A REPRESENTAÇÃO SARAMAGUIANA DOS MARGINALIZADOS EM “MEMORIAL DO CONVENTO” Felipe dos Santos Matias (Autor)1, Gerson Luiz Roani (Orientador)2 1 Universidade Federal de Viçosa/Departamento de Letras, Campus UFV, [email protected] 2 Universidade Federal de Viçosa/Departamento de Letras, Campus UFV, [email protected] Resumo - Este estudo faz uma investigação teórico-crítica acerca da representação que a narrativa saramaguiana Memorial do Convento (1982) faz do segmento dos trabalhadores portugueses que construíram o Convento de Mafra no século XVIII, durante o reinado de Dom João V. Esses operários foram marginalizados pela historiografia oficial, a qual os relegou ao esquecimento. Saramago busca em Memorial do Convento lançar um novo olhar acerca desse acontecimento histórico, com o intuito de escrever uma nova história a partir da ótica dos marginalizados. Memorial do Convento rebela-se contra a visão da história oficial que coloca o rei como sujeito da ação de construir o Convento de Mafra. Palavras-chave: História; Literatura; Memorial do Convento; José Saramago; Convento de Mafra. Área do Conhecimento: Lingüística, Letras e Artes Introdução A possibilidade de diálogo entre a história e a literatura instigou o interesse dos romancistas portugueses contemporâneos, os quais têm, através da ficção, tentado despertar a consciência dos leitores para um novo olhar acerca da história de Portugal, diferente do que sempre foi propagado como oficial e unívoco. É nesse contexto de pós-revolução que emerge José Saramago, um dos expoentes mais importantes do atual panorama literário português. A produção literária de Saramago revela uma consciência aguda dos problemas políticos, sociais e culturais que a sociedade portuguesa enfrentou após a Revolução dos Cravos. Saramago é dos escritores atuais em Portugal aquele que, talvez, abraça de maneira mais evidente uma arte compromissada, ou ainda, um romancista que acredita que o romance seja um instrumento de resgate das classes desfavorecidas e um instrumento de denúncia dos desmandos dos poderosos. Por isso, sua escrita é peculiar por inventar um narrador fortemente comprometido com uma ideologia, que, na maioria das vezes, mais do que apresentar literariamente os fatos, procura comentá-los, de modo a investir criticamente na realidade circundante. Na obra Memorial do Convento a representação da história ultrapassa as restritas e difusas proporções de uma mera cor local, visto que José Saramago resgata o discurso historiográfico acerca da construção do Convento de Mafra para poder ampliá-lo. Percebe-se de maneira bem nítida que o romance Memorial do Convento privilegia o processo árduo de construção do Convento de Mafra, em contraposição à simples menção feita pela historiografia oficial portuguesa, para a qual Dom João V ordenou e o Convento de Mafra foi construído, desconsiderando, desse modo, todo o longo e dificultoso processo de edificação, no qual milhares de homens se sacrificaram para consolidar a obra. Com muita sagacidade e senso crítico, Saramago busca em seu romance recompor esse acontecimento histórico, com o intuito de configurar uma certa memória acerca do convento, da sua origem, da sua construção e dos que nele trabalharam. Metodologia Este trabalho realiza um estudo teórico-crítico de um dos planos narrativos do romance Memorial do Convento (1982), aquele que foi destinado à construção do Convento de Mafra. Ao propor tal investigação, investi em uma abordagem que visa explorar analiticamente a representação que a narrativa saramaguiana faz do segmento dos trabalhadores portugueses que construíram o Convento de Mafra no século XVIII, durante o reinado de Dom João V. Resultados O romance Memorial do Convento é considerado um dos mais importantes da literatura portuguesa contemporânea, em virtude de ser a obra que de forma mais nítida e impressiva recuperou a história para a ficção. Segundo Álvaro Cardoso Gomes, essa obra-prima de José Saramago “é grande sucesso de