UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
MESTRADO EM DIREITO PÚBLICO
BERNARDO SILVA DE LIMA
A ARBITRABILIDADE DO DANO AMBIENTAL E O SEU
RESSARCIMENTO
Salvador
2009
ii
BERNARDO SILVA DE LIMA
A ARBITRABILIDADE DO DANO AMBIENTAL E O SEU
RESSARCIMENTO
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Direito da Faculdade de
Direito da Universidade Federal da Bahia,
área de Direito Público, como requisito para
obtenção do título de Mestre em Direito.
Profa. Orientadora: Dra. Paula Costa e Silva
Salvador
2009
iii
BERNARDO SILVA DE LIMA
A ARBITRABILIDADE DO DANO AMBIENTAL E O SEU
RESSARCIMENTO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade
de Direito da Universidade Federal da Bahia, área de Direito Público, como
requisito para obtenção do título de Mestre em Direito.
Profa. Dra. Paula Costa e Silva, Universidade de Lisboa/Universidade Federal da
Bahia
________________________________
Prof. Dr. Carlos Alberto Carmona, Universidade de São Paulo
_________________________________
Prof. Dr. Fredie Didier Jr., Universidade Federal da Bahia
_________________________________
Data da aprovação: /
/2009
iv
AGRADECIMENTOS
Exatamente porque uma pesquisa não se completa com o único esforço do pesquisador, é
fundamental utilizar este espaço para fazer menção às pessoas que contribuíram com o seu
desenvolvimento. No meu caso, especialmente, a lista de colaboradores é extensa e valiosa.
Encabeçam a lista, sem nenhuma dúvida, meus pais. Minha mãe, Myrian Barbosa da Silva,
revisou o texto de ponta-cabeça e foi minha verdadeira procuradora durante o período em que
estive fora. Junto com ela, o meu pai, Francisco Ferreira de Lima, não pensou duas vezes quando
lhes apresentei o arrojado plano de deixar Salvador e, consequentemente, o meu emprego, em
direção a Lisboa, para estudar e escrever. Ambos me deram apoio material e imaterial durante
toda a minha ausência.
Em seguida, devo agradecer à minha orientadora, a Profa. Dra. Paula Costa e Silva, que me
presenteou com lições precisas e inteligentes, me abriu as portas de seu país e de outro, da
Universidade de Lisboa e, tão importante quanto, da sua amizade.
O outro país a que me refiro é a Itália, onde realizei pesquisa com o imprescindível apoio de um
colega da Profa. Paula, o brilhante jurista Marco Gradi, que, verdadeiramente, me acolheu em
sua casa como um irmão e me proporcionou acesso às melhores bibliotecas de Roma.
Também foi de Marco Gradi a iniciativa de me apresentar ao Prof. Dr. Giuseppe Ruffini, da
Universidade de Roma “Tre”, “La Sapienza”, que, com sua generosidade colossal, orientou a
minha pesquisa em Roma e me deu o presente de debater comigo os problemas relacionados ao
meu tema.
O Prof. Dr. Fredie Didier Jr., em conjunto com os Profs. Drs. Edílton Meirelles e Paula Costa e
Silva, montou e ministrou um dos cursos mais consistentes a que tive a oportunidade de atender:
v
o de Teoria Geral do Processo, na Universidade Federal da Bahia. Para eles, as minhas
homenagens.
A Profa. Dra. Roxana Cardoso Brasileiro Borges me deu conselhos preciosos durante as aulas de
Projeto de Pesquisa, os quais, muito provavelmente, mudaram o rumo da minha pesquisa. A ela,
também, os meus profundos agradecimentos.
O Prof. Dr. Rodolfo Pamplona Filho, mais uma amizade valiosa que me deu o curso de
Mestrado, desde o primeiro dia de aula foi um obstinado incentivador da minha pesquisa.
Devo agradecer, também, a nobreza do Prof. Dr. Heron Santana, que, desde o início, endossou
todos os meus projetos.
Agradeço à Universidade de Lisboa, pelo acesso que me deu à sua valiosa biblioteca. Também,
pelo mesmo motivo, agradeço a Universidade de Roma “La Sapienza”, especialmente ao
“Instituto di Diritto Processuale” e, também em Roma, a Corte Suprema di Cassazione; a
Faculdade Baiana de Direito, que presta à comunidade jurídica baiana um serviço bibliotecário
de primeiro mundo e ao Didier, Sodré e Rosa, escritório de advocacia que também me abriu as
portas à sua biblioteca. De igual modo, a biblioteca do Instituto do Meio Ambiente do Estado da
Bahia me permitiu a consulta de material bibliográfico.
Agradeço a CAPES pela contribuição com os custos da pesquisa.
O Consulado de Portugal agiu com rapidez e muita gentileza, razão pela qual também lhe presto
minhas reverências.
A Sra. Conceição Feiteiro, que, na Universidade de Lisboa, não poupou esforços para prestar seu
auxílio, os meus sinceros agradecimentos.
Luísa, secretária do Programa de Pós-Graduação, da UFBA, também tem a minha gratidão.
vi
O CAIA, grupo de amigos que se formou durante as aulas do Mestrado, também foi fundamental
para o meu amadurecimento intelectual e, certamente, contribuiu de maneira decisiva para
ampliar a qualidade do presente trabalho. Muito obrigado.
Não posso deixar de demonstrar a minha gratidão a Maria Helena Mira Mateus, que, em Lisboa,
me acolheu como se fosse seu filho.
Ivo Castro e Isabel Leiria também contribuíram com a evolução do meu trabalho, em Lisboa.
Rodrigo Galvão e Lucas dos Humildes foram meus correspondentes em Salvador durante a
minha estadia em Lisboa e me enviaram material do Brasil sempre que solicitei.
Cláudio Oliveira leu parte do trabalho e me deu sugestões de melhoria. Também a ele o meu
“muito obrigado”.
Diogo Guanabara também, por diversas vezes, foi meu debatedor, ouvindo, com muita paciência,
os argumentos do meu trabalho. Além disso, o pobre rapaz carregou 15 kg de livros, desde
Salvador até Coimbra, a meu pedido, tarefa que se executa unicamente em nome de uma forte
amizade.
Vicente Cerqueira, meu padrinho, me deu grande ajuda para que a minha ida a Portugal se
concretizasse.
Adriana foi compreensiva com a minha ausência e, por tê-la suportado, merece os meus
agradecimentos.
vii
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo investigar a viabilidade da utilização da arbitragem na
prestação da tutela ressarcitória do dano ambiental. Em uma primeira aproximação, destaca-se as
vantagens da utilização da arbitragem frente às características do dano ambiental. A celeridade se
relaciona com a irreversibilidade do dano ambiental; a especialização, com o caráter sinérgico; a
ausência de vinculação a uma jurisdição específica, com as particularidades do dano
transfronteiriço. Em seguida, faz-se uma imersão no conteúdo do Direito Ambiental, no intuito
de identificar os bens ambientais protegidos por Lei. O macrobem, o microbem e os bens
ambientais conexos passam a ser objeto de análise. A seguir, busca-se precisar o sistema de
arbitrabilidade, a partir de uma análise crítica dos critérios de acesso à arbitragem espalhados nas
mais diversas legislações do mundo. Faz-se uma incursão específica na legislação alemã e na
legislação do direito societário na Itália. Ainda nessa linha, investiga-se como saíram da sombra
da inarbitrabilidade as matérias trabalhista, tributária, concorrencial, propriedade intelectual e
administrativa. Finalmente, relaciona-se o conteúdo do Direito Ambiental identificado com os
critérios de arbitrabilidade vigentes na legislação brasileira, concluindo-se quais conflitos
ambientais podem ser levados à apreciação dos tribunais arbitrais.
Palavras-chave: Arbitrabilidade. Dano Ambiental. Arbitragem. Direito Ambiental. Direitos
Indisponíveis.
viii
ABSTRACT
This dissertation is the result of a research about the viability of the arbitration application on
environmental harm recovery. Firstly, it underlines the advantages of arbitration relating them to
the characteristics of environmental harm. Then, it submerges through the content of
Environmental Law, aiming to identify the environmental goods protected by law. The following
subject is the definition of the arbitrability system, starting off from a critical analisys on the
arbitrability criteria spread over various legislations around the world. Finally, it relates the
identified Environmental Law content to arbitrability criteria spotted in Brazilian legislation,
which opens the paths to conclude about which environmental conflicts can be taken to arbitral
court appraisal.
Key words: Arbitrability. Environmental harm. Arbitration. Environmental Law. Undisposable
rights.
