvolvimento do raciocínio moral em que a o autosacrifício é valorizado como o ideal de virtude feminina. A terceira perspectiva se
dá com a superação do conflito e do desequilíbrio entre o auto-sacrifício em
função dos outros e o egocentrismo, e coloca a ênfase na dinâmica das relações
superando a tensão entre o egoísmo da preocupação exclusiva consigo mesma e a
restrita preocupação com os outros, dando origem a uma nova forma de
compreender as relações como uma “interconexão do eu com o outro”. Gilligan
considera que o desenvolvimento de uma ética do cuidado é fruto de uma
progressiva e mais adequada compreensão da relação de interdependência entre o
eu e o outro.
As ponderações que Gilligan apresenta em sua crítica ao processo de
construção e alguns dos elementos da teoria do desenvolvimento de Kohlberg não
87
podem deixar de ser consideradas, pois chama a atenção para possíveis e
importantes diferenças de raciocínio e da visão de moralidade entre diferentes
identidades, no caso estudado, a diferença de gênero. Uma teoria que privilegie
uma dessas maneiras de pensar e de se posicionar frente aos problemas morais,
em detrimento da outra deve ser questionada e revista.
Ao apresentar a preocupação com a manutenção das relações e o cuidado
com os outros como uma perspectiva de uma moralidade feminina que difere da
perspectiva dos direitos e da justiça, considerada masculina, e formular outros
critérios para se avaliar o desenvolvimento do raciocínio moral, em momento
algum de sua argumentação, Gilligan afirma que as duas perspectivas são
excludentes. No entanto, ela questiona algumas classificações de raciocínios
morais considerados menos amadurecidos e oferece novas perspectivas de
enxergar a moralidade.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
Entretanto, há que se considerar que, como a própria autora reconhece
(GILLIGAN, 1997, p. 199), seus dados “foram colhidos num momento particular
da história, a amostragem foi pequena e as mulheres não foram selecionadas para
representarem uma população maior”, o que limita a generalização. Ela
reconhece, igualmente, a necessidade de aprofundar os estudos para que a
sequência de desenvolvimento que descreve seja validada.
Para Biaggio (2002), alguns pesquisadores que se dedicaram a investigar a
presença de diferenças de gênero nas avaliações de Kohlberg, entre eles Walker
em 1984, Biaggio e Viñas em 1992 e Dallegrave em 1999, não encontraram
evidências que as comprove. Segundo Eckensberger (1996, apud. BIAGGIO,
2002), estudos feitos em Israel, entre 1970 e 1980, demonstram estágios de
desenvolvimento mais amadurecidos em meninas do que em meninos. Biaggio
(2002, p. 85) afirma que o apoio à hipótese de Gilligan foi parcial e acrescenta que
“uma interação entre orientação moral e tipo de dilema foi encontrada, com
dilemas pessoais eliciando mais combinação de cuidado com justiça, e dilemas
impessoais mais orientação para a justiça”.
Ao responder às críticas de Gilligan, Kohlberg (1992) concorda que sua
teoria reflete uma maior compreensão do desenvolvimento da personalidade
masculina do que da feminina e que sua pesquisa inicial partiu da concepção
piagetiana da moralidade como justiça e do conceito de autonomia como ideal do
desenvolvimento moral. Concorda também que a maior parte de seu trabalho foi
88
baseada nas análises longitudinais (entrevistas com os mesmos indivíduos através
dos anos) dos dados de sua primeira amostra composta apenas de homens.
Entretanto discorda da hipótese segundo a qual há uma tendência sexista em sua
teoria e avaliações, argumentando que:
nunca afirmé de forma directa que los hombres tengan un sentido de la justicia
más desarrollado que las mujeres. (...) sugerí que las mujeres jóvenes y adultas
podrían estar menos desarrolladas que los hombres en la secuencia de estadio de
la justicia, por las mismas razones que los hombres de clase trabajadora estaban
menos desarrollados que los hombres de clase media (KOHLBERG, 1992, p.
330).
Embora pondere que o reconhecimento de uma orientação moral de
cuidado e responsabilidade tem muito a contribuir com o campo moral, Kohlberg
não a considera conflitante com a orientação de justiça. Em sua concepção, as
perspectivas de justiça e de cuidado são utilizadas de forma entrelaçada na busca
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
de soluções para os problemas morais e não há diferenças significativas entre as
experiências que promovem o desenvolvimento dos raciocínios de justiça e as que
proporcionam o desenvolvimento da responsabilidade e cuidado com os outros.