público e crítica, e apesar de romance histórico, de certo modo, persegue a temática desenvolvida em Levantado do Chão, pois novamente investe na XIII Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e IX Encontro Latino Americano de Pós-Graduação – Universidade do Vale do Paraíba 1 sobrevalorização de personagens do povo” (GOMES, 1993, p. 36). Para Adriana Martins, José Saramago, consciente da existência de uma multiplicidade de configurações da memória e da possibilidade de a preferência por uma delas ser abusiva, resgata o tecido da memória pública do Convento de Mafra para, através do seu Memorial do Convento, revelar e discutir a(s) sua(s) fragilidade(s), principalmente no que concerne ao silêncio do discurso histórico sobre a importância fundamental dos trabalhadores que esculpiram na pedra um dos monumentos mais representativos do reinado de D. João V (MARTINS, 2006, p. 280). Através do que coloca Adriana Martins, podese observar que a história é em Memorial do Convento submetida a um peculiar tratamento, visto que Saramago revela em seu universo ficcional as fragilidades do discurso histórico acerca do Convento de Mafra. Para Ana Paula Arnaut, a obra saramaguina não reproduz “fielmente os inabaláveis fatos da história mas, pelo contrário, aproveita acontecimentos e figuras que, mesclados com a imaginação (re)criadora do autor, viabilizam a construção de uma história marginal à versão oficial” (ARNAUT, 1996, p. 58). A convergência do real com o ficcional constitui o princípio basilar de construção de Memorial do Convento. Não se trata, logicamente, de um procedimento ideologicamente inócuo: a inserção das figuras populares no devir da história surge com a dimensão de uma reparação tardia mais ainda necessária. Em sua narrativa, Saramago procura imbricar os fatos e personagens que a história oficial conservou na memória coletiva (Dom João V, D. Maria Ana Josefa, o padre Bartolomeu de Gusmão, o músico Scarlatti) com aqueles outros que foram sistematicamente esquecidos pela história oficial (pobres, camponeses, operários). No romance Memorial do Convento, Saramago concentra a sua atenção no século XVIII e num evento histórico específico, a construção do Convento de Mafra, para reler a história de maneira crítica e detalhada, problematizando o fato de a historiografia não reconhecer, e nem sequer mencionar, o imprescindível papel dos trabalhadores portugueses na edificação do convento. Acerca desse “esquecimento” por parte da história oficial, Adriana Alves de Paula Martins afirma: “Interessante é, no entanto, observar que a história oficial, ao reconhecer o Convento de Mafra como uma das obras grandiosas do reinado de D. João V, identifica-a como sendo o produto do trabalho e da vontade de um homem, o rei, o que se constitui numa evidente distorção dos acontecimentos e que decorre da tendência que a historiografia tem de engrandecer as personalidades históricas conotadas com o poder” (MARTINS, 2006, p. 273). Com a obra Memorial do Convento Saramago inscreve o seu nome como um dos grandes romancistas na cena literária portuguesa e internacional. De acordo com os críticos literários da época em que surgiu o livro, Memorial do Convento representa o apuramento e o desenvolvimento de algumas das preocupações afloradas em Levantado do Chão e que derivam da consciência do autor sobre a existência de uma visão mitificada, idealizada e ideologicamente comprometida da história em geral, e da portuguesa em particular, sobretudo, quando se tem em conta a representação oficial da memória pública, a qual sempre foi construída pelo viés da classe dominante. Em contraposição ao discurso histórico tradicional, Saramago explora em sua narrativa a história do Convento de Mafra a partir da ótica dos trabalhadores, os quais efetivamente construíram o monumento arquitetônico e foram marginalizados pela memória oficial, que os relegou ao anonimato. Para Adriana Martins, o romance Memorial do Convento “chama a atenção para aquele que é