ix
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................... 1
1 A UTILIDADE DA TUTELA ARBITRAL DOS DANOS AMBIENTAIS ... 2
1.1 A CELERIDADE, OS CUSTOS AMBIENTAIS E A IRREVERSIBILIDADE DO DANO
..................................................................................................................................................... 6
1.2 A ESPECIALIZAÇÃO DO ÁRBITRO E O CARÁTER SINÉRGICO DO DANO
AMBIENTAL. .......................................................................................................................... 13
1.3 A EXPANSIBILIDADE HORIZONTAL DO DANO E OS OBSTÁCULOS DE
COMPETÊNCIA DA JURISDIÇÃO ESTATAL .................................................................... 18
1.3.1 O conflito ambiental transfronteiriço envolvendo Estados.......................................... 19
1.3.2 O conflito ambiental transfronteiriço envolvendo particulares.................................... 22
2 O CONTEÚDO DO DIREITO AMBIENTAL E A ARBITRABILIDADE .26
2.1 BENS, DIREITOS E DANOS AMBIENTAIS, CONTEÚDO DA TUTELA JURÍDICA
DO MEIO AMBIENTE ............................................................................................................ 26
2.1.1 O macrobem, o direito difuso à qualidade ambiental e o dano à estabilidade ecológica
............................................................................................................................................... 27
2.1.2 O microbem e os bens conexos: sua tutela, a relação mantida com o macrobem e o
dano ambiental individual ..................................................................................................... 39
2.2 O SISTEMA DE ARBITRABILIDADE ............................................................................ 48
2.2.1 Critérios clássicos de arbitrabilidade: vigentes e úteis até quando? ............................ 48
2.2.2 Novos rumos da arbitrabilidade: onde há fumaça, há fogo.......................................... 63
2.2.2.1 Mudanças no direito positivo estrangeiro: o Direito alemão, a legislação
societária e a reforma da regulação arbitral na Itália..................................................... 64
2.2.2.1.1 O Direito alemão ............................................................................................ 64
2.2.2.1.2 A arbitragem na Itália e as particularidades da reforma societária ................ 65
x
2.2.2.2 O artigo 852 do código civil: derrogação do sistema de arbitrabilidade da lei
9.307/1996?....................................................................................................................... 71
2.2.2.3 A arbitrabilidade das “causas impossíveis” ........................................................ 72
2.2.2.3.1 Arbitragem e o Estado como parte: avanços no Brasil e em Portugal ........... 73
2.2.2.3.2 Arbitragem em matéria tributária................................................................... 80
2.2.2.3.3 O Direito do Trabalho e a arbitragem ............................................................ 84
2.2.2.3.4 Direito da Concorrência, legislação antitruste e arbitragem .......................... 88
2.2.2.3.5 Arbitrabilidade e propriedade intelectual....................................................... 91
2.2.2.4 Uma constatação: a inarbitrabilidade vem enfraquecendo.................................. 94
3 A ARBITRABILIDADE DO RESSARCIMENTO DO DANO
AMBIENTAL..................................................................................................... 96
3.1 ARBITRAGEM AMBIENTAL EM CURSO NO MUNDO.............................................. 96
3.1.1 Direito Ambiental e arbitragem internacional: uma realidade ..................................... 97
3.1.2 A Arbitragem Ambiental no Peru .............................................................................. 100
3.1.3 Arbitragem Ambiental em Portugal? ......................................................................... 103
3.1.4 Arbitragem Ambiental no Brasil? .............................................................................. 106
3.1.4.1 O art. 23, §§1º a 3º, do Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos
......................................................................................................................................... 106
3.1.4.2 Uum caso concreto: Fiat e Ministério Público firmam compromisso a respeito de
emissão de poluentes à atmosfera................................................................................... 108
3.2 EXISTE COMPATIBILIDADE ENTRE O CONTEÚDO DO DIREITO AMBIENTAL E
OS CRITÉRIOS DE ARBITRABILIDADE? ........................................................................ 109
3.2.1 Disponibilidade, patrimonialidade e o compromisso de ajustamento de conduta ..... 110
3.2.2 Danos reflexos e a tutela ressarcitória arbitral ........................................................... 114
3.2.2.1 Os danos à propriedade individual resultantes de agressão ao ambiente e os
danos aos direitos da personalidade .............................................................................. 115
3.2.2.2 Os danos à saúde provocados por omissão do Poder Público........................... 122
xi
3.2.3 Danos ao microbem e a tutela ressarcitória................................................................ 124
3.2.4 Danos ao macrobem e a tutela ressarcitória............................................................... 126
3.3 QUESTÕES POSTERIORES ÀS CONCLUSÕES QUANTO À ARBITRABILIDADE
OBJETIVA DO RESSARCIMENTO DO DANO AMBIENTAL DIFUSO ......................... 134
3.3.1 A presença do Ministério Público na controvérsia: um impeditivo de arbitrabilidade?
............................................................................................................................................. 135
3.3.2 Arbitrabilidade do ressarcimento do dano ambiental via aplicação de penalidade
administrativa...................................................................................................................... 137
3.3.3 O instrumento apto a veicular a convenção de arbitragem ambiental ....................... 138
3.4 OS PROBLEMAS QUE EMERGEM DA ACEITAÇÃO DA ARBITRABILIDADE DA
CONTROVÉRSIA SOBRE O MACROBEM........................................................................ 139
CONCLUSÃO...................................................................................................143
REFERÊNCIAS................................................................................................144
1
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem o objetivo de investigar a possibilidade da sujeição de controvérsia
ambiental de caráter ressarcitório à arbitragem. Ocorrendo um dano ambiental, pode o pleito
ressarcitório ser processado por um tribunal arbitral? A pertinência da pesquisa tem origem em
dois fatos, aparentemente antagônicos: o primeiro, a presença da disponibilidade do direito como
critério de arbitrabilidade, disposto no art. 1º da lei 9.307/96; o segundo, o suposto caráter
indisponível do Direito Ambiental.
A resposta ao problema proposto se inicia, no primeiro capítulo, quando se explicita a utilidade
da tutela arbitral dos danos ambientais, através da proposição de uma relação entre as
características da arbitragem e as particularidades do dano ambiental.
Em seguida, o segundo capítulo investiga o conteúdo do Direito Ambiental e os bens jurídicos
que dele surgem, catalogando, ainda, os danos ambientais que a eles correspondem. Em um
segundo momento, ainda no segundo capítulo, faz-se uma incursão crítica no sistema de
arbitrabilidade estabelecido em diversos ordenamentos jurídicos, discutindo-se os conceitos que
o integram e as perspectivas de mudança que o ameaçam.
No capítulo final, as informações catalogadas a respeito das características dos bens e danos
ambientais correlatos são cruzadas com os conceitos dos critérios de arbitrabilidade existentes na
legislação brasileira e com noções a eles correspondentes, também estudadas no segundo
capítulo. Essa mistura de conceitos e características permitem uma conclusão acerca da margem
permitida pela legislação para submeter o conflito ambiental de natureza indenizatória à
apreciação do tribunal arbitral.
2
1 A UTILIDADE DA TUTELA ARBITRAL DOS DANOS AMBIENTAIS
É inegável que a utilização da arbitragem, no Brasil, ganhou muito mais força com a publicação
da lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, quando, pela primeira vez no ordenamento jurídico
brasileiro, se dispensava a homologação judicial do laudo arbitral, emprestando-lhe efeitos
jurídicos idênticos à decisão judicial1 (CARMONA, 2004, p. 22). Renascia2, no país, mais um
instrumento à disposição da sociedade para solucionar conflitos.
A despeito da notável evolução do instituto no âmbito nacional somente após o advento da Lei
9.307/96, internacionalmente a arbitragem já foi há mais tempo difundida, inclusive na área de
solução de conflitos entre Estados (GARCEZ, 2007, p. 17). Historicamente, a arbitragem foi
importante em discussão envolvendo matéria de caráter comercial, fenômeno, aliás, que foi
também observado em outras culturas jurídicas3.
Sidnei Augustinho Beneti, referido por José Augusto Delgado, explica que a arbitragem,
modernamente, se desenvolveu no âmbito do comércio internacional, dada a inexistência de
jurisdição estatal que cobrisse as relações internacionais. A partir de então, o instituto passou a
experimentar “desenvolvimento extraordinário no âmbito interno de cada país”. (DELGADO,
2009, p. 3).
1
A lei 9.307/96, ao emprestar eficácia jurídica à decisão arbitral, correlata à decisão judicial, abandonou a
terminologia “laudo arbitral”, para batizar o ato processual referido de “sentença arbitral”.
2
É importante registrar, embora a evolução histórica do instituto não seja objeto de nosso trabalho, que a arbitragem
é instituto muito antigo, discutido, inclusive, por Platão, no seu De Legibus, livros 6 e 12. . Pontes de Miranda é um
dos que refere a utilização da arbitragem no direito grego e no direito romano (1977, p. 226). Pedro Batista Martins
destaca a tradição brasileira na arbitragem, nomeadamente no século XIX e nas primeiras décadas do século XX
(2001b, p. 319).
3
Maria Clara Albino refere que “Na Idade Média a arbitragem adquiriu relevo sobretudo em mercados e feiras, bem
como nos tribunais marítimos instalados nos portos. O desenvolvimento do comércio era facilitado por este meio
expedito de realização da justiça. Os soberanos europeus da época favoreceram a organização de arbitragem,
também como meio de utilização do poder real, do que é exemplo o édito de Francisco II de França, publicado em
Agosto de 1560, que prescreveu a obrigação de sujeição a árbitros dos litígios entre comerciantes resultantes do
exercício do seu comércio, a eficácia das convenções arbitrais independentemente da estipulação de cláusula penal e
a restrição do recurso das sentenças arbitrais”(2007, p.4).
3
No Brasil, Delgado informa que a arbitragem, após a publicação da lei 9.307/96, teve notável
desenvolvimento no Estado de Goiás, com o advento das Cortes de Conciliação e Arbitragem,
espalhadas por Goiânia, Anápolis, Caldas Novas e Catalão, com largo apoio da indústria e do
setor de commodities (DELGADO, 2009, p. 14).
De fato, não é difícil constatar que o instituto se desenvolveu com muita rapidez no ambiente
comercial/empresarial, no Brasil e no exterior, promovendo um alastramento significativo das
instâncias arbitrais nas Câmaras de Comércio locais e regionais (DELGADO, 2009, p. 8-9).
No mais, não se pode, até o presente momento, falar em uma consolidação da arbitragem na
cultura jurídica brasileira4 (LIMA apud DELGADO, 2009, p. 27), o que explica o afastamento
de seu âmbito de utilização uma extensa gama de litígios. Com efeito, o desconhecimento do
mecanismo efetiva a sua subutilização5, consubstanciada na restrição do âmbito material das
pretensões existentes ao setor empresarial/comercial6.
Para ilustrar a consideração, basta fazer referência aos conflitos particulares de natureza
familiar7, situação em que a população enxerga, ainda, na figura do juiz, o peso da autoridade do
Estado contra o seu opositor, mito que lhe proporciona um sentimento ilusório de segurança e
estabilidade, já que, como veremos adiante, os problemas vividos no judiciário podem ser
evitados com facilidade, caso se opte por adotar a via arbitral8.
4
Sobre o papel da educação na difusão da arbitragem como instrumento de acesso à justiça e efetivação dos direitos,
ver Holanda, 2007.
5
Além do fator ignorância, Rubino-Sammartano chama atenção para o fato de que a arbitragem não pode se tornar
em uma “clínica de luxo”, sob pena de obstar às causas pequenas o acesso à justiça (1990, p. 27).
6
Nesse sentido, Delgado ainda refere o grande esforço doutrinário, no Brasil, para o desenvolvimento da arbitragem
no âmbito do direito laboral e sindical (2009, p. 15-18).
7
Se cogita aqui a hipótese de discussão de direitos patrimoniais, envolvidas em um divórcio, o qual, sabemos, não
pode ser processado por árbitro.
8
“Há, também, de se educar a população para o atual estágio da denominada entrega da prestação jurisdicional,
quando não mais se constitui privilégio absoluto do Estado a responsabilidade pelo seu manejo.” (DELGADO,
2009, p. 28)
4
Apesar da ignorância sobre o assunto, é irrefutável o fato de que a arbitragem traz benefícios ao
litigante, que não podem – e não devem - ser ignorados. Mais: é importante que se diga que esses
benefícios não estão restritos a relações jurídicas cuja matéria de fundo tenha caráter
empresarial/contratual; mais do que isso, eles ecoam perante diversas relações jurídicas,
motivando o exercício da arbitragem para a solução de divergências de várias naturezas9.
