de Jovens e Adultos da AlfaSol, é mais uma ação direcionada
à ampliação da reflexão em torno dos desafios impostos ao
exercício pleno da cidadania das pessoas analfabetas ou pouco
escolarizadas, no Brasil e no mundo.
A aposta na pesquisa, na construção compartilhada de saberes e na diversidade de estratégias de defesa da democracia como
alicerce do desenvolvimento humano e social é a expressão fiel
dos objetivos desta série.
CEREJA discute: Educação em prisões
A série CEREJA discute, do Centro de Referência em Educação
Educação
em prisões
Organização
Aline Yamamoto
Ednéia Gonçalves
Mariângela Graciano
Natália Bouças do Lago
Raiane Assumpção
Cereja
Centro de Referência
em Educação de Jovens
e Adultos
CEREJA discute
Comentário
Educação e segurança nas prisões
Fabio Costa Morais de Sá e Silva
Anos atrás, o Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro desenvolveu uma atividade com vários grupos de presos daquele Estado, tendo
como objetivo até então inédito viabilizar a escuta da própria população
prisional na elaboração de uma política pública para a oferta de educação nas
prisões (Sá e Silva, 2006; 2008). A atividade consistia em capacitar os presos
na metodologia de teatro-fórum e convidá-los a produzir cenas que revelassem aspectos problemáticos de suas experiências com educação nas prisões.
A encenação de um dos grupos abordava um episódio de “revista de cela”, no
qual os presos não apenas tinham os seus livros e cadernos destruídos pela
ação da polícia, como também tinham de enfrentar posteriores cobranças dos
professores pela suposta falta de cuidado com o material.
Apesar da linguagem lúdica que é própria da expressão teatral, a apresentação desse grupo de presos trouxe à tona um dos problemas mais centrais
e dramáticos da gestão prisional: o embate frequente entre segurança e educação. Quem busca promover a educação nas prisões alega que as medidas
de segurança adotadas nas unidades representam um fator de desmotivação,
quando não de completo impedimento ao engajamento com o ato de aprender. Quem administra as prisões e por vezes estabelece restrições à prática
educativa nessas unidades em geral alega fazê-lo em nome da preservação da
segurança – seja ela dos educadores, dos agentes penitenciários, da sociedade
ou dos próprios presos.
Os textos que Maurílio Souza Firmino, Rowayne Soares Ramos, Marizangela Pereira e Manuel Rodrigues Português produziram para este número
do CEREJA discute podem não oferecer uma saída pronta e acabada para este
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CEREJA discute
estranhamento, mas certamente oferecem bons insumos para que compreendamos as suas origens e formas de reprodução. E, para proveito ainda maior
do leitor, fazem-no a partir de uma linguagem que não apenas é bastante
reflexiva, mesmo quando não escorada diretamente em referenciais teóricos
ou acadêmicos, como também é profundamente autobiográfica – já que todos eles reúnem experiência de trabalho e pesquisa no sistema penitenciário.
No que diz respeito às origens do problema, os textos parecem remeter
ao processo histórico pelo qual o alcance e o sentido do funcionamento das
prisões foi se construindo. Como apontou Foucault, que aliás é citado em várias
ocasiões pelos autores dos textos aqui reunidos, a explicação para o sucesso da
prisão no quadro das reformas penais do século XVIII reside na sua capacidade
de atender a uma outra aspiração do projeto burguês que não a da simples
racionalização do aparato punitivo. Essa aspiração é a da transformação do
condenado mediante a intervenção técnica e científica em seu corpo.
A trajetória da instituição prisional, culminando no modelo do panóptico, é uma expressão sintomática dessa nova maneira de não apenas lidar
com as ilegalidades, mas também promover o ajustamento dos indivíduos a
esquemas mais gerais de dominação. Pouco a pouco, as prisões foram assumindo a vocação de “tratar e reabilitar” a figura do “delinquente” a fim de
que ele pudesse retornar harmonicamente ao convívio social. O “sujeito de
direitos”, antes celebrado pelas revoluções iluministas, acabou por tornar-se
um objeto da ciência, de seus programas e esquadrinhamentos. As práticas
jurídico-penais foram colonizadas pelos discursos de um Lombroso, um Ferri,
um Garofalo. “E os juízes, eles mesmos, sem saber e sem se dar conta, passaram, pouco a pouco, de um veredicto que tinha ainda conotações punitivas, a
um veredicto que não podem justificar em seu próprio vocabulário, a não ser
na condição de que seja transformador do indivíduo” (Foucault, 2006:138).
Em muitos sentidos, os autores indicam que as noções de “segurança”
e até mesmo de “educação” até hoje são largamente definidas em função
daquele projeto. No caso da segurança, esta restrição de sentido parecerá
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CEREJA discute
mais saliente e imediata ao leitor. Maurílio Souza Firmino relata que, no dia
a dia das prisões, a segurança acaba sendo entendida como um atributo de
“pessoas de cara feia, truculentas e autoritárias”. E Marizangela Pereira dá o
exemplo da “retirada de alunas [da cela] para a sala de aula” como uma ocasião constantemente acompanhada por um “tratamento de reprovação, por
acharem que elas só querem ir passear, trocar informações”. “Passear” e “trocar informações” são comportamentos inerentes à condição humana que em
nada ameaçam a “segurança” dos estabelecimentos penais ou da sociedade.
