O TESTEMUNHO LITERÁRIO COMO ESPAÇO DE CONFLITO DE INTERESSES CULTURAIS E IDEOLÓGICOS Luciara Pereira1 Resumo: Dentre as narrativas emergentes no contexto cultural contemporâneo, têm chamado a atenção o enfoque documental de muitas delas, como o gênero testemunho, consolidado pelo concurso literário internacional da instituição Casas de las Américas, de Cuba, em 1970. Figura entre narrativas como discurso fundamentado sobre bases documentais, tanto em seu conteúdo, fruto do relato de um subalterno frente a determinado momento histórico do qual foi testemunha, quanto em sua estrutura, pois esta narrativa é produzida em forma de depoimento, semelhante à situação de um tribunal, no qual o depoente deve afirmar seu compromisso com a verdade. Conforme Hugo Achugar (1992), o testemunho seria dotado de dois elementos inerentes à narrativa (de certa forma são critérios valorativos para a definição do gênero): a função exemplarizante ou de denúncia, e a exposição de fatos que fazem parte do patrimônio sócio-político-cultural. Em tais considerações sobre o gênero, já se pode vislumbrar sua natureza problemática, indicada, hoje, por discussões sobre fatores como a possibilidade de ficcionalização; autoria do relato, realizado por um subalterno, mas, em alguns casos, passível à intervenção de um letrado; conseqüências da transposição do discurso oral para o escrito; exigências para que esse discurso marginal possa circular pelo espaço hegemônico; preservação da oralidade como recurso de autenticidade; o caráter coletivo do gênero. Uma das questões centrais quanto à origem de tais problemáticas parece ser a tensão presente na relação hegemônico e subalterno, pois todo o universo no qual o testemunho está envolvido, gira em torna dessas duas esferas, desde a produção, até a recepção. Portanto, neste trabalho, procurar-se-á identificar os principais problemas que o testemunho tem gerado para, então, buscar uma aproximação a sentidos que possam ser conferidos a essa forma narrativa enquanto elemento cultural situado na zona de conflito entre a lógica hegemônica e os interesses subalternos. Palavras-chave: Narrativa. Testemunho. Hegemonia versus Subalternidade. 1 Aluna do 7° semestre do curso de Letras-Português e Respectivas Literaturas, UFSM. E-mail: [email protected]. Trabalho desenvolvido pelo projeto “Formas da ficção narrativa moderna: revisão teórica e crítica”, vinculado ao Grupo de Pesquisa CNPq: “América Latina: representações literárias contemporâneas”. As produções narrativas contemporâneas indiciam, pelo seu caráter heterogêneo e pela apropriação de diferentes linguagens e elementos culturais, nossa inserção num momento histórico marcado pela multiplicidade, que se faz presente não apenas nas manifestações literárias, mas em todas as instituições culturais e sociais. Tal situação tem gerado o apagamento das fronteiras que limitavam os modelos literários canônicos, as linguagens e os referentes, os quais não podem mais ser considerados exclusivos de determinado campo, sendo necessário, para a abordagem dessas produções, o auxílio de categorias pertencentes a diferentes áreas de estudo. Algumas dessas narrativas mantêm-se fiéis aos postulados modernos, outras se incutiram no nebuloso universo da pós-modernidade, pois já não respondem aos ideais de emancipação do homem por meio do conhecimento e não vislumbram o progresso como meio e fim da ação humana. Junto a isso, tem-se observado que modelos tradicionalmente ficcionais são contaminados por recursos documentais, provocando uma série de indagações críticas sobre as possíveis motivações do emprego de dados históricos, políticos e sociais na construção da narrativa. Blanka Vavakova (1988, p.107) considera que essa nova situação, provocada pelas mudanças da suposta passagem da modernidade para a pós-modernidade, teria por conseqüência a emergência de narrativas provenientes de grupos subalternos, por meio das quais apresentam sua versão da história, “são as lutas de libertação nos países colonizados, os movimentos