talvez o pior dos abusos da memória pública enquanto representação do passado, ou seja, o esquecimento” (MARTINS, 2006, p. 275). Para tratar da história dos marginalizados em Memorial do Convento, José Saramago utiliza como ponto de partida a historicidade, ou seja, os elementos e fatos históricos que caracterizaram o reinado de Dom João V e suas realizações como monarca, para poder criar a sua versão da história da construção do Convento de Mafra. Saramago tece habilmente sua teia romanesca fincada na história, configurando no início de sua narrativa os motivos que levaram a construção de Mafra, para depois imergir na história dos marginalizados. O romancista deixa bem nítido aos seus leitores que Mafra era antes da construção do convento um vilarejo muito pacato e, de certo modo, incorrupto. Após o início das obras, Mafra se transforma em um gigantesco canteiro de obras, sendo invadida por pessoas de todos os pontos de Portugal, afetando de maneira decisiva o modo de vida local. Por meio da escrita de Saramago, percebe-se que o Convento de Mafra simboliza uma espécie de alienação, resultado da exploração material do trabalho humano, corruptora da personalidade humana. Esta é a paisagem com que se depara o padre Bartolomeu de Gusmão, uma das principais personagens do romance, no caminho para a vila de Mafra, um lugar de verdadeiro trabalho forçado. O fragmento a seguir, extraído do romance, ilustra isso: “Os homens avançaram para o terreno revolvido, com carros de mão e pás, enchendo aqui, no monte, despejando além, na encosta para XIII Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e IX Encontro Latino Americano de Pós-Graduação – Universidade do Vale do Paraíba 2 Mafra, ao passo que outros homens, de enxada ao ombro, desciam aos caboucos já fundos, neles desapareciam, enquanto mais homens lançavam cestos para dentro e depois os puxavam para cima, cheios de terra, e os iam despejar afastadamente, aonde outros homens iam por sua vez encher os carros de mão, que lançavam no aterro, não há diferença nenhuma entre cem homens e cem formigas, leva-se isto daqui para ali porque as forças não dão para mais, e depois vem outro homem que transportará a carga, até a próxima formiga, até que, de costume, tudo termina num buraco, no caso das formigas lugar de vida, no caso dos homens lugar de morte, como se vê não há diferença nenhuma” (SARAMAGO, 1982, p. 118). Através da leitura do fragmento acima, nota-se claramente como Saramago representa os marginalizados dentro da história, os quais se confundem com as formigas, seres irracionais, que trabalham forçadamente e constantemente, levando uma vida de esforço total. O fim destes operários é, como diz o romancista, o buraco, ou seja, a cova. Os operários trabalham, se esforçam, constroem o que lhes foi designado e caem no esquecimento, pois a história nem sequer os menciona. O crédito e a glória sempre ficam para aqueles que dominam e oprimem, nunca para os dominados e oprimidos. Esse fragmento demonstra que Saramago refigura muito bem a vida de esforço e serviço pesado que levaram aqueles que construíram o Convento de Mafra. O romance de Saramago deixa muito nítido que a construção do Convento de Mafra é um modelo de repressão, no qual milhares de homens trabalharam duramente e muitos até perderam suas vidas para realizar uma vontade real. Dom João V não mandou edificar a majestosa obra como símbolo de fé ou devoção católica, mas sim para fazer uma troca de favores com o clero, para aumentar a sua vaidade, para inscrever seu nome na história como aquele que “construiu” o grande convento, enfim, para satisfazer a sua mania de grandeza. Desse modo, observa-se que o convento nasceu de uma glória pessoal, a qual não foi repassada para aqueles que na sua construção foram efetivamente envolvidos. Saramago explicita em seu romance que o rei Dom João V tinha medo de morrer antes do fim da construção do Convento de Mafra, e, em conseqüência disso, não levar o crédito e não entrar