Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI ISSN 1809-1636 PSICOSE, ATENDIMENTO CLÍNICO E REFLEXÃO TEÓRICA1 Psycho, care clinical and reflection theory Lucas Silveira da SILVA2 Thiago MUCENECKI3 RESUMO O presente artigo tem como objetivo apresentar uma revisão teórica acerca da Psicose na tentativa de sensibilizar o olhar clínico do estagiário de Psicologia Clínica, assim como mostrar as possibilidades de trabalho da Psicoterapia de Orientação analítica nos quadros clínicos psicóticos. A teoria psicanalítica da Psicose é cercada por conceitos complexos, tais como Foraclusão, rejeição da realidade, transferência psicótica, cisão de objeto delírios e alucinações, esses conceitos devem ser abordados de forma ampliada, levando em consideração o discurso do paciente acometido por tal psicopatologia. Não havendo psicoses globais se faz necessário caracterizar os pacientes dentro de um funcionamento de acordo com o contexto e relação transferencial, frente ao discurso predominantemente apresentado, relacionando a conflitiva central aos sintomas manifestos. Nesse sentido é de importância imprescindível desenvolver um diálogo teórico entre autores psicanalítico que abordam tal temática. Palavras-chave: Psicose e atendimento clínico; delírios e alucinações; foraclusão; inconsciente. ABSTRACT This article aims to present a short theoretical review on the psychosis in an attempt to raise the clinical look of trainee clinical psychology, as well as showing the possibilities of working psychoanalytic psychotherapy in clinical psychotic. The psychoanalytic theory of psychosis is surrounded by complex concepts such as Foreclosure, rejection of reality, transfer and division of psychotic delusions and hallucinations object, these concepts must be addressed in a wider sense, taking into account the patient's speech affected by such psychopathology. In the absence of global psychosis is necessary to characterize patients in a function according to the context and the transference relationship, compared to the speech made predominantly in relation to conflict-ridden central to the symptoms manifest. This sense it is important need to develop a theoretical dialogue between psychoanalytic authors addressing this topic. Key words: Psychosis and clinical care, delusions and hallucinations; foreclosure; unconscious. INTRODUÇÃO O presente artigo, parte de uma reflexão teórica acerca da psicose, tendo como base alguns autores psicanalíticos de renome em tal temática. Os autores citados apresentam uma reflexão teórica consistente que revela ao mesmo tempo paradigmas e construções importantes, passíveis de reflexão. O estágio em psicologia clínica nos exige uma compreensão dos quadros clínicos de psicose, justamente porque o mesmo nos permite além de visualizar o funcionamento ‘normal’ dos sujeitos, nos desafia a mergulhar nas profundezas da loucura propriamente dita, o 1 Trabalho apresentado no Ciclo de Palestras e Oficinas em Psicologia V / URI-Santiago. Graduado em Psicologia pela URI-Campus Santiago; [email protected] 3 Psicólogo especialista em Neurospsicologia e professor da URI-Campus Santiago. [email protected]. 2 Vivências. Vol.6, N.9: p.167-171, Maio/2010 167 Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI ISSN 1809-1636 que contribui consideravelmente o acadêmico de psicologia na compreensão clínica. PSICOSE, ATENDIMENTO CLÍNICO E REFLEXÃO TEÓRICA Segundo Eizirik (2005) a psicoterapia de orientação analítica apresenta-se de modo pontual, focado, tendo como principal objetivo o alívio do sofrimento de quem busca ajuda. Nesse contexto está em jogo questões transferenciais, eficácia do trabalho terapêutico, alívio dos sintomas, etc. Muitas vezes nos questionamos quanto à eficácia do trabalho terapêutico com os mais variados quadros diagnósticos, as ambições em relação ao ganho e ou índice terapêutico de