nacionalitários, os das mulheres e das minorias culturais que testemunharam, uns atrás dos outros, da existência das suas histórias particulares”. Um dos recursos que tem legitimado a circulação dessas vozes como discurso que procura restituir “verdades” alicerçadas nas experiências de um sujeito, seria conforme Beatriz Sarlo (2005), a revalorização da primeira pessoa, por evocar a imediatez do vivido, conferindo um valor de autenticidade ao conteúdo narrativo veiculado. Isso significa, em termos de produção narrativa e mesmo intelectual, a (re)valorização da subjetividade, vista como mecanismo desencadeador da pluralidade representativa. Embora os pressupostos estruturalistas pregassem a morte do sujeito, neste caso, ele reassume relevância por valorizar nas narrativas emergentes a deflagração de diferentes representações, construídas a partir da perspectiva empírica de sujeitos pertencentes aos grupos considerados subalternos. Dentre essas narrativas, o gênero testimonio destaca-se, conforme Mabel Moraña (1995), pela comunicação de conteúdos e de problemáticas coletivas, fundamentalmente das classes subalternas, as quais sofrem constantemente com a exclusão cultural, social e histórica. Por ser uma forma narrativa de produção contemporânea, já estabelece indefinições sobre sua natureza, as quais são intensificadas no momento em que folheamos a primeira página do livro, e vislumbramos que o protocolo nos informa ser uma narrativa que tem a pretensão de apresentar fatos “reais”, partindo do olhar de um sujeito, muitas vezes, marginalizado. Nesses termos, a possibilidade de ocupação de um espaço no mundo privilegiado da escrita e da literatura por parte dos sujeitos periféricos, além de responder à situação favorável gerada pelas mudanças culturais, é resultado de muitas lutas e de reivindicações, pois, segundo Hugo Achugar, o espaço na escrita representa o poder de mostrar a sua versão da história e de questionar as imposições, a situação social, política e cultural, sendo, por isso, un espacio discursivo donde se representa la lucha por el poder de aquellos sujetos sociales que cuestionan la hegemonía discursiva no de los letrados en si, sino de los sectores sociales e ideológicos dominantes y detentadores del poder económico, político, cultural y social que han controlado históricamente la ciudad letrada, (1992, p.41). Resulta, portanto, numa tentativa de recuperar, mostrar e denunciar episódios que marcaram a história e a vida dos sujeitos envolvidos, principalmente os subalternos, vítimas até então silenciadas da violência, da repressão a movimentos revolucionários, dos regimes políticos ditatoriais, enfim, de eventos encabeçados pelo Estado, ou mesmo pelo sistema hegemônico, o qual figura, para muitos, como o sentenciador de sua condição de subalternidade. Agora, a partir de seu ponto de vista, podem dar a conhecer a versão de história, posicionada como contra-história, ou uma história paralela à oficial. O declarado envolvimento do sujeito com a situação social, cultural e histórica, associado à preocupação com o aspecto documental da narrativa, evidencia a insuficiência para abordá-la apenas sob o aspecto literário, gerando a necessidade de incorporar categorias da história, sociologia, antropologia, psicanálise, convergindo, assim, diferentes áreas de estudo sobre um mesmo objeto, a fim de auxiliar na aproximação crítica , já que o testimonio literário parece ser produto da hibridez de elementos narrativos heterogêneos. Mabel Moraña, salienta esse aspecto, definindo o gênero como entrecruzamiento de narrativa e historia, la alianza de ficción y realidad, la voluntad, en fin, de canalizar una denuncia, dar a conocer o mantener viva la memoria de hechos significativos, protagonizados en general por actores sociales pertenecientes a sectores subalternos (p.488). O referido entrecruzamento existente na narrativa testemunhal desencadeia confrontos críticos e divergências, principalmente quando se tenta definir o gênero, pois cada intelectual parece ressaltar