Creches. Da Ideologia de “Mal Menor” a um Direito Constitucional Sandra Albano da Silva UEMS/NA Resumo: Este artigo tem como finalidade discutir brevemente essa instituição educacional que é a creche, recuperando alguns percursos e conceitos interligados à sua existência. Em suma, apresenta a creche como local onde se cuidam e educam crianças com idade de zero até seis (6) anos de toda e qualquer classe social em período integral. Elas podem ser públicas ou particulares, sendo que ambas são permeadas por ideologias, concepções e práticas. Em especial, apresenta a creche como etapa da Educação Infantil e esta da Educação Básica, direito da criança e dever do Estado. Palavras Chave: criança, creche, educação Apesar das mudanças culturais, econômicas, políticas e conceituais que o mundo empreende há vários séculos sobre o ser criança, muitas pessoas ainda têm dificuldade em entender o papel da Educação Infantil nesse contexto, e, mais, em geral mantêm a visão assistencialista sobre o trabalho realizado pelas creches e ou instituições que funcionam em período integral no atendimento de crianças com idade de zero até os seis anos ¹. Nesse caso, e ainda no âmbito da Educação Infantil, a pré-escola, para a opinião leiga é mais aceitável, uma vez que para o senso comum sua função é a de preparar a criança para o ingresso no ensino formal. No entanto, sabemos que as creches e pré-escolas no seu fazer diário extrapolam as funções que lhes são mais amplamente difundidas – no primeiro caso substituir as mães e no segundo preparar para o ensino fundamental; pois são conquistas históricas dos movimentos sociais e hoje têm o dever de atender com cuidados e educação a toda e qualquer criança, independente de sua condição social ou econômica. Para compreendermos o desenvolvimento do atendimento às crianças é interessante voltarmos no tempo até a Idade Média, período onde encontramos as crianças pequenas não tendo uma existência social definida, até porque o sentimento de infância era outro, bem diferente do que temos hoje. Naquele período, a criança camponesa, quando sobrevivia e adquiria alguma independência, iniciava-se no mundo do trabalho, e, por conseguinte, no mundo adulto. Aliás, esta independência parecia ser mesmo uma condição para que passasse a existir socialmente, pois a partir do momento que ingressava para o trabalho, era propriedade do Senhor Feudal, reproduzindo a forma de vida própria de sua classe social. A criança nobre por sua vez, quando sobrevivia aos primeiros anos de vida, era considerada como “adulto em miniatura”. Era comum que a criança nobre participasse de festas, jogos e brincadeiras mais próprios aos adultos, dos quais, inclusive, compartilhava da companhia sem qualquer restrição. Em todos os casos, apesar da aparente condição igualitária frente aos adultos, estes podiam corrigi-la através de surras e castigos severos, uma vez eram consideradas “caricaturas mal acabadas dos adultos”, que ainda precisavam ser melhoradas. Ariès (1978, p.18) discute o surgimento do sentimento de infância, sobretudo no século XVII, exemplificando as suas proposições com escritos da época que demonstravam a transformação histórica da indiferença para a paparicação, ou seja, a criança sendo diferenciada como ser que requer cuidados e mimos especiais: A vida da criança era então considerada coma mesma ambigüidade com que hoje se considera a do feto, com a diferença que o infanticídio era abafado no silêncio, enquanto que o aborto é reivindicado em voz alta. No século XVII, de um infanticídio secretamente admitido passou-se a um respeito cada vez mais exigente pela vida da criança. Chegou um tempo, então, que as crianças saíram de seu “habitual anonimato” e se tornaram figuras centrais no interior da família, e mesmo da sociedade. A família, por sua vez, passou a ser a família nuclear (pai, mãe e filhos), emergindo da densidade e dispersão social com que um dia se constituiu; assumindo, assim, deveres para com as crianças que eram, nesse caso, suas herdeiras morais e materiais em tudo que produzissem ao longo da vida. Nas famílias ricas, vemos que as crianças eram educadas por amas, contratadas para ajudar as mães nos cuidados e disciplina. A s crianças pobres, por sua 1vez eram educadas e cuidadas por suas famílias, e quando as mães precisavam trabalhar fora do 1 Crianças de zero até três anos frequentam a creche em período integral participando de atividades, de cuidados, educacionais elúdicas com educadores mas sem estarem matriculadas na pré-escola. Em geral, estas cursam a pré-escola dentro da mesma instituição em idade própria e, no turno oposto ao da aula permanecem nas atividades estruradas e de rotina próprias da organização do espaço educacional. lar, eram assistidas pela Igreja, que passou comumente, a se ocupar de obras de caridade. Campos (1993) enfatiza que data desse período o surgimento da visão de que as mães que trabalham fora do lar não cumprem completamente o “ dom divino da maternidade”. Articulada a essa visão, surge também aquela que concebe a criança a partir de um modelo ideal, ou seja, o da criança rica. Com isso, as crianças assistidas tendiam a serem compensadas em suas “carências” físicas, morais e emocionais, sob a égide de que precisavam ser sempre dóceis, higiênicas e temerosas a Deus. Desse modo as creches foram surgindo e se expandindo pelo mundo através de