DESPACHO SEJUR N.º 462/2015
(Aprovado em Reunião de Diretoria em 17/09/2015)
 Interessado: Presidência do CFM
 Expedientes n.º 7513/2015
 Assunto: Análise jurídica. “Depoimento de dano” para crianças e adolescentes vítimas de
violência e abuso sexual. Recomendação CNJ n.º 33/2010. Doutrina da Proteção Integral. Condição
peculiar de pessoa em desenvolvimento. Competência privativa da União para legislar sobre direito
processual.
I – DOS FATOS
Trata-se de comunicação encaminhada pela Associação Catarinense de Psiquiatria – ACP,
solicitando manifestação formal do CFM sobre o instituto denominado “Ouvida sem danos para
crianças e adolescentes vítimas de violência e abuso sexual”.
Afirma que se trata de tema de grande repercussão para as carreiras da saúde, sendo que os
Conselhos de Psicologia e Assistência Social já firmaram posicionamento formal sobre a matéria.
Desse modo, solicita emissão de parecer do CFM sob o aspecto técnico e ético decorrente da
atuação médica no exercício do citado procedimento.
O expediente foi encaminhado a este Sejur, a fim de obter análise jurídica da questão.
É o relatório.
II – DA ANÁLISE JURÍDICA
De início, convém destacar que a presente análise será realizada apenas no que se refere aos
aspectos jurídicos do chamado “Depoimento sem dano”, faltando competência técnica a este Sejur
para manifestação sobre os aspectos éticos e técnicos da atuação médica em tal modalidade de
oitiva.
Conforme definição da doutrina, o depoimento sem dano consiste na oitiva judicial de
crianças e adolescentes que foram supostamente vítimas de crimes contra a dignidade sexual por
meio de um procedimento especial, que pode ser assim sintetizado.
Em tal procedimento, a criança ou o adolescente fica em uma sala reservada, sendo o
depoimento colhido por um técnico, que faz as perguntas de forma indireta, por meio de uma
conversa em tom mais informal e gradual, à medida que vai se estabelecendo uma relação de
confiança entre ele e a vítima. O juiz, o Ministério Público, o réu e o Advogado/Defensor Público
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acompanham, em tempo real, o depoimento em outra sala por meio de um sistema audiovisual que
está gravando a conversa do técnico com a vítima.
O objetivo principal desse programa é o de evitar que a vítima seja submetida a um novo
trauma, que é o de ter que relatar um episódio triste e difícil de sua vida para pessoas estranhas, em
um ambiente formal, frio e, para ela, assustador. A experiência demonstra que se a criança ou
adolescente é chamada a depor pelo método tradicional, ela pouco irá contribuir para o
esclarecimento da verdade porque se sentirá envergonhada e amedrontada, esquecendo ou evitando
fazer um relato fiel do que aconteceu, com detalhes que, por vezes, são necessários para o processo
penal.
Os defensores de tal procedimento argumentam que os Juízes, Promotores e Defensores,
em tese, não possuem preparação adequada para dialogar com uma criança ou adolescente em tais
situações. Além disso, mesmo quando a vítima contribui, esse momento de sua inquirição
representa, em uma última análise, uma nova violência psíquica contra si, o que poderá trazer novos
traumas para a sua formação.
Cabe destacar que nada impede que a sistemática do “depoimento sem dano” pode ser
utilizada tanto na fase pré-processual (inquérito policial), quanto na fase judicial.
Atualmente, a legislação não prevê expressamente essa sistemática. Existe um projeto de lei
(PL 7.524/2006), de autoria da Dep. Maria do Rosário (PT/RS), que visa disciplinar o “Depoimento
sem Dano”.
Além disso, é importante mencionar que o CNJ editou a Recomendação 33/2010 afirmando
que os Tribunais deverão implantar o sistema do depoimento especial para crianças e adolescentes,
em sala separada, com a presença do técnico, sendo registrada por meio audiovisual.
O STJ1, por sua vez, entende que é válida nos crimes sexuais contra criança e adolescente, a
inquirição da vítima na modalidade do “depoimento sem dano”, em respeito à sua condição especial
de pessoa em desenvolvimento, inclusive antes da deflagração da persecução penal, mediante
prova antecipada.
Assim, não configura nulidade por cerceamento de defesa o fato de o defensor e o acusado
de crime sexual praticado contra criança ou adolescente não estarem presentes na oitiva da vítima
devido à utilização do método de inquirição denominado “depoimento sem dano”.
A medida, portanto, está baseado na doutrina da proteção integral, conforme previsão do
art. 227 da Constituição da República e no art. 4º da Lei n.º 8.069/90 (ECA), considerando ainda que
crianças e adolescentes são sujeitos de direito em peculiar condição de desenvolvimento, de modo
que os procedimentos de inquirição e oitiva dos infantes deve ocorrer de acordo o melhor interesse
de tais pessoas.
1
STJ. 5ª Turma. RHC 45.589-MT, Rel. Min.Gurgel de Faria, julgado em 24/2/2015 (Info 556).
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Por fim, diante da informação contida no expediente sobre a necessidade de se responder a
um questionamento formulado pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina, é preciso registrar que
a União, por meio do Congresso Nacional, detém competência privativa para legislar sobre direito
processual, conforme art. 22, inciso I, da CF/88, o que, em análise superficial, impede a edição de leis
estaduais que tratem da matéria, sob pena de vício de inconstitucionalidade, salvo de houver Lei
Complementar da União que autorize os Estados a legislar sobre questões específicas, conforme
dispõe o parágrafo único do citado art. 22, autorização esta que, atualmente, não existe.
Essas, portanto, são as considerações do Sejur sobre o Instituto do “Depoimento sem Dano”,
devendo, por oportuno, ser ressaltado que tal prática já encontra ampla aceitação no Judiciário
brasileiro, sendo, inclusive, fomentada pelo Conselho Nacional de Justiça, conforme Recomendação
n.º 33/2010.
É o que nos parece, s.m.j.
Brasília/DF, 04 de setembro de 2015.
Rafael Leandro Arantes Ribeiro
Advogado do Conselho Federal de Medicina
OAB/DF n.º 39.310
De Acordo:
José Alejandro Bullón
Chefe do SEJUR
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