Na esfera protetiva ambiental, entendemos que as vantagens oferecidas pela arbitragem seriam
potencializadas. As características do dano ambiental apontam para essa direção. É dizer: nessa
área, a arbitragem se apresenta como engenho de utilidade destacada, com aptidão otimizada
para o alcance de proteção jurisdicional efetiva do direito fundamental ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
Por isso, o objeto de análise do presente trabalho diz respeito à arbitrabilidade do ressarcimento
dos prejuízos causados por dano ambiental. A indagação básica, portanto, corresponderia à
seguinte: poderiam as partes interessadas socorrer-se da jurisdição10 arbitral para obter tutela
concernente à recomposição do patrimônio ambiental (material e imaterial) lesado?
A questão, do ponto de vista dogmático, no Direito brasileiro, se assenta em restrição presente no
art. 1º da Lei de Arbitragem, que adverte que será permitido o recurso à arbitragem quando
versar a causa sobre direitos patrimoniais disponíveis11. Outros ordenamentos, a exemplo do
português e do italiano, também, em tese, oferecem restrições à arbitrabilidade dos danos
ambientais, tema que desdobraremos no segundo capítulo deste trabalho.
9
Mais à frente discorreremos sobre as limitações da arbitrabilidade.
10
Longe de pretendermos abordar a questão, pois não acrescentaríamos nenhuma informação que não seja
facilmente acedida em qualquer manual sobre arbitragem, cabe apenas informar que a polêmica sobre o caráter
jurisdicional da arbitragem existe, embora, a nosso sentir, já sofra algum desgaste; nada obstante, para efeito do
desenvolvimento deste trabalho, adota-se como premissa o caráter jurisdicional da arbitragem.
11
“Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos
patrimoniais disponíveis”.
5
Ora, pilar fundamental do estudo do Direito Ambiental é a percepção do caráter indisponível do
bem ambiental (GRINOVER; GONÇALVES, 2006, p. 252; LEITE, 2003, p. 242). Sendo assim,
como admitir que esse bem seja tutelado em procedimento arbitral? Uma solução rápida para o
problema seria adotar como indiscutivelmente verdadeira a assertiva sobre a indisponibilidade
dos direitos ambientais, confrontando a informação com o disposto na Lei de Arbitragem. De
imediato, o raciocínio provocaria a conclusão pela impossibilidade da utilização do instituto na
tutela dos direitos ambientais, desfecho que não justificaria as páginas em sequência.
Entretanto, sabe-se que o tema não é simples e que merece um aprofundamento muito maior do
que mera aplicação de um sofisma reducionista. Antes que se opine pela possibilidade ou
impossibilidade da arbitrabilidade dos danos ambientais, é necessário recorrer o arcabouço
teórico que circunda o dano ambiental, fazendo referência às suas diferentes dimensões. Se o
bem ambiental oferece um âmbito difuso de proteção [macrobem (LEITE, 2003, p. 83)] e outro
individual, é certo que essas diferentes esferas de tutela darão ensejo a situações jurídicas de
conteúdos distintos, a partir de onde, eventualmente, podem surgir efeitos particulares, e,
portanto, conclusões distintas quanto à arbitrabilidade.
É preciso pensar, ainda, se as propriedades do direito à qualidade ambiental (em suas dimensões
difusa e individual) correspondem fidedignamente às particularidades da pretensão indenizatória
advinda de sua violação; está claro que as mencionadas situações jurídicas – direito subjetivo e
pretensão não se confundem (FONTES, 2001, p. 9-10): de um lado, há o direito ao equilíbrio do
meio e, de outro, a pretensão pelo ressarcimento, em função da violação desse direito. Será que a
pretensão ao ressarcimento é tão indisponível e extrapatrimonial quanto o direito subjetivo a ela
conexo? Será que é possível pensar em um núcleo disponível dentro do feixe de pretensões
nascidas do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado?
Toda essa digressão, como já se registrou, deve pressupor o alcance de um benefício razoável à
tutela da recomposição da qualidade ambiental, objetivo sem o qual as respostas que se pretende
encontrar durante o desempenho desta reflexão se tornariam vazias e dispensáveis. Com isto,
quer-se defender a ideia de que a arbitrabilidade da recuperação ambiental possui musculatura
6
suficiente para promover uma melhora substancial, quantitativa e qualitativa, na persecução da
efetividade do direito ao meio ambiente sadio e equilibrado.
1.1 A CELERIDADE, OS CUSTOS AMBIENTAIS E A IRREVERSIBILIDADE DO DANO
Um dos problemas mais visíveis na prestação da tutela jurisdicional do Estado, na atualidade, é a
demora na resolução dos conflitos apresentados às autoridades judiciais. Não apenas no sistema
Judiciário brasileiro o problema já foi denunciado (MARINONI, 1993, p. 32), mas também em
outros países a questão tem sido enfrentada com preocupação (CAIVANO, 2008, p. 29;
VIGORITTI, 2005, p. 153-154). O jurista argentino Roque J. Caivano adverte que
a demora excessiva faz ilusória a proteção jurisdicional; também a faz mais onerosa.
Em nosso caso esta onerosidade é duplamente grave, já que o serviço é caro para o
Estado, que deve prover os recursos para sustentá-lo, e é pouco útil ao cidadão, que vê,
assim, condicionado o acesso à justiça [tradução nossa] (2008, p. 30).
O autor aponta diversas causas para a ocorrência do obstáculo, dentre as quais se deve relacionar:
o caráter ritualístico e burocrático dos procedimentos, a deformação da interpretação das
garantias de defesa, a falta de humanidade no ato de julgar, a sobrecarga de trabalho e a
deficiência da infra-estrutura dos tribunais (2008, p. 30-31).
Trazida a questão ao caso brasileiro, José Emílio Nunes Pinto (2007, p. 315) credita a vantagem
da celeridade ao processo arbitral em função do complexo sistema recursal que paira sobre o
processo judicial. Com efeito, não se pode comparar a velocidade da cognição judicial com a
observada na cognição arbitral, não apenas como consequência da ausência de sistema recursal12,
no segundo caso. Deve-se, ainda, considerar a existência de prazo para a prolação da sentença
arbitral, seja ele contratualmente estabelecido, seja, em sua ausência, o disposto na lei
9.307/9613.
12
13
Cf. Lei 9.307/96, arts. 29 e 30.
“Art. 23. A sentença arbitral será proferida no prazo estipulado pelas partes. Nada tendo sido convencionado, o
prazo para apresentação da sentença é de seis meses, contado da instituição da arbitragem ou da substituição do
árbitro”.
7
Essa característica se potencializa enquanto vantagem se a causa versar sobre recomposição de
lesão por dano ecológico. A impossibilidade de restabelecimento do statu quo ante em matéria
ambiental (PRIEUR, 2004, p. 918) é uma das características que bem distinguem o dano
ambiental, do dano vinculado ao sistema civilista. Com efeito, adverte Prieur, é impossível
reconstituir um biótipo ou uma espécie já extinta pela intervenção lesiva (2004, p. 918). E
mesmo sendo possível restabelecer as características do local, em alguns casos, a qualidade
ambiental pode demorar décadas, ou, até mesmo, centenas de anos (por exemplo,
reflorestamento), para recuperar o patamar original. De qualquer modo, obviamente, a
reconstituição – artificial ou natural – não será capaz de ressuscitar a arquitetura original do
ambiente; ele será formado por novos indivíduos e alcançará equilíbrio de características
distintas.
O fundamento mesmo da irreversibilidade é muito bem definido por Steigleder (2004, p. 174),
que identifica no bem ambiental um “valor existência”, único e intrínseco, vinculado a uma
dimensão ética, e, portanto, irrecuperável. Trata-se do desdobramento da ideia de que o bem
ambiental não pode ser tido exclusivamente como um elemento patrimonial da humanidade, mas
essencialmente um valor a ser cultivado. Tão verdadeiro é o raciocínio, que hoje a jurisprudência
brasileira vem sinalizando com alguma frequência a viabilidade da pretensão indenizatória, em
matéria ambiental, de caráter moral e difusa (GUIMARÃES, 2008, p. 83).
Quando se fala em restauração ecológica (LEITE, 2002, p. 210), faz-se referência ao
estabelecimento de um nível de qualidade ambiental similar ao constituído em momento prévio à
intervenção danosa. É isto que leva Sendim a explicar que o ressarcimento in integrum não se
confunde com “repor o estado material que existia antes do dano – o que seria não só impossível,
mas também ambientalmente perigoso – mas sim reintegrar o estado de equilíbrio dinâmico do
sistema ecológico” (1998, p. 179). Na mesma linha, Leite, Lima e Ferreira asseveram que a
recuperação da área degradada constitui-se em mera tentativa de reconquistar o estado material
anterior, a qual se traduz na oportunidade de regeneração das condições naturais (2005, p. 272).
Isso significa que, por mais preciso que seja o plano de recuperação das áreas degradadas, o
estado qualitativo natural é irresgatável.
8
Não obstante, há danos ambientais cujas características obstaculizam, inclusive, a possibilidade
de se restabelecer um estado próximo ao violado. Tal é o exemplo de extinção de espécies e
transposição de um curso hídrico, exatamente como se está procedendo, nos dias atuais, em
relação ao Rio São Francisco, no Nordeste do Brasil.
É a esta categoria que se refere o princípio n˚ 15 da Declaração do Rio (Eco 92), constituindo-se
de suporte teórico para o estabelecimento do princípio da precaução, hoje um dos pilares da
autonomia do Direito Ambiental:
Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser
amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver
ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não
será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para
prevenir a degradação ambiental.
Percebe-se, assim, que o caráter irreversível é comum aos casos em que a recuperação do status
qualitativo é viável, bem como àqueles em que essa opção não exista, embora, em cada caso, a
expressão assuma significados inconfundíveis.
Das duas formas, quanto mais rápida for a intervenção jurisdicional, no sentido de que se inicie a
ação inibitória, em caso de irreparabilidade da qualidade ambiental, ou a restauração ecológica,
mais chances possui a coletividade de garantir a proteção devida ao meio ecologicamente
equilibrado. Mais: uma intervenção jurisdicional rápida e eficiente pode impedir que novos
danos ambientais, decorrentes da agressão discutida em juízo, venham a ocorrer. Assim, a
sensibilidade do bem ambiental, aqui dotada de intensidade bem maior do que em outros bens
juridicamente protegidos, reclama uma prestação jurisdicional tecnicamente eficiente e
instantânea, sob pena de imortalizar a ação lesiva e, por tabela, tornar perpétua a perda da
qualidade ambiental no sítio em que se operou a intervenção.
