OS SERTÕES E OS SERTANEJOS NORTEMINEIROS Camilo Antonio Silva Lopes Mestrando em Desenvolvimento Social pela Unimontes [email protected] Grupo de Trabalho: Populações tradicionais e processos sociais Hodiernamente, os estudos sobre as populações conhecidas como tradicionais tornaram-se cruciais no processo de conhecimento e entendimento da realidade social brasileira. Nos tempos modernos, com a velocidade de transformação das coisas e dos comportamentos humanos, faz-se necessário repensarmos a nossa condição de humanos vivendo nas cidades e nos obriga a voltar o nosso olhar para o mundo rural, lugar onde estão localizadas as populações que são guardadoras e protetoras do ambiente e também dos saberes tradicionais adquiridos ao longo do tempo e, fazendo saber-se que, o norte de Minas é um pólo efervescente de populações conhecidas e reconhecidas como tradicionais. A partir do conhecimento da realidade sertaneja e suas gentes, tendo como referência as diversas categorias socioculturais – ribeirinhos, vazanteiros, veredeiros, geraizeiros, quilombolas e indígenas – é possível construir uma interpretação articulando os processos sociais em curso na região nortemineira. A partir do Decreto 6.040 em a7 de fevereiro de 2007 foi instituída a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantia dos direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito à valorização da sua identidade, suas formas de organização e suas instituições. Num cenário de transformações provenientes de diferentes processos de modernização do norte de Minas, as populações tradicionais historicamente existentes e os novos sujeitos se entrelaçam e entretecem suas culturas provocando a interação inevitável de antigos e novos saberes e formas de interagir com o meio ambiente. Nesses cenários, a pluralidade de atores e grupos sociais estabelece o fundamento das características dos diversos modos tradicionais e modernizados de viver. São essas diversidades que transformam os modos patrimoniais de vida que por séculos caracterizaram os sertões nortemineiros. São permanências e transformações entre o moderno e o tradicional que produzem espaços de monoculturas e agriculturas comerciais e delimitam e destroem os espaços de comunidades, grupos e famílias de trabalhadores rurais. As ameaças e conflitos fundiários existentes na região decorrem em grande parte das modalidades de apropriação dos recursos naturais dos atores envolvidos1. As expropriações dos recursos naturais, de tradições, de hábitos, costumes, religiões, são permeadas não apenas pela chegada do "estranho" mas também pela surpresa e vontade de apropriar-se do novo, do moderno, conhecido e entendido como desenvolvimento: maquinas agrícolas, caminhos para as cidades, barcos a motor para a pesca, televisões e antenas parabólicas em casas simples sem banheiro, equipamentos de sons no retorno das migrações mostram a "simulação" da modernidade entre as gentes sertanejas. Para compreendermos a realidade social dos diversos grupos humanos já mencionados faz-se necessário uma apreensão conceitual das identidades coletivas que formam o mundo sertanejo. Primeiramente, a identidade é sempre uma adscrição e algo contrastivo (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976), por um lado, algo que alguém afirma como seu e, por outro lado, algo que alguém afirma ser próprio do outro a partir de alguma característica que este alguém possua. Para Frederick Barth (1969) o contraste de etnicidades é construído a partir da organização de alguns elementos da cultura de um grupo que são politicamente articulados para afirmar o que o grupo é frente aos outros grupos sociais com quem se relaciona. Os fatores que demarcam a identidade de determinado grupo social podem ser compreendidos como fronteiras culturais e identitárias existentes no interior dos grupos étnicos, mas que também são encontrados em outros grupos que o contrapõe. As interpelações que são feitas aos sujeitos permitem-nos afirmarem cada vez mais suas identidades locais, especificas próprias, que permitem distingui-las no contexto global e, ao mesmo tempo, construir e reforçar solidariedades próximas que contribuem para que se situem nesse mundo fragmentado como seres humanos. Por identidade social compreendemos a mesma como sendo uma forma de apresentação que expressa à maneira como determinado grupo social se vê e é visto pelos outros, a partir de algumas características próprias de ser. Essas características, ou esses marcadores diacríticos da identidade coletiva, fazem com que o grupo se destaque no contexto global por sua especificidade. 