3 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: A ÉTICA DO DISCURSO E A PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO MORAL Neste capítulo me proponho, inicialmente, a apresentar alguns elementos da ética do discurso de Jürgen Habermas, priorizando alguns aspectos de seu pensamento, que possuem maior relevância para o presente estudo. Apesar do indiscutível reconhecimento de sua teoria moral, são muitas as críticas que seu pensamento tem recebido, dentre as quais merecem destaque as objeções apresentadas aos conceitos universalistas de moral. É com objetivo de considerar a teoria habermasiana com um olhar mais atento que, em um segundo momento serão apresentados, mesmo que sucintamente, os argumentos do filósofo canadense Charles Taylor que contesta, partindo de uma ética de cunho PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA aristotélica, em especial, a pretensão de universalidade da ética do discurso. Em seguida serão apresentados os principais elementos da teoria do desenvolvimento moral do psicólogo norte-americano Lawrence Kohlberg, cuja escolha se deveu, além da riqueza e amplitude de seus estudos, ao diálogo entre sua teoria e as éticas neo-kantianas, dentre as quais, a ética do discurso. Também objetivando lançar um olhar crítico a sua teoria, será apresentado em um quarto momento, uma dentre as muitas objeções que a teoria de Kohlberg vem recebendo. Optei por pela psicóloga, também norte-americana, Carol Gilligan, e sua crítica à possível tendência sexista da teoria kohlbergiana, por possuir estreita relação com a temática das diversidades. Encerrando o capítulo teço algumas considerações sobre as possíveis implicações do pensamento de Habermas e Kohlberg para a educação e para o tratamento das questões referentes às diferenças presentes no cotidiano das escolas. 3.1 A filosofia moral de Habermas Nosso agir tem ocupado um lugar de destaque nas preocupações humanas desde o momento em que nos demos conta que podemos escolher entre o bem e o mal, entre o certo e o errado. A filosofia moral de Immanuel Kant representa um marco no pensamento ético ocidental, ao fundamentar nos conceitos de dever e de 39 autonomia da vontade toda a arquitetônica de uma moralidade puramente racional. Nesses dois séculos que nos separam de Kant, foram muitas as críticas que seu sistema recebeu. Entretanto, seu pensamento conserva sua vitalidade e tem sido o ponto de partida para novas tentativas de elucidar os fundamentos do agir humano. Dentre os contemporâneos, o alemão Jürgen Habermas é um dos herdeiros de sua tradição. Propõe uma ética baseada na argumentação moral, a qual denominou, juntamente com Karl-Otto Apel, de ética do discurso. O filósofo alemão Jürgen Habermas, nasceu em 1929, tornando-se assistente de T. W. Adorno, um dos fundadores da Escola de Frankfurt, já aos 27 anos. Mesmo não sendo um de seus fundadores é considerado um herdeiro da Escola, que mantém atualizadas as discussões das questões e fundamentos da teoria crítica. Combinando um profundo conhecimento da tradição filosófica e sua grande abertura à variedade das teorias sociais e filosóficas contemporâneas, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA Habermas pode ser considerado um dos mais importantes pensadores ainda vivos, cujas idéias transitam por diferentes campos, dentre os quais se destacam a moral, a teoria literária, a economia e a política pública. Na sequência me proponho a situar sua teoria moral dentro da tradição ética ocidental, para que se possa compreender de onde Habermas parte, e em que sua teorização contribui para pensar a moral no mundo contemporâneo. 3.1.1 A ética do discurso e a tradição kantiana A ética do discurso encontra-se inscrita nas éticas cognitivistas que vêm, desde Kant, defendendo a idéia de que as questões práticas podem ser fruto de fundamentações racionais, em uma relação análoga às fundamentações da verdade dos enunciados teóricos sobre as questões de fato (HABERMAS, 2003). A abordagem habermasiana considera o fundamento da moral kantiana do imperativo categórico2, porém propõe que sua legitimação seja dada pelo diálogo 2 O imperativo categórico é um princípio formal, elaborado por Kant como fundamento de uma moralidade universalizável. Assim se expressa uma de suas formulações: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal”. (Kant, 1986, p.59) 40 entre todos os envolvidos em um possível discurso3 sobre os princípios que deveriam orientar as ações. Ao corroborar Kant, propondo um caminho dialógico e uma consequente superação do caráter monológico da moral, Habermas se afasta ainda de uma possível subjetividade dos princípios de orientação das ações humanas. Estabelece um “princípio” que necessita pressupor um acordo entre todos os indivíduos possivelmente envolvidos nas conseqüências da aceitação de determinada norma de ação, afirmando que: de acordo com a ética do Discurso, uma norma só deve pretender validez quando todos os que possam ser concernidos por ela cheguem (ou possam chegar), enquanto participantes de um discurso prático, a um acordo quanto à validade dessa norma (HABERMAS, 2003, p.86, grifos do autor). É importante ressaltar que, em decorrência do estabelecimento desse PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA princípio, segundo o qual a aceitação das normas depende do diálogo, cada indivíduo não realiza sua reflexão apenas levando em conta os interesses de todos os envolvidos, mas, além disso, entra em um processo de cooperação com os demais na busca de um consenso. A expressão “ética do discurso”, segundo Habermas (1999), pode suscitar interpretações equivocadas sobre sua concepção do uso prático da razão. Faz-se necessário, portanto, proceder a um esclarecimento sobre como sua teoria do discurso se relaciona com questões relativas ao uso pragmático, ético e moral da razão prática. 3.1.2 Os diferentes usos da razão prática Ao retomar a tradição filosófica, o filósofo da Escola de Frankfurt lembra que são três as principais fontes do campo da filosofia prática, a saber: a ética de Aristóteles, o Utilitarismo e a Ética Kantiana. Em sua análise, cada sistema de pensamento privilegia um desses três modos, segundo os quais a razão prática opera, e que se referem às perspectivas do Bom, do Pragmático e do Justo. 3 O termo discurso é o mais utilizado para traduzir Diskurs do alemão. Entretanto é importante observar que não é a qualquer fala ou interação lingüística que Habermas se refere ao utilizá-lo, mas às falas que problematizam e buscam resolver controvérsias, quando duas ou mais opiniões entram em conflito. Neste sentido não é sempre que se conversa que, se está participando de um discurso na acepção habermasiana. 41 O uso pragmático da razão é aquele que se dirige aos problemas práticos, os quais devem ser solucionados em função de um determinado fim já aceito e reconhecido pelo agente em uma perspectiva teleológica. Nesta situação a decisão que se deve tomar está já, em parte, determinada pelo objetivo final que se quer alcançar. A vontade já está condicionada pelos desejos e valores, estando aberta apenas ao processo de avaliação dos diferentes meios alternativos para se atingir o seu objetivo. O que entra em seu cálculo são as técnicas e estratégias, de origem empírica, que se referem ao melhor modo de se proceder para a solução mais eficiente possível do problema que se apresenta. Aqui o “dever fazer” é relativizado por uma vontade subjetiva e arbitrária de um sujeito que procura agir com prudência em direção a suas atitudes e preferências. Não há a problematização dos interesses e orientações axiológicas que motivam sua ação, pois são já previamente aceitos e estabelecidos. Os discursos pragmáticos, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA segundo os quais são fundamentadas as técnicas e estratégias, possuem, segundo Habermas (1999), proximidade com os discursos empíricos. Sua validade é dependente da aceitação do fim a ser atingido e de sua eficiência em atingi-lo e, neste sentido, aproxima-se da tradição ética utilitarista. O uso ético da razão prática, por sua vez, refere-se às escolhas relativas ao tipo de vida que se queira levar e ao tipo de pessoa que se deseje ser. Habermas toma emprestado de Taylor (2005) a terminologia “valorização forte” para distinguir a orientação ética de uma orientação pragmática (que seria uma valorização fraca). As valorizações fortes dizem respeito à compreensão de si, ao caráter, à própria identidade. São escolhas que aludem ao tipo de pessoa que se é ou que se queira tornar. Por se referir a decisões existenciais, as escolhas do uso ético da razão possuem importância especial e necessitam, consequentemente, de serem fundamentadas. Como “decisões axiológicas de importância” são tratadas, pela tradição aristotélica, “como questões clínicas do bem viver” (HABERMAS, 1999, p.104, grifos do autor), ou seja, como decisões que indicam e orientam uma forma de vida que seja possível de ser fundamentada e identificada com o ideal de bom, não apenas com o possível ou o oportuno. Neste contexto de autocompreensão em que as valorizações fortes estão enraizadas, a consciência que se tem de si depende tanto de sua autocaracterização como dos ideais aos quais ambiciona atingir. Esta é uma compreensão existencial que procede a valorações, em que se entrelaçam dois 42 elementos: a apropriação da história de vida individual, que carrega o “componente descritivo da ontogênese do Eu” (HABERMAS, 1999, p.105) e as tradições e circunstâncias nas quais essa história de vida se concretizou, que compreende o componente “normativo do ideal do Eu” (Idem, Ibidem). A autocompreensão hermenêutica a partir da apropriação desses dois componentes não é neutra, mas faz opções por modos de vida considerados bons em detrimento de outros, opções estas que podem ser fundamentadas pela interpretação daqueles elementos constitutivos da compreensão de si mesmo. O “dever fazer” ético tem o sentido de ser “bom” em longo prazo e sua orientação se dirige exclusivamente para quem faz a escolha sobre o tipo de vida que se queira viver. Por se referir ao telos de sua vida, mantém, entretanto, uma relação estreita com a perspectiva egocêntrica. Os outros, suas histórias de vida e seus interesses estão relacionados a estas escolhas na medida em que participam PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA das histórias e relações em que cada sujeito está envolvido. Neste sentido, as opções sobre o tipo de vida que se considera bom têm relação com todos aqueles que compartilham o mesmo espaço social, as mesmas relações. Por outro lado, sofrem interferência desses, já que “minha identidade é cunhada por identidades coletivas e a minha historia de vida está enraizada em formas de vida de âmbito histórico” (HABERMAS, 1999, p.106). Diversamente do uso pragmático, existe uma relação interna entre razão e vontade nos discursos ético-existenciais na qual “a gênese e a validade já não podem se separar como acontecia com as recomendações técnicas e estratégicas” (Idem, p.112), pois são as fundamentações racionais sobre o que é considerado bom para minha vida que motivam uma mudança de atitude em direção a realização desta escolha. Há uma reciprocidade de determinação entre razão e vontade, sendo que esta última mantém suas raízes plantadas no terreno do contexto de nossa história de vida. Mesmo que a escolha se dirija apenas à minha vida, enquanto sujeito que escolhe, e que não possa ser representado pelo outro nesse processo de reflexão e escolha, Habermas (1999) adverte que só somos capazes de nos distanciarmos reflexivamente de nossa própria história, na perspectiva de vidas partilhadas com outros indivíduos que participam de nosso contexto. É nesta acepção que se pode falar de discursos ético-existenciais, os quais funcionam como um processo “terapêutico” de análise de nossa compreensão sobre o tipo de vida que vivemos; 43 da história que percorremos para chegar a ele; bem como sobre o bem viver que almejamos, o qual consideramos digno de ser defendido e fundamentado como tal. Distinguindo-se do uso pragmático e do uso ético, o uso moral da razão prática muda o sentido da reflexão sobre “o que devo fazer”. Agora entram no cálculo das escolhas os interesses dos outros, o que pode conduzir a conflitos que devem ser regulados com imparcialidade, em função não do que é útil ou bom para mim, mas do que é justo para todos os envolvidos. Seguindo a tradição da ética kantiana, o uso moral da razão prática prima pela busca de critérios de justiça que possam ser aceitos e fundamentados racional e universalmente. No centro da reflexão ética está o tipo de vida que se deseja viver e o respeito próprio que determinado modo de ser possa construir. De modo diverso, a centralidade da reflexão moral é determinada pelo “respeito simétrico que cada PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA um revela em relação à integridade de todas as outras pessoas” (HABERMAS, 1999, p.106). Neste sentido, as máximas estabelecem um cruzamento entre o uso ético e o uso moral da razão prática, já que podem ser avaliadas simultaneamente a partir de ambos os pontos de vista. Quando se avalia se uma máxima é justificável por estar em acordo com o tipo de pessoa que se é ou que se deseja que seja reconhecida como tal, realiza-se uma reflexão ética. Entretanto, no momento em que a avaliação leva em conta se a ação decorrente desta máxima é, segundo meu ponto de vista, justa para todos, está se procedendo a uma reflexão moral, embora neste caso em sentido restrito, posto que se encontra ainda sob a perspectiva de um indivíduo em particular. Somente com a possibilidade de generalização sob a perspectiva de todos é que determinada máxima pode adquirir o assentimento geral e ser digna de reconhecimento moral amplo. O caráter de imperativo das obrigações explicitadas por esta máxima é considerado como um dever independente de quaisquer preferências subjetivas, ou ainda relativas a um modelo ideal de vida boa. Deriva sua obrigatoriedade do fato de ser justo agir desta forma e não de quaisquer outras, e o conceito de justiça, que funciona agora como regulador, pressupõe necessariamente que se considere de maneira recíproca a relação com o outro. A avaliação moral de condutas e máximas cumpre o papel de esclarecer expectativas de comportamento, consideradas legítimas diante de conflitos interpessoais originários de interesses antagônicos, com possibilidade de 44 desestabilizar a convivência em comum. Neste sentido o discurso prático-moral busca um acordo sobre soluções justas para conflitos na esfera de ações reguladas por normas. O que significa que a avaliação moral busca sopesar quais normas podem ser consideradas justas sob a perspectiva de todos os envolvidos. No uso moral da razão prática, vontade e razão se identificam, visto que “o dever categórico das obrigações morais está direcionado para a vontade livre” (HABERMAS, 1999, p.109, grifos do autor), vontade de quem age autonomamente segundo suas próprias regras ou normas morais. Não há distinção entre vontade e razão porque o que determina o agir é a avaliação racional sobre sua justeza em relação aos envolvidos na ação, estando a razão isenta da influência das disposições contingentes de determinada história de vida ou identidade individual. Neste sentido, a vontade autônoma é completamente racional, o que não significa, como pensou Kant, que seja uma vontade PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA onipotente. Para Habermas, vontade autônoma é aquela cuja motivação das boas razões, apesar de ser uma vontade fraca, impõe-se sobre o domínio de outras determinações. Esta vontade se realiza, segundo a perspectiva da Ética do Discurso, “a partir dos pressupostos comunicativos de um discurso de âmbito universal” (op. cit. p.112) do qual todos os supostos envolvidos façam parte e atuem argumentativamente diante de normas e atitudes que se tornaram hipoteticamente problemáticas. Somente deste modo se pode constituir uma intersubjetividade de nível superior, fruto da superação da perspectiva individual de cada participante por intermédio de um intercruzamento com a perspectiva de todos, sem que neste processo se perca o vínculo com a atitude performativa de cada um. Desse modo se procede a uma análise objetiva das perspectivas individuais, não como um observador ideal, que teria o acesso ao conhecimento intuitivo do mundo da vida obstruído, mas de uma perspectiva do interior desde universo vivido. A interpretação discursiva que Habermas faz do imperativo categórico kantiano se concentra em questões de fundamentação, deixando em aberto problemas referentes à aplicação das normas consideradas universalmente válidas em um discurso prático-moral. Essa universalização das normas só é possível pela sua descontextualização e consequente abstração de todas as situações concretas e motivações particulares com as quais estejam envolvidas. Desse modo abstrato só podem ser aplicadas a situações padronizadas e também ideais cujas 45 características foram contempladas no processo de fundamentação. Respondendo ao questionamento sobre sua aplicação no mundo empírico, Habermas (1999) propõe que a razão deve ser informada dos contextos e motivações presentes em cada situação concreta para, por um discurso, ainda puramente cognitivo, optar pela norma que melhor se aplica a cada caso particular. A partir dessa distinção entre os três usos da razão prática, pode-se concluir que a ética do discurso se propõe a elaborar uma teoria do uso moral da razão. É importante, por conseguinte, procedermos a um detalhamento do modo como o filósofo da Escola de Frankfurt compreende esse uso moral, bem como de suas justificativas. Por ser uma moralidade racional, de filiação kantiana, a ética do discurso deve poder ser fundamentada a partir de argumentos racionalmente construídos, de modo semelhante aos enunciados teóricos das diversas ciências. A seguir será apresentado como Habermas compreende esta fundamentação racional PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA da moral. 