Nesse sentido, sabe-se que a concepção de “razoável duração do processo”, um dos
desdobramentos do princípio do devido processo legal, é preenchida através da análise da
utilidade do provimento jurisdicional, isto é, reconhece-se o atendimento ao devido processo
9
legal quando o provimento jurisdicional, no tempo em que foi ofertado às partes, ainda é
suficiente para garantir o direito subjetivo – reconhecidamente legítimo, no processo - do
postulante (MARINONI, 2004, p. 180). Especialmente quando se está diante de pleito que versa
sobre matéria ambiental, é essencial que a controvérsia seja dirimida com a máxima brevidade,
sob pena de tornar-se o provimento inútil, acarretando flagrante violação de direito fundamental.
A concepção da razoável duração do processo está inserida na lógica da fundamentalidade da
tutela jurisdicional efetiva, o que pressupõe a adequação de técnicas processuais às finalidades
pretendidas no bojo do processo (MARINONI, 2004, p. 187), bem como se estabelece,
nomeadamente no âmbito de tutela dos direitos ambientais, como um pressuposto real de acesso
à justiça. O fato é que o atendimento em tempo hábil ao pleito do cidadão não é façanha que
mereça aplausos entusiasmados; ao contrário, deveria ser esse o cenário regular do Poder
Judiciário, já que a promoção do acesso à justiça – em sua dimensão direta de acesso aos direitos
-, é dever do Estado e direito humano fundamental14.
A demora no provimento jurisdicional desencadeia a intensificação do passivo ambiental, ao
tempo em que se assiste a desvalorização das características qualitativas do meio. Tal como uma
empresa credora que, durante o processo judicial, no qual litiga por uma determinada quantia,
sofre prejuízo econômico15, pelo fato de estar impossibilitada de fazer uso de seu capital (ainda
que a Lei preveja a correção monetária do crédito), sofre16 a coletividade de sujeitos de direito
indeterminados do bem ambiental difuso, em virtude da demora na recomposição do dano
ambiental.
Por isso, o pleito ambiental tardiamente atendido, ao contrário do que se possa pensar, implica,
também, custos econômicos17. Tem-se por custo ambiental do processo, portanto, os prejuízos
14
Cf. BEZERRA, 2005.
15
Por exemplo, redução na capacidade de investimentos, crescimento econômico comprometido.
16
“[...] Um dano a recursos naturais pode também resultar em perda de utilização e aproveitamento da natureza por
residentes locais e turistas ” (BRANS, 2001, p. 264).
17
José Emílio Nunes Pinto, em palestra proferida no IV Seminário Luso-Brasileiro de Direito Público, na
Universidade de Lisboa, em 27 de abril de 2009, defendeu que, para além das relações jurídicas de natureza
10
(ocorrência de danos e privação de benefícios) ambientais pela excessiva demora de o Judiciário
tutelar, em tempo hábil, a qualidade ambiental. Trata-se da situação de inércia judicante do
Estado, que autoriza a manutenção de situações de ilicitude ambiental, promovendo o acúmulo
sucessivo de prejuízos à qualidade do meio.
Ilustra bem o argumento invocado o verdadeiro desabafo proferido pelo magistrado competente
para o julgamento da Ação Civil Pública 2006.33.00.016425-0, em trâmite na 13ª Vara Federal
da Secção Judiciária do Estado da Bahia, que questiona a construção de barracas de praia de
alvenaria nas orlas marítimas de Salvador e Lauro de Freitas, ao despachar, em 21/01/2009, uma
reiterada exceção de suspeição:
1. A ASSOCIAÇÃO DOS COMERCIANTES EM BARRACAS DE PRAIA DA
ORLA DE SALVADOR - ACBPOMS opõe novamente EXCEÇÃO DE SUSPEIÇÃO
contra o juiz federal signatário, acusando-o de parcialidade em face de suposto interesse
no julgamento da causa em favor de uma das partes (CPC, art. 135, V). 2. Como
sustentáculo da pecha de parcialidade, alinha a excipiente dois motivos: a) que não foi
convidada para participar da reunião preparatória de conciliação realizada no dia
3.12.2008, às 16:00 horas na Sala de Audiências desta 13ª Vara Cível Federal; b) que
teria o juiz excepto se referido aos barraqueiros/permissionários como "turba de
baderneiros" na decisão dos embargos de declaração opostos pelo MUNICÍPIO DO
SALVADOR (fl. 4.201). 3. Utiliza a excipiente dois argumentos pífios e claramente
infundados, valendo-se de expressões descontextualizadas, para tentar afastar - pela
segunda vez - o magistrado que preside o processo desde o início. 4. Evidente que a
exceção de suspeição oposta apenas revela o propósito subalterno da excipiente em
trancar temporariamente a ação civil pública, impedindo que a Justiça Federal cumpra o
seu papel de solucionar, em definitivo, a tormentosa questão, compromisso que toda a
sociedade baiana aguarda com ansiedade e absoluta confiança. 5. Observo que a
exemplo do que ocorreu com a primeira exceção de suspeição, a excipiente voltou
a utilizar do mesmo artifício para impedir a realização da audiência de
conciliação, instrução e julgamento, marcada para o próximo dia 21.1.2009, às
14:00 horas. 6. Aparentemente, a manobra surte o efeito desejado: a audiência não
se realiza, nada se resolve e as coisas continuam como estão - barracas de praia de
contratual, de onde se pode extrair um valor de transação, as relações obrigacionais pendentes, de natureza
extracontratual, impõem impactos econômicos aos envolvidos, passíveis, inclusive, de quantificação.
11
alvenaria arrogantemente fincadas nas areias das praias, poluição, desordem e
feiúra - tomam o lugar das famílias, das crianças, dos turistas, do povo em geral,
num verdadeiro e triste espetáculo de privatização do bem público, favelização das
praias, degradação e poluição ambiental e visual da orla soteropolitana. [grifo
nosso] (BRASIL, 2009a)
Apesar do forte teor de indignação observado no texto, decorrente da constatação de mais um
empecilho processual posto à prestação da tutela jurisdicional, o magistrado termina por
reconhecer a sua impotência diante do sistema processual, suspendendo o curso da ação para
efeito do julgamento da aludida exceção, observando que a medida protelará o sofrimento de
danos pela população em função da pendência da causa, e portanto, contribuirá para a elevação
dos custos ambientais do processo:
12.Não reconheço, destarte, a suspeição alegada, à míngua de qualquer demonstração
séria de parcialidade na condução do processo principal. Dentro do prazo legal
oferecerei a resposta que o incidente merece, encaminhando os autos da exceção ao
egrégio TRF/1ª Região, para o devido julgamento. 13. O processo ficará suspenso até
que a exceção seja julgada (CPC, arts. 265, III e 306). 13.1. Os efeitos da suspensão
processual, entretanto, operam ex-nunc, não afetam o cumprimento e a higidez de todas
as determinações judiciais anteriores, inclusive diligências cometidas às partes, prazos
em curso, medidas liminares etc. 14.Traslade-se cópia integral deste despacho para os
autos da ação principal (ACP nº 2006.33.00.016425-0), certificando em ambos os
procedimentos a ocorrência. 15. Intimem-se MPF, UNIÃO FEDERAL, MUNICÍPIO
DO SALVADOR, IBAMA e SMA, nas pessoas de seus representantes legais máximos,
mediante mandados específicos, com identificação inequívoca de seus destinatários,
instruídos com cópias deste despacho para ciência. Cumpra-se, com urgência.
É verdade que, em sede de arbitragem, a arguição de suspeição também é permitida18, mas, aqui,
arriscamos afirmar que a prestação da tutela ainda seria oferecida em tempo hábil. Não nos
esqueçamos, que, independentemente dos incidentes processuais que porventura possam ocorrer,
o árbitro está vinculado a prazo certo para resolver o conflito. Assim, a análise da arguição de
18
Cf. Art. 20 da Lei 9.307/96.
12
suspeição, ainda que feita por órgão outro19 que não a comissão de arbitragem, teria, sob pena de
inobservância de obrigação contratual, de ser realizada com a maior brevidade possível. Lembrese, por outro lado, que a remessa de autos a instância superior, no sistema processual do Estado,
tem rendido, no Brasil, intermináveis filas de espera20. Basta dizer que, no caso concreto
apresentado, o magistrado movimentou novamente o processo, quase três meses depois21,
informando que os autos da exceção de suspeição encontravam-se no gabinete da relatora,
conclusos para decisão, a qual, até o fechamento da redação do presente trabalho, não foi
publicada. Na margem oposta, quando se trata de arbitragem, seis meses é o prazo legal para que
o árbitro sentencie. Trata-se de abismo notável.
Vale salientar que os prejuízos que a coletividade venha a suportar, em virtude da ausência
temporária da qualidade ambiental necessária, provocada pela pendência do litígio, deverão ser
contabilizados para efeito de estabelecimento da condenação a ser atribuída ao poluidor.
Entretanto, não se pode dizer que o equivalente monetário à fruição da qualidade ambiental
durante o período de privação corresponda ao ideal, visto que nada poderá, por exemplo,
restabelecer a situação de uma espécie extinta (que, inclusive, em determinado ecossistema,
poderá causar desequilíbrio em cadeias alimentares complexas, ocasionando superpopulações de
espécies predatórias e ofensivas ao bem estar humano e ao bom funcionamento da natureza),
cuja causa poderá, em determinadas situações, ser atribuída à demora na prestação da tutela
jurisdicional adequada.
Melhor e mais desejável é que a tutela jurisdicional seja eficiente, do ponto de vista da precisão
técnica e da agilidade, para evitar a ocorrência de mais agressões à qualidade ambiental da área
19
Por exemplo, o nº 3 do art. 11 do Regulamento de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional estabelece
que “Compete à Corte pronunciar-se sobre a admissibilidade e também, se for o caso, sobre os fundamentos da
impugnação.
20
Segundo o Conselho Nacional de Justiça, em 2007 a taxa de congestionamento da Justiça Federal, por exemplo,
alcançou 58,1%, enquanto que na Justiça Estadual o índice bateu os 74,1%. A taxa de congestionamento, conforme
definição do próprio CNJ, corresponde “à divisão dos casos não sentenciados pela soma dos casos novos e dos casos
pendentes de julgamento” (BRASIL, 2009b.).