1 Como conseqüência, a afirmação da identidade social frente ao outro Sobre esta temática, está sendo desenvolvido um projeto de pesquisa denominado "OPARÁ: tradição, identidades, territorialidades e mudanças entre populações rurais e ribeirinhas no sertão roseano", sediado no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social da Unimontes, onde está sendo elaborada uma cartografia social das diversas gentes que ocupam os sertões nortemineiros. Este projeto, financiado pela Fapemig / CNPq é desenvolvido por pesquisadores da Universidade Estadual de Montes Claros e também por pesquisadores da Universidade Federal de Uberlândia. fortalece os vínculos de pertencimento à coletividade e amplia a solidariedade entre os sujeitos que juntos constituem uma comunidade. Outro processo que envolve o conceito de identidade é o da diferença e estes estão estreitamente ligados, mas constituem-se em processos distintos. A identidade se resume naquilo que se é e se afirma - “sou indígena”, “sou geraizeiro”, construído em face da relação com a diferença, vinculada ao que o outro é - “ele é barranqueiro”, “ele é quilombola”. Neste sentido torna-se fácil compreendermos que a identidade e a diferença estão em uma relação de estreita dependência, imbricadas uma na outra. A maneira afirmativa como expressamos a identidade tende a esconder essa relação. Quando digo sou brasileiro parece que estou fazendo referencia a uma identidade que se esgota em si mesma. (SILVA, 2000, p. 74). Segundo Diegues e Arruda (2001) as populações tradicionais são grupos culturalmente diferenciados que em sua trajetória histórica construíram e atualizaram seu modo particular de vida e de relação com a natureza, considerando a cooperação social entre seus membros, a adaptação a um meio ecológico especifico e um grau variável de isolamento. Importante salientar que as pesquisas nas ciências humanas, no trabalho de campo, hodiernamente, os pesquisadores devem tratar as pessoas com quem conversa não como meros informantes, mas como intelectuais que desenvolvem leituras sobre sua própria sociedade. Como intelectuais nativos são os membros de uma sociedade, que permitem ao pesquisador, apreender as interpretações que são construídas sobre a vida social e os processos sociais vividos, a interpretação a ser desenvolvida posteriormente se não considerar essas interpretações nativas pode estar descolada da realidade social em estudo, porque parte de conjecturas hipotéticas apoiados apenas na teoria social. Essa perspectiva de tratamento dos membros de uma sociedade deriva da definição de cultura como sendo uma teia de significados que os humanos tecem para si e nela se enreda, como definido por Geertz (1989). Se a cultura é uma articulação de significações, o sentido das mesmas só pode ser apreendido se se considera os construtores dessas significações como sujeitos que pensam, que agem e que interpretam os seus próprios símbolos, ou seja, como conscientes da vida social em que se encontram inseridos e dos processos sociais vividos. Assim, a tarefa da interpretação da realidade social se desenvolve na perspectiva de uma dupla hermenêutica em que, primeiramente, há que se apreender as interpretações dos membros da comunidade em que se desenvolve a pesquisa e, posteriormente, desenvolver as interpretações possibilitadas pelas teorias antropológicas e sociológicas. O autor corrobora que a construção do conhecimento, bem como as manifestações culturais se diferenciam nos locais em que ocorrem, distinguindo-se das demais. Apesar de apresentar aspectos comuns e características sociais que as une em conjuntos denominados étnico, nação, região, território, o conhecimento se realiza e se manifesta em seu cotidiano localmente, ou seja, opera também em escala macro, distinguindo-se, mesmo que em