DO DESENVOLVIMENTO DA TEORIA PULSIONAL FREUDIANA PARA
UMA REFLEXÃO SOBRE A RELAÇÃO ENTRE AMOR E ÓDIO.
Ligia Maria Durski
Iniciemos este texto fazendo uma breve retomada de alguns momentos
importantes da obra freudiana que antecederam a segunda teoria pulsional. Essa
retomada histórica é necessária para percebermos que a segunda teoria pulsional, além
de estar correlacionada à divisão “Amor X Ódio”, abre uma via de reflexão sobre uma
pergunta específica: quem vem antes? O ódio? O amor? Ou ainda, os dois ao mesmo
tempo?
Podemos observar que Freud, já no início de sua obra, notando a relevância de
um ponto de vista econômico acerca do funcionamento psíquico, definiu dois princípios
de importante influência na vida psíquica: o princípio de desprazer/prazer e o princípio
de realidade. Sendo que o primeiro visaria uma redução ou constância de estímulos e o
segundo a consideração da realidade/mundo externo que implicaria num adiamento da
descarga de estímulos.
Com o avanço de sua obra, nos ‘Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade’
(1905), Freud nomeia de ‘pulsão’ todo estímulo oriundo do corpo orgânico e que
atinge/é representado pelo aparelho psíquico, sendo que tal estímulo é movido pelo
princípio de prazer, tendendo à satisfação (que é sempre parcial, pois a pulsão exerce
pressão constante).
Especialmente entre 1905 e 1915, podemos então notar uma acentuada
implicação de Freud em definir aquilo que ele chamara de “pulsões originárias”. Em
1915 essa divisão original estava definida como “Pulsão Sexual X Pulsão do Eu”.
Freud defendia então uma divisão originária das pulsões a partir da clássica dualidade
entre Fome X Amor, entre Sobrevivência do Indivíduo X Sobrevivência da Espécie, ou
ainda, entre Egoísmo X Amor. Sendo que Freud adverte que quaisquer outras
qualificações da pulsão – como: pulsão oral, pulsão escópica, etc. – seria apenas uma
ramificação das originais. Portanto, se o que baseava essa divisão era a prioridade dada
à diferença entre Eros e Ananke, será entre Eros e Tânatos que Freud perceberá uma
divisão mais original, mais radical entre as pulsões.
Pois bem, precisando então aprofundar-se no estudo da tópica – mais
especificamente do Eu - para concretizar essa diferença entre pulsão sexual X pulsão do
Eu, Freud viu-se diante de outro dilema: o Eu também pode ser objeto de investimento
libidinal, o Eu também é objeto.
Inaugura-se uma nova fase na obra freudiana na qual o estudo do narcisismo
toma frente e possibilita a Freud o avanço de suas especulações sobre o aparelho
psíquico, evidenciando a importância de pensarmos a questão econômica não somente
em termos da gênese das excitações que acometem o aparelho, mas também – e talvez
principalmente - em termos de relação objetal.
Ora, se não há um Eu a priori, não há um mundo externo a priori e não há uma
diferenciação a priori. O que há então, de início, é uma “posição” de indiferença –
herdeira do ódio – do bebê frente ao mundo externo. Portanto, é somente em termos de
relação objetal que podemos pensar que o ódio é anterior ao amor. Sendo necessário
advertir que existe um tempo anterior à relação objetal que não impõe uma necessária
oposição amor/ódio e nem uma anterioridade entre ambos, mesmo porque amor e ódio
já tratam de formas de relação com um objeto. Tal é a constatação de Freud:
Enquanto relação com o objeto, o ódio é mais antigo que o amor, ele surge do
repúdio primordial do Eu narcísico ao mundo exterior aportador de estímulos. O
ódio é uma exteriorização da reação de desprazer provocada pelos objetos.
(FREUD, 1915, p.161).
Portanto, Freud anuncia uma anterioridade do ódio somente "quando a etapa
puramente narcísica dá lugar à etapa objetal, - sendo que somente então - prazer e
desprazer passam a significar as relações do Eu com o objeto." (FREUD, 1915, p. 159).
Devemos também lembrar que a relação prazer/desprazer demonstra uma primeira
qualificação, uma primeira distinção realizada pelo bebê. Ou seja: amaremos o objeto e
queremos incorporá-lo quando este proporciona prazer (origem da introjeção), mas, se o
objeto for fonte de desprazer, haverá a tendência a afastar-se do objeto (origem da
projeção).
Amor significará união com objeto e ódio afastamento, no entanto já podemos ver
nessa relação uma ambigüidade implícita, pois ao “comer” o objeto amado,
conseqüentemente o aniquilamos e, separando-nos do objeto, conseqüentemente
permitimos sua existência. Parece que, para existir, o objeto não pode estar nem muito
próximo, nem muito distante.
Assim sendo, amor e ódio são pensados por Freud, até 1915, da seguinte forma:
(...) embora o amor e o ódio se nos apresentem como completamente
opostos em seu conteúdo, a relação entre ambos de modo algum é
simples. Não provêm da clivagem de um elemento original comum,
possuem origens diversas e cada um passou pelo seu próprio
desenvolvimento antes de, sob a influência da relação prazerdesprazer, tomarem forma de opostos. (FREUD, 1915, p. 160).