3.1.3 A possibilidade de fundamentar a moral racionalmente Habermas argumenta que as questões práticas podem ser fruto de fundamentações racionais por um procedimento análogo às fundamentações da verdade dos enunciados teóricos sobre as questões de fato, faz-se necessário, portanto, explicitar em que sentido esta semelhança se coloca. Antes de explicitar tal semelhança, entretanto, é importante esclarecer que as fundamentações de verdade também enfrentam algumas dificuldades. Segundo Habermas (2004, p. 281), neste processo “não podemos escapar à ascendência da linguagem”, o que significa dizer que nossas explicações de determinado objeto são dependentes de enunciados factuais e a verdade de tais proposições só pode ser fundamentada ou refutada a partir de outras opiniões ou asserções, que por sua vez são também enunciados factuais. Neste sentido, parece-nos que é a coerência entre enunciados que assegura sua própria verdade. Todavia, a condição de coerência entre enunciados é insuficiente, pois não dá conta de explicar o fato de justificações brilhantes, em determinado momento, terem se revelado falsas com o passar do tempo. Habermas opta por um conceito pragmático de verdade, segundo o qual, a verdade está além de toda possível justificação, e aponta na direção de condições 46 que só podem ser preenchidas pela própria realidade. Mas como isso é possível, se o acesso à realidade é sempre mediado pela linguagem, através da enunciação de fatos? Para Habermas, toda e qualquer justificação ocorre somente em discursos, nos quais são apresentados argumentos sobre “fatos” considerados problemáticos, que têm sua validade colocada em suspenso. Por outro lado, a verdade em seu sentido pragmático tem sua âncora em um mundo objetivo comum, que por sua vez se baseia no uso comunicativo da linguagem. É a possibilidade de comunicação entre falantes e ouvintes, pela qual há entendimento sobre o mundo, que nos permite admitir que “existe” um mundo de objetos que é comum a todos e sobre o qual enunciamos fatos. Esta instância pragmática da certificação da verdade, interpretada realisticamente a partir da suposição de um mundo objetivo comum, é suspensa no nível reflexivo dos discursos, no qual são colocadas interpretações conflitantes do mundo. Aqui uma asserção resiste à prova somente PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA à luz de razões e argumentos. Entretanto, a consciência falibilista de que se pode errar mesmo quando se fundamenta bem as opiniões tem sua origem no realismo do cotidiano, que penetra no âmbito do discurso. É o mundo da vida que mantém desperta entre os interlocutores do discurso a consciência da falibilidade de nossas interpretações. Neste sentido, apenas o entrelaçamento dos dois diferentes papéis pragmáticos que o conceito de verdade bifronte desempenha em contextos de ação e discursos pode explicar por que uma justificação bem-sucedida em nosso contexto leva a pensar que uma opinião justificada é verdadeira independentemente do contexto (HABERMAS, 2004, p. 258-259). Seguindo este raciocínio, a verdade de uma asserção é “posta à prova” de maneiras diferentes no discurso e no mundo da vida. No discurso, a prova se efetua no jogo das argumentações e apresentação de razões. Já no mundo da vida ocorre quando a asserção funciona sem decepções, quando se chega “ao bom termo com o mundo” (op. cit. p. 257). Aqui os atores podem ser, de certo modo, realistas, pois precisam chegar a um consenso sobre o mundo comum em que vivem. Há que se ter como pressuposto que todos se referem ao mesmo mundo objetivo. A correção dos juízos morais, por seu lado, estabelece-se de forma semelhante que a verdade de enunciados descritivos, isto é, pela argumentação. Do mesmo modo que não temos acesso direto aos fatos, pois somos mediados 47 pela linguagem, também não acessamos sem mediação as condições de reconhecimento universal das normas morais. Tanto a validade dos enunciados factuais como das asserções morais só podem ser demonstradas ou justificadas através de discursos nos quais são apresentadas razões. Todavia, a mesma limitação, exposta para a validade dos enunciados factuais, também se aplica às normas morais: não basta uma argumentação moral coerente e fundamentada para se garantir seu reconhecimento universal. Falta às pretensões de validade desses enunciados a referência a um único mundo objetivo, fundada no uso comunicativo da linguagem, que os enunciados factuais dispõem. O que garante, portanto, que uma norma bem fundamentada em um discurso prático deva ser reconhecida como válida universalmente? O que abona as pretensões de validade morais, se estas são levantadas para relações de um mundo social que não é independente dos atores morais como o mundo objetivo o é? PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA É de outra maneira que as convicções morais resistem à prova do mundo da vida – “não pelo sucesso da manipulação de processos autônomos, mas pela solução consensual de conflitos de ação, que só pode ser bem-sucedida contra o pano de fundo de convicções normativas intersubjetivamente partilhadas” (HABERMAS, 2004, p. 289, Grifos do autor). O pôr-à-prova ocorre em um contexto semelhante ao do próprio discurso, “no médium da comunicação linguistica” (Idem, Ibidem). A possível resistência, que coloca à prova a validade de tais enunciados, tem sua origem na falta de consenso com os outros indivíduos e só pode ser vencida por processos de aprendizagem moral, os quais possibilitam que as partes em conflito ampliem o mundo social, que cada vez mais se torna seu, e se incluam de forma recíproca. Por não haver do lado das normas morais algo que se equivalha a uma interpretação ontológica referente à verdade, sua validade pode ser “medida” pela “natureza inclusiva” de um possível consenso obtido por meio de razões. Quando no discurso prático todas as pessoas envolvidas chegam à convicção de que um determinado modo de agir é igualmente bom para todos, o que ocorre não é o estabelecimento de algum fato, mas a fundamentação de uma norma, a qual merece um reconhecimento intersubjetivo. “Não compreendemos a validade de um enunciado normativo no sentido da existência de um estado de coisa, pensamos apenas que a norma correspondente, que deve reger nossa práxis, merece reconhecimento” (HABERMAS, 2004, p.291). 48 Seguindo este raciocínio, tal acordo sobre normas ou ações, atingido através do discurso em condições ideais, a saber: a participação de todos os envolvidos, direitos iguais para todos os participantes, ausência de coação e orientação para o entendimento mútuo, teria uma força que garantiria a correção dos juízos morais. Devemos reconhecer, entretanto, que este acordo não deve ser visto como infalível. Podemos nos enganar a respeito dos pressupostos da argumentação quando algumas das condições ideais não são satisfeitas, ou por olvidar que, por mais que fundamentemos as normas, estas ainda necessitam de complementação através de discursos de aplicação, os quais podem revelar circunstâncias imprevistas. Esta última limitação pode nos levar a um “provincialismo existencial em relação necessariamente desestabilizar “nossas ao futuro” o convicções qual não deve morais enquanto as circunstâncias supostas nos discursos de fundamentação não são perceptivelmente PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA desmentidas pela história” (HABERMAS, 2004, p.293). Ao ter como referência para a validade dos juízos morais, um acordo entre as partes em conflito que inclua todos os envolvidos, temos a pretensão de nos orientar rumo a uma “única resposta correta”. Desse modo, partilhamos da suposição de que a moral que deve ser considerada válida se estende a um mundo social, também comum, o qual deve incluir, em condições de igualdade, todas as pessoas e suas pretensões. Como consequência, este mundo social comum, que projetamos idealmente, no qual as relações interpessoais são reguladas de forma legítima, pode ser tomado como análogo ao mundo objetivo, partilhando com ele uma de suas determinações, a identidade. Não partilha, entretanto, a disponibilidade, já que sua existência depende das relações entre os atores morais. Este mundo social deve ser visto, todavia, mais como uma tarefa do que como um dado, pois “na dimensão social, os envolvidos devem apenas produzir uma perspectiva do nós inclusiva4, mediante a adoção recíproca de suas perspectivas” (HABERMAS, 2004, p. 294). Outro passo precisa ser dado para que a partir da possibilidade de se estabelecer a validade de normas e juízos morais, possa-se pressupor sua universalidade. Faz-se necessário encontrar um conceito que sirva de ponte entre 4 Essa perspectiva pode ser compreendida a partir do conceito piagetiano de “descentração”, que se refere ao processo de considerar cada vez mais as perspectivas dos outros, rumo a uma hipotética inclusão completa de todas as perspectivas possíveis. 49 consensos axiológicos particulares a alguns contextos e a possibilidade de um consenso universalmente aceito. O conceito de justiça, à luz dos questionamentos universalistas, é retirado de seus contextos concretos e toma uma forma procedural5, pela qual ocorre uma convergência entre a perspectiva da justiça e a perspectiva que todo participante adota em discursos racionais ideais, a saber, de levar em conta de forma imparcial os interesses e pontos de vista de todos os envolvidos. Diferentemente das sociedades tradicionais, nas quais a justiça tinha como referência relações e regras de convivência claras e determinadas pela tradição, nas sociedades modernas multiculturais, a partir do embates entre culturas, movimentos de reflexão e abstração, surgem as “implicações universalistas de justiça”, o que faz com que se fundem as idéias de justiça e de fundamentação imparcial das normas. Esse processo provoca o desgaste progressivo de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA concepções tradicionais de justiça e sua consequente purificação como um conceito procedural, sem que com isso se torne menos exigente. Justiça passa a ser conceituada como a garantia de imparcialidade e esta compreendida como a igual consideração de todos os interesses afetados. Retomando a analogia entre a justificação das pretensões de verdade dos enunciados factuais e das pretensões de correção dos enunciados morais, ambas as fundamentações se dão em discursos nos quais são apresentadas razões e argumentos, após serem hipoteticamente colocadas em dúvida, por concepções divergentes. O que mantém a falibilidade e a condição de verdade dos enunciados factuais é sua referência a um mundo da vida objetivo, o qual, pelos pressupostos da linguagem, é comum a todos os participantes do discurso. Os enunciados morais, entretanto, não contam com esse mundo objetivo como referência, mas com o mundo social, que se baseia na suposição de que normas e juízos morais considerados válidos devem se estender de forma inclusiva a todas as pessoas e suas pretensões. Após explicitar em que sentido as questões práticas podem ser fruto de fundamentações racionais, por procedimento análogo às questões factuais, me 5 A justiça é tomada apenas como processo, como um procedimento para se chegar a juízos que possam levar em conta os interesses e necessidades de todos os envolvidos. Neste sentido utilizaria como critérios as ideias de igualdade, equidade e reciprocidade. 50 proponho a apresentar a fundamentação habermasiana da possibilidade de uma moralidade que almeje ser universal. 3.1.4 A possibilidade uma moral universal A pretensão de universalidade das normas morais é um dos pontos de seu pensamento, herdado de Kant, que necessita ser fundamentado. Neste caminho, Habermas (2003) afirma que nas relações cotidianas já estão postas intuições que fundamentam uma universalidade de concepções morais, pois quando se opta por uma ação, diante de um dilema, acredita-se que qualquer pessoa que estivesse no mesmo lugar, em situação semelhante, deveria fazer a mesma escolha. A aceitação da tese de que as normas que orientam o agir moral são particulares, e relativas a cada contexto ou situação, jogaria por terra qualquer pretensão de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA fundamentá-las universalmente, pois a defesa de qualquer norma ficaria refém de contextos e preferências empíricas particulares. O conflito entre fundamentar as ações em normas e regras universais, ou em noções de certo e errado particulares, surgiram em vários momentos durante a realização dos grupos focais, o que aponta para a pertinência dessa questão para o presente estudo. É importante ressaltar que somente a partir das atitudes performáticas entre os participantes de interações que os fenômenos morais se desvelam. O sentimento de indignação diante de uma ofensa, por exemplo, não está presente apenas na pessoa do ofendido, mas também em um observador “imparcial” não envolvido diretamente na ofensa. O que motiva este sentimento, tanto no ofendido, quanto nesta terceira pessoa não é apenas sua discordância particular com o ato ofensivo, mas sua pressuposição de que a ação efetuada vai contra o que se espera de qualquer agente. Neste sentido o pedido de desculpas serve para se reparar o dano causado ao ofendido, bem como para demonstrar o reconhecimento, por parte do ofensor, de uma norma considerada válida, a qual foi rompida com a ofensa. Habermas (2003, p.79) define como comunicativas as interações, em que há acordo sobre a coordenação dos planos de ação, sendo que este acordo se baseia no “reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validez”, compreendidas como pretensão de verdade, correção e sinceridade. Os envolvidos 51 nessas interações devem aceitar como pressuposto que seus interlocutores dizem o que acreditam ser verdadeiro e correto. Estabelece-se entre falante e ouvinte uma relação de confiança sobre as pretensões de verdade e correção, bem como de sinceridade. No caso das primeiras, a comprovação se dará discursivamente pela adução de razões. Na segunda, pela consistência do comportamento do falante, por sua prática cotidiana. Esta confiança do ouvinte no falante mobiliza determinadas “obrigações relevantes para a seqüência da interação que estão contidas no significado do que foi dito” (Idem, p.80). A universalização de princípios morais, a partir de normas e valores particulares necessita de um princípio que possibilite sua generalização. Proceder por processos dedutivos pela análise de enunciados a partir de suas conseqüências lógicas nada de substancial acrescenta ao anteriormente afirmado; e apoiar-se em experiências empíricas para proceder, posteriormente, a generalizações, gera o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA problema da relativização, inerente a diferentes sistemas descritivos, não oferecendo, deste modo “nenhum fundamento último” (HABERMAS, 2003, p.84, Grifo do Autor). Habermas lembra que Kant resolveu este problema introduzindo o imperativo categórico como princípio que possibilita a universalização das máximas que podem ser consideradas morais, e descarta como não morais, as que não podem, segundo o imperativo, ser universalizadas. Aceitando a necessidade de universalização já colocada por Kant, Habermas considera que o caráter subjetivo e solitário do imperativo possui limites que devem ser superados. A imparcialidade necessária à universalização só pode ser atingida, quando há espaço para um “reconhecimento intersubjetivo”. O princípio de universalização (U) que propõe, prevê, portanto, que uma norma para ser considerada válida deve depender de que as consequências e possíveis efeitos colaterais, dela resultantes, que satisfaçam os interesses de cada indivíduo, devido ao fato de ser universalmente seguida, sejam aceitos por todos os concernidos, em detrimento de outras alternativas. A necessidade do diálogo entre todos os concernidos, para a validação das normas, é defendida por Habermas, por considerar que só na argumentação com apresentação de razões a “vontade comum” pode ser constituída. Não basta que cada indivíduo reflita sobre se a norma responde ao interesse de todos. É necessário que apresente seus argumentos e ouça os argumentos dos outros. É a 52 partir daí que o consenso deve ser construído. A participação de todos possui uma dupla importância: (1) permite que cada um reveja a perspectiva de seus próprios interesses pela confrontação com os interesses dos demais e (2) possibilita que sua perspectiva esteja exposta às críticas dos outros. Habermas (2003, p.86, grifos do autor) estabelece, ainda, o que denomina “princípio ético discursivo (D)”, segundo o qual, “uma norma só pode pretender validez quando todos os que posam ser concernidos por ela cheguem (ou possam chegar) enquanto participantes do discurso prático, a um acordo quanto à validade dessa norma”. Algumas regras do discurso já devem ser aceitas como pressupostas quando qualquer agente entra em uma argumentação. Estas regras não devem ser vistas, entretanto, como constitutivas do discurso, mas representam pressuposições pragmáticas, estabelecidas de maneira tácita e intuitiva, “de uma prática discursiva privilegiada” (Idem, p.114), a qual supere as limitações PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA espaciais e temporais dos discursos realizados nos diferentes contextos sociais reais. A primeira regra estabelece a constituição do círculo dos participantes do discurso como compreendendo todos os sujeitos capazes de participar de argumentações. A segunda garante a todos os interlocutores as mesmas chances de argumentar e apresentar seus argumentos como válidos. A terceira exige que as condições de comunicação tornem possível que prevaleça o acesso universal e chances iguais de todos os interlocutores a participarem do discurso, sem nenhuma forma de repressão, ou seja, de forma igualitária. Segundo Habermas, o próprio cético moral6, ao apresentar suas objeções à possibilidade de fundamentar racionalmente as normas, já aceita como pressupostas estas regras da argumentação, pois pressupõe que está sendo ouvido e ao ouvir e refutar as argumentações apresentadas pelo cognitivista moral está seguindo as regras da argumentação. É importante advertir que o princípio da Ética do Discurso, por referir-se a um procedimento, é um princípio formal. Não pretende fornecer normas substantivas e justificadas, mas presta-se ao exame da validade de normas propostas e consideradas como hipóteses, no horizonte do mundo da vida, dentro de determinado grupo social, no qual surgem conflitos de ação em determinadas 6 O cético moral defende a impossibilidade de se fundamentar a moralidade, seja ela universal ou particular. Neste sentido difere do relativista moral para quem só se pode fundamentar a moralidade partindo de referências culturais particulares. 