pequenos gestos, ações e fazeres cotidianos organicamente comuns, das outras culturas próximas, especificidades entendidas como: “saber local”. “(...) remexendo na maquinaria de idéias passadas, as formas do saber são sempre locais, inseparáveis de seus instrumentos e de seus invólucros” (GEERTZ, 1997, p. 11). Ao refletir sobre a importância que os estudos culturais tem na compreensão dos diversos povos do planeta, Hall (2006) informa que: Hoje em dia, o “meramente” local e o global estão atados um ao outro, não porque este último seja o manejo local dos efeitos essencialmente globais, mas porque cada um é a condição de existência do outro. Antes, a “modernidade” era transmitida de um único centro. Hoje ela não possui um tal centro. As “modernidades” estão por toda parte; mas assumiram uma ênfase vernácula. O destino e a sorte do mais simples e pobre agricultor no mais remoto canto do mundo depende dos deslocamentos não regulados do mercado global – e, por essa razão, ele (ou ela) é hoje um elemento esse de cada cálculo global. Os políticos sabem que os pobres não serão excluídos dessa “modernidade” ou definidos fora dela. Estes não estão preparados para ficar cercados para sempre em uma tradição imutável. Estão determinados a construir seus próprios tipos de “modernidades vernáculas” e estas são representativas de um novo tipo de consciência transcultural, transnacional, até mesmo pós-nacional (HALL, 2006, p. 44-5). Portanto, a afirmação de que agora somos glocais vem justamente colocar mais luz sobre a arena de disputa que se tornou o norte de Minas. O imbricamento do local e do global permitiu aos sertanejos do norte de Minas estarem amarrados à teia da globalização, no seio da modernidade. É um processo que arrasta todos, e com os lutadores sertanejos não poderia ser diferente. Joan Frigolé (2006, p. 52) ao analisar o fenômeno da globalização bem como da localização dos sujeitos no mundo moderno lembra que, autores como Fridman e Appadurai, evitam conceitos de cultura como a que a identifica com uma substância dividida ou com um segmento bem delimitado de um mapa ou um mosaico cultural. No contexto da globalização, as concepções culturais alimentam o medo global do desaparecimento das diferenças, da perda da identidade cultural considerada única. Para Martins (2008, p. 25), nossas desigualdades sociais são também o nosso descompasso histórico em relação ao que já é real em outras partes, que nos chega fragmentariamente, incompletamente. A força das formas sociais, econômicas, estilísticas é que nos fazem agentes de uma modernidade aparente, desprovida de laços fundos com os processos sociais, anúncios de novas privações. A totalidade de sujeitos sociais e populações diferentes em modos, cultura e comportamento permitem afirmar que este conjunto eclético de populações existentes no norte de Minas constitui um importante imperativo categórico, haja vista que, no norte de Minas, diversos sujeitos se reconhecem puramente como sertanejos. Mas, há também, as populações que se identificam perante a categoria social ou população na qual as mesmas estão inseridas. Com a fragmentação das identidades discutidas anteriormente, é permitido aos diversos sujeitos sociais do norte de Minas se identificarem como geraizeiros, caatingueiros, veredeiros, barranqueiros, vazanteiros, quilombolas e outras, mas, nem sempre e exclusivamente como sertanejos. Não há apenas uma identidade genérica no sertão nortemineiro, mas várias identidades que se fundem e se imbricam formando o todo complexo cultural e social que é o norte de Minas Gerais. A emergência de novas e fortes identidades coletivas afirma a grande complexidade que se tornou a questão da identidade no norte de Minas e também a importância instrumental que é a identidade de determinado povo ou sociedade para a compreensão de sua realidade social. Esta complexidade é resultado do posicionamento da região, pelo fato da mesma situar-se num entre-lugar (Bhaba 1998; Costa 2003). A complexidade identitária nortemineira é justificada pela diversidade de sujeitos que evidenciam em seu cotidiano suas múltiplas identidades sociais. Há casos que alguns sujeitos se identificam como vazanteiros e ao mesmo