VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9 A EDUCAÇÃO MONÁSTICA NO SÉCULO X SILVA, Simone Cristina de Lima (PIBIC-FAFIPA) BOVOLIM, Zenaide Zago Campos Polido (FAFIPA) Este trabalho é dedicado à análise dos mosteiros, os quais, no século X, apresentavam-se como locais próprios para o ensinamento dos princípios religiosos cristãos, o desenvolvimento do saber e a preservação da cultura antiga greco-romana. Durante toda a Idade Média, eles foram os únicos locais de preservação dos conhecimentos produzidos pelos pensadores pagãos da Antigüidade clássica. Desde o século VI, até a invenção da imprensa, nestes espaços de reprodução dos manuscritos, denominado scriptorium, os monges copiaram e reproduziram grande parte do acervo bibliográfico dos mosteiros, criando a oportunidade para que pensadores, como Bento de Núrsia, Alcuíno e Rosvita, tivessem acesso às obras da Antigüidade greco-romano. Nas bibliotecas dos mosteiros, esses pensadores traduziam para o latim, adaptavam e reinterpretavam, à luz do cristianismo, os escritos clássicos pagãos e transmitiam seu conteúdo para a maioria da população que não sabia ler e escrever. Pode-se afirmar, nesse sentido que a ação desses pensadores e dos monges escribas foi de fato importante para a educação e a formação dos homens. Se hoje temos acesso ao conhecimento produzido pela humanidade, foi graças ao trabalho conjugado dos monges copistas e dos pensadores cristãos. Por isso, é importante destacar o papel que as escolas monásticas exerceram, ao preservar e transmitir o saber, os valores morais e os princípios da fé cristã para a sociedade do século X. Para entender melhor porque os mosteiros se tornaram os principais espaços de transmissão do saber e locais responsáveis pela formação dos homens, é fundamental investigar qual era o contexto histórico da sociedade em que isso ocorreu, ou seja, pensá-los como parte de uma sociedade com base em relações feudais. O início do século X foi um período turbulento para as instituições monásticas. As incursões dos Normandos (povos do norte), Húngaros (povos do leste) e Sarracenos (povos do sul) realizaram-se de forma bruta e arrasadora, uma vez que, por onde passaram, independentemente da origem do invasor, destruíram plantações, queimaram mosteiros e saquearam todos os pertences valiosos que encontravam. VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9 As pilhagens e as devastações ocasionadas com as diversas incursões ao ocidente provocaram um ambiente de lutas entres invasores e guerreiros, no qual, ao se destruírem, também deixavam o ocidente devastado e sem condições para desenvolver atividades intelectuais. Os homens ficaram parecidos com os lobos, que lutam contra outros lobos; eles se devoram como os peixes no mar... Toda a documentação da época confirma-nos a veracidade da narração dos poetas. Aos escudos quebrados, cotas de malha de ferro cortadas até atingir a carne viva, corpos humanos rachados até a sela dos cavalos, crânios decepados por golpes cortantes e membros separados do tronco, voando pelo ar, deve-se acrescentar, talvez, sobretudo, o sofrimento dos pauperes, a violências infligidas às mulheres e às crianças, aldeias incendiadas, colheitas destruídas. (LE GOFF, 2006, p. 477) Apesar do caos instaurado com as invasões, os homens do ocidente medieval buscaram recuperar e organizar este estado de decadência. Assim, estabeleceu-se o sistema feudal, ou seja, um novo modo de vida entre os homens. Segundo Guizot, “no século X tudo acabou por se transformar em feudo, inclusive os enxames de abelhas das florestas. Todas as relações, por mais distintas que fossem, assumiram a forma feudal” (apud. OLIVEIRA, 2000, p. 224). Devido aos saques e às devastações provocadas pelas incursões dos povos vindos do norte, sul e leste, a população do Ocidente europeu voltou-se totalmente para o campo. Esse momento que ruralizou por completo o Ocidente europeu deu origem a novos laços de interdependência entre servos e senhores feudais. De um lado, foi necessário melhorar a vida do camponês para que este continuasse a