um determinado aspecto como fundamental para o testimonio. À luz disso, torna-se inviável a formulação de postulados definitivos sobre o gênero, uma vez que sua natureza indelimitável representa um desafio para os estudiosos, que tentam decifra-lo a partir de diferentes perspectivas. Na tentativa de poder definir e compreender a origem de suas problemáticas impostas pelo gênero, faz-se necessário traçar a trajetória do gênero, o que vai se dar num contexto turbulento, marcado pela emergência de ações revolucionárias, movimentos políticos e sociais. Parte daí o sentido de o gênero aparentemente visar a representação de lutas protagonizadas geralmente por sujeitos das classes médias e populares e da necessidade destes posicionarem-se contra a situação vivida. Desenvolveu-se primeiramente em Cuba devido ao triunfo da Revolução Cubana, quando começam a emergir narrativas relacionadas ao envolvimento de sujeitos subalternos nesse movimento. Essas vozes passaram a ser ouvidas em função de sua atuação em movimentos que marcaram a história, neste caso, do regime cubano, retomando diferentes versões sobre os eventos, a fim de denunciar o sofrimento, a luta, a violência, as mortes desencadeadas pelos conflitos de interesses entre a população e o Estado. Sua consolidação enquanto gênero literário independente ocorre em 1970, quando a instituição cubana Casa de las Americas inclui essa categoria no concurso literário promovido com o fim de premiar categorias canonizadas como o romance, conto, biografia, incentivando, a partir dessa atitude, a produção do testimonio. Junto à oficialização por meio do concurso, o crescente interesse em investigá-lo também contribuiu para sua estabilização como gênero literário. Dentre estes estudos, Miguel Barnet destaca-se por suas formulações críticas, abordando o depoimento sob uma perspectiva sociológica, como ele explicita na introdução de Biografia de un Cimarrón: Este libro no hace más que narrar vivencias comunes a muchos hombres de su misma nacionalidad. La etnología las recoge para los estudios del medio social, historiadores y folkloristas. Nuestra satisfacción mayor es la de reflejarlas a través de un legítimo actor del proceso histórico cubano (1966, p.10). Esse testimonio apresenta as rememorações de Esteban Montejo, homem de idade avançada que conta sobre sua vida como escravo, como cimarrón e sua participação na Guerra de Independência. Barnet assume, neste e em outros testimonios, o papel de mediador, atuando no direcionamento do relato para os aspectos que considera relevantes e na transcrição da narrativa oral para o registro escrito. No mundo hispano-americano, portanto, o testimonio encontrou terreno fértil para seu desenvolvimento, o que não ocorreu de igual maneira no contexto brasileiro, no qual foi incorporado só recentemente sob o termo testemunho, sem que ainda exista uma visão muito clara de quais obras o concretizariam e como poderia ser definido criticamente. Destacam-se principalmente os estudos de Márcio Seligmann-Silva, cuja abordagem parte da perspectiva do testemunho europeu, sobretudo o que está ligado aos relatos dos terrores dos campos de concentração. A fim de justificar seu posicionamento, ele estabelece algumas diferenças entre as particularidades do testemunho latino-americano e do europeu. A dissonância estaria presente já no uso dos termos: o testimonio refere-se ao relato latino-americano e zeugnis ao alemão. Segundo ele, em razão da carga semântica que possuem, o testimonio parte de experiências históricas de ditadura, exploração, repressão, procurando destacar o aspecto exemplar dessas vidas, a fim de mostrar a contra-história, um ponto de vista divergente, apresentado por um sujeito que representaria um grupo social. Seligmann-Silva (2002) salienta que o testimonio acaba tornando-se anti-estetizante por sua preocupação excessiva com o valor documental, característica que pode ser atribuída da mesma forma ao zegnis, pois seu discurso também é elaborado a partir da reconstrução das experiências