A orientação para o cuidado e responsabilidade com os outros, defendida
por Gilligan como referência para o desenvolvimento da moralidade, poderia ser
interpretada no mesmo sentido das ações “supererrogatórias”, que segundo
Habermas (2004), são consideradas boas e corretas, mas não podem ser
igualmente exigidas de todos, e sim decididas em função de motivações
individuais. De modo semelhante, a relação entre as perspectivas do cuidado e da
justiça poderia, igualmente, ser compreendida com a relação entre os mínimos e
máximos éticos (CORTINA, 2005, 2008 e ANDRADE, 2009), sendo as
orientações de justiça interpretadas como os mínimos éticos, sem os quais não é
possível considerar a moralidade de uma ação, e a preocupação e cuidado com os
outros conforme máximos éticos, que podem ser esperados e desejados, entretanto
isentos do caráter de obrigatoriedade.
O objetivo de apresentar em mais detalhes a crítica de Gilligan, não
desconsidera as demais ressalvas que a teoria do desenvolvimento de Kohlberg
tem recebido, muito menos as revisões e atualizações feitas por ele e seus
colaboradores, como também realizadas por alguns de seus “discípulos” após sua
morte. O destaque dado a sua crítica se deve a sua relação com a temática do
89
preconceito e discriminação de gênero e ao seu questionamento à pretensão de
universalidade da teoria kohlberguiana, temas importantes para esta pesquisa.
Essa pretensão é também partilhada por Habermas, e criticada pelos
relativistas éticos. Neste sentido, a filosofia moral habermasiana e a teoria do
desenvolvimento de Kohlberg, ao partilharem pressupostos comuns, são, de certo
modo, alvo das mesmas críticas que não devem ser desconsideradas em um estudo
que se orienta por suas idéias, mas que dirige seu olhar para a empiria.
Por fim, é importante enfatizar que não é intenção, ao apresentar as teorias
que orientam esta pesquisa e algumas críticas que a eles são feitas, deixar em
aberto o referencial em que se baseia o presente estudo, nem tampouco
desconsiderar as observações e ressalvas dos críticos. A presente pesquisa se
orienta teoricamente pelos referenciais da ética do discurso de Habermas e pela
teoria do desenvolvimento moral de Kohlberg. Entretanto, as contribuições de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
seus críticos também serão levadas em conta na elaboração da análise dos dados
empíricos.
3.5
Habermas e Kohlberg: implicações para a educação
O percurso feito até o momento nos leva a concordar com Habermas
(2003) quando este afirma que há um paralelo entre a teoria do desenvolvimento
do raciocínio moral de Kohlberg (1992) e a sua filosofia moral. Este paralelo, por
um lado, demonstra que os princípios da Ética do Discurso são corroborados pelas
observações e conclusões empíricas da psicologia do desenvolvimento e, por
outro, explicita os fundamentos filosóficos desta última.
Um discurso pragmático, segundo o princípio da Ética do Discurso,
exigiria para ser efetivado, que os sujeitos envolvidos tivessem a capacidade de se
colocar em uma posição de observador imparcial das diversas situações e posições
apresentadas. Para tal, deve-se pressupor que estejam no sexto estágio de
desenvolvimento moral de Kohlberg, o qual considera as regras a partir de
princípios universais de justiça. Estes, segundo a Ética do Discurso, dependem da
anuência de todos os envolvidos para serem aceitos como moralmente válidos.
Para Habermas (2003), ao chegar ao nível pós-convencional de
desenvolvimento moral e no estágio seis, o mundo social organizado e
fundamentado por sistemas normativos estabelecidos, seja pelo costume ou por
90
uma tradição, é vivenciado como hipotético e colocado a distância pelos sujeitos.
Os
sistemas
normativos,
anteriormente
fundamentados,
perdem
sua
fundamentação e necessitam de outro fundamento, o qual, só pode ser obtido, com
a reorganização e análise da validez das normas e princípios anteriormente aceitos
em processo discursivo que possibilite sua universalização, segundo os princípios
‘U’ e ‘D’. Independentemente das divergências entre os sujeitos, oriundas de seu
pertencimento social, político ou cultural, só se torna possível se colocar de um
“ponto de vista moral”, o qual se subtraia à controvérsia, quando se assentam em
uma posição de aceitação da validade das visões diferentes, mesmo que
radicalmente divergentes. O “ponto de vista moral”, portanto, deve ser comum a
todos, e segundo a Ética do Discurso, já está contido “nos pressupostos
pragmáticos universais da argumentação em geral” (HABERMAS, 2003, p.197),
os quais são, mesmo que implicitamente, aceitos por todos os que agem
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
comunicativamente.