tempo quilombola. Esta multiplicidade identitária afirmada permite compreendermos que as identidades coletivas no norte de Minas em alguns casos são afirmadas apenas por interesses. A negociação e politização das identidades fazem-se necessária a indivíduos historicamente marcados pela marginalidade e que vê na possibilidade de afirmação de uma nova identidade uma oportunidade de se afirmar diante da sociedade que o inclui, mas ao mesmo tempo o exclui. No norte de Minas a história da territorialização das populações conhecidas como tradicionais traz em si uma experiência de luta e organização para a conservação da natureza e pelo seu uso de forma sustentável. As populações sertanejas locais desenvolveram uma relação de interdependência com a natureza, utilizando técnicas e manejos de baixo impacto ambiental. Algumas famílias devido à restrição de terras e de oferta d’água, além da perda da biodiversidade local, desenvolvem pequenos cultivos, outras, as detentoras de áreas maiores, articulam diversas áreas de cultivo, sendo que algumas são colocadas em descanso e no rodízio entre as diversas áreas eles vão desenvolvendo uma agricultura policultora. A convivência desses grupos locais com a natureza evidencia que os mesmos são guardadores da biodiversidade local. Os vínculos dos moradores com a coletividade e as várias localidades são explicitados pelo apego que demonstram pelo lugar onde vivem, as técnicas que utilizam para trabalhar a terra e o fato de terem seus ancestrais enterrados sacralizando a terra. Alguns são enterrados nos quintais das casas, o que obrigatoriamente reforça o vínculo do morador com o local que habita, pois parte de si está enterrado no lugar, o que permite fazer da coletividade um grupo corporado, como conceituado na antropologia. Nos estudos antropológicos sobre o parentesco, Radcliffe-Brown (1978) ao analisar as relações entre diferentes grupos africanos que tomou como objetos de analise, afirma que nas diversas relações estabelecidas entre diferentes grupos destacam-se os grupos corporados. Para o autor um grupo é considerado corporado quando possui uma das seguintes características: se seus membros, ou seus membros masculinos adultos, ou uma proporção considerável deles, se reúnem ocasionalmente a fim de empreender alguma ação coletiva – por exemplo, a execução de ritos; se tem um chefe [líder] ou conselho e que se considera como representante do grupo como um todo; se possui ou controla propriedade coletiva como quando o clã ou linhagem é um grupo dono de terras (RADCLIFFE-BROWN, 1978, p. 108). Amparado na afirmativa de Radcliffe-Brow é permitido afirmar a existência de grupos corporados no interior da região estudada. Estes grupos compostos por sujeitos atuantes expressam em seu cotidiano as vivencias e luta pela consolidação de direitos usurpados por grupos de fora, como as empresas que ocuparam as terras que antes eram de uso comum. Portanto, como afirma Radcliffe-Brown (1978, p. 110) há inúmeras atividades sociais que só podem ser eficientemente empreendidas por meio de grupos corporados. A permanência dos membros dos diversos grupos em seu lugar é crucial para a reprodução social dos mesmos como uma coletividade que se apóia para contribuir com a reprodução material de cada família e social de todos como uma unidade social. Atuam também como guardiões da fauna e da flora da região, pois com a chegada das empresas reflorestadoras que implantaram uma floresta exótica nas chapadas, os membros dessa coletividade, como de outras, passaram a desenvolver mecanismos que objetivam garantir a preservação da diversidade da fauna e flora na região. Hoje em dia, em todas as propriedades é proibida a caça de animais e pássaros e há também um controle mais rigoroso sobre as queimadas. Há, também, a utilização de técnicas de manejo do cisco acumulado nas roças e também o enleiramento do mesmo, formando tabuleiros. Somente após estes procedimentos é que são realizadas as queimadas em pequenas escalas, evitando assim o enfraquecimento do solo utilizado no plantio das roças. A região norte de Minas possui solos classificados como latossolos, que são solos velhos e porosos, encontrados principalmente nas áreas de