de um sujeito que testemunhou determinado momento histórico marcante. E, ainda, assinala como principais elementos de sua natureza a presença, em alguns casos, de um mediador letrado, das marcas da oralidade, do caráter exemplar, não-fictício, enfim, elementos que reivindicam a autenticidade e veracidade daquele discurso. O termo zeugnis, por sua vez, é atribuído ao relato que parte das questões da memória, apoiando-se, para isso, em estudos de psicanálise, teoria da história e da memória. Destaca-se a questão das marcas profundas deixadas pela catástrofe e o forte trauma sofrido por um sujeito que testemunha situações singulares. Nesse discurso perpassa a literalização e a fragmentação, sendo que o depoimento teria a intenção de reunir os fragmentos para dar-lhes nexos, enfatizando a subjetividade do depoente. Seligmann-Silva estabelece diferenças entre os dois tipos de relato, entretanto, a questão parece ser, na verdade, uma diferença de perspectivas e referenciais teóricos a partir dos quais se realizam suas respectivas abordagens. Ambos necessitam da ativação da memória, porque remetem a um momento histórico determinado, vivido por um sujeito empírico que reconstitui o passado a fim de apresentar sua versão, procurando conferir um caráter documental à narrativa. Ainda assim, considero necessário tal esclarecimento para justificar a perspectiva de estudo deste trabalho, centrado no testemunho latino-americano. Portanto, a aproximação partirá de questões relacionadas ao fato de ser um gênero narrativo que carrega em si o caráter de um outro olhar sobre um fato histórico: o do subalterno. É, assim, um espaço para a voz de grupos que viveram e presenciaram acontecimentos na posição de vencidos/ vítimas e que, dessa maneira, estabelecem uma conflituosa relação com o mundo hegemônico. Com a pretensão identificar e compreender os problemas que a narrativa testemunhal apresenta, resulta imprescindível fazer um levantamento dos principais aspectos que estimulam as discussões entre os críticos, a começar pelo processo de produção. Neste caso, deve-se considerar o lugar subalterno que freqüentemente o depoente ocupa na sociedade, portanto, distante da cultura hegemônica, alicerçada principalmente no domínio da escrita. Então, como esse sujeito apodera-se dessa ferramenta que não faz parte da cultura de seu grupo? Para se chegar a alguma resposta é necessário considerar cada produção testemunhal a partir de suas particularidades. Algumas apresentam a figura de um mediador letrado, o qual orienta a elaboração do relato e, por pertencer a outra esfera cultural, serve como instrumento de validação da obra. Mas também há testemunhos sem o mediador, nos quais esse sujeito tem um certo domínio da escrita e, portanto, tem autonomia para circular, mesmo que timidamente, pelos espaços hegemônicos, como é o caso, por exemplo, de Diário de um detento, de Jocenir, que por ser autor da letra de um rap que obteve grande repercussão na mídia, de mesmo título, passou a ter condições de responder pela sua escrita. A mediação de um letrado, quando presente, parece servir como processo que possibilita a regularização do testemunho literário para sua circulação como narrativa subalterna normatizada pelo registro escrito, já que este supostamente domina o código hegemônico da escrita, fazendo com que, dessa maneira, a obra assuma outra posição diante do cenário intelectual, pois conforme Roxanne Rimstead (2000), a escrita faz parte de um universo privilegiado, o hegemônico. Mesmo em testemunhos sem mediador, é comum alguma nota ou introdução realizada por uma autoridade letrada, o que reforça a validade daquele discurso frente ao leitor habituado com a produção literária considerada hegemônica. Por suas condições, o processo de mediação coloca várias indagações, dentre elas a que diz respeito ao tipo de relação estabelecida entre o letrado, pertencente ao campo hegemônico, e o testemunhante, ou subalterno. De que forma isso se apresenta no testemunho e qual seria o interesse em