servir no campo ao proprietário da terra. De outro, esse mesmo processo que levou o Ocidente a buscar abrigo no campo e se proteger dos perigos do século fez dos castelos moradias fixas, o que possibilitou que alguns hábitos da vida familiar se modificassem. O isolamento nos castelos permitiu um relacionamento mais íntimo entre seus habitantes, os quais tiveram que aprender a conviver uns com os outros num espaço mais limitado. Segundo Oliveira, ao mesmo tempo em que esses homens se isolaram, novos vínculos afetivos despertaram. [...] tudo passou a ser feito no sentido de proteger a vida. A própria habitação deveria ser construída para permitir a sua conservação. Não se construía uma casa apenas para se proteger das intempéries da natureza; construíam- se fortalezas [...] VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9 Se o castelo dava aos homens abrigo e proteção, ao mesmo tempo, produzia uma forma singular de vida. Em seu interior, produzia-se um isolamento e uma profunda ociosidade [...] [...] este isolamento e ociosidade provocaram uma profunda alteração na vida dos homens que habitavam os castelos. Em primeiro lugar, na medida em que lhes permitia uma certa tranqüilidade, uma certa paz, e acima de tudo, uma segurança quanto à própria conservação da vida, criaram condições para que o espírito humano pudesse se desenvolver. (OLIVEIRA, 2000, p. 235 e 236) Os castelos que foram construídos para a proteção e segurança da vida proporcionaram o despertar de novos sentimentos e o desenvolvimento da família. Ainda segundo Oliveira, pela primeira vez, o senhor feudal e seus familiares mais íntimos, a esposa, o marido e os filhos, encontravam-se isolados produzindo uma forma singular de vida. Com a mudança nas relações familiares e a criação de uma nova condição de vida, alguns hábitos mudaram. Os homens passaram a adquirir aspectos mais refinados, começaram a despertar novos interesses para além da segurança e conservação do feudo. Nesta realidade feudal, durante a crise provocada pelas incursões do século X, os mosteiros medievais foram importantes instituições educacionais, uma vez que se tornaram os únicos espaços apropriados para o desenvolvimento intelectual e cultural. É o que iremos analisar a partir deste ponto do texto. Para melhor destacarmos a importância dos mosteiros no século X, faz-se necessário compreender a Regra do Mestre, reescrita por Bento de Núrsia no século VI, tendo vista que ela ajudou a organizar a vida dos monges nos mosteiros e foi o grande pilar de sustentação das escolas monásticas no decorrer da Idade Média. Bento nasceu em Núrcia, na Úmbria, por volta do ano de 480. Em 529, tendo sido ordenado sacerdote, foi enviado a Cassino, para promover um combate ao paganismo que ali estava instaurado. Foi nesse local que ele construiu o mosteiro de Monte Cassino. [...] São Bento dirigiu-se provavelmente já ordenado a sacerdote, a Cassino, para debelar o paganismo que ali vicejava, e construiu o seu mosteiro em torno do templo dedicado a Júpiter e a Apolo, que se transformou em igreja do Deus vivo, consagrando-a a São Martinho de Tours e estabelecendo um oratório em honra de São João Batista, o precursor da vida monástica. (NUNES, 1979. p.90) VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9 Para normalizar a vida dentro do mosteiro, Bento reescreveu a Regra do Mestre, uma norma que pode ter sido importada e traduzida ou de ser de origem local e que estava sendo praticada no sul da Itália central. Conforme Le Goff (2006), que analisa a ação dos monges durante a Idade Média, os mosteiros, antes da Regra Beneditina, [...] eram governados por diferentes regras monásticas, algumas importadas e traduzidas e outras de origem local. Entre estas ultimas citemos uma regra volumosa e rigorosa, corrente do sul da Itália Central. Esta “regra do Mestre” seria revisada por Bento de Núrcia nos anos 540. A “regra monástica” de Bento, daí resultante, é um modelo de legislação sucinta, racional e adaptável... (p. 228) A Regra monástica de Bento é constituída por um manual de doutrinas que deviam