chapadas, os cambissolos, que são solos avermelhados e com dificuldades de penetração de água e é encontrado principalmente nos quintais das casas, além dos litossolos que são os locais rochosos e onde se encontram milhares de nascentes dos córregos que deságuam nos diversos pequenos rios que cortam a região. A partir dessa classificação dos solos da região, na maioria dos casos, cada grupo local segue a sua lógica que é a simplificação das coisas. Utilizam os aluviais como áreas de criação para o gado e prática do extrativismo, além do pasto nativo há pequenas áreas de pastagens com capim brachiária e andropogon, os cambissolos são utilizados para o cultivo de árvores frutíferas e hortas, e das áreas de litossolos provém água para abastecimento doméstico e dos animais, além da irrigação por gravidade. Os diversos grupamentos humanos existentes no sertão nortemineiro se organizam socialmente através do sistema de parentesco e também de compadrio e seus membros operam as relações sociais internas através de reciprocidade. Nas relações externas alguns membros trabalham como meeiros ou como diaristas quando recebem pagamento pelo dia de serviço trabalhado. Internamente há, também, troca de dias de serviço, ou seja, quando alguém precisa realizar algum trabalho solicita a ajuda de um parente ou compadre e depois, repõe o dia trabalhado para essa pessoa que o ajudou com o seu serviço, aperfeiçoando os laços tantos sociais quanto comunitários. Externamente, também, com outras empresas, principalmente, os homens adultos estabeleceram no passado relações trabalhistas de assalariamento temporário, onde deslocavam-se de suas áreas fora do tempo de trabalhar a terra que a sua família ocupa, trabalhando ainda nas fazendas da região e também nas áreas de comercio próximas, como restaurantes e bares. Assim, a vida produtiva das coletividades é útil não apenas para a reprodução familiar nos moldes das formas tradicionais que propicia o desenvolvimento pessoal e a integração social, mas, também, articulam dinâmicas externas para suprir as necessidades decorrentes da desestruturação ocorrida com a modernização agrícola e pecuária verificada no país. Como a maioria das famílias brasileiras, as famílias de sertanejos nortemineiros sempre enfrentam crises financeiras. Se anteriormente a criação de gado supria os recursos monetários necessários para desenvolver algum investimento mais vultuoso, atualmente uma forma encontrada pelas famílias como estratégia de capitalização, é a migração temporária de algum membro da família para outra região do país. Algumas famílias quando se encontram em dificuldades, acordam entre seus membros que alguém deve sair para trabalhar fora, principalmente os jovens adultos da família, migrando temporariamente para outras regiões, especialmente São Paulo, Mato Grosso, as fazendas de café do Triângulo Mineiro e área baiana da soja que se encontra em expansão. Nesses casos, esses membros têm como objetivo único se capitalizarem e posteriormente retornarem ao local onde sua família está localizada. Estando fora, os mesmos enviam dinheiro para os parentes e também compram animais, principalmente gado bovino, que serve como reserva de valor para essas famílias, que possibilita a sua venda em caso de uma necessidade como doença na família e investimento na estruturação da produção. A produção familiar, além de garantir a reprodução dos membros que permanecem no lugar, também propicia manter alguns de seus membros em outras localidades, principalmente para estudarem, arcando com as despesas desse membro, pois o mesmo depende diretamente da família que está estabelecida na zona rural. Esta trabalha a terra para garantir a sua reprodução e o sustento desse membro, daí a importância de não parar de trabalharem na terra, caracterizando-se uma estratégia de territorialidade para garantir a reprodução social da coletividade. Esses membros que moram fora dependem dos familiares tanto para as despesas pessoais quanto para as despesas de aluguel de domicilio. Essa estratégia garante a reprodução social dessas famílias, que vêem no futuro a impossibilidade de sua reprodução como família rural devido aos impedimentos que desde os anos 60 