narrativas provenientes da periferia? O que representa a mediação de um relato de origem subalterna realizada por um sujeito pertencente à esfera letrada? Um possível viés de resposta nos coloca diante da relação entre as categorias de hegemonia e subalternidade formuladas por Gramsci. Rimstead, nesse sentido, refere-se ao ato de um letrado transcrever uma história oral para o domínio da escrita como indício de uma relação que pode estar permeada por um acordo político e social. Tudo isso sugere uma negociação, na qual há um confronto de interesses e posições em que os subalternos reivindicam espaço para que suas necessidades possam ser supridas. Diferentemente de muitas leituras reducionistas feitas a partir das reflexões de Gramsci, a hegemonia não implica dominação pela via da força, ou simplesmente pela ideologia. Conforme Chantal Mouffe, a legitimidade da esfera hegemônica está além das relações de classe, repousando, portanto, na capacidade de um determinado grupo articular um discurso capaz de incorporar os interesses de outros, constituindo, assim, uma visão de mundo unificadora que, por ser calcada em elementos ideológicos nacionais-populares, é capaz de consolidar uma “vontade coletiva”. Tal unificação, portadora de um aparente equilíbrio de posições, permite ao grupo hegemônico obter a adesão dos demais, a fim de instituir sua visão de mundo em todas as dimensões que constituem a esfera social (política, cultura, economia). Portanto, Ya no se trata de una simple alianza política, sino de una fusión total de objetivos económicos, políticos, intelectuales y morales, efectuada por un grupo fundamental con la alianza de otros grupos a través de la ideología (1978, p. 74). Seguindo a leitura de Gramsci, entende-se aqui por ideologia o terreno no qual o sujeito adquire consciência de sua posição e, em função disso, cria uma visão de mundo responsável pela organização de suas atitudes. O discurso ideológico se manifesta nas diferentes instituições que compõe a sociedade, os quais Marx considera componentes da superestrutura, tais como, arte, direito, atividades econômicas, manifestações individuais e coletivas. Trata-se de um discurso implícito que, quando articulado de forma consistente, angaria a um determinado grupo o status hegemônico. Ao incutir seus princípios nessas instituições, torna-se capaz de condicionar o pensamento e as ações dos sujeitos de diferentes grupos sociais em função de seus próprios interesses. Na abordagem crítica do gênero testemunho, pode-se salientar como central a relação estabelecida entre os sujeitos pertencentes à esfera hegemônica e subalterna e, principalmente, a tensão originada pelo confronto de interesses. Nessa relação, cabe ao mediador formalizar a narrativa, com o intuito de adequar-se à lógica imposta pela cultura hegemônica, que de certa forma interfere na estratégia discursiva, já que para esse discurso circular e ser aceito no espaço hegemônico é necessário que se adapte as suas normas e convenções. Por outro lado, ele se preocupa em preservar o discurso para que não perca as marcas lingüísticas que identificam o enunciador, podendo, ainda, intervir em vários momentos do testemunho, como na transcrição, seleção, ordem e no direcionamento dos depoimentos. Conforme foi assinalado, a transformação do discurso oral em escrito evidencia a tentativa de adequação ao discurso hegemônico. Por meio da escrita o subalterno procura integrar-se ao espaço que historicamente não lhe pertence, utilizando, para isso, os recursos do meio no qual procura inserir-se. Posiciona-se, a partir de então, reforçando sua relutância à condição de excluído, ignorado, demarcando sua identidade frente à cultura dominante. Entretanto, mesmo com a aceitação do depoimento, este não têm poder para mudar sua condição histórico-político-social de subalterno, nem é capaz de apagar as injustiças e violências sociais que sofre/ sofreu. Frente à história, sua posição permanece a mesma. Além disso, a mediação, quando presente, pode produzir um efeito de