ser seguidas, seja na forma de rituais de convivência, trabalho, estudo, responsabilidade de abade e de monges e aceitação de novos membros, seja na forma de punições pelo não respeito à Regra. Eram normas para organizar a vida dos monges no interior dos mosteiros, orientar qualquer ação que afastasse os membros do caminho celeste que dava acesso ao mundo divino. [...] Tu, pois, quem quer que sejas que te apressas para a pátria celeste, realiza com o auxílio de Cristo esta mínima Regra de iniciação aqui escrita e, então, por fim, chegarás, com a proteção de Deus, aos maiores cumes da doutrina e das virtudes de que falamos acima. Amém (Regra de São Bento, p.53). O mosteiro fundado por Bento transformou-se em espaço para a oração, local de produção intelectual e de trabalho manual. Toda ação, tanto do abade como dos monges, deveria ser baseada na Regra reescrita por Bento. Com a Regra reformulada, a ordem beneditina transformou-se em modelo de legislação sucinta, racional e adaptável, que estabelecia um mundo à parte, livrando o homem de toda corrupção e do caos social reinante na sociedade no fim do Império Romano. Desta maneira, os mosteiros tornaram-se estruturas isoladas, distantes da vida mundana. Preservavam técnicas artesanais e artísticas e mantinham um scriptorium e uma biblioteca que armazenava grande parte do acervo literário produzido pelos pensadores pagãos da Antigüidade greco-romana. Além disso, foram os únicos locais que oportunizaram aos pensadores o acesso ao saber, conforme Le Goff. VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9 [...] graças aos seus domínios rurais, seus instrumentos de trabalho, a mão-de-obra dos monges e de dependentes de todo o tipo é um centro de produção e um modelo econômico; e claro, é um centro de vida espiritual, na maior parte das vezes baseada no culto às relíquias de um santo. (LE GOFF, 2005. p. 115) No decorrer dos séculos posteriores, outros mosteiros, além dos fundados por Bento, passaram a adotar a Regra Beneditina, principalmente depois que o papa Gregório I (590-604) escreveu uma biografia com informações sobre a sua vida e suas conquista, o que possibilitou a difusão do legado realizado por Bento. Porém, foi no século VIII que Luiz, o Piedoso, iniciou um movimento de uniformização da vida monástica, cujo resultado foi fazer da Regra Beneditina a única a ser aplicada em todos os mosteiros. Anteriormente, cada mosteiro possuía a sua regra: No âmbito da política real, Luís, o Piedoso, começou a impor uma uniformização da vida monástica e, em especial, a fazer da Regra Beneditina a única regra aplicada em todos os mosteiros. Apesar deste programa de uniformização, cada mosteiro continuava sendo uma entidade distinta. (LE GOFF, 2006, p. 231) Assim, os mosteiros tornaram-se o espaço educativo no qual eram transmitidas, conforme Nunes (1979), “as obras literárias e as concepções filosóficas e educacionais dos romanos, especificamente através do benfazejo labor dos copistas que asseguraram a preservação dos livros antigos” (p. 92). Os mosteiros foram procurados pelas famílias para transmitir aos jovens da sociedade formas de escrever, contar, ler e cantar e, assumindo esta função educativa, transformaram-se em escola interna - locais nos quais os monges, ao mesmo tempo, estudavam para servir o ideal monástico de ensinar os jovens nas escolas externas e internas. Segundo Nunes: Acresce que os mosteiros, como os da Ordem beneditina desde a sua origem, recebiam os pueri oblati, os meninos que lhes eram ofertados pelos pais para se consagrarem a Deus na vida monástica. Daí as escolas internas ou interiores dentro dos mosteiros para a instrução dos postulantes, os candidatos à vida monástica, e dos oblatos. À medida, entretanto, que meninos e adolescentes eram confiados aos mosteiros só para receberem instrução, pois não tinham a intenção de ser monges nem os pais o pretendiam, eles passavam a freqüentar também as escolas internas como pensionistas ou, para eles, em muitas regiões, existia um edifício especial ou uma ala do mosteiro, a schola exterior, fora