21
Em 17 de Abril de 2009.
13
que sofreu intervenção indevida, tarefa que, submetida ao juízo arbitral, por sua estrutura
processual e procedimental, teria todas as chances de ser satisfatoriamente realizada.
1.2 A ESPECIALIZAÇÃO DO ÁRBITRO E O CARÁTER SINÉRGICO DO DANO
AMBIENTAL.
As afinidades entre arbitragem e a tutela ressarcitória do bem ambiental não encontram “final
feliz” apenas na relação entre a celeridade e a necessidade instantânea de remediar o dano. Mais
além, a complexidade das relações ecológicas e biológicas, essenciais à construção e
desenvolvimento da qualidade ambiental, exige do julgador uma profundidade técnica
dificilmente observada nos tribunais estatais. Diversas são as causas para a ocorrência do
fenômeno, que se posicionam a larga distância da responsabilidade dos magistrados. De fato, a
própria lógica do processo e a sua vinculação a princípios ligados ao devido processo legal
oferecem obstáculos ao oferecimento de infra-estrutura judicante para a adequada e
instrumentalizada apreciação de litígios de natureza ambiental.
A autonomia do Direito Ambiental e a segmentação didática de seu estudo são história recente
nas cadeiras dos cursos jurídicos do Brasil e, até os dias presentes, a disciplina não integra o
currículo obrigatório22. A grande maioria dos profissionais que ocupa os assentos da magistratura
pátria não possui formação curricular jusambiental e nem é obrigatório àqueles que atuam
diretamente na solução de litígios envolvendo a matéria que nela se especializem.
O problema da ausência de especialização dos magistrados se agiganta no âmbito da tutela dos
direitos coletivos, já que a eficácia da decisão, nesse caso, não atingirá uma relação jurídica
meramente bilateral, mas um sem-número de indivíduos que a integram. Preocupados com esse e
outros problemas relacionados com a tutela coletiva dos direitos, juristas brasileiros elaboraram o
Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos23, que no seu art. 47 adverte: “A União,
22
23
Cf. Portaria MEC nº 1.886, de 30 de dezembro de 1994.
A redação brasileira teve origem no Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América, cujos trabalhos
de elaboração foram presididos por Roberto Berizonce, Ada Pellegrini Grinover e Angel Landoni Sosa. O trio de
juristas sinaliza, na exposição de motivos do Código Modelo, que a ideia da codificação surgiu de intervenção
14
no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, e os Estados criarão e instalarão órgãos especializados, em
primeira e segunda instância, para o processamento e julgamento de ações coletivas”. Um de
seus elaboradores, o Prof. Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, salienta que “O elevado número
de processos e a variedade de matérias submetidas aos juízes vêm exigindo dos órgãos judiciais,
por um lado, uma formação cultural e multidisciplinar, mas, por outro, também elevado nível de
profissionalização e de especialização [...]” (2007, p. 19).
Na Austrália há registros de uma experiência de constituição de tribunal especializado em meio
ambiente, cujos resultados positivos já são sentidos, segundo informação de Paul Stein:
[...] existe um número de razões pelas quais o advento do Tribunal de Terras e Meio
Ambiente foi uma vantagem na área ambiental. O variado pessoal do tribunal e sua
natureza especializada (e o uso substancial de testemunhas capacitadas) teve êxito em
gerar o conhecimento e precedentes necessários para facilitar uma tomada de decisões
ambientais mais consistentes e melhores (1998, p. 228).
Voltando ao caso brasileiro, a despeito da promissora proposta legislativa em matéria coletiva,
deve-se levar em conta que a sua implementação – se é que admitida pelo Legislativo -, salvo
raríssima exceção no histórico do processo legislativo brasileiro e o recurso à medida provisória,
será esperada por um bom tempo pelo usuário da Justiça24. Nesse ínterim, a arbitragem
especializada poderá, ainda, garantir a adequação desejada da tutela jurisdicional do bem
ambiental.
Nesse sentido, cabe, desde já, informar que, no âmbito internacional, essa especialização já vem
sendo movimentada por três exemplos emblemáticos, dois dos quais são desenvolvidos por
procedimento arbitral. O primeiro é o Tribunal Internacional de Conciliação e Arbitragem
realizada por Antônio Gidi, em maio de 2002, no VII Seminário Internacional do Instituto Ibero-Americano de
Direito Processual (BERIZONCE; GRINOVER; SOSA, 2007). Internamente, sobre a proposta coordenada por Ada
Pellegrini Grinover (USP), foi elaborada uma outra proposta, coordenada por Aluísio Gonçalves de Castro Mendes
(UERJ/Estácio de Sá), as quais se mesclaram em uma terceira, e essa, enviada ao Instituto Brasileiro de Direito
Processual em 2005 (MENDES, 2007), foi reencaminhada ao Ministério da Justiça em 31 de Janeiro de 2007.
24
Um primeiro pontapé a respeito do assunto foi dado no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que, em 2005,
instalou a Câmara Especial do Meio Ambiente (FRANGUETTO, 2006, p. 11).
15
Ambiental, sediado em San Sebastian, na Espanha; o segundo é o regulamento arbitral para
litígios ambientais, adotado pela Corte Permanente de Arbitragem para a solução de conflitos
que envolvam litígios ambientais; o terceiro, a constituição, em 1993, de câmara especializada
em matéria ambiental, pela Corte Internacional de Justiça (ROMANO, 2007, p. 1054). Além
deles, uma proposta de tribunal supranacional especializado tem sido referida pela doutrina
(FREITAS, 2000, p. 51-52; SALSA, 2005, p. 468-469), mas é certo que a composição dos
esforços empreendidos em favor da sua concretização ainda não obteve grandes resultados.
O instituto da arbitragem, de fato, prevê possibilidade na composição da comissão arbitral,
vedada na jurisdição estatal, de árbitro leigo25. Não se exige, portanto, que o árbitro seja
advogado, nem mesmo graduado em ciências jurídicas (SCAVONE JR., 2008, p. 90). Ao
contrário, embora o posicionamento não seja majoritário, no intuito de se buscar a sua máxima
especialização, alguns admitem, inclusive, que o árbitro seja pessoa jurídica (SCAVONE JR.,
2008, p. 89).
No caso da administração de um conflito de natureza ambiental, essa característica pode ter
efeitos extremamente positivos. É que uma das particularidades do dano ambiental é o seu
caráter sinérgico. Quer isso significar que a agressão a um ecossistema é um fenômeno
complexo, cujos efeitos não podem ser identificados – e, em determinadas situações,
compreendidos - por alguém desprovido de conhecimento técnico em biologia, ecologia,
engenharia ambiental e outros temas relacionados aos mecanismos das relações ambientais.
Desse despreparo pode advir uma decisão injusta, subdimensionando ou superdimensionando a
intervenção ilícita. A expressão “sinergia”, aplicada à temática do dano ambiental, quer-se referir
à complexidade da cadeia de prejuízos que uma agressão ao meio ambiente tem a capacidade de
provocar. Folke et al. sinalizam que as concepções de estabilidade e equilíbrio, presentes no
desenvolvimento – e nos objetivos - das ciências ambientais, devem dar lugar ao entendimento
de que as relações sociais e ambientais participam de um sistema complexo, interdependente e
dinâmico (2002, p. 5). Esse dinamismo reside na premissa de que o meio ambiente lida
recorrentemente com mudanças e, na realidade, o problema não está em dele se servir para
25
Leigo, obviamente, do ponto de vista de ausência de formação técnico-jurídica.
16
implementar o desenvolvimento sócio-econômico, mas, antes de tudo, a questão reside em
prepará-lo para suportar essas alterações26. Nesse sentido, a chave para a sustentabilidade está na
capacidade adaptativa dos ambientes, isto é, na sua aptidão para reagir de forma positiva às
alterações que lhes sejam impostas27 e na sua resiliência28 (FOLKE et al., 2002, p. 6),
características que, no sistema complexo das relações ambientais, tem na biodiversidade
(diversidade biológica, genética e de terreno) a sua moradia permanente. Sempre que um sistema
ecológico dispuser de mais grupos de indivíduos que desempenham a mesma função, ele será
proporcionalmente mais resiliente. Por outro lado, o sistema que tiver na sua composição
diversos grupos, mas que desempenham funções distintas, será mais vulnerável (FOLKE et al.,
2002, p. 11).
Nesse sentido, o alcance de uma proteção jurisdicional efetiva do bem ambiental deve partir do
pressuposto de que os processos e mecanismos ambientais estão intimamente integrados ao
desenvolvimento humano. Já não há espaço para a ideia que preconiza a Natureza como um
mercado aberto aos interesses econômicos do homem, como se assumisse o papel de seu
serviçal. Sabe-se hoje que essa concepção volta-se, em médio e longo prazo, contra as
expectativas de bem-estar da humanidade e, por isso, há de se adotar uma postura de
solidariedade de interesses entre os homens e a Natureza (SENDIM, 1998, p. 101). Nessa linha,
não há como prestar tutela ressarcitória efetiva se os impactos negativos da intervenção
empreendida não forem estudados minuciosamente, permitindo que a condenação exija do
agressor uma reparação verdadeiramente integral, quantitativa e qualitativamente. Tal é o
26
A orientação é reconhecida por Paulo de Bessa Antunes no corpo do ordenamento jurídico brasileiro, quando
menciona o princípio (de natureza jurídica, portanto) da capacidade de suporte (2008, p. 47).
27
“Os sistemas com alta capacidade adaptativa têm a aptidão de se auto-reconfigurar, sem que isto implique
diminuição de suas funções estruturais, relacionadas com a produtividade primária, ciclos hidrológicos, relações
sociais e prosperidade econômica” (FOLKE et al., 2002, p. 7) (tradução nossa).
28
Resiliência é a capacidade de um sistema de absorver impactos, mantendo suas funções regulares (FOLKE et al.,
2002, p.4).
17
conteúdo do antropocentrismo alargado29, concepção alinhada ao caráter sinérgico do dano
ambiental.