Ao lembrar que Kohlberg (1992) considera a passagem de um estágio de
desenvolvimento para outro como um aprendizado, no qual as estruturas
cognitivas presentes no sujeito nos estágios anteriores são reformuladas,
Habermas afirma que a Ética do Discurso está em concordância com esta
concepção construtivista da aprendizagem. Ao avançar de um estágio para o
outro, o sujeito resolve os problemas morais aos quais esteja exposto de modo
mais elaborado que no anterior, sendo capaz de compreender o seu próprio
desenvolvimento moral como uma aprendizagem. Segundo a Ética do Discurso, a
formação discursiva da vontade é compreendida “como uma forma de reflexão do
agir comunicativo” (HABERMAS, 2003, p.155) que provoca uma mudança de
atitude dos envolvidos, ao deixar em suspenso a validade de uma norma
controversa, a qual só merecerá ser considerada válida, após ser objeto de disputa
entre os que a propõem e os que a ela se opõem. Neste sentido, o consenso
almejado é também fruto de uma construção, que só ocorre por uma
reestruturação dos modos de pensar dos participantes do discurso prático.
Na concepção de Kohlberg (1992, p. 20), toda prática educativa deve ter
como ponto de partida “las ideas de justicia o el derecho de todo niño y adulto a
la libertad y dignidad humanas”, e ter como objetivo o desenvolvimento humano.
Ao identificar, junto com seus colaboradores que a partir de um conflito cognitivo
provocado pela discussão de dilemas morais hipotéticos ou reais, há um processo
91
de maturação do raciocínio moral em direção a estágios mais elevados, Kohlberg
se dedica a pensar e elaborar propostas de intervenções educativas, em
consonância com a o ponto de vista de Dewey (1980), segundo o qual a educação
moral dever ser compreendida como desenvolvimento e não como adaptação à
moralidade socialmente estabelecida.
Em sua proposta de educação moral, baseada na teoria dos estágios de
raciocínio moral e no pressuposto de que a discussão de situações dilemáticas,
hipotéticas ou reais provocam conflitos que mobilizam as estruturas cognitivas em
direção a estágios mais maduros de raciocínio moral, Kohlberg propõe que sejam
incorporados nos programas acadêmicos das escolas a prática do diálogo a partir
de dilemas morais, bem como sejam revistas as relações interpessoais no espaço
escolar. Considerando, junto com Durkheim (2008), que a moralidade é, em sua
essência, social e que os sujeitos não se desenvolvem moralmente sem que a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
sociedade também avance, a escola deveria se transformar em uma “comunidade
justa”, dentro da qual, seu funcionamento e os problemas sejam sempre discutidos
abertamente e as opiniões de todos sejam consideradas. Kohlberg assevera, então,
que juntamente com a inclusão da discussão de dilemas morais no programa das
escolas uma atenção deveria ser dada à sua “atmosfera moral”, ao seu “currículo
oculto”.
Segundo Biaggio (1997), uma das virtudes dessa metodologia é a
promoção de uma educação moral que escapa da doutrinação e do relativismo.
Foge da doutrinação ao provocar o desenvolvimento de estruturas de julgamento
em detrimento da adesão a crenças e valores determinados e do relativismo ao
postular a ordenação hierárquica dos estágios a partir de critérios de justiça. Para
esta psicóloga brasileira, ao conceber a educação moral no contexto de uma escola
constituída como uma “comunidade justa”, Kohlberg compartilha da visão
durkheimiana pela qual o “currículo oculto” (suas regras, estrutura de autoridade,
procedimentos disciplinares e valores comuns) deve ser explicitado e levado em
conta na educação moral. Entretanto, enfatiza as relações democráticas e
solidárias entre os companheiros, que a seu ver minimiza as tendências
conformistas e conservadoras do coletivismo de Durkheim.