do perímetro da clausura, para que o bulício escolar não perturbasse o silêncio monástico e a paz dos religiosos (NUNES, 1979, p. 110) VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9 Nos seus escritos, Nunes afirma que os mosteiros no período retratado ofereciam educação tanto aos monges como aos jovens levados pelos pais para serem educados; vários mosteiros mantinham uma escola para a formação tanto de religiosos como dos que não queriam seguir a vida clerical. Muitos mosteiros desempenhavam essa função educativa num mesmo espaço: tanto os monges como os meninos que não queriam seguir a vida religiosa aprendiam juntos. Portanto, os mosteiros na Idade Média, além do caráter religioso muito intenso, o que não poderia ser diferente em uma sociedade em que a religião cristã imperava, promoveram um largo desenvolvimento intelectual. Ao se tornarem espaços importantes para a transmissão do conhecimento, segundo Nunes (1979), eles necessitavam ter monges instruídos e com domínio da leitura para copiar e reproduzir manuscritos antigos. Nunes pontua que, no processo de ensino dos mosteiros, o currículo de aprendizagem era composto pelas sete artes liberais: o trivium (gramática, dialética e retórica) e o quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia). Porém, eram poucos os monges que dominavam as duas artes. O ensino que mais se difundiu na primeira fase da Idade Média foi o trivium, constituído pela leitura e a meditação da Sagrada Escritura. Desta maneira, a aprendizagem da gramática seguia o processo didático da leitura dos salmos; era um estudo dirigido ao conhecimento da bíblia. Para que o conhecimento sobre o cristianismo fosse efetivo no processo de ensino e aprendizagem, foi necessário instruir as pessoas na gramática e na retórica. Conforme Nunes (1979), as duas disciplinas foram “... excelentes recursos para a interpretação alegórica e para o alcance do censo místico das palavras sagradas” (p. 110). Os textos estudados eram interpretados profundamente, de forma que fosse possível abstrair o sentido místico localizado nas entrelinhas da escrita. Esse recurso de aprendizagem é conhecido como exegese ou ainda interpretação alegórica. As obras interpretadas por alguns pensadores e consecutivamente copiadas nos mosteiros trouxeram ao conhecimento da população importantes idéias de grandes escritores pagãos. Nesse processo de tradução, o trabalho de cópia era efetivado pelos monges conforme instruções determinadas por um mestre de obras. Ao final, convocava-se uma reunião para sintetizar o conhecimento adquirido nos diversos estudos realizados pelos monges. Portanto, era uma ação coletiva em torno de um objetivo, conforme Le Goff (2006): VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9 [...]as obras históricas produzidas nesses mosteiros eram obras de erudição, obras livrescas, obras coletivas, em que um mestre de obras, que aliás estava na direção da escola ou do scriptorium ou da biblioteca, organizava as leituras de uma equipe competente e presidia a reunião das sínteses por ela realizadas. (p. 524) Deste modo, a ação monástica da cópia e da escrita conservou a produção dos pensadores greco-romanos da Antigüidade. Os manuscritos resultantes desta arte constituíram-se, depois do período Carolíngio, em obras belamente adornadas com iluminuras, as quais serviam à corte e ao bispo e abasteçam as bibliotecas. Com base nelas, ministravam-se as disciplinas de gramática. Alcuíno, monge anglo-saxão (735-804), teve participação fundamental nesse processo de efetivação do método de reprodução de manuscritos. Ele foi o braço direito de Carlos Magno na difusão da cultura, na restauração dos estudos antigos e na reforma eclesiástica, tornando-se, assim, o mentor intelectual da Europa no século VIII. Também foi o grande responsável pela multiplicação de escolas, uma vez que, como conselheiro do rei dos francos, ajudou a elevar a educação do povo. Reconhecendo o estado lamentável da cultura dos eclesiásticos e a necessidade de contar com funcionários dignos de seu Império, Carlos Magno baixou