vêm reduzindo cada vez mais as possibilidades de uma reprodução de vida em condições dignas, além de propiciar incorporar outros valores com diferentes membros da sociedade regional. Ao analisar os processos de territorialização por que passou as populações sertanejas vêm à tona processos sociais vividos, tendo como dinâmica estruturante a ligação com o lugar em que se habita, pois nele se encontram os lugares e as coisas consideradas sagradas pelos moradores. Para se considerar os processos de territorialização há que considerar a transformação de um espaço da natureza em um espaço social onde são incorporados significados pela população que por meio do trabalho culturaliza a natureza. No território sertanejo as diversas coletividades se esforçam para reestruturar seu modo de significar seu espaço natural transformado em espaço social. Nele há as muitas terras de agricultura que propiciam a maior parcela de contribuição para a reprodução das famílias, as terras de horticultura, as terras de solta para o gado, o espaço do extrativismo que fornece frutas e ervas medicinais nativas, os cuidados com a área das nascentes que abastecem as moradias das populações e os animais. A territorialidade sertaneja nortemineira também se expressa nas manifestações culturais existentes como as festas de santos e as folias de Reis e São Sebastião que costumam promover a integração dos moradores de terminadas comunidades com moradores de outros grupos locais vizinhos e também a participação em festas de santos que são consideradas as maiores festas de uma territorialidade mais ampla, as festas juninas com a realização de fogueiras familiares e coletivas. Importante lembrar que em muitas casas há a presença de pequenos oratórios existentes evidenciando a ligação dos moradores com o sagrado religioso, as comemorações natalinas e de aniversários, além dos cemitérios coletivos e também familiares. Estes cemitérios e a corporação dos antepassados ao território dão uma significação e um vínculo inquebrantável a essa territorialidade que fundamenta o desejo das populações em permanecer no local junto com os seus ancestrais que são vistos como exemplos pelos moradores. A partir dessa identificação com o lugar, torna-se inevitável a valorização do território que ocupam, pois o mesmo é visto como um lugar sagrado, onde retiram dele o sustento de suas famílias e garantem a reprodução tanto social quanto cultural do grupo. Os membros dessas coletividades atuam na terra como agentes garantidores da solidariedade existente entre os membros e resistem à desagregação do sistema antigo, mantendo entre os mesmos uma relação de solidariedade e reciprocidade, e resistem à pressão externa imposta pelo sistema capitalista de produção que favorece a degradação da natureza e imprime uma outra dinâmica na região. Os espaços utilizados para a estruturação do sistema de produção no norte de Minas articulam uma variedade de terras, aquelas chamadas como terra de cultura que serve para cultivo agrícola, pois as mesmas estão localizadas principalmente nas áreas planas e férteis às margens dos rios e favorecem o plantio de variadas culturas em diferenciados espaços da terra de cultura, demonstrando, desta forma, o seu conhecimento do solo e das possibilidades de usufruir suas potencialidades em favor do homem. Nessa terra os membros costumam plantar a roça em sistema de consórcio, aproveitando o mesmo espaço para cultivarem duas ou mais variedades diferentes de alimentos como, o milho e o feijão que são plantados juntos, o milho, a fava e o amendoim etc. Cultivam diferentes alimentos como, feijão, milho, amendoim, batata, mandioca, abóbora, quiabo, arroz que ultimamente, devido ao clima seco da região, tem sido evitado, feijão andu e fava, além de outras culturas como mamona e algodão. No sistema produtivo sertanejo é costume entre os grupos o cultivo de hortas familiares em terra de cultura, onde se cultiva cebola, cebolinha, alho, coentro, salsa, beterraba, cenoura, alface, couve, mostarda, repolho, chuchu, rabanete, pimenta, e gergelim. Nessa mesma área de horta cultivam ervas medicinais, também conhecidas como ervas de horta, como capim cidreira, erva