Censurá-los e, com isso, restringir a possibilidade de processos de ensinoaprendizagem nas prisões só pode representar uma tentativa de reafirmar a
perversa lógica disciplinadora de que falavam os estudos de Foucault.
A educação não está necessariamente fora disso. Como adverte Manuel Rodrigues Português, a escola pode ser “mais um dos instrumentos
de dominação, subjugando os indivíduos ao sistema social da prisão ou ao
mundo do crime”. Um dos argumentos mais utilizados para se reivindicar
a oferta de educação nas prisões está baseado na crença, ingênua ou mal
intencionada, de que a educação poderá “transformar” os indivíduos presos,
fazer com que se “arrependam de suas trajetórias criminosas” e aceitem um
“conjunto de valores sociais” supostamente compartilhados por uma maioria
não-delinquente. Nessa leitura, a educação corresponde a uma simples ferramenta para a readequação ética dos presos, tendo como base, obviamente, a
ética de quem se pretende “de bem” (Sá, 2005). Por isso é que é importante
o alerta de Rowayne Soares Ramos no sentido de que, nas prisões, “alguns
sujeitos utilizam o conhecimento adquirido ao longo da vida para impor
ideias autoritárias e punitivas” e de que um olhar atento para as dinâmicas
educativas nas prisões pode revelar padrões inusitados de opressão baseados
na definição de “quem pode falar, quando pode falar, o que pode falar e
como pode falar”.
No que diz respeito às formas pelas quais o embate entre segurança e
educação se reproduz nas prisões, os textos revelam um notável processo de
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CEREJA discute
subjetivação muito semelhante ao que Goffman identificou em seus estudos
sobre “instituições totais” (1974). Nesse processo, agentes, dirigentes e até
mesmo presos não apenas introjetam a perversa lógica disciplinar pela qual
as prisões têm operado como se tornam eles próprios agentes de reprodução
dessa lógica. O texto de Maurílio Souza Firmino descreve esse fenômeno sem
usar meias palavras. Segundo sua narrativa, “o trabalhador penitenciário é
inserido numa cultura em que acreditar em ações positivas significa premiar
o comportamento criminoso. Um benefício como a escola é visto como potencializador do crime. De outro lado o recluso, ao submeter-se a programas
ressocializadores, é considerado fraco e confuso para os seus pares”.
Felizmente, os textos aqui reunidos também trazem uma palavra de
esperança. Como todos os autores mencionam, ainda que com diferença de
ênfase, o acúmulo teórico e prático da Educação de Jovens e Adultos nos legou
uma noção de educação que não se deixa represar pelas pretensões disciplinadoras sobre as quais a prisão se erigiu como instituição. Nessa outra visão, a
educação aparece como “um espaço que se paute por afirmar a vocação ontológica do homem, a de ser sujeito, que pressupõe o desenvolvimento de uma
série de potencialidades humanas, tais como: a autonomia, a crítica, a criatividade, a reflexão, a sensibilidade, a participação, o diálogo, o estabelecimento
de vínculos afetivos, a troca de experiências, a pesquisa, o respeito e a tolerância”, para citar a contribuição específica de Manuel Rodrigues Português.
Essa noção distinta de educação pode servir não apenas como um
meio de resistência à lógica de funcionamento das prisões — como Aline
Yamamoto parece haver sugerido no texto que motivou todo este debate —,
como também pode ajudar a dar novos sentidos para a “segurança” na política penitenciária. Uma gestão prisional que se comprometa a promover a
educação como “prática de liberdade”, como dizia o saudoso Paulo Freire
(2000), pode buscar os fundamentos da “segurança” no respeito aos Direitos
Humanos e não nos esquemas de sujeição que tradicionalmente organizam a
convivência nas prisões. Seremos capazes de construí-la?
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CEREJA discute
Referências bibliográficas
FOUCAULT, Michel. Sobre a Prisão. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir – História das violências nas prisões. Tradução de Raquel Ramalhete, 13 ed. Petrópolis: Vozes, 1996.
FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade: a sociedade brasileira em transição.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
GOFFMAN, Erving. Manicônios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974.
SÁ, Alvino Augusto de. Sugestão de um esboço de bases conceituais para um sistema penitenciário. In: Sá, Alvino Augusto de (Org.). Manual de projetos de reintegração social.
São Paulo: Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, 2005,
p. 13-21.
SÁ E SILVA, Fabio Costa Morais de. Cooperação internacional, parcerias governamentais
e inclusão social pela educação: lições aprendidas com o projeto Educando para a Liberdade. In: UNESCO; Ministério da Educação; Ministério da Justiça. (Org.). Educando para
a liberdade: trajetória, debates e proposições de um projeto para a educação nas prisões
brasileiras. Brasília, DF: UNESCO, 2006
SÁ E SILVA, Fábio Costa Morais de. Educación para Todos y el Sueño de una Nueva Política Penitenciária para Brasil. In: UNESCO; OEI; Gobierno de España. (Org.). Educación
en prisiones en latinoamérica: derechos, libertad y ciudadanía. Brasília, DF: UNESCO,
2008, p. 143-170.
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