Proclamações e Editos, inspirados por seu conselheiro Alcuíno. Entre as proclamações mais conhecidas figura a do ano 802, dirigidas aos Senhores, de onde ordenava “que todos mandassem os filhos à escola para estudar as letras e que o menino permanecesse na escola até ser instruídos nelas”. (RATO, 1995. p. 22-23) Alcuíno, por ser apaixonado pelos livros, organizou bibliotecas, coordenou a produção de manuscritos e compôs opúsculos didáticos, como os diálogos sobre gramática, ortografia, retórica, virtudes, dialéticas, entre outros. Conforme Nunes (1979), muitos dos conhecimentos sobre o saber antigo foram conservados devido à ação desse monge. Não podemos deixar de destacar também o papel da monja Rosvita, do mosteiro de Gandersheim. No século X, ela brilhou como escritora, retomando as comédias teatrais profanas de Plauto e Terêncio escritas no ano 185 ªC. Por serem sensuais e agradáveis, essas comédias despertavam o interesse do público. Ela utilizou essa forma literária para transmitir ensinamentos que considerava importantes para a formação dos jovens e dos religiosos do mosteiro de Gandersheim. VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9 Rosvita, como religiosa e educadora, ensinava, por meio das peças teatrais, os princípios da religião cristã, os cálculos matemáticos e os valores morais que estavam se perdendo, em razão se ser o século X um período bastante conturbado da história. Temas como a defesa da virgindade e a celebração do martírio foram recorrentes em suas obras. Vale destacar que foi no mosteiro de Gandersheim que Rosvita encontrou condições para pesquisar e produzir peças teatrais, retomando nelas o pensamento de teóricos pagãos e teólogos cristãos. Foram as condições existentes nos mosteiros que lhe deram condições para contribuir para a transmissão do saber, a preservação da cultura e a conservação dos valores cristãos e pagãos no Ocidente Medieval. O mosteiro de Gandersheim era ocupado por mulheres que se ocupavam de tarefas religiosas e intelectuais. De acordo com Lauand (1998), o mosteiro beneditino de Gandersheim foi um importante centro cultural, no qual atuaram monjas de inusitada cultura. É importante destacar que, no mosteiro de Gandersheim, as monjas seguiam os princípios da Regra beneditina. Assim como Bento de Núrsia, Rosvita lutou contra o estilo de vida de muitos fiéis e, em meio à crise de valores do século X, buscou, por meio de peças teatrais, recuperar conceitos doutrinários cristãos e estabelecer normas, valores e regras para uma nova forma de vida. Para assegurar a busca, a guarda e a multiplicação do saber, as mulheres que ali habitavam dedicavam-se à oração, à meditação, ao trabalho social e à leitura dos clássicos greco-romanos. Outro mosteiro que deve ser destacado no começo do século X é o de Cluny (Borgonha). Segundo Nunes (1979), a grande reforma monástica do Ocidente teve por eixo a forma adotada na abadia de Cluny, que difundiu e propagou em todos os territórios do Ocidente europeu os princípios da renovação monástica. Segundo Duby (1982), os cluniacenses, que deram uma nova interpretação à Regra beneditina, buscavam um modo de vida mais dedicado à liturgia e à oração. Seus monges não se deveriam dedicar a quase nenhum trabalho manual, ao passo que, nos mosteiros do início da Idade Média, de acordo com a Regra de Bento, os homens se dedicavam mais a esse tipo de trabalho. A abadia de Cluny foi edificada no ano de 909, pelo duque Guilherme de Aquitânia. O mosteiro foi construído para prestar um tributo a São Pedro e a São Paulo. [...] Guilherme, o Pio, duque de Aquitânia, cansado das alegrias deste mundo, possuía uma rica vila em Cluny: em 909, faz a doação dela, VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9 com seus servos, seus bosques, suas vinhas e seus moinhos, para que fosse construído um monastério em honra de são Pedro e são Paulo, onde se estabeleceriam os beneditinos, sob a direção de Bernão, reformador da abadia de Beaume-le-Messieurs [...] (PIERRARD, 1982, p. 81). Na doação, Guilherme de Aquitânia colocou uma cláusula que possibilitou