53 situações. O discurso prático só tem sentido quando os agentes consideram como sua a tarefa de buscar soluções consensuais em uma matéria controversa, a qual interessa a todos. Por possuir este caráter puramente formal e procedimental, a ética do discurso é alvo de muitas críticas por pensadores que atribuem importância fundamental aos ideais e crenças na orientação das ações. A seguir serão apresentados alguns argumentos das objeções de Charles Taylor apresenta ao pensamento moral habermasiano. 3.2 A crítica de Charles Taylor Nascido em 1931, o filósofo canadense Charles Taylor pode ser PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA considerado um dos mais importantes pensadores comunitaristas, ao defender a importância das identidades culturais e uma política que abra espaço para que se decida publicamente sobre os aspectos de identidade individual que são partilhados, pelo menos em potencia, com os demais cidadãos. Neste sentido é um feroz crítico do liberalismo, pois este concebe o indivíduo de forma “atomística”, como se sua identidade e seus fins fossem constituídos de forma autônoma. A defesa de suas ideias não se limita à academia, tendo se candidatado para o Parlamento Federal Canadiano e sido escolhido para o Conseil de la Langue Française no Quebec. A crítica que Taylor dirige ao pensamento moral de Habermas está intimamente ligada a sua visão comunitarista e cultural da política e da moral. Para Taylor (2005), o pensamento de Habermas faz parte de uma corrente da filosofia contemporânea que possui uma visão muito restrita da moralidade, cuja função seria apenas indicar o caminho da ação correta, definindo a validade de uma obrigação, em detrimento da “natureza do bem viver” (Op. Cit., p.110), e que considera irrelevante para o agir moral a noção de uma vida boa e desejável. Antes de expor em mais detalhes a crítica de Taylor, convém proceder a uma breve exposição de seu pensamento, para que algumas de suas objeções sejam compreendidas a partir do lugar em que são formuladas. 54 3.2.1 A teoria ética de Taylor Taylor parte do pressuposto de que possuímos intuições “espirituais e morais” formadas por concepções e atitudes relativas a temas como justiça, respeito à vida, à dignidade e ao bem estar das pessoas. Estas intuições estão profundamente arraigadas em nosso espírito a ponto de termos a impressão de que fazem parte de um instinto, e são diferentes de outras reações morais que nos parecem ser fruto de um processo de socialização. Além dessas intuições, Taylor (2005, p.16) faz alusão a questões morais que nos remetem a um sentido que se situa na base da própria dignidade humana e que “torna a vida digna de ser vivida”. Estas questões envolvem o que ele denomina “avaliações fortes”, compreendidas como julgamentos valorativos, ou bens dignos de serem reverenciados, os quais são legitimados por “desejos, inclinações ou escolhas”, e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA que possuem, entretanto, existência independente destes e oferecem os próprios padrões pra julgá-los. Taylor considera que nosso pensamento moral é constituído por três eixos: (1) o respeito pelos outros, que abarca todas as obrigações para com os outros indivíduos e que colocam em destaque as idéias de liberdade e responsabilidade para com estes; (2) a compreensão do que consiste uma vida plena, ou seja, uma vida rica de significados em que os talentos e capacidades sejam desenvolvidos em suas potencialidades; e (3) um conjunto de noções relativas à própria dignidade, ao que faz com que se acredite merecedor, ou não, do respeito de seus semelhantes. Segundo Taylor, esses três eixos, ou dimensões, possuem igual importância na reflexão e compreensão da moralidade, embora o respeito aos outros seja, com frequência, colocado em destaque por muitos filósofos contemporâneos em detrimento das outras duas dimensões. Ao buscar em que se baseiam os juízos e o agir moral, Taylor (2005, p.42) apresenta o conceito de “configuração”, compreendido como o que proporciona o “fundamento, explícito ou implícito, de nossos juízos, intuições ou reações morais em qualquer das três dimensões”. Por configuração o autor entende uma totalidade crucial de “distinções qualitativas”, um conjunto de bens que são incomparavelmente superiores a outros mais comuns e de alcance imediato. Essas configurações se remetem ao anteriormente denominado “avaliação forte”, cuja 55 existência independe dos desejos e inclinações, mas são padrões de seu julgamento. O pensador canadense defende a tese, segundo a qual não é possível a algum ser humano prescindir dessas configurações, que são constitutivas do agir humano, e das quais depende o reconhecimento da pessoa em sua integralidade. Fora deste horizonte, dentro do qual há a possibilidade de se determinar o que se avaliza como bom ou a que se opõe como mau, é impossível tomar uma posição, não há como agir moralmente. São as configurações que proporcionam uma orientação para a ação moral, o que é “essencial para se ser um interlocutor humano capaz de responder por si mesmo” (TAYLOR, 2005, p.46). São as distinções qualitativas, pelas quais as configurações são definidas, os pressupostos básicos dos juízos e reações morais. Assim, os contextos dão sentido a essas ações e reações. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA Essas configurações, entendidas a partir de distinções qualitativas, constituem os bens com os quais a maioria das pessoas convive e cumpre a função de orientar sua vida. Há que se considerar, entretanto, que há uma hierarquização desses bens, de modo que alguns deles adquiram uma importância suprema em relação aos outros. Dentre os bens que ocupam essa posição superior na sociedade contemporânea, Taylor elege como uma hipótese inicial o culto a Deus e o valor da justiça. Independentemente que qual bem ou bens sejam colocados nessa posição superior, estes ocupam uma posição inigualável na vida das pessoas, propiciam as referências para a direção de suas vidas e se vinculam de forma estreita à definição de suas identidades. Esses bens superiores, denominados por Taylor de “hiperbens”, são reconhecidos como tais mesmo por quem não esteja obstinadamente com eles comprometido e possuem o estatuto de definir a “moral” nas culturas modernas e contemporâneas. Taylor adverte, entretanto, que a existência de hiperbens provoca conflitos, e aqueles que são hoje reconhecidos como tais nasceram de uma superação de outros bens considerados superiores no passado. O ideal de justiça e benevolência, aceitos por muitos na atualidade como valores universais, por exemplo, nem sempre foram estimados como tais pelas sociedades antigas e medievais. Esse reconhecimento se deu em diversas etapas, através de lutas intensas e vencidas a custa de muitos sacrifícios, e cumpre ainda hoje o papel de criticar visões 56 contemporâneas que em alguns momentos se mostram contraditórias em relação e esses princípios. Uma ética que se fundamente em torno de um hiperbem gera conflitos e tensões porque o bem supremo não apenas se situa acima dos outros, mas pode tender a rejeitá-los, o que provoca intensos desacordos e dilemas na vida moral. Para Taylor , a estratégia apontada por Aristóteles de ratificar todos os bens parece ser a mais adequada, pois com essa posição assume a impossibilidade de alguém se colocar como juiz e ter a pretensão de afirmar quais bens, dentre aqueles que estão presentes e desenvolvidos no meio social, têm ou não valor. Como consequência “o bem viver deve ser entendido, portanto, como aquele que de algum modo combina no maior grau possível todos os bens que buscamos” (Taylor, 2005, p.93-94). Isto não significa, todavia, que todos os bens tenham igual valor, visto que o próprio Aristóteles concorda com a superioridade de uns PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA sobre outros. Todavia, sua ascendência se dá em termos de “alta prioridade”, e não de uma perspectiva que negue os demais. Para Taylor são fortes os argumentos a favor dessa estratégia aristotélica, contudo, as dificuldades de levá-la adiante são abundantes porque envolveria o respeito a todas as práticas e “bens interiores” que a humanidade produziu nas diversas sociedades e não se pode deixar de admitir a existência de sociedades e modos de intercâmbio social com muitos vícios, ou com práticas que não se conciliam, em hipótese alguma, com o ideal de justiça ou de dignidade humana. Reconhecendo estas dificuldades, o filósofo canadense afirma que ao se posicionar em uma perspectiva moral do “respeito igual e universal”, considera a condenação de atos que firam a dignidade humana, como por exemplo, a circuncisão feminina em algumas culturas, não apenas como expressão de um modo de ser da cultura ocidental, porém de uma perspectiva moral que engendra críticas contundentes a crenças e práticas desta própria sociedade que estejam em desacordo com o ideal de justiça e respeito universal. Apesar das dificuldades que se apresentam, o filósofo advoga em favor de uma ética do bem, ou melhor, de uma moralidade que tenha como referência bens superiores dos quais o raciocínio prático tenha que ser capaz de oferecer argumentos favoráveis. A razão prática tem que ter a capacidade de “convencer da justiça de nossa causa pessoas que não partilham absolutamente nenhuma de nossas intuições morais básicas” (TAYLOR 2005, p.101), sob o risco de não 57 possuir utilidade alguma. Isto não significa, entretanto, que se considere que determinada visão seja absolutamente correta, mas que é possível que uma seja mais adequada que outras. Ele argumenta que o desenvolvimento do raciocínio prático se dá por transições, partindo de um bem que no passado foi considerado como valoroso para outro, que durante um percurso das histórias de vida, se mostra digno de maior valoração. Neste sentido “os hiperbens surgem por meio de superações”, sendo que, “a convicção que trazem consigo vem de nossa leitura das transições para eles, de certa compreensão do crescimento moral” (Idem, p.102). Como consequência a perspectiva que temos se define por nossas intuições morais, pelo que nos move moralmente, sem o que não somos capazes de compreender os argumentos morais, não somos capazes de agir moralmente. Ao fazer esse breve e limitado “passeio” pelo pensamento ético de Taylor, é possível perceber alguns de seus desacordos com a ética do discurso. Na PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA sequência serão explicitadas algumas de suas críticas e os argumentos que utiliza. 3.2.2 A crítica à ética do discurso Suas críticas se dirigem tanto às éticas de cunho utilitaristas, quanto às que seguem a tradição kantiana. Em sua avaliação essas duas tradições tendem a menosprezar, quando não desprezar totalmente as distinções qualitativas, tão caras a sua concepção de moralidade. Tais concepções dirigem o foco para os princípios, determinações e padrões de orientação para a ação, negligenciando previamente as concepções do bem. Para o filósofo canadense, essas “teorias da ação obrigatória” são determinadas por motivações epistemológicas, bem como por motivações morais importantes, a saber, a defesa da vida cotidiana e do desejo, a concepção moderna de liberdade e a aspiração por uma ética universal. Kantianos e utilitaristas, por partirem de algumas destas motivações, partilham de uma concepção ética procedimental, que se caracteriza muito mais pelo modo como se constrói o pensamento e a argumentação, em oposição a uma concepção substantiva que considera o resultado da reflexão que se identifica com um sentido ou ideal de bem. Segundo Taylor (2005), a motivação mais forte que justifica a mudança para uma ética procedimental, em detrimento de uma concepção substantiva, é a “idéia moderna de liberdade”, a qual segue a mesma ótica dos contratualistas 58 modernos, que privilegiaram o consenso como critério de legitimidade, em detrimento de alguma concepção de boa sociedade. Em sua avaliação, o pensamento de Habermas, por ser um procedimento dialógico, segundo o qual uma norma só se justifica quando todos podem, livre de qualquer coerção, entrar em acordo, é um avanço em relação ao imperativo categórico de Kant, todavia está fundado nos mesmos princípios do contrato social dos modernos. Ao excluir as distinções qualitativas, ou seja, o ideal de bem, essas tendências éticas, segundo Taylor, deixam em aberto lacunas importantes e perturbadoras, que merecem ser preenchidas. Pecam por não apreender uma compreensão que subjaz a qualquer crença de que se deve agir de alguma maneira determinada: a noção de que algo que se preza está envolvido. Permanece sem justificação a prioridade de se proceder a um raciocínio moral, em lugar de não fazê-lo, e a justificativa de Habermas, segundo a qual esta prioridade é fruto de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA uma maturação seja do indivíduo seja da cultura, ainda não responde à questão sobre “por que se deveria ser moral ou esforçar-se por alcançar a ‘maturidade’ de uma ética ‘pós-convencional’” (TAYLOR, 2005, p.120). Taylor reconhece a importância da existência no pensamento habermasiano, de uma fronteira entre as questões referentes à “justiça interpessoal” e as relativas ao “bem viver”, que se refere à distinção entre exigências de universalidade e concepções particulares de bem. Para o canadense esta diferenciação se constitui, na visão de Habermas, uma defesa ímpar contra a possibilidade da ofensiva etnocêntrica por parte de determinada tradição ou cultura e por esse motivo deve ser preservada. Segundo a análise de Taylor, um dos maiores limites dos teóricos kantianos e utilitaristas é sua incapacidade de trazer à luz as raízes de seu pensamento, as quais se encontram mergulhadas nos mais vigorosos ideais morais da modernidade: liberdade, altruísmo e universalismo. Estes ideais são os “hiperbens” consensuais que distinguem o pensamento ocidental moderno, e, por uma contradição pragmática, esses teóricos negam ou deturpam os próprios bens que estão na origem de sua motivação. A crítica de Taylor considera, igualmente, que o princípio da prioridade do certo sobre o bom, aceito pelas éticas de orientação kantiana, deve ser compreendido a partir de duas acepções diferentes de “bem”. Quando o bem é concebido em termos de resultado, segundo a orientação utilitarista, é justificável 59 que perca a posição de prioridade para o certo, pois assim a ação correta adquire um caráter de obrigação moral. Entretanto, no momento em que o bem inclui aquelas distinções qualitativas que servem de base para as concepções morais, a saber, os “hiperbens”, deve ter prioridade sobre o certo, “no sentido de que é aquilo que, em sua articulação, dá o sentido das regras que definem o certo” (TAYLOR, 2005, p.123). Em síntese, a principal crítica que Taylor faz à Ética do Discurso, dirige-se à negação, considerada por ele inconsistente, dos “hiperbens”, os quais subjazem às motivações das ações morais. Neste sentido, em sua avaliação a ética defendida por Habermas não apresenta fundamentos que justifiquem a necessidade e nos mobilizem a agir moralmente. Taylor somente um bem que seja colocado como meta superior a se atingir, a saber, uma perspectiva de uma boa vida, pode motivar os seres humanos a agirem moralmente. De sua perspectiva, a Ética do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA Discurso, por possuir um caráter puramente formal e procedimental, oferece uma teorização limitada da moralidade, visto que juntamente com outras filosofias morais contemporâneas nos impõem: vendas que nos impedem de reconhecer a força dos bens, não nos deixam ser movidos por eles ou, caso o sejamos, induzem-nos a identificar isso erroneamente como alguma emoção não moral. O foco negativo do bem como fonte de culpa esmagadora ou, alternativamente, de um sentido presunçoso de superioridade termina por nos tornar resistentes a admitir que um bem constitutivo possa nos interpelar, nos mover, nos impelir (TAYLOR, 2005, p.140). A crítica de Taylor chama nossa atenção para o importante problema da motivação, questão essa que não nos parece ser uma preocupação da Ética do Discurso. Parece não se atentar, igualmente, para a distinção que Habermas (1999) faz entre os usos moral e ético da razão prática. Este não desconsidera a importância das escolhas que se referem à forma de vida que se queira viver, as quais são fruto das relações com todos aqueles que compartilham nosso espaço social, e das identidades coletivas forjadas historicamente. Ao fazer a distinção entre esses dois usos da razão prática, Habermas deseja escapar do equívoco de se colocar uma concepção de vida boa, ainda