nosso método coloca-nos em uma posição desconfortável, onde questionamentos quanto a nossa performance como estagiários de clínica desconcerta-nos. Quando se trata de um quadro diagnóstico grave, tal como o é a psicose, esses questionamentos são mais intensos, mobilizando-nos a buscar mais leituras e demais questões que podem contribuir com o trabalho. Primeiramente, quando se fala em psicose vem-nos à mente as questões vinculadas aos delírios e alucinações, que são de acordo com Checchinato (1988) apud Freud: “estruturas tão normais e com as mesmas funções na psicose como o sonho no comum dos mortais”. Portanto, para tratando-se de um paciente psicótico, devemos inicialmente acolher seus delírios, deixar de lado a censura, pois ainda no mesmo autor por mais confuso que o delírio possa ser, ele é uma tentativa de cura, uma reconstrução. A tarefa do delírio é cobrir uma realidade rejeitada, pois o mesmo é a realização de um desejo, que não pode ser postergado e ou substituído. Sendo assim cabe-nos o trabalho de investigação e resgate do elemento desencadeador de tal rejeição, justo porque necessitamos preencher essas lacunas no desenvolvimento do sujeito, pois se ficaram pormenores em aberto, sem significação atrás, necessitamos abrir espaço nas sessões para o indivíduo construir significados, explicações, etc. Silva, L.S. da; Mucenecki, T. Para finalizar a questão do delírio, creio ser importante citar Nasio (2001) falando de Schreber caso trabalhado por Freud, relacionado a um homem bem sucedido profissionalmente que adoeceu inicialmente com idéias hipocondríacas, após com ilusões sensórias, estupor alucinatório, etc. Schreber inseriu o delírio, as histórias vinculadas à figura de Deus, desvirilização do seu corpo justamente para dar sentido a uma experiência de desmoronamento, tentando restituir o vínculo perdido com o mundo externo. Portanto, a reconstrução delirante é, de certa forma um reinvestimento libidinal progressivo, ou seja, a busca contínua de dar sentido a uma experiência insuportável, reconduzir a libido aos objetos que havia abandonado. De maneira sucinta, o sujeito quer recompor as conexões simbólicas, por isso ele insere o delírio. Sterian (2001) apud Freud: “Em 1894, ele imputava a uma rejeição da realidade: uma não incorporação simbólica de um acontecimento, em oposição ao mecanismo neurótico do recalcamento”. (p.60). Essa rejeição é uma característica marcante no funcionamento dos pacientes psicóticos, porém a mesma deve ser abordada de maneira adequada, por isso é importante uma definição mais precisa acerca do tema. Freud designa o termo rejeição como “Verwerfung” e recusa “Verleugnung”, ambos para caracterizar dois modos de defesa “que consiste em não reconhecer a realidade de uma percepção traumatizante, essencialmente a ausência de pênis na mulher”. (STERIAN, A. 2001. p.72). Entretanto esse aspecto rejeitado da realidade continua mesmo assim, investido libidinalmente, por isso ele continua causando desconforto, sintomas e uma série de comprometimentos em diversas áreas da vida do indivíduo. O DSM IV - Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (1995), propõe regras para o diagnóstico de esquizofrenia, tais como: delírios, alucinações, discurso desorganizado, comportamento amplamente desorganizado, etc. De acordo com Checchinato (1988) o conceito de foraclusão trazido por Lacan, consiste em dizer que algo ficou excluído, não foi simbolizado pelo sujeito e que não entrou no 168 Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI ISSN 1809-1636 regime do recalque, ou seja, traz uma série de comprometimentos na vida do indivíduo, abrindo margem para um discurso predominantemente psicótico. Porém, nas palavras de Winnicott a foraclusão é o “breakdonwn”, uma espécie de colapso, um medo de desmoronamento. Checchinato (1988) apud Macedo traz a contribuição de que a análise não