Em resumo: amor e ódio não são originariamente opostos e somente após a
influência da relação prazer/desprazer e com o advento do objeto é que amor e ódio
tomam a forma de opostos.
Será então no ano de 1920 que Freud definirá uma nova divisão das pulsões
originais, a saber: Pulsão de Vida X Pulsão de Morte. Justamente, a definição da pulsão
de morte se deu também em vista de outro dilema importante ao qual Freud fora
confrontado: como explicar aumentos de tensão sentidos como prazerosos e baixas de
tensão sentidas como desprazerosas? E como compreender a compulsão à repetição que
parece não ser regida pelo princípio de prazer?
O princípio de prazer, antes definido como tendência à redução da tensão ou
como manutenção de uma constância, fora colocado em cheque e Freud viu-se obrigado
a admitir um além do princípio de prazer.
A partir do texto ‘Além do Princípio de Prazer’ (1920), Freud concebe então a
tendência da pulsão de morte como um processo de destruição e a tendência da pulsão
de vida como de construção, asseverando que “em todo fragmento da substância viva,
sempre encontraremos atuantes ambas as pulsões. No entanto, ambas atuam
combinadas em diferentes porções”. (FREUD, 1923, p.50).
Não será, pois, possível pensar em pulsão de vida ou de morte “puras”, mas
numa fusão de maior ou menor grau entre ambas, ficando então óbvio um inerente
paradoxo entre estas duas tendências.
Tendo amadurecido suas idéias, no ano de 1924, com o texto ‘O Problema
Econômico do Masoquismo’, Freud lança nova luz à questão e correlaciona: a) a
tendência da pulsão de morte com o princípio de Nirvana que privilegia a redução
quantitativa da carga de estímulos; b) a tendência da pulsão de vida com o princípio de
prazer e que prioriza características qualitativas da economia de tensões e; c) o princípio
de realidade com a exigência de uma aceitação temporária da tensão gerada pelo
desprazer. Sendo que “nenhum desses três princípios destitui o outro do poder. Aliás,
em geral, eles sabem conviver bem uns com os outros, embora, é claro, conflitos
ocasionais sejam inevitáveis.” (FREUD, 1924, p.107).
Portanto, o paralelo entre “Amor/Ódio” com “Pulsão de Vida/ Pulsão de Morte”
é definido por Freud da seguinte maneira:
(...) devemos substituir a oposição entre Eros e a pulsão de morte por
uma nova oposição: a polaridade entre o amor e o ódio. (...) A
experiência clínica nos ensina que é um companheiro inesperadamente
constante do amor e que ele freqüentemente é o precursor do amor nas
relações humanas. (...) sob certas circunstâncias, o ódio pode se
transformar em amor e o amor em ódio. (FREUD, 1923, p.51).
Retomando então nossa pergunta: quem vem antes? O ódio? O amor? Ou ainda,
ambos ao mesmo tempo? Devemos, pois, considerar que, em se tratando de relação
objetal, o ódio pode ser considerado anterior ao amor somente pelo fato da indiferença
ser herdeira do ódio. Ou seja, quando ainda não há objeto, não é que ele não exista, mas
ele é tão somente indiferente, logo, a primeira forma de existência do objeto será pela
via da indiferença.
Porém, considerando a existência desse momento anterior ao
advento do objeto - portanto anterior à formação do Eu - torna-se impossível pensar em
alguma anterioridade ou mesmo em alguma co-relação entre amor e ódio, entre atração
e repulsão do objeto.
Assim, após correlacionados à relação prazer/desprazer e após significarem as
relações com o objeto, amor e ódio tomarão a forma de opostos paradoxalmente
fusionados em maior ou menor grau demonstrando uma constante relação de
inclusão/exclusão do objeto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Freud, S. (1900) A Interpretação dos Sonhos. Edição comemorativa 100 anos,
Editora: Imago, São Paulo, 1969.
Freud, S. (1903) Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Edição Especial.
Editora: Imago, São Paulo, 1997.
Freud, S. (1911) Formulações sobre os Dois Princípios do Acontecer Psíquico. In:
Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Vol.I, Editora: IMAGO, São Paulo-SP, 2004.
Freud, S.(1914) À Guisa de Introdução ao Narcisismo. In: Obras Psicológicas de
Sigmund Freud. Vol.I, Editora: IMAGO, São Paulo-SP, 2004.
Freud, S.(1915) Pulsão e os Destinos da Pulsão. In: Obras Psicológicas de Sigmund
Freud. Vol.I, Editora: IMAGO, São Paulo-SP, 2004.
Freud, S.(1920) Além do Princípio de Prazer. In: Obras Psicológicas de Sigmund
Freud. Vol.II, Editora: IMAGO, São Paulo-SP, 2006.
Freud, S.(1923) O Eu e o Id. In: Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Vol.III,
Editora: IMAGO, São Paulo-SP, 2006.
Freud, S.(1924) O Problema Econômico do Masoquismo. In: Obras Psicológicas de
Sigmund Freud. Vol.III, Editora: IMAGO, São Paulo-SP, 2006.
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