que seja partilhada por um grande número de pessoas ou mesmo por diversas culturas, como o referencial a ser imposto a culturas ou povos considerados minorias. A preocupação de Habermas (1999), ao propor um caminho procedimental para a fundamentação da moralidade, é evitar que por uma posição etnocêntrica 60 que não se assuma enquanto tal, um estilo de vida, ou que um “Bem” considerado supremo, o qual sempre será assim considerado por um ponto de vista de determinado contexto, seja colocado como acima de qualquer outro bem, que na perspectiva de outras culturas deveriam ser colocados em lugar de destaque. Se a filosofia pudesse, como dantes, ater-se à sua pretensão clássica de emitir afirmações de validade universal sobre o sentido de uma vida boa ou não malograda, então tampem teria de ser capaz de privilegiar um determinado modo de vida. (HABERMAS, 1999, p. 172) Ao estabelecer o “justo” como referência no lugar do “bom”, Habermas (1999) não cai, como supõe Taylor (2005), no equívoco de trocar uma “avaliação forte”, como valor substantivo, por outra. A idéia de justiça que Habermas (1999, 2003, 2004) adota como referência para a Ética do Discurso é um conceito procedural, sem referência alguma a normas ou costumes originários de contextos concretos. Um conceito que se refere à garantia de imparcialidade, compreendida PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA como a igual consideração de todas as perspectivas e interesses afetados. O justo, em sua concepção, não é considerado como um bem em si, mas como uma forma imparcial de, nos discursos práticos, os interesses e pontos de vista de todos os envolvidos, serem levados em conta. Pode-se, todavia, concordar com Taylor (2005) quando este afirma que a Ética do Discurso não responde à questão sobre o porquê agir moralmente, sobre as justificativas e motivações para se buscar uma vida conforme a moralidade. Esta resposta pode sim ser encontrada no desejo de se viver uma vida que consideremos digna, na qual o auto-respeito esteja presente. Para Habermas (1999, p. 179, grifos do autor), em função de “um pluralismo de projetos e de formas de vida moralmente justificados, os filósofos já não podem fornecer, por sua própria conta, instruções universalmente vinculativas sobre o sentido da vida”, cabe-lhes apenas uma reflexão metodológica pela qual “as questões éticas podem ser respondidas em geral”. Sua preocupação, ao propor, seguindo o caminho de Kant, uma ética procedimental, é responder àqueles que já estão motivados a agir moralmente. Propõe-se a oferecer uma maneira de se decidir o caminho a seguir quando, diante de um dilema, indica que se opte por agir por um princípio que inclua os pontos de vista de todos os concernidos, e mais ainda, que partilhe de um diálogo no qual todas as posições e pretensões sejam pesadas com imparcialidade. Isto exige, por certo, que os agentes morais tenham em mente um conceito de justiça pós- 61 tradicional, ou melhor, pós-convencional. Pressupõe que tenham a capacidade e abertura de espírito para colocarem em suspenso suas próprias crenças, ou seja, suas “avaliações fortes”, e discutindo os argumentos apresentados por seus interlocutores, busquem o consenso possível, o qual poderá exigir que revejam seus próprios valores. Alguém poderá objetar, ainda, que este agente moral é uma idealização, um sujeito que não existe concretamente. É aqui que a Filosofia Moral se encontra com a Psicologia do Desenvolvimento, que oferece caminhos para se compreender como ocorre o processo de aprendizagem moral, pelo qual, a criança em estado de anomia, em um nível de desenvolvimento moral que sequer reconhece as convenções sociais, faz seu percurso para se tornar um adulto autônomo moralmente, que compreende as convenções sociais, as reforça ou as PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA refuta, tendo como referência os princípios de justiça. 3.3 A psicologia do desenvolvimento moral de Kohlberg O psicólogo norte-americano Lawrence Kohlberg, nascido em 1927 e falecido em 1987, foi durante 19 anos, até sua morte, professor da Universidade de Harvard. Pretendendo inicialmente se dedicar à psicologia clínica, foi provocado pelas teorias de Jean Piaget a se dedicar ao estudo do desenvolvimento moral de crianças e adolescentes. A base de sua teoria, os estágios de desenvolvimento moral, foram identificados em sua tese de doutorado de 1958, e até o fim de sua vida se dedicou a revê-la e, junto com outros colaboradores, reformulá-la e aperfeiçoá-la. Sua visão estruturalista, que propõe uma sequência invariante de estágios e seu universalismo moral, representaram uma mudança radical em relação às teorias do desenvolvimento moral da época, que seguiam orientações psicanalíticas ou behavioristas. Kohlberg (1992) parte dos estudos de Jean Piaget, segundo os quais o desenvolvimento moral da criança se constrói em estágios. É importante destacar que o critério último do desenvolvimento moral de ambos é, concordando com Kant (1986) a autonomia moral. A criança se livra, aos poucos, da coação adulta e passa a aceitar os deveres morais como seus em função de sua relevância e importância. Em seu estudo inicial, Kohlberg objetiva aplicar a proposta de investigação iniciada por Piaget com crianças, à fase da adolescência. 62 Kohlberg aprofunda a idéia dos estágios do desenvolvimento moral apresentada por Piaget e estabelece três níveis de juízos morais, os quais se subdividem em dois estágios cada um. Concorda com Piaget no entendimento de que os níveis e estágios se desenvolvem em uma seqüência e se constroem por um processo de aprendizagem a partir da interação do indivíduo com seu meio social e cultural. Ao aceitar e defender que o desenvolvimento moral ocorre de forma sequencial, rumo a um nível mais elevado de construção moral, Kohlberg necessita fundamentar porque o nível seguinte é melhor que o anterior. A Psicologia é capaz de explicar, a partir de observações empíricas como alguns sujeitos resolvem questões morais por determinados caminhos, e outros as resolvem por outros, e demonstrar as diferenças entre as diversas opções de resolução. Não pode, entretanto, afirmar qual dos caminhos é o melhor, ou PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA moralmente mais aceitável. Esta referência Kohlberg vai buscar na Filosofia, tomando como critério um princípio de justiça compreendido como regulação igualitária e recíproca dos direitos e deveres, regulação esta que proporciona o equilíbrio das ações e relações sociais. A seguir serão apresentados alguns pressupostos filosóficos que fundamentam alguns critérios utilizados por Kohlberg em seus estudos sobre o desenvolvimento moral. 3.3.1 Pressupostos filosóficos Kohlberg (1992) considera que existem quatro grupos de orientações morais: (1) ações baseadas em normas e regras estabelecidas com o objetivo de manter a ordem moral e social; (2) ações referenciadas nas consequências boas ou más para o bem estar dos agentes e dos demais envolvidos; (3) ações definidas pela imagem de um “eu ideal” e virtuoso, pelos motivos ou virtudes do agente moral; (4) ações referenciadas na liberdade, igualdade e reciprocidade que determinam o ideal de justiça. Ao optar por esta última orientação não desconsidera que todos podem ser utilizados por um indivíduo para pautar suas ações, todavia afirma que em sua essência a estrutura da moralidade é a justiça. El sentido de justicia de uma persona es lo que es más distintivo y fundamentalmente moral. Uno puede actuar moralmente y cuestionar-se todas las normas, se puede actuar moralmente y cuestionarse el bien mayor, pero no se 63 puede actuar moralmente e cuestionarse la necesidad de justicia. (KOHLBERG, 1992, p. 197) Kohlberg considera que existem alguns pressupostos filosóficos ou metaéticos que devem ser aceitos para que um estudo, como o seu, que se utilize dos conceitos de níveis e estágios de desenvolvimento seja efetuado. Esses pressupostos posicionam o pesquisador frente a questões que não possuem caráter científico, nem ético-normativo, mas analítico e crítico, questões lógicas, epistemológicas ou semânticas, sobre, por exemplo, o significado de expressões como “moralmente correto” e de termos como “bom”. São questões meta-éticas no sentido de se perguntar criticamente sobre o lugar de onde e a partir de que visão de moralidade o pesquisador parte. A seguir serão apresentados os nove pressupostos filosóficos que ajudarão a compreender e fundamentar a teoria do desenvolvimento moral por níveis e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA estágios de desenvolvimento. i. Importância da não neutralidade das definições de moralidade. Segundo este pressuposto, Kohlberg se afasta de qualquer tipo de relativismo moral, defendendo que existem sistemas de pensamento moral mais válidos que outros e que o avanço de determinado sistema em direção a outro pode ser visto como uma evolução. Kohlberg acredita que um sistema moral considerado mais válido é aquele que melhor satisfaz os critérios de validez propostos, em especial por filósofos de tradição formalista. Ao afirmar que alguns sistemas de pensamento moral podem ser mais desenvolvidos que outros, Kohlberg (1992, p. 279) toma este termo no sentido de “un cambio hacia una mayor diferenciación, integracíon y adaptacíon”, não enquanto atribuição de valor a determinados conteúdos e crenças morais. ii. O pressuposto do fenomenalismo. Kohlberg considera o caráter consciente do raciocínio moral, já no uso da linguagem comum, como critério para se imputar ao agente a valorização moral de seus atos. Para ele, a conduta moral é motivada por juízos e deliberações, apesar de reconhecer que nem sempre um juízo se traduz em ação. Com esse pressuposto ele se contrapõe aos teóricos behavioristas e psicoanalíticos. Para os primeiros o valor de uma ação moral é determinado por suas consequências para o agente e para os outros, sem que sejam consideradas as intenções; para os segundos a essência da moralidade é uma ilusão do inconsciente, o qual forja o sentimento de culpa. Para Kohlberg, o 64 estudo da conduta e do desenvolvimento moral deve levar em conta os motivos e os significados morais que se expressam nas ações. iii. O pressuposto do universalismo. Consiste em aceitar que em condições sociais e culturais adequadas ao desenvolvimento moral, existe uma forma universalmente válida, pela qual o processo de pensamento moral racional poderia ser articulado por todas as pessoas. Os estudos empíricos que realizou junto com seus colaboradores demonstram que as diferentes culturas utilizam normas e elementos morais semelhantes em uma sequência evolutiva estrutural idêntica, com tendência à universalização. Reconhecendo que as ações morais e os costumes variam de uma cultura para outra, Kohlberg (1992, p. 285). supõe que sob essas variações existem formas universais de estabelecer juízos e valorações, e que “el desarrollo de las estructuras del razonamiento de la justicia es um desarrollo universal” PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA Há que se diferenciar dois tipos de relativismos, o relativismo cultural que assevera que os princípios morais são culturalmente mutáveis, posição esta partilhada por Kohlberg, e o relativismo ético que, a partir da primeira constatação, afirma que essas diferenças são logicamente inevitáveis, e têm como consequência a impossibilidade de se encontrar princípios e métodos racionais que possam conciliá-las, cabendo a cada um viver segundo seus próprios princípios e costumes. Em seu entendimento o relativismo ético é inaceitável porque cai na chamada “falácia naturalista” ao cometer uma confusão lógica entre questões de fato e questões de valor, ou seja, confunde “la idea de que ‘cada uno tiene sus propios valores’ y la idea de que ‘cada uno debe de tener sus propios valores’” (KOHLBERG, 1992, p. 283). O erro de raciocínio se dá pela confusão entre o caráter descritivo e factual, fruto de observações e generalizações, da primeira afirmação e o caráter prescritivo da segunda, produto de expectativas e pretensões sobre como a realidade deveria ou poderia ser. iv. O pressuposto do prescritivismo. Significa dizer que os juízos morais possuem, fundamentalmente, a função de dirigir, de obrigar a agir de determinada maneira, embora não sejam simplesmente ordens dirigidas a ações concretas, mas imperativos derivados de determinadas regras ou princípios de ação. O caráter prescritivo dos juízos morais os diferencia dos juízos de fato, considerados descritivos, diferenciação importante para se evitar a citada “falácia naturalista” 65 cometida por muitos relativistas. Um juízo descritivo se refere a fatos, ao “que é”, enquanto o prescritivo aos valores, ao “que deve ser”. v. O pressuposto do cognitivismo. A partir deste pressuposto defende-se a idéia de que os juízos morais, não obstante não sejam descritivos, possuem características cognitivas e são baseados em raciocínios. Neste sentido, a formulação dos juízos morais envolve princípios prescritivos, os quais são justificados e aplicados em reflexões racionais. Kohlberg não nega o papel que determinadas emoções desempenham no raciocínio moral, alerta, entretanto, que não diminuem o caráter cognitivo, de apresentação de razões, que é constitutivo desses juízos. Para ele, os afetos são sempre estruturados por processos cognitivos, tal como o de se colocar no lugar do outro, que pode se manifestar como simpatia por uma vítima ou indignação ante um agressor. O cognitivismo significa que os julgamentos morais se desenvolvem de modo que podem levar a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA formulações de juízos e princípios, a partir de operações cognitivas como a reversibilidade e a equidade. vi. O pressuposto do formalismo. O pressuposto do formalismo parte de uma distinção inicial entre forma e conteúdo dos juízos morais. Neste sentido, o formalismo psicológico de Kohlberg (1992, p. 290) parte de uma concepção filosófica, a saber, de uma ética normativa, segundo a qual “lo correto es solo una cuestión de la forma universal del principio seguido”. O formalismo pode ser considerado uma postura meta-ética que definiria o ponto de vista moral de modo que se possa estar “de acordo racionalmente” sem que se aceite, necessariamente, os conteúdos ou princípios substantivos de determinado pensamento moral. Tomar um ponto de vista moral poderia significar, em sua visão, não ser egoísta, agir por princípios universalizáveis e considerar com equidade o bem de cada um. Neste sentido, cada estágio ou nível de desenvolvimento moral possui determinadas características formais, ou seja, determinadas formas de raciocínio, que podem chegar a conclusões ou juízos favoráveis ou contra ações particulares, não sendo, entretanto racionalmente inconsistentes. vii. O pressuposto da principialidade. O psicólogo norte-americano considera que uma teoria moral de caráter prescritivo e não substantiva deve partir de “um ponto de vista moral”, baseado em alguns princípios. Princípio é definido, não como uma regra substantiva de ação previamente estabelecida, mas como referência para se julgar situações morais particulares, que buscam “alcanzar um 66 equilíbrio reflexivo” (KOHLBERG, 1992, p. 297). Neste sentido em uma moralidade de princípios a escolha não está prescrita por “absolutos”, pois há o entendimento de que o valor implícito no princípio necessita ser interpretado ao se deparar com situações e contextos concretos. Os princípios de justiça, liberdade e igualdade são tomados por ele como referência para se resolver dilemas morais. Seu ponto de vista admite que estes “principios universales que se aplican contextualmente no son por eso arbitrarios, a pesar de circunstancias históricas cambiantes” (Idem, p. 296). viii. O pressuposto do construtivismo. Segundo este pressuposto tanto as regras como os princípios morais não são constitutivos da moralidade, como um conjunto a priori que não poderia aceitar exceções, nem tampouco são elaboradas de forma arbitrária a partir de generalizações empíricas. Devem ser considerados como construções, no mesmo sentido de Piaget em sua teoria do desenvolvimento PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA cognitivo. Neste sentido, os princípios são construídos e reconstruídos por um processo reflexivo que busca alcançar o equilíbrio entre um princípio já estabelecido e situações problemáticas que nos são apresentadas. Se a solução que nos parece mais aceitável para um dilema concreto entra em contradição com nossos princípios, temos a possibilidade de buscar uma solução que esteja em consonância com eles, ou reformulá-los. É segundo um processo de desequilíbrio e acomodação, conforme a terminologia piagetiana do construtivismo cognitivo, que Kohlberg concebe a elaboração dos princípios morais, considerando com Piaget que: las estructuras mentales no son ni biológicas innatas a priori ni hábitos inductivos aprendidos de forma pasiva a partir de experiências sensoriales, sino que son más bien consruciones activas de experiências que se assimilan mientras que se acomodam a ellas (KOHLBERG, 1992, p. 297). ix. O pressuposto de justiça. O pressuposto da justiça como a essência da estrutura da moralidade, possibilita à teoria de Kohlberg coerência e coesão entre os demais pressupostos meta-éticos apresentados. A centralidade da justiça deriva de sua concepção prescritiva dos juízos morais, e de sua preocupação em que possam ser universalizados. A busca pela universalidade implica que se encontre algumas mínimas concepções de valor que possam ser aceitas por todos independentemente de seus distintos objetivos ou ideais de bem. A centralidade da justiça deriva também da opção por uma via cognitiva, racional, da moralidade, 67 posto que juízos de justiça exigem razões e justificativas objetivas para as escolhas. Kohlberg (1992, p. 301) considera a justiça como “la característica más estrutural del juicio moral”, posto que as interações pessoais ideais se estruturam em operações de reciprocidade, igualdade e reversibilidade que são constitutivas da justiça. Neste sentido, a opção pela primazia dos juízos de justiça em sua metodologia cumpre o papel de definir seu campo de investigação e proporciona a operacionalização de níveis de raciocínio moral. Em cada estádio, las operaciones de justicia y sus expresiones elementales se articulan dentro de diferentes perspectivas de justicia. Estas perspectivas de justicia y los constrastes entre ellas son fundamentales em nuestra valoración de la transición evolutiva del estádio (KOHLBERG , 1992, p. 307). A explicitação dos pressupostos que fundamentam filosoficamente as PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA opções que Kohlberg faz em seu estudo sobre o desenvolvimento moral possibilita a compreensão de seus critérios de classificação dos raciocínios morais, bem como sua concepção de uma possível moralidade que possa ser considerada universal, o que não o isenta de possíveis discordâncias e críticas. Ele mesmo reconhece que filósofos e psicólogos podem discordar de sua pressuposição da primazia da justiça na definição do raciocínio moral, ou dos critérios que utiliza para dizer que uma forma de raciocínio moral é mais adequada ou mais racional que outra, a saber, equidade, reversibilidade e universalidade. Sua teoria do desenvolvimento moral situa-se entre as teorias cognitivoevolutivas, as quais se utilizam do conceito de reorganização sequencial ou estágios ligados à idade para compreender o desenvolvimento das atitudes morais. Como uma teoria cognitivo-evolutiva pressupõe ainda que: (1) o julgamento moral tem um componente básico constituído de estruturas cognitivas; (2) a moralidade tem como motivação formas generalizadas de aceitação, competência, auto-estima e auto-compreensão; (3) os aspectos mais importantes do desenvolvimento da moralidade estão presentes em todas as culturas; (4) são as experiências de interação social que dão origem às normas e princípios morais básicos, ou seja, os estágios morais se definem por estruturas interativas entre o eu e os outros; (5) o desenvolvimento moral sofre influências do ambiente, que são 68 definidas, entretanto, pela qualidade e extensão do estímulo social e cognitivo durante o desenvolvimento da criança. O modo como o ambiente influencia o desenvolvimento moral, em uma compreensão cognitivo-evolutiva, difere da visão de outras teorias denominadas de “aprendizagem social” ou de “socialização”, para as quais, em linhas gerais, a moralidade se desenvolve por adaptações e interiorizações das normas e regras sociais vigentes, o que coloca o desenvolvimento moral como culturalmente relativo. Para as teorias cognitivo-evolutivas a criança ou o adolescente não se adapta simplesmente ao ambiente, mas são por ele estimulados e provocados a reorganizar suas estruturas de pensamento ao vivenciar situações de conflito cognitivo. Neste sentido, existem fatores sociais que contribuem para o desenvolvimento das estruturas de raciocínio moral. O primeiro fator a ser PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA destacado pode ser denominado como “oportunidades de troca de papéis”, ou seja, a inserção em ambientes sociais nos quais possa se colocar no lugar dos outros e estar consciente de seus pensamentos e sentimentos. Esta vivência de troca de papéis envolve aspectos cognitivos e afetivos, requer uma relação conscientemente organizada entre o eu e os outros e exige uma maior compreensão da relação entre os diversos papéis sociais dos quais se é parte. Para Kohlberg, as chances de se vivenciar experiências de troca de papéis variam em função das relações em família, com os grupos de amigos, no espaço da escola, ou ainda em estruturas mais amplas da sociedade. Um segundo fator a ser destacado é a “atmosfera moral”, compreendida como a percepção que os membros de determinada instituição (família, escola, orfanato7...) possuem do modo como são tratados os direitos e os deveres fundamentais, e de como é administrada a cooperação social. Nesta compreensão entra a forma como as crianças e adolescentes vêem os comportamentos e ações de seus pares e dos adultos diante de problemas e conflitos morais, ou seja, seu estágio de desenvolvimento moral percebido. Para Kohlberg, se um indivíduo em um determinado estágio percebe que aqueles com quem convive estão em estágios 7 Um de seus estudos comparou a percepção da atmosfera moral das crianças de um orfanato norte-americano e de um kibutz israelense. O estudo constatou que as formas como as crianças israelenses interagiam entre si, e com os adultos, com cooperação e diálogo, poderia ser tomada como explicação para o maior amadurecimento de seu raciocínio moral. 69 inferiores não se sente provocado a avançar, pois tende a rechaçar um raciocínio abaixo de seu próprio. Entretanto, se convive em ambiente com pessoas em estágios à frente, vivencia situações de conflito cognitivo que podem provocar seu crescimento. A possibilidade de vivenciar conflitos cognitivo-morais nas experiências sociais é um terceiro fator que possui grande influência no desenvolvimento moral para sua teoria. O conflito cognitivo pode ocorrer quando se é exposto a situações que provocam contradições internas na estrutura de raciocínio utilizada para a resolução de problemas. Quando a solução encontrada pela estrutura já construída não resolve todas as contradições do dilema presente, ou quando a criança ou o adolescente entra em contato com soluções mais elaboradas, que até então não havia cogitado. Como podemos perceber, o papel e a influência do ambiente no PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA desenvolvimento do raciocínio moral não são desprezados pela teoria cognitivoevolutiva de Kohlberg. O ambiente não se impõe ao indivíduo como uma realidade dada, à qual ele deve se adaptar, mas proporciona e provoca situações que o mobilizam a reorganizar suas estruturas de raciocínio e avançar para um estágio mais avançado, segundo os critérios de justiça. 3.3.2 Níveis e estágios de desenvolvimento moral O desenvolvimento do raciocínio moral se situa em uma sequência mais ampla de desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo, dentro da qual se encontram também o desenvolvimento do raciocínio lógico e da percepção social. Kohlberg (1992) considera os três estágios básicos do desenvolvimento do raciocínio lógico, segundo Piaget (intuitivo, operatório concreto e operatório formal), como condições necessárias, porém não suficientes, para o desenvolvimento do raciocínio moral. Este desenvolvimento depende, igualmente, do nível de percepção social, ou seja, de como o indivíduo vê e interpreta os pensamentos e sentimentos dos outros e o lugar que cada um ocupa na sociedade. Segundo sua teoria cognitivo-evolutiva há uma sequência vertical ascendente a partir dos níveis e estágios mais baixos de desenvolvimento moral rumo ao mais alto, e uma sequência horizontal que se inicia com o raciocínio lógico, passando pela percepção social, pelo raciocínio moral e se encerraria na ação moral. 70 Kohlberg adverte, entretanto, que assim como o raciocínio lógico formal não é suficiente para garantir um raciocínio moral avançado, este último também não é suficiente para a conduta moral. Outros fatores motivacionais entram na determinação do agir. Porém a identificação dos estágios de desenvolvimento morais de sua teorização baseia-se somente no raciocínio moral. A partir de seus estudos Kohlberg estabelece seis estágios morais, os quais se agrupam em três níveis, definidos em função da relação dos indivíduos com as normas, expectativas e acordos da sociedade, ou seja, com as convenções sociais e morais estabelecidas. No primeiro nível, denominado pré-convencional, em que se encontram a maioria das crianças menores de nove anos, alguns adolescentes e muitos adolescentes e adultos que comentem crimes ou contravenções, o indivíduo não compreende as normas e convenções sociais bem como sua importância para o convívio em sociedade e as vêem como algo externo a eles. No PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA nível convencional, no qual se encontra a maioria dos adolescentes e adultos de muitas sociedades, ocorre a conformidade e manutenção da autoridade, das normas e acordos sociais, pelo simples fato de estarem estabelecidos enquanto tais. Ocorre aqui uma identificação entre o “eu” e as regras e expectativas dos outros, em especial das autoridades. No terceiro e mais elevado nível de moralidade, que é alcançado apenas por uma minoria de adultos, o indivíduo, em geral, mantém e compreende as regras e normas sociais e morais, mas esta aceitação está baseada em princípios que as fundamentam. Este nível é denominado pós-convencional, pois o indivíduo se posiciona além da regra, além da convenção social, avaliando e validando-as mais a partir de princípios do que pelo fato de serem acordos já estabelecidos. Os seis estágios, por sua vez foram delineados a partir da aplicação de dilemas morais por Kohlberg e seus colaboradores, os quais fazem referência a três problemas ou aspectos de justiça, já identificados por Aristóteles na “Ética a Nicômaco”. Seus dilemas tratam de problemas referentes à justiça distributiva, ou seja, a forma como são distribuídos os bens desejáveis da comunidade, que se utiliza de operações de igualdade, mérito ou equidade. Tratam também de questões de justiça comutativa, centradas em acordos voluntários e contratos estabelecidos. Um terceiro problema de justiça tratado em alguns dos dilemas se refere à justiça corretiva que administra a restituição ou compensação em função de um direito violado. Por fim, em sua descrição dos estágios, Kohlberg identifica 71 um aspecto da justiça que se aplica aos três anteriores, que é a questão da justiça processual, derivada das preocupações com o equilíbrio das perspectivas, que por sua vez possibilita a verificação da validade do raciocínio moral, pelas operações de reversibilidade e universalidade. Na descrição dos estágios morais, há ainda que considerar as operações de igualdade, equidade, reciprocidade, troca de papéis e universabilidade da justiça, que se desenvolveriam idealmente apenas no sexto e mais maduro estágio de desenvolvimento. A operação de igualdade pode ser definida pelo reconhecimento de que todas as pessoas possuem o mesmo valor moral e tem idêntico direito aos bens e à consideração de seus interesses. A equidade é compreendida como uma distribuição desigual que objetiva compensar uma desigualdade pré-existente à situação atual, através de uma distribuição de bens ou consideração de interesses de forma desproporcional, privilegiando aqueles que anteriormente estavam em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA desvantagem. A reciprocidade é uma operação de justiça que implica igualdade e equidade e considera o justo como o merecido, em função do mérito, da virtude ou do desvio da conduta. Neste sentido, a recompensa ou o castigo devem ser distribuídos em consonância com o grau de bem ou mal de determinada postura. A operação de troca de papéis possibilita que o agente moral leve em conta as perspectivas dos outros, buscando e aceitando a solução para determinado dilema independentemente de sua situação particular. A universabilidade é uma operação que se encontra estreitamente vinculada à igualdade e à equidade, pois se refere ao questionamento sobre a possibilidade de todos poderem considerar como válida ou correta determinada postura ou ação. Estas cinco operações e os quatro problemas ou aspectos da justiça são utilizados como critérios que constituem as descrições dos estágios, juntamente com as perspectivas sócio-morais sobre as normas, ou seja, a postura considerada boa ou aceitável, as razões para se agir corretamente e a percepção social. Neste sentido, cada estágio é descrito a partir da discussão das perspectivas sóciomorais, das operações e dos problemas de justiça. i. Nível pré-convencional – não reconhecimento das convenções sociais. O primeiro estágio do nível pré-convencional, denominado estágio da moralidade heterônoma, é caracterizado por um “realismo moral ingênuo”, o que 72 significa dizer que a bondade ou a maldade de uma ação é vista como inerente a ela, portanto auto-evidente. Os indivíduos deste estágio consideram uma postura aceitável seguir as normas simplesmente por serem normas, assim como não causar danos materiais às pessoas ou propriedades. É o poder de uma autoridade ou a perspectiva de castigo que motiva a obediência. Sua perspectiva em relação à sociedade é egocêntrica, pois não faz relação entre dois ou mais pontos de vista e não leva em consideração os interesses diferentes dos outros. Há ainda uma confusão entre a perspectiva do “eu” e a perspectiva da autoridade. A noção de igualdade é entendida como uma correspondência estrita àqueles considerados de uma mesma categoria, sendo aceita uma distribuição desigual entre pessoas de categorias diferentes. A reciprocidade, por sua vez, é compreendida como troca de bens ou ações concretamente equivalentes, sem levar-se em conta o valor psicológico diferenciado que determinados bens ou PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA ações possam ter para si e para os outros. Em função da natureza egocêntrica e heterônoma do Estágio 1, estão ausentes as operações de equidade e de troca de papéis. Entretanto, a universalidade se apresenta no sentido de que qualquer regra ou norma é generalizada e deve valer para todos, não admitindo exceções, a não ser por parte da autoridade, que é a responsável por sua criação e manutenção. A justiça distributiva é guiada por uma noção de igualdade estrita que não considera diferenças de necessidade ou merecimento, e quando há a intervenção da autoridade, se orienta pela obediência heterônoma. As questões de justiça corretiva são resolvidas na base da retribuição por estrita reciprocidade, sendo o castigo visto como consequência automática da falta cometida, enquanto os problemas que envolvem a justiça comutativa são resolvidos pela obediência às regras, visto que são definidas externamente. A criança nesse estágio considera, por exemplo, que o colega que não realizou cinco exercícios por não ter compreendido o assunto, merece maior punição do que outro que deixou de fazer um, por que estava brincando durante a aula. De modo semelhante, seria mais grave derrubar dez copos de suco, por acidente do que derrubar apenas um intencionalmente. O segundo estágio, também conhecido como estágio da moralidade individualista e instrumental, caracteriza-se por uma perspectiva individualista concreta, que gera uma consciência dos diferentes interesses próprios, os quais podem entrar em conflito. Como consequência se desenvolve um relativismo 73 moral, pois cada um pode apresentar justificativas diferentes para suas reivindicações de justiça, as quais são consideradas igualmente válidas. Posto que o objetivo primordial de cada um seja defender seus próprios interesses, este estágio possui também uma perspectiva pragmática com ênfase em trocas instrumentais, pelas quais os indivíduos podem coordenar suas ações em benefício mútuo. No que se refere às normas, estas devem ser seguidas se respondem às necessidades e interesses próprios. Neste sentido, é uma postura aceitável perseguir seus próprios interesses, admitir que os outros façam o mesmo e cumprir os acordos feitos. Entretanto, um importante limite deste estágio é sua impossibilidade de resolver reivindicações e interesses conflitivos. A operação de igualdade compreende todos os indivíduos na categoria de “pessoas”, que possuem necessidades e desejos e podem satisfazê-los por suas próprias ações ou através do intercâmbio com outros. A reciprocidade se expressa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA por permutas de bens equivalentes em função das necessidades de todos os envolvidos. Neste estágio, as operações de igualdade e reciprocidade estão coordenadas, o que não ocorre no estágio anterior. Surge agora a noção de equidade, porém centrada apenas nas necessidades dos atores, não em suas intenções, o que torna aceitável um tratamento diferenciado, por exemplo, para quem rouba em função da fome. A operação de troca de papéis possibilita um equilíbrio no sentido do reconhecimento das diferentes necessidades dos indivíduos, porém não avança na compreensão dos conflitos entre as diferentes perspectivas. A universabilidade, por sua vez, é utilizada para impedir que as normas sejam burladas em função dos interesses de alguns, porque ao se permitir uma exceção abrem-se precedentes para muitos outros, o que colocaria em questão a própria validade da norma. As questões de justiça distributiva requerem, em sua resolução, a coordenação entre as operações de igualdade e reciprocidade de modo que as demandas das situações concretas e os interesses dos envolvidos sejam considerados. Contam ainda com a equidade ao considerar, em circunstâncias especiais, algumas necessidades ou intenções individuais. Estas, de modo semelhante, servem de referência para a justiça corretiva, o que pode significar o início do reconhecimento de que a violação de uma regra pode ser aceita, a partir do contato com o ponto de vista do outro. A justiça comutativa, por sua vez, é baseada no intercâmbio instrumental de interesses e necessidades dos indivíduos, 74 de modo que é importante cumprir as regras e manter as promessas para que os outros façam o mesmo ou para se evitar conflitos. Pode-se tomar como exemplo de raciocínio desse estágio, as justificativas dos estudantes para a prática de “tirar cola”, quando alegam que não tiveram tempo para estudar, e que por isso o professor deveria fingir que não vê, ou então relevar, pois já foi aluno um dia. Eles não defendem que a prática da cola é correta, mas, argumentam que abrir uma exceção, em alguns momentos, não é tão errado assim. ii. Nível convencional – identificação e reconhecimento das convenções sociais. Este nível se inicia com o estágio da moralidade das regras interpessoais, no qual ocorre uma coordenação entre as diferentes perspectivas dos indivíduos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA por uma perspectiva das relações de confiança mútua entre pessoas, que se expressa em um conjunto de normas e expectativas, as quais supostamente orientam suas vidas. Neste terceiro estágio, há uma preferência pelos interesses e sentimentos partilhados em relação aos individuais. Entretanto não se considera a perspectiva de um sistema de forma generalizada. As regras devem ser cumpridas em função da aprovação social, ou seja, para manter-se reconhecido e estimado como uma boa pessoa perante si e aos demais. Neste sentido, são valorizadas as relações de gratidão, lealdade e confiança, bem como o princípio de fazer aos outros o que se gostaria que fizessem a si (Regra de Ouro8). As regras cumprem ainda, o papel de manter as relações e os cuidados recíprocos entre os membros do grupo. A reciprocidade é compreendida a partir das idéias de obrigação, dívida e gratidão, indo além da noção de trocas concretas do estágio anterior. O recíproco compreende expectativas e sentimentos mútuos de gratidão ou dívida, quando se recebe um bem ou um valor que não se pode retribuir concretamente. A operação de igualdade provoca a construção de uma categoria de pessoas que devem se tratar da mesma forma, como pessoas bem intencionadas. Já a equidade possibilita 8 A Regra de Ouro é considerada uma orientação moral que tem recebido diferentes formulações desde a antiguidade, dentre as quais destaco: “Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei também vós a eles” (Jesus Cristo) e “Não façais aos outros aquilo que não quereis que vos façam” (Confúcio). 