ambigüidade autoral, pois se trata de um elemento diferencial, porque nesta modalidade narrativa parece não haver um autor propriamente dito, como ocorre nas obras canônicas. Isso gera ambigüidade, tendo por resultado uma certa dúvida sobre qual seria a entidade de maior autoridade no livro. A partir do momento em que o letrado interfere no discurso do subalterno, o discurso permanece sendo considerado de autoria deste, ou passa a ser do outro? Trata-se de um dos problemas mais discutidos pela crítica. Ao subalterno é atribuído o papel de fonte da matéria narrada, que o mediador organiza de acordo com as exigências da escrita, apoderando-se do discurso alheio para fazê-lo circular como literatura de sua autoria, o que fica evidente quando se verificam os dados bibliográficos de certos testemunhos, nos quais o nome do mediador consta como se este fosse o autor: BURGOS, Elizabeth. Me llamo Rigoberta Menchú y así me nació la conciencia. Já no caso de o mediador não estar presente, a autoria fica a cargo do testemunhante: autor e narrador do relato. Essa condição parece dar maior liberdade na seleção e elaboração da narrativa, o que também pode gerar, por sua vez, uma maior distorção dos fatos, pois não há quem oriente no processo de formulação do relato. Considerações finais A partir dessas considerações, como ver essa forma narrativa? Seria uma tentativa de expor e preservar um passado vivido por um subalterno? Ou responderia à curiosidade de conhecer histórias chocantes, oriundas do lado obscuro da sociedade, marcado principalmente pela violência? Tem objetivo comercial? Social? Político? Crítico? Nenhuma das considerações parece ser passível de exclusão ao tentar compreender a natureza dessa narrativa, pois, pela diversidade de mediações que participam de sua construção discursiva, este gênero não depende apenas das intenções do testemunhante. O testemunho soma interesses do subalterno (testemunhante), do mediador, quando presente, da indústria editorial, pois o livro precisa passar por seu crivo, que é muito significativo, para ser posto em circulação. Parece ser, portanto, uma forma narrativa que nasce da junção, conseqüentemente dos confrontos, de interesses, de autores, de problemas e de linguagens: por isso, as perspectivas de estudo, de abordagens, de debates são múltiplas, evidenciando um espaço de convergências e conflitos. Em razão de tais considerações, o testemunho literário permanece situado num terreno movediço, repleto de interrogantes, com problemáticas que são inerentes a essa forma narrativa e que acabam tornando-se tão próprias do gênero, que passam a ser o que, justamente, o caracteriza o testemunho enquanto forma narrativa independente. Referências bibliográficas ACHUGAR, Hugo (compilador). En otras palabras, otras historias. Montevideo: Universidad de la República, 1992. BURGOS, Elizabeth. Memoria, transmisión e imagen del cuerpo, n° 2 - Nuevo Mundo Mundos Nuevos, 2005. Disponível em < http://nuevo mundo.revues.org.>. JOCENIR, Diário de um detento: o livro. São Paulo: Labortexto, 2001. MOUFFE, Chantal.Hegemonía e ideolgía en Gramsci. Revista Arte e Sociedad Ideologia. Nº 5. Mexico, 1978. MORAÑA, Mabel. Documentalismo y ficción: testimonio y narrativa testimonial hispanoamericana en el siglo XX. In: América latina: Palavra, Literatura e Cultura. São Paulo, v. 3, p. 479 – 515. 1995. RIMSTEAD, Roxanne. Histórias orais como locus de resistência. As armas do texto: a literatura e a resistência da literatura/ organizadores Michael Peterson, Ignacio Antonio Reis. Porto Alegre: Sagra Luzzato, 2000. SARLO, Beatriz. Tiempo Pasado: cultura de la memoria y giro subjetivo. Una discusión. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2005. SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Zeugnis” e “Testimonio”: um caso de intraduzibilidade de conceitos. Letras. N° 22. jan/ jun 2001, p.121-131. VAVAKOVA, Blanka. Lógica Cultural da Pós-Modernidade: moderno/ pós-moderno. Revista de comunicação e Linguagens. Lisboa, n° 6/7, 103-116, mar/1988.