para a história, e por essa razão mandou acelerar os trabalhos com o intuito de antecipar a sagração da basílica, fato que efetivamente aconteceu. O excerto a seguir evidencia esse aspecto: “Mas esse medo de morrer não é o de se lhe abater de vez o corpo e ir-se embora a alma, é sim o de que não estejam abertos e luzentes os seus próprios olhos quando, sagrada, se alcançarem as torres e a cúpula de Mafra, é o de que não sejam já sensíveis e sonoros os seus próprios ouvidos quando soarem gloriosamente os carrilhões e as solfas, é o de não palpar com as suas mãos os paramentos ricos e os panos de festa, é o de não cheirar o seu nariz o incenso dos turíbulos de prata, é o de ser apenas o rei que mandou fazer e o que vê feito [...] E D. João repete, Tudo é vaidade, vaidade é desejar, ter é vaidade” (SARAMAGO, 1982, p. 289). A narrativa saramaguiana evidencia que foi essa mania de grandeza do rei que o fez ordenar que se aumentassem indiscriminadamente as dimensões do edifício, sem levar em consideração o projeto do arquiteto alemão Johann Friedrich Ludwig, o idealizador da obra. Mesmo tendo ordenado o aumento do tamanho do convento, o rei decidiu que a sagração seria na data do seu aniversário, desconsiderando se a obra iria ficar pronta ou não. Com isso, nota-se que o tempo da construção não foi calculado em relação à dificuldade do trabalho e ao esforço corporal dos homens que precisavam enfrentar com recursos precários a imensidão natural da rocha e do mármore. Em contraposição a esses delírios e caprichos do rei, o narrador saramaguiano coloca de maneira irônica que para satisfazer aos anseios da realeza era necessário haver gigantes trabalhando nas obras e não homens comuns: “Ora, o mal desta obra de Mafra é terem posto homens a trabalhar nela em vez de gigantes, e, se com estas e outras obras passadas e futuras se quer provar que também o homem é capaz de fazer o trabalho que gigantes fariam, então aceitese que leve o tempo que levam as formigas, todas as coisas têm de ser entendidas na sua justa proporção, os formigueiros e os conventos, a laje” e a pargana (SARAMAGO, 1982, p. 328-329). Os trabalhadores das obras do Convento de Mafra que estão presentes no romance de Saramago são, evidentemente, criações ficcionais, visto que não há registro historiográfico que confirme a existência dos diversos nomes que o romancista atribui aos trabalhadores. Entretanto, é natural que isso aconteça, porque tradicionalmente só têm o seu lugar na história as personalidades que integram o mundo dos privilegiados, em especial a alta nobreza e o clero. E em relação á época focalizada pela obra de Saramago (início do século XVIII em Portugal) só imprimiram vestígios históricos os nobres e os eclesiásticos, os opressores que comandavam o Antigo Regime. Mas em Memorial do Convento o narrador saramaguiano desloca o eixo tradicional da leitura do passado, deixando emergir o povo e nomeando os heróis que construíram o Convento de Mafra e que a historiografia tentou encobrir, conforme se observa no trecho abaixo: “Alcino, Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, XIII Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e IX Encontro Latino Americano de Pós-Graduação – Universidade do Vale do Paraíba 3 Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados, porventura nem todos estes nomes serão os próprios do tempo e do lugar, menos ainda da gente, mas, enquanto não se acabar quem trabalhe, não se acabarão os trabalhos, e alguns destes estarão no futuro de alguns daqueles, à espera de quem vier a ter o nome e a profissão [...] Tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, e é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, tornálos imortais, pois aí ficam, se de nós depende” (SARAMAGO, 1982, p. 242). O fragmento acima nos deixa claro que o narrador saramaguiano tem consciência de que esses novos heróis criam uma nova visão acerca da história, pois opõe-se aos heróis tradicionais (reis, nobres, eclesiásticos). Os