75 que sejam abertas exceções de alguns desvios pelo reconhecimento de circunstâncias atenuantes ou pela compreensão das boas intenções. No estágio 3, as operações de reciprocidade, igualdade e equidade se unem e se coordenam em uma troca de papéis, ou equilíbrio de perspectivas, iniciando-se agora a utilização da Regra de Ouro segundo a qual, só pode ser considerado bom ou justo por um ponto de vista individual, se este puder também aceitá-lo como tal a partir do ponto de vista de outra pessoa. A universabilidade se expressa com o objetivo de limitar o não cumprimento das regras e normas, o que poderia interferir nas ações e intenções das pessoas moralmente motivadas. As questões de justiça distributiva são resolvidas pelo uso coordenado das operações de igualdade, reciprocidade e equidade que têm como referência normas e motivações partilhadas, ou seja, considerando as pessoas segundo suas intenções e méritos. Do mesmo modo, a justiça corretiva insiste em tomar como PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA referência os motivos e intenções da possível transgressão, que deverá determinar ou não a necessidade de uma retribuição ou punição. Por seu lado, a justiça comutativa requer uma modificação da compreensão da reciprocidade, de modo que em condições desiguais de compreensão ou acesso a informações, os acordos vistos como aparentemente justos, por contar com a concordância das partes, possam ser julgados injustos, caso se constate que uma dos interessados estava em desvantagem no momento do acordo. No quarto estágio, também denominado estágio da moralidade do sistema social, a perspectiva sócio-moral é a de um cidadão generalizado e se baseia no entendimento de que a sociedade é constituída por um conjunto consistente de códigos e procedimentos que devem se aplicados a todos de forma imparcial. Neste sentido, a defesa dos interesses pessoais só é legítima se não entra em conflito com o sistema social e moral em sua totalidade, o qual tem a função de mediar os conflitos de interesse e “promover o bem comum”. No estágio 4 se espera que cada um cumpra as obrigações com as quais tenha se comprometido e contribua com as instituições e com a sociedade como um todo. Do mesmo modo, a motivação para o cumprimento das regras e normas é a manutenção do bom funcionamento das instituições. A igualdade é compreendida na relação das pessoas com a lei, de modo que cada um é visto como um cidadão possuidor de direitos e obrigações, que são definidos pelo conjunto da sociedade. Operar com equidade neste estágio significa 76 a possibilidade de se abrir exceções à aplicação de alguma lei ou norma ao se considerar que os critérios da lei podem não ser sensíveis o suficiente pra se levar em conta circunstâncias especiais. Entretanto, diferentemente do Estágio 3, é o próprio sistema, pelo questionamento aos critérios da lei, que reconhece a necessidade da exceção. No que se refere à reciprocidade, esta é compreendida como um dever, uma obrigação ou mesmo uma dívida com a sociedade em função dos benefícios que se recebe ao se viver como um membro da coletividade. Na operação de troca de papéis, por sua vez, há um equilíbrio entre as ações individuais e os padrões da sociedade, de modo que ao se burlar uma norma ou regra, mesmo que por uma “boa causa”, há que se compreender a censura ou punição da sociedade. Por outro lado, a universabilidade garante que a leis e normas mantenham sua integridade, posto que se os cidadãos acreditarem que podem deixar de cumpri-las por alguma discordância particular, deixarão de ter PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA validade enquanto lei. Neste estágio, os problemas de justiça distributiva são solucionados a partir dos critérios de imparcialidade, respeito às instituições sociais e considerações de mérito social. Considera-se, geralmente, que o direito à propriedade deva ser respeitado em função do reconhecimento do esforço despendido em sua conquista. Entretanto, este direito pode ser relativizado em virtude da responsabilidade social. A justiça corretiva também se centra na idéia de imparcialidade da lei, a qual é vista como protetora da sociedade ao dissuadir as ameaças a ela ou determinando como aqueles que a “ofendam” paguem sua dívida. A imparcialidade tem o objetivo de garantir consistência na aplicação da lei, evitando que aqueles que devem aplicá-la tomem decisões totalmente subjetivas. Por sua vez, a justiça comutativa fundamenta-se no reconhecimento da importância dos contratos acordados que garantem o tranquilo funcionamento da sociedade e do valor de se manter o caráter e a integridade moral de todos. Os raciocínios morais deste estágio consideram uma ação moralmente aceitável, por exemplo, cometer um pequeno delito, se for para ajudar alguém que necessita, e receber as devidas sanções ou punições, em função da ilegalidade do ato. Neste caso, mesmo burlando a lei, ao receber a punição, sua força e legitimidade não são questionadas. 77 iii. Nível pós-convencional – consideração das convenções sociais a partir de princípios O nível pós-convencional se inicia com o quinto estágio, compreendido como o estágio da moralidade dos direitos humanos e do bem estar social, cuja perspectiva sócio-moral é a perspectiva de um agente moral racional que possui consciência de seus valores e direitos, os quais são universalizáveis, e funcionam como critérios de validação das leis e sistemas sociais. O indivíduo se coloca em uma posição anterior à sociedade, não em uma perspectiva de mantê-la, mas de criar um sistema social ideal, baseado na cooperação e nos acordos recíprocos, focados primordialmente nos direitos humanos e no bem estar social. Há a consciência de que existe uma variedade de valores e opiniões que são relativos ao próprio grupo social. Entretanto, há o reconhecimento de que alguns valores e direitos deveriam ser aceitos e mantidos em quaisquer sociedades, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA independentemente da diversidade de opiniões, a saber: o valor da vida e da liberdade. A obrigatoriedade do respeito às leis e normas se fundamenta em sua função de manter e defender os direitos e o bem estar de todos, no reconhecimento de que foram criadas por um contrato social baseado em um cálculo racional do “maior bem possível para um maior número de pessoas”, segundo, portanto, princípios éticos utilitaristas. A igualdade é compreendida a partir do reconhecimento dos mesmos direitos fundamentais (direito à vida e à liberdade) e do igual valor dos indivíduos. Neste estágio, as operações de equidade reafirmam os interesses da igualdade quando as leis e normas são insensíveis aos direitos humanos básicos, e diferentemente dos estágios anteriores, não são as leis normas que fundamentam o valor da vida e da liberdade, mas são estas noções que servem de pressupostos para os raciocínios que fundamentam aquelas. A reciprocidade se baseia na idéia de contratos livremente efetuados entre os indivíduos, o que proporciona o intercâmbio de equivalentes concretos ou simbólicos. A operação de troca de papéis, por sua vez, sublinha a necessidade de se levar em conta os pontos de vista e interesses de todos os envolvidos, de modo que cada um tenha a mesma oportunidade de contribuir e receber os benefícios da sociedade. A universabilidade se expressa, no Estágio 5, a partir da afirmação do valor universal da vida e da liberdade humana, que devem ser assim considerados por todos aqueles que vivem em sociedade. 78 As questões de justiça distributiva neste estágio levam em conta o respeito aos direitos humanos fundamentais e a racionalização hierárquica dos direitos e valores que envolvem um processo de cooperação e acordo social. Do mesmo modo os direitos fundamentais e o bem estar social possuem centralidade na resolução dos problemas de justiça corretiva que rechaça as noções retributivas do castigo. Há uma estreita ligação entre a justiça corretiva e a processual, com ênfase na preocupação com um processo legal e justo e abre-se a possibilidade de uma orientação para a mudança social efetiva através da prudência do juiz na interpretação da lei. Coerentemente a justiça comutativa centra-se no contrato, baseado no respeito aos direitos das partes em acordo, como base para as relações humanas. A obrigação de se manter e respeitar o contrato se fundamenta no próprio direito de todos como indivíduos que possuem dignidade e valor intrínseco como pessoas, valores estes que seriam violados pelo rompimento dos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA acordos livremente efetuados. Raciocínios do quinto estágio subordinam o valor da propriedade aos valores da liberdade e da vida humana. Neste sentido seria moralmente aceitável, por exemplo, a desapropriação de bens de indivíduos que não dependem deles para sua sobrevivência, quando sua posse limita o direito a uma vida em condições dignas ou a liberdade de outros. O sexto e último estágio do desenvolvimento do raciocínio moral é o estágio da moralidade de princípios éticos gerais, universalizáveis, reversíveis e prescritivos. Sua perspectiva sócio-moral é a do “ponto de vista moral”, um ponto de vista ideal a partir do qual todos os seres humanos deveriam compreender os outros como pessoas livres e autônomas. Esta perspectiva considera os interesses e interpretações de todos os afetados pelas decisões morais a serem tomadas e, para tanto, se submete a procedimentos que asseguram a justiça, a imparcialidade ou a reversibilidade em uma operação de troca de papéis. Algumas formalizações desses procedimentos foram elaboradas por importantes teorias filosóficas, entre as quais merecem destaque “a postura original sob o véu da ignorância” de RAWLS (2002), e a “situação de comunicação ideal” de HABERMAS (2003, 2004), e se manifestam nas declarações de igualdade e dignidade de todo ser humano como fins em si mesmos, no uso do critério da universabilidade e na utilização de um ou mais princípios gerais na tomada de decisões. Estes princípios distinguem-se tanto das regras como dos direitos por serem prescrições positivas e 79 por se aplicarem a todas as pessoas e situações, como é o caso do princípio da justiça ou respeito pela dignidade humana e do princípio da maximização do bem estar de todos os indivíduos. A ação moral, portanto, fundamenta-se em princípios éticos universais auto-escolhidos, que garantem a validade das leis particulares e acordos sociais, os quais devem ser abandonados ou revistos caso violem ou entrem em contradição com alguns dos princípios gerais. A pena de morte, que faz parte do código penal de alguns países, por exemplo, deveria ser revogada em função de estar em flagrante contradição com o princípio do respeito pela dignidade humana. Neste estágio, as operações de justiça formam um todo coordenado e constituem-se em princípios autoconscientes de decisões morais. Como consequência as operações de troca de papéis e de universabilidade além de garantirem a validez das razões que fundamentam as leis ou normas morais, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA tornam-se princípios operativos que asseguram a perspectiva da justiça nos raciocínios sobre dilemas morais. Enquanto o Estágio 5 se baseia na noção de contrato estabelecido, o Estágio 6 se orienta em direção aos processos pelos quais os acordos são alcançados, assim como à garantia da justiça dos procedimentos que subjazem a tais acordos, com ênfase na importância de se manter a confiança e unidade social, as quais são pré-condições para o diálogo e para o respeito aos direitos humanos. A justiça distributiva utiliza-se, além da operação de igualdade, a equidade, que se baseia no reconhecimento das necessidades dos menos privilegiados, em detrimento da referência a prêmios por talento ou méritos, os quais são considerados como resultado de diferenças genéticas ou de oportunidades sociais, ambas moralmente arbitrárias. A justiça corretiva não possui um caráter retributivo, já que a sanção, seja pela privação de liberdade ou pela restituição, é considerada necessária para a proteção do bem estar das reais ou possíveis vítimas do delito. Neste sentido, aquele que comete um crime ou infração é reconhecido como um ser humano que possui dignidade e como tal, não pode ser submetido a sofrimentos como forma de pagamento por uma imoralidade ou falta cometida. Por fim, a justiça comutativa está baseada no reconhecimento da confiança e do respeito mútuo como fundamentos para promessas, que por sua vez são as bases para os contratos. Pela promessa se afirma uma relação moral entre as partes, o que significa que só se deve descumprir ou modificar o 80 prometido caso se mantenha a relação de respeito mútuo, quando todos os envolvidos no acordo poderiam, pela operação de troca de papéis reversível, estar de acordo com tal rompimento. A teoria dos estágios do desenvolvimento moral deve ser vista como uma tentativa de reconstrução racional da ontogênese dos raciocínios morais a partir dos critérios de justiça. Em cada estágio os dilemas morais são resolvidos com um maior grau de generalidade e universalização desses critérios, sendo que o sexto e último estágio é uma construção teórica, que segundo Kohlberg (1992, p. 272), mesmo que não se encontre evidências empíricas de sua existência, deve ser mantido como um “estádio final para definir la naturaleza y punto final de la classe de desarrollo que estamos estudiando”. Sua teoria tem sido reconhecida como uma importante perspectiva cognitivo-estrutural, entre outras razões, por considerar vários aspectos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA psicológicos e filosóficos e basear-se em dados empíricos colhidos em diferentes culturas, o que de certo modo atenua o risco de uma postura etnocêntrica em sua interpretação. Entretanto, foram muitas as críticas feitas desde sua divulgação. Muitas contribuíram para seu aperfeiçoamento e outras para que se explicitassem com mais clareza alguns aspectos que, segundo Kohlberg e seus colaboradores, não foram bem compreendidos. Dentre as críticas recebidas, três merecem destaque para esta pesquisa: (1) os questionamentos sobre a reivindicação de universalidade da teoria a partir de pressupostos empíricos de um relativismo cultural (SIMPSON, 1974; SULLIVAN, 1977; SHEWEDER, 1982); (2) as objeções à definição dos estágios em termos de raciocínio ou conhecimento moral e consequente abandono dos fatores emocionais e motivacionais (GILLIGAN e MURPHY, 1979; MURPHY e GUILLIGAN, 1980); (3) o destaque que o ideal de maturação moral dá às ideias de justiça e à consideração pelos direitos individuais, ignorando o conceito de comunidade ideal que comporta a noções de cuidado e responsabilidade com os outros (GILLIGAN, 1985, 1987). Esta última, em função da abordagem aqui proposta, será objeto de uma análise mais detalhada. 