Em outras palavras, o bem ambiental é composto por relações complexas, estabelecidas a partir
da relação mútua de seres vivos e objetos inanimados, daí porque vislumbrar métodos de
ressarcir o dano ambiental (já se verá que o ressarcimento in natura é o mais desejável) pode
requerer do julgador bem mais do que conhecimento jurídico. Exemplo bem situado é oferecido
por Prieur, quando, alertando que “a acumulação de distúrbios ao longo da cadeia alimentícia
pode desencadear consequências catastróficas”, menciona a contaminação da baía de Minamata,
no Japão30 (2004, p. 918). Com efeito, não é difícil imaginar situações em que o responsável pela
solução do litígio se deparará com sua própria deficiência para decidir se, para recuperar o meio
ambiente, deve adotar um plano de recuperação proposto pelo autor, pelo réu, ou mesmo pelo
expert. Vejamos, à guisa de ilustração, duas situações: a) do dano verificado a longo prazo e b)
da contribuição de concausas para um único efeito danoso. Em relação à primeira questão, será
largamente dificultoso ao julgador desavisado identificar o nexo de causalidade, tendo em vista
que não compreenderá as relações físico-químicas e biológicas aptas a tornar possível um
determinado resultado lesivo, em um iter de, por exemplo, trinta anos. É também verdade que
doutrina (STEIGLEDER, 2004, p. 198; LEMOS, 2008, p. 161) e jurisprudência (BRASIL,
2002a; BRASIL, 2002b) já apontam para a necessidade de se flexibilizar a construção do nexo
de causalidade fundado na certeza, através da utilização de raciocínios fundados em juízo de
probabilidade. Será, entretanto, que o julgador despreparado será capaz de entender esses
mecanismos de presunção, de modo a possibilitar a responsabilização do agressor? Ou a tutela
jurisdicional encontrará o obstáculo da ausência de especialização do magistrado? A situação “b”
não é menos complicada: como identificar pequenas ações, praticadas por diversos agentes, as
quais, juntas, são capazes de desencadear um efeito lesivo de altas proporções?
29
A expressão representa, tal como assevera Sendim, a “consideração do interesse público na integridade e
estabilidade ecológica da natureza e pode, desse modo, justificar o sacrifício de interesses humanos no
aproveitamento imediato dos bens naturais” (1998, p. 102).
30
Entre os anos de 1932 a 1968, uma indústria petroquímica despejou, aproximadamente, vinte e sete toneladas de
compostos de mercúrio na baía de Minamata, cujo acúmulo nos organismos ali presentes (algas, peixes e outros
frutos do mar) resultou por atingir a saúde da população. Os efeitos danosos foram sentidos a partir de 1950.
(ANTUNES, 1993, p. 253-254).
18
Entender a complexidade de detalhes entre as relações estabelecidas nos ambientes afetados,
levando-se em consideração que cada ambiente possui variáveis próprias, precede a necessidade
de acesso a conhecimento específico, no intuito de que o exercício da jurisdição seja adequado e
eficiente. Não se está propondo aqui, frise-se, que o julgador seja capaz de desempenhar o
mesmo papel do perito, cumulando as duas funções, mas é imperioso que ele esteja munido do
conhecimento básico que o habilite a dialogar com as áreas do conhecimento com as quais
deverá lidar no desempenho do seu ofício (BIRNIE; BOYLE, 2002, p. 225), estabelecendo uma
verdadeira simetria de informações. É exatamente nesse ponto que a figura do árbitro
especializado aparece na tutela do meio ambiente, de modo a proporcionar apreciação profunda
sobre a matéria submetida ao seu crivo.
1.3 A EXPANSIBILIDADE HORIZONTAL DO DANO E OS OBSTÁCULOS DE
COMPETÊNCIA DA JURISDIÇÃO ESTATAL
Se o julgador deve estar preparado para a verticalização do dano, também deve estar atento à sua
expansão horizontal. Exatamente porque o bem ambiental funciona com mecanismos
interligados em cadeia (caráter sinérgico), há de se concluir que os efeitos de uma ação agressora
não respeitam fronteiras. Fala-se aqui do caráter ubíquo do bem e do dano ambientais. Se o meio
ambiente, em um local determinado, está qualitativamente bem estruturado, é certo que todo o
perímetro de sua influência, beneficiário dessa boa estruturação, também goza de satisfatória
qualidade ambiental. O inverso também é verdadeiro: uma agressão ambiental intensa pode ser
sentida em espaços contíguos e longínquos de seu epicentro.
Exemplos, ficcionais e reais, não são de difícil resgate. Para começar com a primeira categoria,
imagine-se que três países fronteiriços sejam cortados por um mesmo rio. Se no país da nascente
do curso d’água são implantadas indústrias que se valem do rio para lançamento de efluentes
líquidos não tratados, tão certo quanto a lei da gravidade (e ela é aqui aplicada), os demais países
serão afetados. Passando à segunda categoria, o mais famoso caso concernente à potencialidade
de consequências transfronteiriças de agressão ao meio ambiente é, sem dúvida, o acidente
nuclear de Chernobyl. A explosão do reator número quatro de usina nuclear ucraniana, em 16 de
19
abril de 1986, deu origem a uma nuvem de radioatividade, que se espalhou pela maioria dos
países da Europa, restando ilesa apenas a península ibérica.
Eventos dessa natureza movimentam litígios de diversas espécies, trazendo às diversas categorias
de entes afetados (Estados, empresas, pessoas) a necessidade de buscar as devidas indenizações.
1.3.1 O conflito ambiental transfronteiriço envolvendo Estados
Quando interesses de natureza ambiental de diversos Estados orbitam em torno de um conflito
específico, torna-se muito difícil a sua resolução a partir do provimento jurisdicional do Poder
Judiciário vinculado a um deles ou a Estado terceiro. A dificuldade tem origem, em primeiro
lugar, em questões de ordem política: como reconhecer credibilidade em decisão proferida pelo
Poder Judiciário de um Estado afetado pelo problema, quando dois Estados litigam31? Como
estabelecer um nível de cooperação entre nações com interesses opostos (qualidade ambiental, de
um lado, desenvolvimento econômico, de outro), de modo que reconheçam as razões de suas
oponentes/litigantes, através do provimento estatal de um dos Estados envolvidos? Em segundo,
se impõe um problema de ordem jurídico-processual: nem sempre as regras de competência
interna de um Estado permitirão o processamento de causas ambientais com conexão
internacional.
Especificamente sobre esse problema, Lowe (2007, p. 240), comentando o trail smelter case32,
relata que o litígio, na oportunidade, não poderia ser processado perante os tribunais do Canadá
(local do dano), tendo em vista que as normas de competência daquele país não permitiam o
processamento de causa cujo conteúdo se referisse a dano causado em solo estrangeiro. Diante
31
A questão política ganhou, no sistema jurídico, o status de princípio de direito internacional privado (oriundo dos
direitos das gentes), batizado com a alcunha de “Princípio da Imunidade de Jurisdição”, cujo conteúdo guarda
conexão direta com o exercício da soberania, que, no caso em análise, se refere à possibilidade condicionada de
submissão de um Estado ao poder jurisdicional de outro (JATAHY, 2003, p. 27).
32
O caso versa sobre danos ambientais causados em solo americano em função de operação de fábrica de zinco
localizada em British Columbia, Canadá. Emissões atmosféricas de ácido sulfúrico provocaram a ocorrência de
chuva ácida em solo americano, desencadeando efeitos trágicos no vale do Rio Columbia.
20
dessas dificuldades, os Estados envolvidos socorreram-se da via arbitral para solucionar o
impasse33.
É certo que a jurisdição supraestatal, no conflito entre Estados, já vem exercendo alguma função
na tutela dos danos ambientais transfronteirços. Experiências de tribunais supranacionais têm
sido observadas no âmbito do Tribunal de Justiça Internacional, bem como no âmbito do tribunal
comunitário da União Europeia34. Nesse sentido, também se deve registrar que a Corte
Internacional de Justiça tem sido palco, recentemente, de disputa internacional de grande
repercussão, envolvendo a pretensão de implantação de indústria de celulose pelo Uruguai e os
reclamos argentinos de potenciais prejuízos ambientais no Rio Uruguay, que corta também o país
reclamante. Esse é apenas um dos exemplos de que a Corte, a partir de 1995, tem formado
jurisprudência relevante no assunto (BIRNIE; BOYLE, 2002, p. 107).
Contudo, para alguns, o panorama não é dos melhores: Ana Rodrigues da Silva aponta que a
jurisdição internacional do meio ambiente ainda caminha a passos tímidos (2002, p. 458).
Informa, nessa linha, que a apreciação pelo Tribunal Internacional de Justiça de questões
ambientais está restrita a casos excepcionais, a teor do capítulo 39 da Agenda 21, bem como,
salienta que “a maioria das convenções ambientais preconizam o recurso à arbitragem como
alternativa à submissão do litígio ao Tribunal Internacional de Justiça” (2002, p. 458). É o caso
da Convenção de Espoo, de que são partes signatárias Canadá, Estados Unidos e diversos países
do leste europeu e União Europeia, cujo art. 15 prevê a possibilidade de resolução de conflitos
através do Tribunal Internacional de Justiça ou de arbitragem.
33
Em oportunidade prévia, Canadá e Estados Unidos, observando tratado de águas fronteiriças de 1909, submeteram
a questão à mediação da Comissão Conjunta Internacional (International Joint Comission), que não gerou resultados
satisfatórios, ao menos para o Canadá (READ, 2006, p.27). Nada obstante, este país, assustado com ameaças de
rompimento de relações com os Estados Unidos (BODANSKY, 2009), achou por bem se submeter à solução
arbitral.
34
O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias serve como instrumento de harmonização e efetivação dos
tratados relacionados ao direito ambiental entre os países da comunidade e a legislação comunitária prevê que a
Comissão (instituição representativa do interesse comum dos membros da Comunidade Europeia) pode fazer uso de
mecanismos de correção de ilícitos, inclusive, frente a particulares (GERALDES, 2001, p 30-31).
21
Nesse sentido, no âmbito do Mercosul, não é ainda viável o estabelecimento de um tribunal
supranacional, tendo em vista impedimentos normativos insertos nas Constituições de alguns de
seus membros, constituindo-se a arbitragem ad hoc o método oficial de solução de controvérsias
do bloco. Entretanto, o Protocolo de Olivos implementou um Tribunal Permanente de Revisão,
cujo funcionamento é correspondente à segunda instância processual do Tribunal Arbitral ad
hoc. (ACCIOLY, p. 213)
O estabelecimento de jurisdição supraestatal em organismos multilaterais é uma pista importante
para que se chegue à conclusão de que as jurisdições nacionais constituem um caminho
complicado para lidar com a tutela de danos transfronteiriços. Está claro que a via não se perfaz,
com efeito, um instrumento adequado à tutela da qualidade ambiental, quando Estados põem a
matéria em litígio. Por isto, quando se fala em conflitos dessa natureza, a jurisdição estatal é
raramente lembrada.