novos heróis citados pelo narrador subvertem a ordem, dominam a narrativa, impõem-se à história e reconfiguram a memória da nação portuguesa sob o signo da justiça, da igualdade social e da dignidade humana. Em seu romance, Saramago nos proporciona uma nova visão acerca da memória do Convento de Mafra, principalmente porque considera como parte integrante da história as classes sociais oprimidas e o cotidiano das pessoas simples. Ao revisitar o passado português, Saramago recoloca na história os seus legítimos agentes e dá voz àqueles que foram silenciados. A respeito do fato de Saramago lançar um novo olhar acerca da construção do Convento de Mafra, Teresa Cristina da Silva coloca: “O século XVIII não foi exatamente em Portugal um tempo de catedrais. Mas foi o tempo do Convento de Mafra, cuja construção permitiu a José Saramago lançar os olhos sobre a paisagem desse tempo passado. E, como diz Duby, não foi esse um mau percurso já que o objetivo é justamente o de restaurar a integridade do que parecia acessório e secundário, o de dar vida e voz à ‘diversidade obscura e fecunda’ sobre a qual paira o supostamente essencial. Talvez esteja aí o fundamento desse ‘memorial’: rever o passado” (SILVA, 1989, p. 31). De acordo com Silva (1989), se para Camões cantar é eternizar, como no romance de Saramago escrever é tornar imortais os marginalizados pela história, na epopéia renascentista eram eternizados os “barões assinalados”, “as memórias gloriosas” dos reis e as “obras valorosas” dos heróis, enquanto na obra saramaguiana há a valoração dos homens simples e defeituosos. A passagem a seguir confirma isso: “De quantos pertencem ao alfabeto da amostra e vão a Pero Pinheiro, pese-nos deixar ir sem vida contada aquele Brás que é ruivo e camões do olho direito, não tardaria que se começasse a dizer que isto é uma terra de defeituosos, um marreco, um maneta, um zarolho, e que estamos a exagerar a cor da tinta, que para heróis se deverão escolher os belos e formosos, os esbeltos e escorreitos, os inteiros e completos, assim o tínhamos querido, porém, verdades são verdades, antes se nos agradeça não termos consentido que viesse à história quanto há de belfos e tartamudos, de coxos e prognatas, de zambros e epiléticos, de orelhudos e parvos, de albinos e de álvares, os de sarna e os da chaga, os da tinha e do tinhó, então sim, se veria o cortejo dos lázaros e quasímodos que está saindo da vila de Mafra, ainda madrugada, o que vale é que de noite todos os gatos são pardos e vultos todos os homens” (SARAMAGO, 1982, p. 242-243). O trecho acima revela, mais uma vez, que em contraposição ao discurso da história oficial - que valoriza os magnânimos reis, os imponentes nobres, os belos e vistosos príncipes, as lindas e exuberantes rainhas - , o romance de Saramago focaliza a história dos homens simples, com seus defeitos e virtudes, com sua beleza e feiúra, mostrando aos leitores que na literatura o feio pode ser belo, visto que representa a transfiguração da experiência humana. O narrador saramaguiano deixa claro que a história constantemente quer maquiar o que se passou, excluindo os pobres e deficientes e exaltando apenas os ricos, poderosos e belos. Além disso, percebe-se que o discurso histórico tradicional exagera nos adjetivos e glorifica em demasia. Discussão Pode-se dizer que com sua obra Saramago nos faz perceber que onde não há fontes escritas deve o escritor “fazer o seu mel”, mesmo se não há aparentemente “flores”. Dessa forma, o romancista português pôde criar a sua obra, suprindo a ausência de documentos acerca dos trabalhadores de Mafra. Essa postura crítica e criativa nos faz compreender que se o escritor não construísse a sua narrativa, muitos de nós leitores continuaríamos a crer que no passado só havia os nomes que a história registrou, e que o restante seria apenas uma massa informe, sem característica, sem postura, sem desejos, sem sonhos. O povo no Memorial do Convento, como nos demais romances de Saramago, readquire