seria a tomada de consciência, e sim um lugar onde o paciente possa falar, um processo de reconhecimento, onde um sujeito pode advir. É de suma importância citar esse aspecto, pois o trabalho com psicóticos é complexo, pois o paciente deve passar assumir seu desejo, constituir-se como um ser desejante, que ele fale sobre sua vida, delírio e não mais seja falado. Pode parecer-nos controverso valorizar o ser que está falando, pois o que nos vem à mente é um indivíduo incapaz, porém é necessário construir um significado e ou novo significado a fim de que o paciente tenha a chance de acessar esse “núcleo patógeno” o “buraco não significado” para tapá-lo. De acordo com Nasio (2001) toda psicose é uma doença de defesa, é uma luta constante onde o indivíduo constrói variadas questões (delírios, alucinações) para não se deparar com uma dor insuportável, não há possibilidade de troca, ficando o sujeito estagnado, rejeitando radicalmente fragmentos da realidade, que geralmente lhe expõe o furo. Ainda no mesmo autor, a percurso da psicose seria basicamente um superinvestimento, rejeição e percepção do pedaço rejeitado, que nada mais seria do que a “percepção pelo eu do pedaço rejeitado, sob a forma de uma alucinação ou um delírio” (p. 37). Ou seja, não há psicoses globais, pois mesmo na condição psicótica existem aspectos preservados no sujeito, muitas vezes estabelecendo uma relação sadia com seu meio. O FURO, O ASPECTO INDESEJADO E REJEITADO Dentro de uma concepção psicanalítica e não havendo psicoses globais conforme explicitado acima, é necessário caracterizar os pacientes dentro de um funcionamento de Vivências. Vol.6, N.9: p.167-171, Maio/2010 acordo com o contexto, relação transferencial, entre outros aspectos que contribuem com o seu funcionamento e ou adoecer. Nasio (2001) falando que a psicose permitiu compreender o funcionamento normal da vida psíquica diz que: O narcisismo é uma concentração da libido no eu, que priva o psicótico de qualquer vínculo com o mundo. A energia libidinal que superinveste o eu passa, então, a não mais ser empregada para produzir uma fantasia, como no neurótico, mas a desencadear um delírio de grandeza.(p.38). Sendo assim, para o paciente psicótico seu inconsciente é uma instância alheia, externa a si, desconhecida e seu efeito é devastador, ou seja, o psicótico nas palavras de Nasio (2001) apud Lacan “é um mártir do inconsciente, dando-se ao termo mártir seu sentido de ser testemunha”. (p.39).Seria algo similar a um boneco de marionetes, pois para o psicótico é o outro que fala nele. Checchinato (1988) diz que “Acolher, pois, o paciente com abertura e tranquilidade, participar plenamente de sua viagem psicótica é o segredo da porta da transferência”. (p. 111). Sendo assim, é necessário que esse vínculo seja estabelecido e que o paciente psicótico é passível de transferência, mesmo ele estar pautado em um funcionamento narcísico. Porém, a maneira de estabelecer-se é outra, pois através dessa relação transferencial emergirá o reconhecimento mútuo entre analista e analisante. ... a condição de transferência com psicóticos consiste em que o analista possa ser-lhe um lugar onde lhe seja possível ser louco sem que se lhe retire sua palavra singular, cortando seu delírio. (p.113). Para que um trabalho seja efetivo e cumpra os princípios da psicanálise, é necessário que o paciente assuma seu desejo, que marque um lugar de sujeito, pois é justamente o desejo que o psicótico elimina de si, ele é puro desejo do outro; restituí-lo ao status de sujeito desejante é a tarefa fundamental da análise. 