Já se passaram quatro décadas que Kohlberg e seus colaboradores
iniciaram suas primeiras experiências de educação moral, utilizando como
metodologia a discussão de dilemas morais. Ao se analisar a realidade das escolas,
92
sua dificuldade de lidar com as relações interpessoais e, entre outros aspectos, a
maneira como são geridas, poder-se-ia apostar que este é um caminho possível a
ser seguido para se colocar em prática o que propõem a LDB, os PCN e as
DCNEM quando tratam do papel e compromisso da escola com a formação
integral dos estudantes, principalmente no que se convencionou chamar de temas
transversais em ética. Como exposto anteriormente, as condições de precariedade
em que se encontram a maioria das escolas públicas e a fragilidade na formação
docente não podem ser ignoradas. Entretanto, essa constatação intensifica a
necessidade de se elaborar e articular alternativas que possibilitem que tanto
estudantes como professores e gestores participem da construção de um espaço
escolar que possibilite que todos se desenvolvam intelectual e moralmente. Neste
sentido, a proposta de uma educação moral, baseada na discussão e busca de
solução de dilemas hipotéticos ou reais, e a consequente reorganização do espaço
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
escolar rumo a uma “comunidade justa” poderia ser considerada uma aposta que
merece ser feita.
De modo semelhante, a Ética do Discurso pode ser tomada como
referência para se pensar práticas educativas que poderiam contribuir com a
superação de alguns dos problemas e dificuldades enfrentadas por gestores,
professores e estudantes no cotidiano escolar. Entretanto, seguindo os alertas de
Bannell (2006) e Casagrande (2009) não se trata de transpor os conceitos
filosóficos,
sociológicos
e
antropológicos
derivados
do
pensamento
habermansiano para a prática pedagógica. Posto que Habermas em seus escritos
não se refere especificamente à escola, não se deveria extrair de seu pensamento
soluções para o contexto educacional.
O referencial teórico da ética do discurso, ao ser incorporado pelos agentes
educacionais no cotidiano da escola, pode provocar mudanças nas práticas de
ensino e nas relações entre professores e estudantes. Ao pressupor que são as
práticas discursivas que constituem e
intermedeiam a construção
do
conhecimento, os saberes docentes deixam de ser considerados absolutos e
definitivos, e podem ser questionados e objeto de investigação em discursos
argumentativos entre os professores e o grupo de estudantes. Do mesmo modo as
regras e normas, que orientam as relações e o funcionamento da instituição,
passam a ser vistas como produção coletiva e, consequentemente, como
responsabilidade de todos. Desse modo, as sanções podem deixar de ser punitivas
93
e passarem a ser recíprocas, no sentido de se repor ou corrigir o dano causado à
coletividade pela falta cometida.
De um ponto de vista mais amplo, a teoria do desenvolvimento moral de
Kohlberg e a ética do discurso de Habermas ao serem incorporadas pela prática
pedagógica e pela gestão escolar podem provocar mudanças tanto nas práticas de
sala de aula, como nas decisões relativas à definição do currículo e objetivos
educacionais, que passariam a ser fruto de um processo discursivo que envolveria
professores, estudantes, familiares, lideranças comunitárias, representantes do
poder público e outros agentes sociais envolvidos na escola.
Como a Ética do Discurso e a psicologia do desenvolvimento de Kohlberg
tratam as questões referentes às diferenças? A ética universalista de Habermas e a
pretensão de universalidade dos estágios de Kohlberg consideram as diversidades
culturais, relativas às diferenças de sexo, etnia, orientação sexual, entre outras? E
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
como esta preocupação com as diferenças se relacionam com o cotidiano escolar?
Ao explicitar a diferença entre o uso ético e o uso moral da razão prática,
Habermas (1999) reconhece que as identidades individuais são forjadas por
identidades sociais e culturais que são coletivas, e as escolhas sobre o tipo de vida
que se queira viver são pessoais e ao mesmo tempo influenciadas pelo grupo de
pertencimento. Neste sentido, as reflexões éticas são particulares e se referem às
diferentes identidades culturais. Por outro lado, sua filosofia moral, embora
conhecida como ética do discurso se refere ao uso moral da razão, que se guia por
critérios de justiça, que buscam resolver os possíveis conflitos que possam surgir
entre os indivíduos ou grupos, não em função do que poderia ser útil ou bom para
alguns, mas do que poderia ser considerado justo para todos os envolvidos.