forma e identidade. Assim, o romancista português preenche as zonas silenciosas e esquecidas dos sem-história, fazendo de sua narrativa um discurso desalienante e contra-ideológico, que objetiva derrubar a noção de que só os poderosos XIII Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e IX Encontro Latino Americano de Pós-Graduação – Universidade do Vale do Paraíba 4 são capazes de imprimir vestígios para a posteridade. Segundo Saramago, “é a impossibilidade do esquecimento que o leva a escrever romances” (SARAMAGO, 1989, p. 56). A partir dessa afirmação, percebe-se que a ficção saramaguiana se reveste de um caráter de resistência contra as manipulações da historiografia oficial, que relega ao esquecimento aquilo que não é interessante para a ideologia dominante. Na sua narrativa, o escritor procura realizar uma reconstrução da memória da nação portuguesa, revisitando acontecimentos que marcaram o passado de Portugal e que não tiveram a devida atenção por parte dos historiadores. De acordo com Adriana Alves de Paula Martins, “a consciência histórica de Saramago levou-o, no processo de resgate da história portuguesa, a localizar e a expor algumas das fraturas do discurso oficial, ou seja, aquilo que não foi dito nem explicado” (MARTINS, 2006, p. 252). A obra Memorial do Convento procura restituir aos construtores do Convento de Mafra o seu lugar na história e, conseqüentemente, o seu mérito, fazendo com que o leitor perceba que não foi o rei Dom João V quem construiu o Convento de Mafra, mas sim pessoas singularmente comuns, “que não fizeram nenhum filho à rainha e que pagam o voto, que se lixam” (SARAMAGO, 1982, p. 257). O fato de Saramago fazer em sua narrativa uma descrição da vila de Mafra como um espaço de trabalho vem reconhecer o poder e o saber daqueles que conseguiram transformar uma exorbitante quantidade de pedras em um monumento grandioso. A respeito do fato de o romance Memorial do Convento reconhecer a importância dos trabalhadores na construção do Convento de Mafra, Adriana Martins afirma: “O texto ficcional de Saramago, na verdade, resgata e ilumina este episódio da história de Portugal, que é conhecido do potencial leitor, para redizê-lo sob uma outra perspectiva, ou seja, a das memórias dos operários, sendo pertinente afirmar que é, no decorrer do segundo retrato que Saramago elabora da história da construção do convento, que é feito o primeiro retrato dos homens que a historiografia optou por não reconhecer” (MARTINS, 2006, p. 273-274). Por meio do excerto acima, percebe-se que o romance saramaguiano realiza uma transformação dos desconhecidos trabalhadores de Mafra em figuras de reconhecido relevo histórico, resgatando-os da obscuridade e do silêncio que a memória nacional os relegou. Silêncio, aliás, injusto e decorrente principalmente do fato de a historiografia oficial associar de modo reducionista e absurdo o Convento de Mafra à figura do rei Dom João V. Em seu romance, Saramago consegue semear uma constante dúvida no pensamento do leitor com relação à veracidade e credibilidade do que foi transmitido (ou não) pelas fontes históricas acerca da construção do Convento de Mafra. Ao contar o “que poderia ser” e não simplesmente “o que foi”, o escritor português, de acordo com Álvaro Cardoso Gomes, procurou “desvelar a realidade, mostrar aquilo que os manuais de história omitiram por fragilidade metodológica ou por intencional postura ideológica” (GOMES, 1993, p. 41-42). O narrador saramaguiano, sempre irônico e distanciado, mais do que contar comenta os fatos históricos, explorando as nuanças e desvendandolhes o sentido oculto. Assim, nota-se que Saramago realiza de modo sistemático uma espécie de intervenção na memória de seu país, pois sua ficção se apresenta como um meio de modificar a realidade, de alterar o olhar e, conseqüentemente, a interpretação que o povo tem dessa mesma realidade. A narrativa ficcional saramaguiana retoma a história para ser interrogada, revisada e recontada. De