De fato, atualmente, se concebe a adoção de dois caminhos, superadas as tentativas
autocompositivas (consultas, negociações) e de mediação, para a resolução de conflitos
ambientais entre Estados: a submissão da causa a um tribunal supranacional e o oferecimento do
litígio à apreciação de um tribunal arbitral. Nesse sentido, vale registrar o alerta que fazem
Patricia Birnie e Alan Boyle (2002, p. 221):
A despeito de seu status de ‘principal órgão judicial’ das Nações Unidas, a Corte
Internacional de Justiça não goza de nenhuma prioridade na qualidade de foro de
resolução de conflitos. A jurisdição da Corte, tais quais todos os tribunais internacionais
judiciais e arbitrais, é baseada no consenso das partes para cada litígio. (tradução nossa)
Tal como a opção pela submissão da controvérsia à arbitragem, os tribunais supraestatais
oferecem às partes a possibilidade de dirimirem os conflitos postos com imparcialidade e
isenção. A bem da verdade, diferentemente dos tópicos precedentes, não há como estabelecer
relação de vantagem (além daquelas já lembradas nos itens anteriores) entre a arbitragem e a
jurisdição supraestatal, quando o assunto é a fixação da competência, pois, tanto em um caso,
como no outro, ela será fixada de acordo com a autonomia da vontade das partes litigantes.
22
Entretanto, quando comparada a arbitragem com a jurisdição estatal interna, é possível verificar
que o recurso à arbitragem pode evitar complicações de ordem política e jurídica.
1.3.2 O conflito ambiental transfronteiriço envolvendo particulares35
Confirmando a metáfora proposta por Romano (2007, p. 1037), quando afirma que os métodos
de solução de conflitos estão para o Direito Internacional, assim como a patologia está para a
medicina, a tutela jurídica do dano ambiental transfronteiriço encontra à sua frente uma
diversidade normativa instrumental e material, o que torna a resolução do litígio mais difícil.
Esse conglomerado de culturas jurídicas se desdobra, fundamentalmente, em quatro pilares: a)
concorrência de jurisdições; b) concorrência de normas de conflito; c) concorrência de normas de
fundo; d) concorrência de normas processuais.
Esse agrupamento de diferentes disciplinas regulatórias pode dar lugar a situações catastróficas,
quando se pensa em ressarcimento de direitos individuais. Para ilustrar o raciocínio, utilizemos o
exemplo da explosão de reator nuclear, e a sua consequente dispersão de nuvem de partículas
radioativas, que, nessa hipótese, afeta os países A e B. Os impactos de dano ambiental dessa
envergadura têm aptidão de produzir pretensões individuais homogêneas, as quais poderão ser
conduzidas conjunta ou separadamente. A qualificação “homogênea” se explica, como é de se
imaginar, por um grupo de indivíduos que sofreu prejuízos com origem em um mesmo fato
jurídico. Imagine-se que esse grupo se divida em dois: o grupo afetado no país A, propõe pleito
indenizatório no país A; o outro, no B. O sistema A, imaginemos nós, terá mecanismos mais
vantajosos aos autores, possibilitando-lhes uma indenização mais gorda, com aplicação de
regime de responsabilidade objetiva e inversão do ônus da prova. O sistema B prevê uma
indenização mais moderna, adota a responsabilidade por culpa, nas causas ambientais, e não
35
É útil recobrar a informação que refere Iracema Rebeca Medeiros Fazio, quanto à posição jurídica internacional da
pessoa humana, investida na qualidade de sujeito de direito internacional: “[...] o movimento internacional em prol
dos direitos do homem, desencadeado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, veio a
desautorizar falsas analogias e, a superar distinções tradicionais, como a que nega aos indivíduos a condição de
sujeitos do direito internacional, por não serem a eles reconhecidas algumas das capacidades de que são detentores
os Estados, por exemplo, a de celebrar tratados [...] Assim, ao reconhecimento de direitos individuais deve-se
corresponder a capacidade processual para vindicá-los, tanto no plano interno como internacional.” (2002/2003, p.
122/123).
23
prevê inversão do ônus da prova. Resultado: os autores litigantes no país A saem do tribunal e
vão comemorar. Os autores litigantes no sistema B vão para casa pensar em como reconstruir a
vida.
A chance para a construção de uma solução uniforme, para as partes, se adotarmos como ponto
de partida o ordenamento jurídico brasileiro, se restringirá a um caso: a convenção de
arbitragem, com a vinculação da totalidade das vítimas. É verdade que a viabilização dessa
situação é muito mais plausível na construção de um exemplo acadêmico, do que na prática;
entretanto, cogitar a sua possibilidade se impõe necessário ao nosso estudo, com o objetivo de
demonstrar as potencialidades da arbitragem sobre a jurisdição estatal.
A informação que autoriza a nossa conclusão é a disposta no art. 111, §1º, do código de
processo civil brasileiro, cujo teor condiciona a hipótese do foro de eleição à pré-existência de
determinado negócio jurídico. Ora, no caso que se enfrenta, não há sequer negócio jurídico, mas
relação jurídica obrigacional de caráter eminentemente extracontratual. Vedada, portanto, estaria
a eleição de foro para a solução da controvérsia.
Nada obstante, os aspectos positivos da utilização do procedimento arbitral na solução de
controvérsia concernente à recomposição de dano ambiental transfronteiriço não encerram na
possibilidade harmonização da decisão. Birnie e Boyle advertem que, na jurisdição estatal,
dificuldades de imposição de medidas em face do réu serão potencializadas (2002, p. 279), tendo
em vista que a complexa rede de cooperação entre países pode atravancar, de forma definitiva, o
acesso ao bem pretendido. De fato, sabe-se que os procedimentos de envios e recebimentos de
cartas rogatórias são lentos e burocratizados e oferecem sérias limitações à efetiva tutela
jurisdicional, o que, mais uma vez, cria ao demandante um risco real de ver o seu pleito
aniversariar a cada ano, ou, mesmo, de assistir ao travamento de seu pedido definitivamente, em
função de eventual incompatibilidade legislativa36.
36
A jurisprudência brasileira firmou entendimento pela inconstitucionalidade das cartas rogatórias de caráter
executório, excetuando-se aquelas provenientes de países signatários de tratados internacionais específicos de
cooperação com o Brasil (JATAHY, 2003, p. 213).
24
Esse obstáculo pode ser ultrapassado com alguma facilidade no procedimento arbitral, se as
partes escolherem a sede do tribunal do país onde a execução será realizada, em caso de
provimento favorável ao autor, ou, ainda, Estado que ofereça, através de tratados de cooperação,
e/ou outros instrumentos processuais, o melhor caminho para a efetivação da tutela processual
pretendida.
Olhando a questão sob a ótica do réu, a utilização da jurisdição estatal pode significar
complicações não enfrentadas na arbitragem, a saber: a) a possibilidade de se deparar com um
sistema judiciário politicamente inclinado ao pleito; b) distância do tribunal e custos envolvidos
com o deslocamento; c) aplicação de um sistema de responsabilidade civil que lhe é estranho, e,
eventualmente, mais gravoso. Muito mais vantajoso para o réu, em matéria de direito ambiental
transfronteiriço, que ele negocie com as supostas vítimas do dano: a) a composição do tribunal,
garantindo-lhe a necessária isenção e imparcialidade, ou, quando menos, um equilíbrio político
nas convicções judicantes; b) o local de processamento da causa, permitindo-lhe um acesso mais
econômico e c) a escolha do ordenamento jurídico aplicável.
Especialmente no âmbito dos litígios transfronteiriços de natureza privada (direitos individuais
homogêneos), a arbitragem eleva as chances de efetivação adequada da tutela jurisdicional.
Verifique-se: a) a fixação de competência via jurisdição estatal não permite aos litigantes a
composição do tribunal que irá julgá-los, em observância ao princípio do juiz natural – e as
regras de distribuição que dele decorrem -, o que, eventualmente, poderá trazer-lhes surpresas
indesejáveis; b) a livre escolha do direito aplicável (de Direito Internacional Privado e de fundo)
ao caso, não estará, na esfera judicial, ao alcance das partes37. Fixada a competência, o direito
aplicável à questão indenizatória, em matéria ambiental, será o do local onde ocorreu o dano38.
37
Lembre-se que, no Brasil, por exemplo, a autonomia da vontade não foi consagrada pela legislação como
elemento de conexão internacional, salvo casos residuais (Lei de Instrodução ao Código Civil, art. 7º , §5º ), sendo
impossibilitada às partes a escolha do ordenamento jurídico aplicável à solução da controvérsia (RECHSTEINER,
2008, p. 159).
38
O art. 9º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei 4.657/42) aponta que a lei aplicável é a do local de
constituição da obrigação. A obrigação extracontratual se implementa no momento em que se verifica o dano, por
ato ilícito, ou lícito, se a atividade envolver risco ou se assim determinar a legislação (Art. 927 do Código Civil –
Lei 10.406/2002), daí dizer-se que, para a Lei de Introdução ao Código Civil, a lei aplicável à solução de
controvérsia envolvendo dano transfronteiriço seria a do local de sua ocorrência .
25
Por outro lado, tratando-se de tribunal arbitral a solucionar a contenda, poderiam as partes, de
comum acordo, a teor do art. 11 da lei 9.307/96, decidir o direito nacional aplicável à questão e
compor a banca de julgadores.
De fato, diante da característica da ubiquidade do dano ambiental, a arbitragem oferece situações
vantajosas significativas na busca pelo objetivo da tutela jurisdicional efetiva. Permite a solução
da controvérsia de forma harmônica, dá liberdade à escolha do direito aplicável à questão,
possibilita a composição dos julgadores, poupa réu e autor do enfrentamento de obstáculos de
ordem pragmática. As potencialidades da tutela arbitral do dano ambiental autorizam a sequência
da investigação de sua aplicabilidade, bem como sinalizam uma via segura para garantir a
qualidade ambiental do ambiente.
Será que estas vantagens poderão ser incorporadas pelo usuário da tutela jurisdicional? Será que
a suposta indisponibilidade dos direitos ambientais impede a arbitrabilidade do dano ambiental?
Será que todos os danos ambientais estão impedidos de constituírem objeto de arbitragem? Quais
os critérios de arbitrabilidade estabelecidos no Direito comparado? Tais são os questionamentos
a serem enfrentados no capítulo a seguir.