É importante lembrar que o conceito de justiça, que Habermas (1999,
2003, 2004) utiliza como conceito ponte entre possíveis consensos axiológicos
particulares a alguns contextos e culturas e a possibilidade de se construir um
consenso universalmente aceito não é um conceito substantivo, derivado de
alguma tradição ou cultura particular. A justiça é retirada de seus contextos
concretos e toma uma forma procedural, pela qual ocorre uma convergência entre
a perspectiva da justiça e a perspectiva que todo participante adota em discursos
racionais ideais, a saber, de levar em conta de forma imparcial os interesses e
pontos de vista de todos os envolvidos.
94
Neste sentido, ao fundamentar uma moralidade procedimental, a ética do
discurso procura fugir de uma possível posição etnocêntrica, a partir da qual
determinados estilos de vida, etnia ou mesmo posições de gênero possam ser
tomados como melhores que outros e sejam colocados como referência para uma
moralidade universal.
Ao buscar na filosofia o conceito de justiça, compreendido como
regulação igualitária e recíproca dos direitos e deveres, regulação que proporciona
o equilíbrio das ações e relações sociais, pode-se supor que a teoria do
desenvolvimento de Kohlberg (1992) deixaria aberta a possibilidade de se evitar
as interpretações etnocêntricas que poderiam decorrer de sua pretensão
universalista.
Ao afirmar que, segundo seus estudos empíricos, as diferentes culturas,
apesar de serem constituídas por normas e costumes que variam, possuem formas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
universais de estabelecer juízos e valorações baseadas na justiça, concorda com o
relativismo cultural e rejeita o relativismo ético. Isto significa que o
reconhecimento da diversidade cultural não elimina a possibilidade de se
encontrar princípios e métodos racionais que possam conciliá-las na busca da
convivência respeitosa com as diferenças. No mesmo sentido, o formalismo
psicológico de sua teoria define um ponto de vista moral não egoísta e que
considera com equidade o bem estar de cada um. Uma posição com a qual se
possa estar de acordo racionalmente sem que se aceite, necessariamente, os
conteúdos ou princípios substantivos de determinado pensamento moral, que está
intimamente ligado às origens e perspectivas culturais.
Neste sentido, em uma moralidade de princípios, que teoricamente seria
atingida no último e mais elevado estágio de desenvolvimento moral, segundo
Kohlberg, a escolha não está prescrita por “absolutos”, que excluiriam as
diferenças, pois há o entendimento de que os valores implícitos nos princípios
necessitam ser interpretados ao se depararem com situações e contextos concretos.
Os princípios de justiça, liberdade e igualdade são tomados pelo agente moral
como referência para se resolver os problemas e conflitos morais. A busca pela
universalidade, neste último estágio de raciocínio moral, implica a aceitação de
algumas concepções de valor que possam ser aceitas por todos independentemente
de seus distintos objetivos ou ideais de bem.
95
Um destaque especial deve ser dado às operações de equidade e de troca
de papéis, através das quais são construídos os raciocínios morais. Estas duas
operações tocam de forma especial na questão das diferenças, e garantem, de certo
modo, que as características, pontos de vista e interesses específicos de alguns
indivíduos ou grupos, desconsiderados por serem avaliados como inferiores não
sejam discriminados ou segregados. A equidade ao garantir uma distribuição
desigual que objetiva compensar uma desigualdade pré-existente à situação atual,
e a troca de papéis por possibilitar que o agente moral leve em conta as
perspectivas dos outros, buscando e aceitando uma solução para determinado
dilema independentemente de sua situação particular.
Mesmo levando em conta as críticas e acusações de ser tendenciosa e
etnocêntrica, devido a sua pretensão de universalidade, penso ser possível,
utilizando-se dos referenciais da ética do discurso de Habermas e da teoria do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA
desenvolvimento moral de Kohlberg considerar e respeitar as diversidades
culturais, posto que, a meu juízo, oferecem instrumentos teóricos que possibilitam
que o preconceito e a discriminação sejam expostos e denunciados a partir de
fundamentos morais. A análise dos argumentos dos estudantes, em sua tentativa
de solucionar os dilemas morais relativos às situações de preconceito e
discriminação envolvendo as diversidades, objeto do presente estudo, terá como
referência esses fundamentos, ao explicitar o nível de amadurecimento de seus
raciocínios e os pressupostos éticos e morais neles implícitos.
Download

3 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: A ÉTICA DO DISCURSO