acordo com Gerson Roani, nota-se em Saramago que a “consciência do fazer literário alimenta o processo da escritura, apontando a provisoriedade do discurso e a reescrita da literatura e da história sob uma ótica renovadora” (ROANI, 2006, p. 316). Ao desconstruir e reconstruir através da ficção os fatos históricos em ato de repetição e transgressão, o autor instaura em Memorial do Convento perguntas e dúvidas que possibilitam reescrever a história de Portugal sob a ótica dos marginalizados. Conclusão Após a realização da análise teórico-crítica posso afirmar com firmeza que o romance Memorial do Convento é mais do que uma simples ficção sobre a construção do Convento de Mafra. O que se observa nessa primorosa obra do romance português contemporâneo é a tentativa saramaguiana de reconstruir a história daqueles que foram marginalizados pela história oficial: os trabalhadores que edificaram o Convento de Mafra. Através de um narrador crítico, irônico e incisivo, José Saramago evidencia aos seus leitores que é preciso reler criticamente o passado, não mais para nele encontrar modelos utópicos de perfeição saudosista, mas sim para desenvolver a capacidade de pensar, analisar, e fazer reflexões sobre o caráter nacional português. O romance Memorial do Convento configura-se como um encontro dialético entre o presente e o passado, aproximando-se de uma visão mais humana da história. Nele, Saramago problematiza o discurso histórico tradicional português, o qual silencia e oculta a verdade acerca do papel do povo na determinação dos acontecimentos, XIII Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e IX Encontro Latino Americano de Pós-Graduação – Universidade do Vale do Paraíba 5 colocando os marginalizados também como agentes do processo histórico. Com sua narrativa, Saramago propicia ao leitor uma maior inteligibilidade em relação à construção do Convento de Mafra e ao papel que os milhares de trabalhadores desempenharam para que este belíssimo monumento arquitetônico se tornasse realidade. Ao escolher o Convento de Mafra como tema central do seu romance, Saramago parte de um monumento da história de seu país para preencher o espaço deixado por uma deliberada ausência, por um silêncio. Memorial do Convento vem suprir uma lacuna do discurso histórico acerca da construção do convento, inscrevendo os desconhecidos trabalhadores de Mafra na história do convento e, consequentemente, de Portugal. Ao optar por reescrever a história do Convento de Mafra sob a ótica dos que foram excluídos da memória pela história oficial, Saramago explicita em Memorial do Convento a responsabilidade que o escritor deve assumir para com o passado, tornando possível a busca de um novo sentido. Assim, o romancista português procura configurar por meio de sua narrativa uma nova identidade para Portugal, que em 1982, data da publicação do livro, ainda se encontrava numa fase de redefinição artística e cultural, devido ao fim do regime ditatorial salazarista com a Revolução dos Cravos em 1974. Referências - ARNAUT, Ana Paula. Memorial do Convento: história, ficção e ideologia. Coimbra: Fora do Texto, 1996. - GOMES, Álvaro Cardoso. A voz itinerante: ensaio sobre o Romance Português Contemporâneo. São Paulo: EDUSP, 1993. - MARTINS, Adriana Alves de Paula. A construção da memória da nação em José Saramago e Gore Vidal. Frankfurt: Peter Lang Europäischer Verlag der Wisenschaften, 2006. - ROANI, Gerson Luiz. Saramago e a escrita do tempo de Ricardo Reis. São Paulo: Scortecci Editora, 2006. - SARAMAGO, José. Memorial do Convento. São Paulo: Difel, 1982. - SARAMAGO, José. História do cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. - SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. José Saramago: entre a história e a ficção uma saga de portugueses. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1989. XIII Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e IX Encontro Latino Americano de Pós-Graduação – Universidade do Vale do Paraíba 6