um assistencialismo que, em síntese, se resumia em três aspectos: disciplinador, higiênico e, acima de tudo, caritatório. Segundo Campos (Idem, p.13): Na França, já no final do século XVII eram criadas as garderies para abrigar as crianças durante o período de trab alho das mães. Na Itália, em Turim, em 1827, foram fundados os asili Infantil, semelhante as garderies. Na Bélgica, no mesmo ano surgiram as écoles gardiennes. Nos Estados Unidos da América, o atendimento às crianças em idade pré-escolar passou a ser crescente em meados do século XVIII. A primeira Day Nursey de que se tem notícia foi aberta em 1854 em Nova Iorque para atender os filhos de trabalhadores pobres. No Brasil, a educação das crianças menores de seis anos tem uma história de mais de cento e cinqüenta anos. Já no ano de 1899, no dia 24 de março, foi fundado no Rio de Janeiro, então capital da República, o Instituto de Proteção à Infância do Brasil (IPAI), pelo médico Arthur Moncorvo Filho. E em 1929, contava com mais de vinte e duas (22) filiais em todo o país, sendo que em onze (11) delas, funcionavam creches. Em discurso na época, Quintino Bocaiuva enfatizou o problema da infância pobre no Brasil como algo que necessitava atenção por parte do poder público, personificado neste caso, na figura do Sr. Campos Salles, presidente do país: Preservar a infância da destruição a que condena o desamparo dos cuidados que ela carece é garantir à sociedade a permanência e a sucessão de vidas que hão de ser o sustentáculo de sua estabilidade e os elementos do seu progresso. (Apud Kramer, 1984, p. 54-55). Observemos que, ao mesmo tempo em que o trecho citado apresenta um alto teor ideológico, já que trata a realidade da infância pobre como causa para futuros problemas – enquanto que desde então, já era reflexo das condições em que a grande maioria da população vinha sendo submetida – por outro lado, auxilia que sejam elaboradas discussões e ações objetivas para melhorar o quadro do problema em pauta. De fato, as crianças encontravam-se desamparadas e sujeitas à miséria e as intempéries advindas, quase que exclusivamente, da privação econômica que vigorava desde então, em seus lares. Tratava-se, pois, como conclui Monarcha (1990, p.133), de cuidar de aspectos da edificação social do país que não condiziam principalmente com o que era idealizado para as cidades que se formavam e as metrópoles que se erigiam, ou seja, o poder e o progresso como estampas para o Brasil: “Uma vez delimitado o espaço burguês com cristais, mármores, espelhos, veludos e ferro trabalhado, restava enfrentar a sombra que pairava sobre o perfil da cidade”. O crescimento e urbanização do país no início do século passado, conforme podemos ver, fez originar o assistencialismo à infância com ênfase para a infância pobre, sempre com o intuito de superar e ao mesmo tempo evitar a crise social. E assim, em diversos pontos do país, as iniciativas se somavam quanto a assistência e atendimento à criança necessitada, bem como se expandiam os jardins de infância e maternais, mais voltados ao atendimento das crianças em melhores situações econômicas que aquelas atendidas pelas creches. Kulmann Júnior (1990) destaca que a assistência nesse período era concedida mediante uma análise preconceituosa da população assistida e essa visão, mesmo com o tempo e conquista histórica de direitos pela população, ainda perdura, quando se trata de creche. Kramer (1984, p.62) destaca um trecho de discurso de Getúlio Vargas, então por ocasião do seu primeiro mandato como Presidente do Brasil, que demonstra a visão de creche como um “mal menor”, ou seja, é um recurso para amenizar a instabilidade e degeneração das famílias brasileiras, com ênfase, àquelas de baixa renda: A dissolução atual da família, a dissolução de seus elementos pelo enfraquecimento da autoridade paterna, pela ausência da mulher no recinto do lar, pela guarda dos menores em mãos mercenárias dão à família moderna uma estrutura frágil e inconsistente. E assim, a creche veio, desde os seus primórdios, realizando uma prática voltada menos para liberar a mulher para o trabalho e mais para reforçar a sua condição de mãe e esposa, sob a ideologia de que a mãe que trabalha fora do lar não cumpre na íntegra o seu dever com a família. Para as mães usuárias ocorria o estigma de necessitarem de ajuda de terceiros para criar, cuidar e educar os seus filhos, e apesar do percurso histórico da creche como etapa da Educação Infantil e da Educação Básica, esta visão ainda encontra eco até entre os gestores educacionais e funcionários das mesmas. Por outro lado, a sociedade está mais consciente da importância das experiências na primeira infância, o que motiva demandas cada vez mais crescentes por uma educação institucional para crianças. Segundo Silva (1997) desde a década de 70 a mobilização de organizações da sociedade civil, decisões políticas e programas governamentais têm sido meios eficazes de expansão das matrículas e de aumento da consciência social sobre o direito, a importância e a necessidade da Educação Infantil. Em 1998, estava presente em 5.320 municípios, que correspondiam a 96,6% do total geral do país. Foram reivindicações como as do Movimento de Luta por creches (MLC), oficializado em 1979 em São Paulo, entre outros tantos que eclodiram pelo país, bem como as novas interpretações culturais e científicas sobre a criança, que sem dúvida culminaram para a sua inclusão no plano constitucional e jurídico; que reconheceu, ineditamente até então, que é “dever do Estado oferecer condições para a educação de crianças com menos de sete (7) anos”. A Constituição de 1988 garantiu em seus artigos 22, 23, 208, que não se trata mais de apenas assistir e amparar a maternidade e a infância, mas, principalmente, acrescer a esses direitos o direito à Educação. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 estabelece que é direito e dever do estado “ o atendimento gratuito em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade”. (Art. 4º), reafirmando e expandindo o que estava posto na Constituição. A Educação Infantil desde então é a primeira etapa da Educação Básica. Ela auxilia a família a estabelecer as bases da personalidade, da inteligência, da vida emocional, da socialização da criança. As primeiras experiências da vida são as que marcam mais profundamente a pessoa. Quando positivas, tendem a reforçar, ao longo da existência, as atitudes de autoconfiança, de cooperação, solidariedade, responsabilidade. As ciências que se debruçaram sobre a criança nos últimos cinquenta anos, investigando como se processa o seu desenvolvimento, coincidem em afirmar a importância dos primeiros anos de vida para o desenvolvimento da personalidade, da inteligência e aprendizagens posteriores. Na Constituição Federal de 1988, a educação das crianças de zero a seis anos passou a figurar como direito do cidadão e dever do Estado, numa perspectiva educacional, em resposta aos movimentos sociais em defesa dos direitos das crianças. Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN evidenciou a importância da Educação Infantil não deixando mais dúvidas sobre o caráter educacional que esse nível de ensino constitui. Por isso em 1998, foi elaborado o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) que consiste num conjunto de referências e orientações pedagógicas. Considera-se, no âmbito internacional, que a Educação Infantil terá um papel cada vez maior na formação integral do ser humano, no desenvolvimento de sua capacidade de aprendizagem e na elevação do nível de inteligência das pessoas e apesar de no Brasil não ser obrigatória e sim opção da família e direito da criança, o número de matrículas vem aumentando gradativamente a cada ano. Esse aumento de matrículas concentra-se mais nas instituições públicas municipais, em função da maior pressão da demanda sobre esta esfera que está mais próxima das famílias e em decorrência da responsabilidade constitucional dos municípios com relação a esse nível educacional. Portanto, é fundamental o entendimento de que não podem a família, a sociedade e os governos prescindir da atenção às crianças pequenas, no que tange ao seu cuidado e educação. Polêmicas sobre cuidar e educar, sobre o papel do afeto na relação pedagógica e sobre educar para o desenvolvimento ou para o conhecimento tem constituído, portanto, o panorama de fundo sobre o qual se constroem as propostas em Educação Infantil. A elaboração de propostas educacionais pelas creches e escolas que ofertam Educação Infantil veicula necessariamente concepções sobre criança, educar e cuidar, cujos fundamentos devem ser considerados de maneira explícita para que os seus educadores não tenham dúvida sob quais bases seguir em seu trabalho pedagógico com os pequenos. Silva (1997) em sua dissertação de mestrado pesquisou sobre as concepções dos educadores de creches e as possibilidades para o desenvolvimento infantil em Presidente Prudente-SP, e verificou que naquele período de transição os educadores buscavam se adequar as novas diretrizes nacionais apesar de, ainda persistir em maior porcentagem a visão do educador de creche como substituto da mãe. Todavia, o estudo demonstra que as concepções tendem a ser mais coerentes na medida em que, os educadores têm acesso às leituras e aprofundamento teórico, entre outras considerações verificadas na pesquisa. Nesse processo, estudar para compreender, conhecer e reconhecer o jeito particular das crianças serem e estarem no mundo é o grande desafio dos educadores que atuam na Educação Infantil e, especialmente nas creches, que devem ser formados em nível superior para desenvolver um trabalho educativo fundamentado teoricamente, coerente e de qualidade. Referência Bibliográficas ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro. Editora Guanabara Koogan, 2ª edição, 1978. BRASIL: Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Distrito Federal, 1988. BRASIL: Senado Federal. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, Distrito Federal, dezembro de 1996. BRASIL: Ministério da Educação e da Cultura: Secretaria de Educação Básica. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília, Distrito Federal, 1998. CAMPOS, M.M.; PATTO M., H., S. & MUCCI, R., C.: A Creche e a Pré-Escola no Brasil. São Paulo, Cortez, 1993. KRAMER. Sônia. A Política do Pré-Escolar no Brasil: a arte do disfarce. Rio de Janeiro. Achiamé, 1984. KULHMAN JÙNIOR. Moysés. Instituições Pré-escolares Assistencialistas no Brasil (1899-1992). Cadernos de Pesquisa nº 78: 17-26, Agosto, 1991. SILVA, Sandra Albano da: As Concepções dos Educadores de Creche e as Possibilidades para o Desenvolvimento Infantil. Dissertação de Mestrado em Educação. Marília, SP, Unesp- Departamento de Pós Graduação. 1997.