cidreira, hortelã, alfavaca, temperão, boldo, boldinho, alecrim, poejo, capuchinha, chá-cravo, arnica e losna. Além desses cultivos, ao redor das casas de todos os moradores se encontram árvores frutíferas plantadas pelos mesmos ou por ancestrais, como manga, banana, laranja, limão, goiaba, abacate, mamão, jabuticaba, amora, pinha, tangerina, carambola, uva, abacaxi, pitanga e jenipapo que provém as famílias de alimentos. No sistema produtivo utilizado pela coletividade a roça ganha destaque, pois é o principal lócus de alocação de trabalho familiar e fonte de riqueza das famílias. Na mesma é feito o aproveitamento dos espaços cultiváveis com o consorciamento de plantações, pois as áreas de cultivos na maioria das vezes são pequenas e cada espaço deve ser bem aproveitado, não permitindo o desperdício de partes da terra de cultura. A aração da terra em alguns casos é feita coletivamente e depois individualizada. Algumas comunidades rurais se articularam e criaram associações de moradores que através de programas governamentais adquiriram máquinas agrícolas para ajudarem no cultivo da terra. Nesses casos, a aração das terras é custeada coletivamente e, posteriormente, cada indivíduo ocupa o seu espaço de plantio. Além disso, em algumas propriedades costuma se fazer o sistema de pousio da terra, ou seja, algumas áreas da terra de cultura são colocadas em descanso para se ter a reconstituição do solo para um melhor aproveitamento com futuras plantações, necessitando assim abrir mão por um período de tempo dessa parte da terra. Em algumas roças utiliza-se o sistema de irrigação por inundação. Aproveitando a grande quantidade de nascentes na região, as populações locais constroem pequenos regos por onde a água percorre até chegar ao local desejado, não afetando os mananciais. A lógica adotada pelos membros desse grupo local é a da escolha do cultivo em função do solo. Se o solo favorece o plantio de espécies que podem ser cultivadas juntas, como o milho e o feijão, os mesmos são semeados sem receio pelos agricultores. Nos tempos modernos, foi desenvolvido pelos Governos e também pela sociedade um trabalho de conscientização das populações sobre os danos causados pelas queimadas em larga escala, e por isso utilizam técnicas que protegem os solos e favorecem a revejetação. Técnicas como o enleiramento do cisco na roça e as queimadas em sistemas de coivara, ou seja, o mato é amontoado em um local formando pequenas leiras e depois de feito todos os aceiros é ateado fogo em pequenas proporções, evitando assim, a perda do controle do mesmo e o extravio para outras propriedades. É possível observar, também, o aproveitamento de técnicas de adubação do solo, como a construção de buracos no solo próximo às casas onde é depositado o cisco dos quintais e também as cinzas dos fogões, deixando o mesmo ‘pubar’ para depois de dois anos serem espalhados no terreno que será plantado. Com esse sistema de adubação implantado, produz-se seu próprio adubo orgânico, não usando adubos químicos. Os mesmos, além de produzirem alimentos mais saudáveis e economicamente mais viáveis, não agridem o solo utilizado. Desse modo, observa-se que, para proteger o solo da devastação, os moradores utilizam técnicas simples e eficazes, propiciando a si mesmos ganho na produção e aumento na qualidade de vida dos moradores. Ao realizar a colheita dos produtos plantados na roça, os moradores utilizam muitas vezes o sistema de ajuda comunitária, pois vários membros desses grupos se dispõem a ajudar quem tem mais urgência em colher os seus produtos, não permitindo assim a perda da produção, influenciada pelo clima ou pela ação de animais, principalmente periquitos e maritacas que atacam especialmente as plantações de milho. Com esse processo, reforça-se automaticamente o vinculo comunitário dos moradores, propiciando um aumento significativo da coesão social entre os membros. Além da roça que é plantada em todas as propriedades, o sistema de criação de animais de grande e pequeno porte em algumas comunidades tem importância significativa na vida dos moradores destes sertões, pois serve em sua maioria como alimento e também como reserva de valor. Cria-se solto em todas as propriedades os animais de