81 3.4 A crítica de Carol Gilligan A psicóloga norte-americana Carol Gilligan, nascida em 1936, doutorou-se em psicologia social pela Universidade de Harvard em 1964. Começou a lecionar na mesma universidade em 1967, tornando-se, no início dos anos 1970 assistente de pesquisa de Kohlberg. Em 1982 publica “In a different voice: psychological theory and women’s development”, sua obra mais conhecida, na qual apresenta suas críticas à teoria kohlbergiana. Gilligan é militante da causa feminista e atualmente é professora da Universidade de Nova York, e professora visitante na Universidade de Cambridge. Gilligan (1997) dirige sua crítica à ênfase que Kohlberg da à justiça em sua teoria e introduz o cuidado e a responsabilidade como referência para se PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA compreender o desenvolvimento da moralidade. Em sua crítica, ela assinala que para a descrição de seus seis estágios, Kohlberg baseou-se empiricamente em estudos feitos exclusivamente com homens, desconsiderando a visão feminina. Desse modo, os estágios mais adiantados de perspectiva moral são definidos a partir da visão masculina, pela qual as relações se subordinam a regras e princípios universais de justiça. Consequentemente, ao realizarem julgamentos morais a partir do critério do cuidado com os outros e do interesse em se manter as relações interpessoais, as mulheres são avaliadas pela escala de Kohlberg no Estágio 3, que considera como base para a ação moral o desejo de agradar ou obter o reconhecimento dos outros. Gilligan leva em conta a experiência das mulheres e elabora uma estrutura de desenvolvimento e uma concepção de moralidade diversa da descrita por Kohlberg (como também por Freud e Piaget). Para ela, os problemas morais surgem menos de direitos em disputa do que de responsabilidades conflitantes e exige um modo de pensar mais contextual do que abstrato. Segundo sua concepção, o insucesso das mulheres em seu desenvolvimento dentro dos limites do sistema de Kohlberg, deve-se à diferente estruturação que fazem do problema moral. Este conceito de moralidade em ligação com a atividade relativa à preocupação com os outros, centra o desenvolvimento moral na compreensão das responsabilidades e dos relacionamentos, tal como o conceito de moralidade em 82 ligação com a justiça vê o desenvolvimento moral apoiado na compreensão dos direitos e das regras (GILLIGAN, 1997, p.36-37). Na visão de Gilligan, a tendência dos estudiosos do desenvolvimento de tomarem como referência para suas pesquisas a experiência masculina tem sua origem em Freud, que edificou sua teoria do amadurecimento psico-sexual, e teve como culminância a elaboração do conceito de “complexo de Édipo” a partir da vivência de crianças do sexo masculino. Após tentativas frustradas de ajustar a mulher à sua concepção de homem, Freud foi obrigado a reconhecer diferenças no desenvolvimento feminino, cuja consciência considera menos impessoal e mais dependente das emoções do que o pensamento masculino. Como consequência, para ele, segundo Gilligan, as mulheres demonstram um sentido de justiça menor e são mais propícias a serem influenciadas por sentimentos em seus juízos do que os homens. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA Gilligan aponta que, também Piaget, em seu estudo sobre as regras dos jogos infantis, considera que os rapazes ao deixarem a infância com maior propensão à elaboração legal de regras e à resolução de conflitos por critérios de justiça, são mais desenvolvidos que as moças, já que estas, segundo ele, possuem uma atitude mais flexível, condescendente, mais preocupadas com as relações. Para a psicóloga norte-americana, Kohlberg também se mantém no mesmo caminho ao eleger a moralidade dos direitos (justiça) como uma moralidade pósconvencional, portanto mais amadurecida, classificando a moralidade da responsabilidade (cuidado) como convencional, por conseguinte mais imatura moralmente. Gilligan argumenta que a suposta inferioridade moral da mulher, que se manifesta em sua resistência em elaborar juízos concisos, pode ser resultado de sua sensibilidade para com as necessidades e pontos de vista dos outros, para com sua preocupação em manter a coesão das relações humanas. Por outro lado, a maturidade, segundo as teorias que privilegiam a experiência masculina, é intrinsecamente vinculada à autonomia pessoal, sendo considerado como uma fraqueza feminina e indício de dependência, o interesse em manter os relacionamentos. Essa visão aparece de forma mais explícita nos estereótipos de masculinidade e feminilidade, que sugerem que o pensamento autônomo e a capacidade para decidir com clareza e agir com firmeza são qualidades masculinas 83 e indesejáveis para as mulheres. Entretanto, olhando por outra perspectiva, tais estereótipos refletem um conceito de idade adulta que é, ela própria, desajustada, valorizando a separação do ser individual em detrimento da relação com os outros e inclinando-se mais para uma vida autônoma de trabalho do que para a interdependência com o amor e o carinho (GILLIGAN, 1997, p. 34). Gilligan assevera que, ao basear-se nas experiências masculinas para explicar o desenvolvimento da moralidade, a teoria de Kohlberg tem dificuldade de ajustar sua lógica à experiência das mulheres, que segundo ela, interpretam os problemas morais priorizando as relações em detrimento das questões de justiça. Desse modo, surge um problema de interpretação que obscurece a compreensão do desenvolvimento feminino, o qual está marcado por uma concepção característica das relações humanas. Para ela, a inclusão do ponto de vista feminino na interpretação da resolução de problemas morais, pode demonstrar que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA diferentes soluções podem significar não apenas diferentes níveis de maturidade moral, mas o mesmo amadurecimento, ainda quando apresentam discordâncias em suas conclusões. Comparando as análises do julgamento moral de um menino e de uma menina de 11 anos, ambas feitas a partir das categorias da teoria de Kohlberg, Gilligan constata que a linha e a lógica do pensamento do garoto são exaltadas, enquanto o raciocínio da menina é menos valorizado. A pesquisadora esclarece que ambas as crianças estavam no mesmo ano de escolaridade e possuíam elevado nível de inteligência, educação e classe social, e foram escolhidas de uma amostragem que tinha como objetivo realçar as variáveis de gênero e idade. A análise do julgamento moral das crianças foi feita a partir da resolução de um dos dilemas clássicos de Kohlberg, o Dilema de Heinz, segundo o qual o protagonista está em conflito consigo mesmo e precisa decidir se deve ou não roubar um medicamento para salvar a vida da esposa, já que o farmacêutico cobra um valor muito acima de suas condições de pagar. A ambas as crianças é perguntado se Heinz deve roubar o medicamento e suas respostas são classificadas segundo as categorias de Kohlberg. A resposta do garoto, que afirma que Heinz deveria roubar o medicamento, reconstrói o dilema, segundo Gilligan, do modo como o foi por Kohlberg, expressando um conflito entre os valores da propriedade e da vida. Ao ser questionado sobre o fato do roubo ser uma infração à lei, ele responde que as 84 leis podem estar erradas, e que não há lei para todas as situações imagináveis. A visão do garoto, pela a qual o protagonista do dilema deveria praticar o roubo e a lei pode estar errada, baseia-se, segundo a avaliação de Gilligan, na convicção de que há um acordo ou consenso entre as pessoas sobre o que é certo de se fazer. Para ele o dilema deve ser resolvido como uma equação matemática, em que o valor da propriedade e o valor da vida são as variáveis. Ao colocar o valor da vida acima da propriedade o problema é resolvido de forma lógica e racional, e desse modo deduz que qualquer pessoa deveria chegar à mesma conclusão ao se guiar pela razão. Ao ser utilizada a escala de Kohlberg, os juízos desse garoto de 11 anos são classificados como convencionais, situando-se entre os estágios 3 e 4. A menina, por sua vez, ao ser perguntada se Heinz deveria ou não roubar o medicamento, pareceu aos entrevistadores evasiva e insegura, argumentando que poderiam existir outras maneiras para resolver o problema que não fosse o roubo e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA sugerindo a busca por um empréstimo. Em sua opinião, ele não deveria roubar, mas ao mesmo tempo não poderia deixar a mulher morrer. A justificativa que apresenta para Heinz não praticar o roubo se centra no efeito que o roubo pode ter na relação entre o protagonista e a esposa, pois ele poderia ir para a cadeia e de lá não poderia ajudá-la caso ela precisasse dele novamente. Seu raciocínio desconsidera as regras de propriedade e a lei. Na interpretação de Gilligan (1997, p. 51), a menina não vê no dilema um problema “de matemática com seres humanos, mas sim a descrição de relações que se alongam no tempo, (...) a continuação da necessidade que a mulher tem do marido e a continuação da preocupação do marido no que diz respeito à mulher”. Ao mesmo tempo, a menina busca uma maneira de manter o relacionamento com o farmacêutico, que se interromperia com o roubo, e considera que o problema não está no reconhecimento ou não do direito de propriedade deste, em contraponto com o direito à vida da mulher, mas em sua incapacidade em reconhecer que, nas palavras da menina, “se alguém possui alguma coisa que pode conservar a vida de outro ser, não está certo que não lho dê” (Idem, p. 52). Para ela, se o farmacêutico compreendesse as consequências de sua postura, ele e Heinz poderiam se entender e a esposa seria salva sem a necessidade do roubo. Pela sequência do desenvolvimento moral de Kohlberg, os julgamentos da menina aparentam estar na transição entre os níveis pré-convencional e convencional, com elementos dos estágios 2 e 3 de maturidade moral. Suas 85 respostas são interpretadas como uma incapacidade para pensar de forma lógica e sistemática os conceitos de moralidade e de lei, e como receio de se contestar a autoridade e as verdades morais estabelecidas. Entretanto, para Gilligan, há um paralelo entre os julgamentos e argumentações das duas crianças. Do modo como o menino confia que qualquer um concordaria que roubar é o que Heinz deve fazer, ela acredita na possibilidade de um acordo entre ele e o farmacêutico; assim como o garoto considera a possibilidade de erros na lei, ela vê o próprio dilema como um erro nas relações pessoais, carentes de partilha e solidariedade. Embora o acordo seja considerado necessário por ambos, é visto pela garota como fruto de um processo pessoal, pela comunicação interna às relações, e por ele de forma impessoal, pela lógica e pelas leis. Para Gilligan, ao passo que as hipóteses do garoto são confirmadas por sua consonância entre suas respostas e as questões formuladas a partir das préPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA concepções da teoria de Kohlberg, as saídas propostas pela garota são equivocadamente consideradas como indicativas de um estágio menos amadurecido de desenvolvimento moral. Os juízos da menina possuem, pela perspectiva de Gilligan (1997), o essencial de uma “ética do cuidado”, do mesmo modo que os juízos do garoto expressam a lógica de uma “ética da justiça”. A menina vê os protagonistas do dilema como membros de uma rede de relações da qual dependem, e não como opositores em uma disputa por direitos. Em decorrência dessa compreensão a solução que encontra apóia-se no processo de comunicação, que deve incluir tanto o farmacêutico como a esposa e fortalecer as ligações ao invés de rompê-las. A lógica de sua resposta aponta para a concepção da própria entrevista, que ao ser revista expõe que as respostas da garota não são compreendidas porque ela responde uma pergunta diferente da que está sendo feita pelo entrevistador. Ao responder que Heinz não deveria roubar o medicamento, ela não quer dizer que ele não deveria agir, mas que deve buscar outra solução. Todavia, a pergunta feita supõe haver somente uma: roubar o medicamento. Para Gilligan o que aparenta ser uma fuga do dilema, significa a identificação do problema por outro ponto de vista e o intento de construir uma solução mais apropriada. Acrescentando uma nova linha de interpretação baseada no imaginário do pensamento da rapariga, torna-se possível não só ver o desenvolvimento onde antes não era sequer apercebido, mas também ter em consideração diferenças na 86 compreensão dos relacionamentos sem graduar essas diferenças entre melhor e pior (GILLIGAN, 1997, p. 46). Diferentemente de Kohlberg, que distingue seus três níveis de desenvolvimento moral, o pré-convencional, o convencional e o pós-convencional tendo como referência o modo como as convenções e normas sócio-morais são compreendidas, Gilligan propõe, a partir de análises das respostas de mulheres a dilemas morais sobre o aborto, outra referência e outra classificação de níveis de desenvolvimento que não se definem pela compreensão e relação com as convenções e normas, mas a partir da relação entre a preocupação consigo mesma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA e com os outros. Para ela, o modo como as mulheres elaboram o problema moral, mais como um problema de preocupação com os outros e de responsabilidade nas relações do que como um problema de direitos e regras, liga o desenvolvimento do seu pensamento moral a mudanças no seu entendimento de responsabilidade e relacionamento, tal como os conceitos de moralidade, como justiça, ligam o desenvolvimento à lógica da igualdade e da reciprocidade. Logo, a lógica subjacente a uma ética da preocupação com os outros é uma lógica psicológica das relações, em contraste com a lógica formal de honestidade que é uma lógica de regras de justiça (GILLIGAN, 1997, p.119). Gilligan postula que também há uma sequência no desenvolvimento da “ética da preocupação com os outros” que se inicia com uma postura egocêntrica, que ela designa “preocupação com o próprio eu”. Após a superação dessa fase egocêntrica, os outros aparecem como aqueles que merecem os cuidados das mulheres, que excluem a si próprias de suas preocupações. É a fase do “cuidado com os outros”, nível de desenvolvimento do raciocínio moral em que a o autosacrifício é valorizado como o ideal de virtude feminina. A terceira perspectiva se dá com a superação do conflito e do desequilíbrio entre o auto-sacrifício em função dos outros e o egocentrismo, e coloca a ênfase na dinâmica das relações superando a tensão entre o egoísmo da preocupação exclusiva consigo mesma e a restrita preocupação com os outros, dando origem a uma nova forma de compreender as relações como uma “interconexão do eu com o outro”. Gilligan considera que o desenvolvimento de uma ética do cuidado é fruto de uma progressiva e mais adequada compreensão da relação de interdependência entre o eu e o outro. As ponderações que Gilligan apresenta em sua crítica ao processo de construção e alguns dos elementos da teoria do desenvolvimento de Kohlberg não 87 podem deixar de ser consideradas, pois chama a atenção para possíveis e importantes diferenças de raciocínio e da visão de moralidade entre diferentes identidades, no caso estudado, a diferença de gênero. Uma teoria que privilegie uma dessas maneiras de pensar e de se posicionar frente aos problemas morais, em detrimento da outra deve ser questionada e revista. Ao apresentar a preocupação com a manutenção das relações e o cuidado com os outros como uma perspectiva de uma moralidade feminina que difere da perspectiva dos direitos e da justiça, considerada masculina, e formular outros critérios para se avaliar o desenvolvimento do raciocínio moral, em momento algum de sua argumentação, Gilligan afirma que as duas perspectivas são excludentes. No entanto, ela questiona algumas classificações de raciocínios morais considerados menos amadurecidos e oferece novas perspectivas de enxergar a moralidade. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA Entretanto, há que se considerar que, como a própria autora reconhece (GILLIGAN, 1997, p. 199), seus dados “foram colhidos num momento particular da história, a amostragem foi pequena e as mulheres não foram selecionadas para representarem uma população maior”, o que limita a generalização. Ela reconhece, igualmente, a necessidade de aprofundar os estudos para que a sequência de desenvolvimento que descreve seja validada. Para Biaggio (2002), alguns pesquisadores que se dedicaram a investigar a presença de diferenças de gênero nas avaliações de Kohlberg, entre eles Walker em 1984, Biaggio e Viñas em 1992 e Dallegrave em 1999, não encontraram evidências que as comprove. Segundo Eckensberger (1996, apud. BIAGGIO, 2002), estudos feitos em Israel, entre 1970 e 1980, demonstram estágios de desenvolvimento mais amadurecidos em meninas do que em meninos. Biaggio (2002, p. 85) afirma que o apoio à hipótese de Gilligan foi parcial e acrescenta que “uma interação entre orientação moral e tipo de dilema foi encontrada, com dilemas pessoais eliciando mais combinação de cuidado com justiça, e dilemas impessoais mais orientação para a justiça”. Ao responder às críticas de Gilligan, Kohlberg (1992) concorda que sua teoria reflete uma maior compreensão do desenvolvimento da personalidade masculina do que da feminina e que sua pesquisa inicial partiu da concepção piagetiana da moralidade como justiça e do conceito de autonomia como ideal do desenvolvimento moral. Concorda também que a maior parte de seu trabalho foi 88 baseada nas análises longitudinais (entrevistas com os mesmos indivíduos através dos anos) dos dados de sua primeira amostra composta apenas de homens. Entretanto discorda da hipótese segundo a qual há uma tendência sexista em sua teoria e avaliações, argumentando que: nunca afirmé de forma directa que los hombres tengan un sentido de la justicia más desarrollado que las mujeres. (...) sugerí que las mujeres jóvenes y adultas podrían estar menos desarrolladas que los hombres en la secuencia de estadio de la justicia, por las mismas razones que los hombres de clase trabajadora estaban menos desarrollados que los hombres de clase media (KOHLBERG, 1992, p. 330). Embora pondere que o reconhecimento de uma orientação moral de cuidado e responsabilidade tem muito a contribuir com o campo moral, Kohlberg não a considera conflitante com a orientação de justiça. Em sua concepção, as perspectivas de justiça e de cuidado são utilizadas de forma entrelaçada na busca PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA de soluções para os problemas morais e não há diferenças significativas entre as experiências que promovem o desenvolvimento dos raciocínios de justiça e as que proporcionam o desenvolvimento da responsabilidade e cuidado com os outros. A orientação para o cuidado e responsabilidade com os outros, defendida por Gilligan como referência para o desenvolvimento da moralidade, poderia ser interpretada no mesmo sentido das ações “supererrogatórias”, que segundo Habermas (2004), são consideradas boas e corretas, mas não podem ser igualmente exigidas de todos, e sim decididas em função de motivações individuais. De modo semelhante, a relação entre as perspectivas do cuidado e da justiça poderia, igualmente, ser compreendida com a relação entre os mínimos e máximos éticos (CORTINA, 2005, 2008 e ANDRADE, 2009), sendo as orientações de justiça interpretadas como os mínimos éticos, sem os quais não é possível considerar a moralidade de uma ação, e a preocupação e cuidado com os outros conforme máximos éticos, que podem ser esperados e desejados, entretanto isentos do caráter de obrigatoriedade. O objetivo de apresentar em mais detalhes a crítica de Gilligan, não desconsidera as demais ressalvas que a teoria do desenvolvimento de Kohlberg tem recebido, muito menos as revisões e atualizações feitas por ele e seus colaboradores, como também realizadas por alguns de seus “discípulos” após sua morte. O destaque dado a sua crítica se deve a sua relação com a temática do 89 preconceito e discriminação de gênero e ao seu questionamento à pretensão de universalidade da teoria kohlberguiana, temas importantes para esta pesquisa. Essa pretensão é também partilhada por Habermas, e criticada pelos relativistas éticos. Neste sentido, a filosofia moral habermasiana e a teoria do desenvolvimento de Kohlberg, ao partilharem pressupostos comuns, são, de certo modo, alvo das mesmas críticas que não devem ser desconsideradas em um estudo que se orienta por suas idéias, mas que dirige seu olhar para a empiria. Por fim, é importante enfatizar que não é intenção, ao apresentar as teorias que orientam esta pesquisa e algumas críticas que a eles são feitas, deixar em aberto o referencial em que se baseia o presente estudo, nem tampouco desconsiderar as observações e ressalvas dos críticos. A presente pesquisa se orienta teoricamente pelos referenciais da ética do discurso de Habermas e pela teoria do desenvolvimento moral de Kohlberg. Entretanto, as contribuições de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA seus críticos também serão levadas em conta na elaboração da análise dos dados empíricos. 