a Cluny uma liberdade em relação à autoridade civil e religiosa. Segundo ela, os Bispos que não pertencessem à abadia não poderiam interferir na vida dos monges dentro do mosteiro. Conforme Costa: [...] Cluny, ou melhor, o mosteiro que eles deveriam construir em Cluny, seria um portal de comunicação com o céu! Um elo de ligação cheio de doçura. Cluny seria a Jerusalém celeste encarnada, o paraíso novamente concretizado. Como um ponto de luz na escuridão, um foco de bondade em meio à turbulência do século, as preces e súplicas dos monges seriam a causa de sua reunião. É por esse motivo que o duque os liberta das indesejáveis intromissões de nobres e bispos: os monges deveriam ser livres para melhor obrar junto a Deus!... (COSTA, 2007, p. 5) É importante salientar que os mosteiros anteriores ao de Cluny sofriam interferência dos bispos e da nobreza na eleição dos abades e nas regras a serem seguidas. Por isso, o Duque Guilherme incluiu uma cláusula no ato de doação que isentou a abadia de sofrer intervenção dos bispos, deixando-a livre para a escolha do abade. O mosteiro cluniacense alcançou grande privilégio e o movimento de reforma por ele inaugurado desencadeou uma renovação no interior dos demais mosteiros. O papa João XI, no ano de 931, decretou que qualquer mosteiro em ruínas que solicitasse uma reforma seria incorporado à abadia de Cluny e dirigido pelo abade dessa congregação. Como já afirmamos anteriormente, os monges, com a reforma, deveriam dedicar mais tempo à espiritualidade, libertando-se das tarefas domésticas. Assim, nos mosteiros cluniacenses, para poder alcançar uma ligação mais íntima com o sagrado, os monges deveriam manter uma série regular e contínua de celebrações litúrgicas e cânticos. Essa mudança fica evidenciada quando se observa que, enquanto a Regra de Bento prescrevia o canto dos 150 salmos, na reforma, as liturgias ultrapassaram esse número. VI Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Trabalhos Completos – ISBN: 978-85-99726-09-9 Bento deixara uma certa liberdade quanto à recitação dos salmos, contando que todos os 150 salmos fossem cantados cada semana. Contudo nos costumes compilados pelo monge Ulrico em torno de 1080, o número de salmos recitados cotidianamente era maior do que 150. O biógrafo do abade Odilon de Cluny notou que este sempre cantava os salmos corretamente e que, em seus sermões, sua primeira preocupação era repreender os monges que não lhe satisfaziam neste ponto. (LE GOFF, 2006, p. 231). Os mosteiros cluniacenses solidificaram-se no ocidente e, apesar da nova interpretação que deram à Regra, os monges cumpriram a sua missão e continuaram o trabalho monástico iniciado por Bento de Núrcia no século VI. Na forma como administraram os mosteiros, onde viveram grande parte de suas vidas, Bento de Núrsia, Alcuíno e a monja Rosvita de Gandersheim deixaram um legado importante para a educação medieval, no sentido cultural e educativo. Eles possibilitaram o desenvolvimento da escrita, da leitura, da pesquisa, além de reproduzir as obras clássicas da Antigüidade greco-romana. Eram numerosas as obras de autores clássicos antigos e pagãos que se encontravam nas bibliotecas dos mosteiros de Gandersheim e Cluny. Dessa forma, uma vez que, com as invasões, a cultura greco-romana corria o risco de desaparecer, o contato direto desses pensadores com essas fontes tornou possível a conservação do saber antigo. Ao preservar as obras dessa cultura, também se preservaram a língua, a tradição e a religião, as quais foram assimiladas pelos povos do Ocidente europeu do período. Referências COSTA, R. Cluny, Jerusalém celeste encarnada (século X-XII). Disponível em http://www.ricardocosta.com/pub/cluny.htm. Acesso em 23/01/2007. BLOCH, M. A sociedade Feudal. Lisboa: Edições 70, 1987. DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do Feudalismo. Lisboa: Editorial Estampa, 1982. REGRA DE SÂO BENTO. Disponível em http://www.osb.org.br/regra.html. Acesso em 10/05/2007. GUIZOT, François. História da Civilização na Europa. 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