169 Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI ISSN 1809-1636 Trabalhar a significação das palavras, restituir significados, resgatar o sujeito preso em suas construções imaginárias para um sujeito desejante, de uma linguagem “estatificada” para uma fala metafórica. Enfim “... é preciso ficar claro quem está falando, de quem se fala e a quem se fala”. (CHECCHINATO, 1988.p.114). Sterian (2001) relatando de um caso de esquizofrenia, nos fala da importância de evidenciar-se “determinações inconscientes” nos pacientes, justo porque os mesmos desconhecem muitos aspectos de sua vida mental, desconhecimento esse que possivelmente gera desconforto, sintomas, etc. Para se reconstruir lacunas na história de vida dos sujeitos, são necessárias destacar o sentido latente das palavras manifestas. Melanie Klein (1946-1963) fala que na primeira infância surgem ansiedades similares a das psicoses e que o ego desenvolve a partir daí mecanismos específicos, nessa fase encontramse os “pontos de fixação dos distúrbios psicóticos”. Tendo em vista as relações objetais, que são estabelecidas desde o início da vida do bebê, sendo o seio o primeiro objeto, nessa fase denominada “esquizoparanóide” esse objeto fica cindido entre um seio bom (gratificador) e um seio mau (frustrador). Diante desses sentimentos contraditórios e persecutórios a criança desenvolve mecanismos de defesas arcaicos, característicos da psicose e paranóia, dependendo da resolução desses conflitos o desenvolvimento posterior do sujeito. Na psicose o paciente se fixa demasiadamente nessa fase, sendo suas falas extremamente julgadoras, ou é ou não é, sem a mínima flexibilidade, bem como evidencia-se uma extrema infantilização do discurso ao mesmo tempo. Não há um processo de síntese, bem como é irrepresentável fazer certas suposições e encontrar um meio termo em alguns aspectos da vida do sujeito. Além dos aspectos trabalhados acima, encontra-se uma relação engolfadora com a figura materna, a mesma não deixa espaço para o sujeito desejar, demandar, deixando resquícios no sujeito da extrema dependência em relação aos desejos da mãe. Melanie Klein (1946-1963) nos diz que para se estabelecer relações objetais integrais Silva, L.S. da; Mucenecki, T. posteriormente, é necessário o indivíduo ter introjetado anteriormente um seio bom, gratificador portador de características boas e ruins ao mesmo tempo, passível de reparação por parte do indivíduo ao mesmo seio que lhe gratificou e que ele agrediu devido suas fantasias persecutórias. CONCLUSÃO Trabalhar com a loucura propriamente dita é uma tarefa difícil, mas permitê-nos visualizar muitas outras questões vinculadas ao universo psíquico, esse marcado por dinamismos, conflitos, etc. A psicose seria o quadro onde estes conflitos alcançam seu auge, ou seja, chega a um tal ponto onde o contato com a realidade fica afetado, onde a atividade onírica toma proporções gigantescas a ponto de o sujeito vivenciar diariamente tal universo e ou constelação. Enfim, a discussão e reflexão das psicoses são de extrema importância no meio acadêmico do curso de psicologia para desenvolver o senso clínico, construir saberes acerca da loucura e evidenciar os paradigmas que cercam esse tema tão dinâmico e controverso. 170 Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI ISSN 1809-1636 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSOCIAÇÃO Psiquiátrica Americana (APA). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 4. ed. - Revista (DSMIV-TR). Porto Alegre: Artmed, [2000] 2002. CHECCHINATO, D. A Clínica da Psicose. Campinas, SP: Papirus, 1988. EIZIRIK, C. AGUIAR, R. SCHESTATSKY, S. Psicoterapia de Orientação Analítica. Fundamentos Teóricos e Clínicos. Porto Alegre: Artmed, 2005. KLEIN, M. Inveja e Gratidão e outros trabalhos 1946-1963. 4° ed. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991. NASIO, J. D. Os Grandes Casos de Psicose. Rio De Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. STERIAN, A. Esquizofrenia. (Coleção clínica psicanalítica). 3° ed. São Paulo: Caso do Psicólogo, 2005 Recebido em janeiro de 2010 e aprovado em maio de 2010. Vivências. Vol.6, N.9: p.167-171, Maio/2010 171