3.5 Habermas e Kohlberg: implicações para a educação O percurso feito até o momento nos leva a concordar com Habermas (2003) quando este afirma que há um paralelo entre a teoria do desenvolvimento do raciocínio moral de Kohlberg (1992) e a sua filosofia moral. Este paralelo, por um lado, demonstra que os princípios da Ética do Discurso são corroborados pelas observações e conclusões empíricas da psicologia do desenvolvimento e, por outro, explicita os fundamentos filosóficos desta última. Um discurso pragmático, segundo o princípio da Ética do Discurso, exigiria para ser efetivado, que os sujeitos envolvidos tivessem a capacidade de se colocar em uma posição de observador imparcial das diversas situações e posições apresentadas. Para tal, deve-se pressupor que estejam no sexto estágio de desenvolvimento moral de Kohlberg, o qual considera as regras a partir de princípios universais de justiça. Estes, segundo a Ética do Discurso, dependem da anuência de todos os envolvidos para serem aceitos como moralmente válidos. Para Habermas (2003), ao chegar ao nível pós-convencional de desenvolvimento moral e no estágio seis, o mundo social organizado e fundamentado por sistemas normativos estabelecidos, seja pelo costume ou por 90 uma tradição, é vivenciado como hipotético e colocado a distância pelos sujeitos. Os sistemas normativos, anteriormente fundamentados, perdem sua fundamentação e necessitam de outro fundamento, o qual, só pode ser obtido, com a reorganização e análise da validez das normas e princípios anteriormente aceitos em processo discursivo que possibilite sua universalização, segundo os princípios ‘U’ e ‘D’. Independentemente das divergências entre os sujeitos, oriundas de seu pertencimento social, político ou cultural, só se torna possível se colocar de um “ponto de vista moral”, o qual se subtraia à controvérsia, quando se assentam em uma posição de aceitação da validade das visões diferentes, mesmo que radicalmente divergentes. O “ponto de vista moral”, portanto, deve ser comum a todos, e segundo a Ética do Discurso, já está contido “nos pressupostos pragmáticos universais da argumentação em geral” (HABERMAS, 2003, p.197), os quais são, mesmo que implicitamente, aceitos por todos os que agem PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA comunicativamente. Ao lembrar que Kohlberg (1992) considera a passagem de um estágio de desenvolvimento para outro como um aprendizado, no qual as estruturas cognitivas presentes no sujeito nos estágios anteriores são reformuladas, Habermas afirma que a Ética do Discurso está em concordância com esta concepção construtivista da aprendizagem. Ao avançar de um estágio para o outro, o sujeito resolve os problemas morais aos quais esteja exposto de modo mais elaborado que no anterior, sendo capaz de compreender o seu próprio desenvolvimento moral como uma aprendizagem. Segundo a Ética do Discurso, a formação discursiva da vontade é compreendida “como uma forma de reflexão do agir comunicativo” (HABERMAS, 2003, p.155) que provoca uma mudança de atitude dos envolvidos, ao deixar em suspenso a validade de uma norma controversa, a qual só merecerá ser considerada válida, após ser objeto de disputa entre os que a propõem e os que a ela se opõem. Neste sentido, o consenso almejado é também fruto de uma construção, que só ocorre por uma reestruturação dos modos de pensar dos participantes do discurso prático. Na concepção de Kohlberg (1992, p. 20), toda prática educativa deve ter como ponto de partida “las ideas de justicia o el derecho de todo niño y adulto a la libertad y dignidad humanas”, e ter como objetivo o desenvolvimento humano. Ao identificar, junto com seus colaboradores que a partir de um conflito cognitivo provocado pela discussão de dilemas morais hipotéticos ou reais, há um processo 91 de maturação do raciocínio moral em direção a estágios mais elevados, Kohlberg se dedica a pensar e elaborar propostas de intervenções educativas, em consonância com a o ponto de vista de Dewey (1980), segundo o qual a educação moral dever ser compreendida como desenvolvimento e não como adaptação à moralidade socialmente estabelecida. Em sua proposta de educação moral, baseada na teoria dos estágios de raciocínio moral e no pressuposto de que a discussão de situações dilemáticas, hipotéticas ou reais provocam conflitos que mobilizam as estruturas cognitivas em direção a estágios mais maduros de raciocínio moral, Kohlberg propõe que sejam incorporados nos programas acadêmicos das escolas a prática do diálogo a partir de dilemas morais, bem como sejam revistas as relações interpessoais no espaço escolar. Considerando, junto com Durkheim (2008), que a moralidade é, em sua essência, social e que os sujeitos não se desenvolvem moralmente sem que a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA sociedade também avance, a escola deveria se transformar em uma “comunidade justa”, dentro da qual, seu funcionamento e os problemas sejam sempre discutidos abertamente e as opiniões de todos sejam consideradas. Kohlberg assevera, então, que juntamente com a inclusão da discussão de dilemas morais no programa das escolas uma atenção deveria ser dada à sua “atmosfera moral”, ao seu “currículo oculto”. Segundo Biaggio (1997), uma das virtudes dessa metodologia é a promoção de uma educação moral que escapa da doutrinação e do relativismo. Foge da doutrinação ao provocar o desenvolvimento de estruturas de julgamento em detrimento da adesão a crenças e valores determinados e do relativismo ao postular a ordenação hierárquica dos estágios a partir de critérios de justiça. Para esta psicóloga brasileira, ao conceber a educação moral no contexto de uma escola constituída como uma “comunidade justa”, Kohlberg compartilha da visão durkheimiana pela qual o “currículo oculto” (suas regras, estrutura de autoridade, procedimentos disciplinares e valores comuns) deve ser explicitado e levado em conta na educação moral. Entretanto, enfatiza as relações democráticas e solidárias entre os companheiros, que a seu ver minimiza as tendências conformistas e conservadoras do coletivismo de Durkheim. Já se passaram quatro décadas que Kohlberg e seus colaboradores iniciaram suas primeiras experiências de educação moral, utilizando como metodologia a discussão de dilemas morais. Ao se analisar a realidade das escolas, 92 sua dificuldade de lidar com as relações interpessoais e, entre outros aspectos, a maneira como são geridas, poder-se-ia apostar que este é um caminho possível a ser seguido para se colocar em prática o que propõem a LDB, os PCN e as DCNEM quando tratam do papel e compromisso da escola com a formação integral dos estudantes, principalmente no que se convencionou chamar de temas transversais em ética. Como exposto anteriormente, as condições de precariedade em que se encontram a maioria das escolas públicas e a fragilidade na formação docente não podem ser ignoradas. Entretanto, essa constatação intensifica a necessidade de se elaborar e articular alternativas que possibilitem que tanto estudantes como professores e gestores participem da construção de um espaço escolar que possibilite que todos se desenvolvam intelectual e moralmente. Neste sentido, a proposta de uma educação moral, baseada na discussão e busca de solução de dilemas hipotéticos ou reais, e a consequente reorganização do espaço PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA escolar rumo a uma “comunidade justa” poderia ser considerada uma aposta que merece ser feita. De modo semelhante, a Ética do Discurso pode ser tomada como referência para se pensar práticas educativas que poderiam contribuir com a superação de alguns dos problemas e dificuldades enfrentadas por gestores, professores e estudantes no cotidiano escolar. Entretanto, seguindo os alertas de Bannell (2006) e Casagrande (2009) não se trata de transpor os conceitos filosóficos, sociológicos e antropológicos derivados do pensamento habermansiano para a prática pedagógica. Posto que Habermas em seus escritos não se refere especificamente à escola, não se deveria extrair de seu pensamento soluções para o contexto educacional. O referencial teórico da ética do discurso, ao ser incorporado pelos agentes educacionais no cotidiano da escola, pode provocar mudanças nas práticas de ensino e nas relações entre professores e estudantes. Ao pressupor que são as práticas discursivas que constituem e intermedeiam a construção do conhecimento, os saberes docentes deixam de ser considerados absolutos e definitivos, e podem ser questionados e objeto de investigação em discursos argumentativos entre os professores e o grupo de estudantes. Do mesmo modo as regras e normas, que orientam as relações e o funcionamento da instituição, passam a ser vistas como produção coletiva e, consequentemente, como responsabilidade de todos. Desse modo, as sanções podem deixar de ser punitivas 93 e passarem a ser recíprocas, no sentido de se repor ou corrigir o dano causado à coletividade pela falta cometida. De um ponto de vista mais amplo, a teoria do desenvolvimento moral de Kohlberg e a ética do discurso de Habermas ao serem incorporadas pela prática pedagógica e pela gestão escolar podem provocar mudanças tanto nas práticas de sala de aula, como nas decisões relativas à definição do currículo e objetivos educacionais, que passariam a ser fruto de um processo discursivo que envolveria professores, estudantes, familiares, lideranças comunitárias, representantes do poder público e outros agentes sociais envolvidos na escola. Como a Ética do Discurso e a psicologia do desenvolvimento de Kohlberg tratam as questões referentes às diferenças? A ética universalista de Habermas e a pretensão de universalidade dos estágios de Kohlberg consideram as diversidades culturais, relativas às diferenças de sexo, etnia, orientação sexual, entre outras? E PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA como esta preocupação com as diferenças se relacionam com o cotidiano escolar? Ao explicitar a diferença entre o uso ético e o uso moral da razão prática, Habermas (1999) reconhece que as identidades individuais são forjadas por identidades sociais e culturais que são coletivas, e as escolhas sobre o tipo de vida que se queira viver são pessoais e ao mesmo tempo influenciadas pelo grupo de pertencimento. Neste sentido, as reflexões éticas são particulares e se referem às diferentes identidades culturais. Por outro lado, sua filosofia moral, embora conhecida como ética do discurso se refere ao uso moral da razão, que se guia por critérios de justiça, que buscam resolver os possíveis conflitos que possam surgir entre os indivíduos ou grupos, não em função do que poderia ser útil ou bom para alguns, mas do que poderia ser considerado justo para todos os envolvidos. É importante lembrar que o conceito de justiça, que Habermas (1999, 2003, 2004) utiliza como conceito ponte entre possíveis consensos axiológicos particulares a alguns contextos e culturas e a possibilidade de se construir um consenso universalmente aceito não é um conceito substantivo, derivado de alguma tradição ou cultura particular. A justiça é retirada de seus contextos concretos e toma uma forma procedural, pela qual ocorre uma convergência entre a perspectiva da justiça e a perspectiva que todo participante adota em discursos racionais ideais, a saber, de levar em conta de forma imparcial os interesses e pontos de vista de todos os envolvidos. 94 Neste sentido, ao fundamentar uma moralidade procedimental, a ética do discurso procura fugir de uma possível posição etnocêntrica, a partir da qual determinados estilos de vida, etnia ou mesmo posições de gênero possam ser tomados como melhores que outros e sejam colocados como referência para uma moralidade universal. Ao buscar na filosofia o conceito de justiça, compreendido como regulação igualitária e recíproca dos direitos e deveres, regulação que proporciona o equilíbrio das ações e relações sociais, pode-se supor que a teoria do desenvolvimento de Kohlberg (1992) deixaria aberta a possibilidade de se evitar as interpretações etnocêntricas que poderiam decorrer de sua pretensão universalista. Ao afirmar que, segundo seus estudos empíricos, as diferentes culturas, apesar de serem constituídas por normas e costumes que variam, possuem formas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA universais de estabelecer juízos e valorações baseadas na justiça, concorda com o relativismo cultural e rejeita o relativismo ético. Isto significa que o reconhecimento da diversidade cultural não elimina a possibilidade de se encontrar princípios e métodos racionais que possam conciliá-las na busca da convivência respeitosa com as diferenças. No mesmo sentido, o formalismo psicológico de sua teoria define um ponto de vista moral não egoísta e que considera com equidade o bem estar de cada um. Uma posição com a qual se possa estar de acordo racionalmente sem que se aceite, necessariamente, os conteúdos ou princípios substantivos de determinado pensamento moral, que está intimamente ligado às origens e perspectivas culturais. Neste sentido, em uma moralidade de princípios, que teoricamente seria atingida no último e mais elevado estágio de desenvolvimento moral, segundo Kohlberg, a escolha não está prescrita por “absolutos”, que excluiriam as diferenças, pois há o entendimento de que os valores implícitos nos princípios necessitam ser interpretados ao se depararem com situações e contextos concretos. Os princípios de justiça, liberdade e igualdade são tomados pelo agente moral como referência para se resolver os problemas e conflitos morais. A busca pela universalidade, neste último estágio de raciocínio moral, implica a aceitação de algumas concepções de valor que possam ser aceitas por todos independentemente de seus distintos objetivos ou ideais de bem. 95 Um destaque especial deve ser dado às operações de equidade e de troca de papéis, através das quais são construídos os raciocínios morais. Estas duas operações tocam de forma especial na questão das diferenças, e garantem, de certo modo, que as características, pontos de vista e interesses específicos de alguns indivíduos ou grupos, desconsiderados por serem avaliados como inferiores não sejam discriminados ou segregados. A equidade ao garantir uma distribuição desigual que objetiva compensar uma desigualdade pré-existente à situação atual, e a troca de papéis por possibilitar que o agente moral leve em conta as perspectivas dos outros, buscando e aceitando uma solução para determinado dilema independentemente de sua situação particular. Mesmo levando em conta as críticas e acusações de ser tendenciosa e etnocêntrica, devido a sua pretensão de universalidade, penso ser possível, utilizando-se dos referenciais da ética do discurso de Habermas e da teoria do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0913492/CA desenvolvimento moral de Kohlberg considerar e respeitar as diversidades culturais, posto que, a meu juízo, oferecem instrumentos teóricos que possibilitam que o preconceito e a discriminação sejam expostos e denunciados a partir de fundamentos morais. A análise dos argumentos dos estudantes, em sua tentativa de solucionar os dilemas morais relativos às situações de preconceito e discriminação envolvendo as diversidades, objeto do presente estudo, terá como referência esses fundamentos, ao explicitar o nível de amadurecimento de seus raciocínios e os pressupostos éticos e morais neles implícitos.