pequeno porte como galinhas e cocás, que são utilizados como alimento quase que diariamente pelas famílias. Essas aves são alimentadas através de sementes de capim que as mesmas recolhem nos pastos e também através de restos de alimentos utilizados pelas famílias. Os porcos também são considerados animais de pequeno porte, mas atualmente são criados presos em chiqueiros ou mangueiros, pois na maioria das vezes acabam dando muito trabalho, não apenas aos donos, mas também aos vizinhos, pois acabam estragando as plantações. Os mesmos são alimentados com sobras de alimentos, milho e mandioca que são utilizados como ração. Desses porcos criados presos nas propriedades aproveita-se, quase tudo, pois a carne é consumida e o toucinho é utilizado como gordura no preparo das refeições. O gado, além de reserva de valor de transformação em numerário imediata, tem sido utilizado para alimentar as famílias quando algum animal é abatido para o consumo familiar e coletivo. Quando se abate uma criação parte da carne fica com a família e outras partes são distribuídas para outras famílias da coletividade que devem retribuir à família que fez a distribuição quando abatem algum animal. Utiliza-se a gordura para a fabricação de sabão e o couro tem várias utilidades para os moradores. O couro é transformado artesanalmente em chicotes, laços, e também é utilizado como local de dormir para algumas famílias, pois o mesmo é estendido sobre um ‘giral’ feito de madeira que é utilizado como cama. Importante esclarecer que no norte de Minas, este tipo solidariedade pode ser encontrado em abundância entre as populações rurais onde o dar, o receber e o retribuir constituem códigos de conduta que não podem ser rompidos. Um exemplo clarividente deste tipo de troca entre as populações rurais nortemineiras é o sacrifício de algum animal para ser utilizado como alimento. Quando se mata um boi ou um porco em uma comunidade rural, o dono do animal se vê obrigado a distribuir parte da carne entre seus membros. Não há nenhum contrato que o obrigue a fazer esta doação, o que existe é uma força moral que o obriga a distribuir esta carne entre a comunidade, afirmando, desta forma, o seu pertencimento a esta comunidade e, tendo a certeza que quando alguém realizar este mesmo sacrifício ele será retribuído pelo dom distribuído anteriormente. É evidente que nas cidades este tipo de relação ainda resiste à modernidade, mas não é tão forte quanto no meio rural. Assim, a criação de animais na maioria das comunidades torna-se crucial para a reprodução das mesmas, visto que a sua utilidade é percebida em todas as famílias. Faz-se saber que, nem todas as comunidades rurais são criadoras de gado. Há casos em que os membros não criam gado por vários motivos. Dessas populações as pesquisadas por Araújo (2009), vazanteiros negros do São Francisco, é um exemplo das populações que não criam gado. Nota-se, também, que com o passar do tempo, o manejo destes animais teve que se adequar às mudanças impostas por forças externas, principalmente as grandes lavouras de eucalipto, pois com a chegada das mesmas, as famílias que criavam o gado solto nas chapadas tiveram que reestruturar o espaço sob seu domínio para continuar a viabilizar a criação dos animais. As peculiaridades de alguns grupos sociais que representam a essência sertaneja pode ser percebida por todos que penetram nesse universo nortemineiro que se encontra sempre “aberto para o outro” (COSTA, 2003). Dar-se-á de forma clara a descrição das gentes e suas práticas e, também, sua imprescindível relação com o ambiente no qual se encontra inserido. Referências bibliográficas ARAÚJO, Elisa Cotta. Nas margens do São Francisco: sociodinâmicas ambientais, expropriação territorial e afirmação étnica do Quilombo da Lapinha e dos vazanteiros do Pau de Légua. Montes Claros: 2009. (Dissertação de mestrado). BARTH, Frederic – Ethnic Groups and Boundaries. The Social Organization of Culture Difference. Boston: Little, Brown and Company, 1969. BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto – Identidade, Etnia e Estrutura Social. São Paulo: Pioneira, 1976. COSTA, João Batista de Almeida. 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