26
2 O CONTEÚDO DO DIREITO AMBIENTAL E A ARBITRABILIDADE
A utilização da arbitragem como mecanismo de solução de controvérsias, em matéria ambiental,
diante do panorama de direito positivo atual, é condicionada aos critérios de patrimonialidade,
disponibilidade39 e desnecessidade de intervenção do ministério público40 (GARCEZ, 2007, p.
45; PUNZI, 2000, p. 224). Para que se conclua acerca da viabilidade da tutela arbitral ambiental,
é fundamental verificar o conteúdo do Direito Ambiental - ou dos direitos ambientais -, sob pena
de incorrer o estudioso, como já se destacou no primeiro capítulo, em um raciocínio simplista e
alijado da realidade. Afinal, todo o conteúdo do Direito Ambiental é uniforme? Não há, entre as
diferentes ondas que compõem o feixe da tutela jurídica do meio ambiente, particularidades que
permitam conclusões divergentes acerca da possibilidade de submissão de eventual litígio à
tutela arbitral? Com efeito, tais indagações terão resposta mais sólida caso se busque conhecer
mais de perto o conteúdo dos direitos ambientais. Eis o primeiro passo.
2.1 BENS, DIREITOS E DANOS AMBIENTAIS, CONTEÚDO DA TUTELA JURÍDICA DO
MEIO AMBIENTE
Embora o meio ambiente seja comumente conceituado como uma universalidade integral, a
doutrina jusambientalista tem promovido esforços importantes para desenvolver, meio ao
complexo e robusto arcabouço normativo atinente à matéria, uma análise dogmática capaz de
contemplar os diferentes bens ambientais juridicamente protegidos que dele emergem. Quer-se
com isto dizer que a finalidade protetiva da norma recai sobre essa universalidade ambiental;
entretanto, verificou-se, a partir desse complexo de relações físico-químicas e biológicas,
denominado meio ambiente, que diversas esferas de interesses dele se pode extrair, requerendo
do legislador o empenho para instituir tantos mecanismos satisfatórios à efetiva proteção de
tantos quantos forem os interesses a receberem abrigo.
39
Critérios dispostos no art. 1º da Lei de Arbitragem brasileira (Lei 9.307/96).
40
Decreto Legislativo italiano n˚ 5, de 17 de janeiro de 2003.
27
2.1.1 O macrobem, o direito difuso à qualidade ambiental e o dano à estabilidade ecológica
Se o meio ambiente é “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física,
química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”41, o macrobem
ambiental é a estabilidade dinâmica desse complexo sistêmico. O papel do Direito, à frente desse
bem da vida, é garantir as suas funções ecológico-estruturais, permitindo ao homem, e em
benefício de todos os seres vivos, a manutenção das condições naturais de existência.
Há que se considerar que a estabilidade do complexo de relações ambientais - o macrobem - é
um bem incorpóreo e imaterial. O macrobem, concebido como a estabilidade de leis, interações e
influências de ordem física, química e biológica, de fato, não é algo que se possa concretizar em
um objeto palpável, acedido simplesmente aos sentidos humanos. Os elementos dessas relações é
que, eventualmente, podem ser tocados, sentidos e individualizados. Nesses termos, não é
correto afirmar que o macrobem se refere aos indivíduos arbóreos da Floresta Amazônica, ou ao
volume de água do Rio Amazonas, ou, ainda, às milhares de espécies de animais que ali
convivem. As diferentes funções desempenhadas por cada um desses elementos estabelecem
inúmeras variáveis no perfeito encaixe das leis de estabilidade ambiental, identificando-se com o
que Sendim cunhou de “capacidade funcional ecológica dos bens naturais e do patrimônio
natural” (1998, p. 83), a qual “centra-se nas funções (ecológicas) que os bens naturais têm no
ecossistema a que pertencem ou noutro que dele esteja dependente” (SENDIM, 1998, p. 84).
A proteção de um bem da vida com essas características não poderia ser eficaz, fosse adotado o
sistema clássico de tutela, fundado em um paradigma liberal de proteção de direitos individuais
(PUREZA, 1996, p. 17). Eis, então, que surge a noção de direito42 ambiental difuso43, vinculado
41
Lei 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente), Art. 3˚, inc. I.
42
Elton Venturi alerta para “o abandono conceitual entre interesses e direitos, com o reconhecimento dos interesses
meta-individuais como verdadeiros direitos subjetivos” (2007, p. 49).
43
Vale aqui registrar a belíssima noção dada por José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, quando,
comentando a constituição portuguesa, explicam que o direito difuso é “a refracção em cada indivíduo de interesses
unitários de comunidade, global e complexamente considerada” (CANOTILHO; MOREIRA, 1993).
28
ao dever de solidariedade44 intergeracional e interespacial, categoria inserida em uma perspectiva
constitucionalista de direitos fundamentais. Aqui, o direito subjetivo45 à qualidade ambiental
passa a ser titularizado por uma universalidade de sujeitos indeterminados, já que, apresentandose como direito de todos (res comunes omnium), dada a sua característica indivisível, a
estabilidade das relações ecológicas não poderia ser atribuída à mera esfera de interesse
individual.
O direito à qualidade ambiental está disposto, no ordenamento brasileiro, no caput do art. 225 da
Constituição Federal, que, muito objetivamente, confere a todos o “direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo às presentes e
futuras gerações”. Em Portugal, o legislador constitucional reservou o art. 66 como o palco da
proclamação dos direitos e deveres envolvendo o macrobem ambiental: “1. Todos têm direito a
um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender. [...]”.
O direito difuso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, presente, em ambos os
ordenamentos, no rol dos direitos sociais, é indiscutivelmente um direito fundamental46, já que
está intimamente relacionado com as mínimas condições de existência da vida (TESSLER, 2004,
p. 77), humana e não humana. A abordagem dessa característica nos é particularmente
interessante, tendo em vista que, com a sistematização de Alexy (2004), se torna mais curto o
caminho para a identificação dos atores que encenam a tutela do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem como, a partir dela, se apresenta mais claro o conteúdo do
direito difuso à tutela do macrobem.
44
Cf. acórdão do STF, MS 22164/SP, com voto dado pelo Ministro Celso de Mello.
45
Embora Pureza (1996, p. 17) critique com veemência a utilização do termo “direito subjetivo” para fazer
referência à proteção do bem ambiental, e Mancuso (2005, p. 105) declare ser “interesse” o termo mais adequado,
em função do histórico de proteção individualista do direito subjetivo, entendemos, partindo da ideia de Antunes
Varela (2003) de que o direito subjetivo é o poder de exigir um comportamento de outrem, com o fim de garantir
interesse próprio ou alheio, que o conceito pode bem ser adaptado às circunstâncias do direito do ambiente.
46
Alexandrino concebe os direitos fundamentais como indisponíveis, não patrimoniais, pessoais, permanentes e
universais (2007, p. 22).
29
O direito ambiental difuso se trata de um direito fundamental completo (ALEXY, 2004, p. 159)
e, portanto, não dá lugar a uma posição jurídica singular, mas a um extenso leque de posições
jurídicas a que se pode conferir o status de direito subjetivo47.
Canaris (2003, p. 55), sem muita razão (CANOTILHO, 1992. p. 653), diz que o objeto de
controle pelos direitos fundamentais, em princípio, são apenas regulamentos e atos estatais, mas
“não também actos de direito privado” (CANARIS, 2003, p. 55). E o Estado, diante do
raciocínio de Alexy (2004), deve conferir ao cidadão48 direitos à prestação e direitos de defesa;
portanto, com o intuito de efetivar a proteção do direito difuso ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, o Estado deve adotar condutas negativas e positivas.
Do ponto de vista das primeiras, observa Tessler (2004, p. 92), “basta que este [o Estado] não
viole o equilíbrio ecológico”. Nada obstante, sempre que o Estado o fizer, caberá ao cidadão
buscar a efetivação de seu direito fundamental através de sua correspondente via de
implementação. A situação, trazida ao plano prático, pode render exemplos interessantes:
imagine-se que a transposição do Rio São Francisco, já mencionada neste trabalho, venha causar
uma verdadeira catástrofe ecológica. Está-se diante um clássico ato de gestão estatal, capaz de
violar direito de defesa do cidadão, conteúdo do direito fundamental ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado.Vale registrar, ainda, que a situação levantada pela autora contempla
apenas uma das modalidades de direitos de defesa trazidas por Alexy: aquela que prevê o direito
à não ofensa à características e situações (ALEXY, 2004, p. 124). Outras duas ainda são por ele
destacadas, e, no sentido de definir o conteúdo do direito ambiental difuso, vale a pena
mencioná-las: uma delas é o direito de não remoção de posição jurídica, o qual, em nosso
sistema, estaria identificado pelo princípio da proibição de retrocesso, com caráter prospectivo
(SARLET, 2006, p. 253). Trata-se da impossibilidade de afetação de uma posição jurídica
47
O autor esclarece ainda que “o direito fundamental completo é um objeto altamente complexo, embora não seja
impenetrável. É constituído de elementos com uma estrutura bem definida; as posições individuais do cidadão e o
Estado [...]”, completando que “isto não significa que não existirá controvérsia acerca do conteúdo do direito
fundamental completo” (2004, p. 162) (tradução nossa).
48
Quando se fala em direitos difusos fundamentais, deve-se sempre levar em conta que o cidadão é seu titular,
conjuntamente com a massa beneficiária do bem protegido, cujos componentes são inidentificáveis.
30
abstrata do cidadão. No caso do meio ambiente, um bom exemplo de violação a essa modalidade
de direito de defesa seria o condicionamento à aprovação do Poder Executivo ao estabelecimento
de uma associação civil dotada dos requisitos dispostos em Lei49, o que, eventualmente,
impediria que a entidade oferecesse Ação Civil Pública em matéria ambiental50. A terceira
modalidade de direito de defesa registrada por Alexy, também de relevante aspecto em matéria
ambiental, é o direito a não obstrução de condutas garantidas pelo direito fundamental. No
âmbito do exercício do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, uma situação que
alcançaria a hipótese seria impedimento administrativo posto pelo Estado para a criação de
Reserva Particular do Patrimônio Natural51 (RPPN), de iniciativa de proprietário de terras,
tendente à conservação do patrimônio ecológico em determinada localidade.
As ações positivas do Estado, por outro lado, desencadearão o manejo da tutela do direito à
qualidade ambiental no caso de não serem desempenhadas. A obrigação do Estado, aqui, é
realizar; mover instrumentos, tecnologias, procedimentos aptos a promover a eficácia social do
equilíbrio ambienta52l. A classificação de Alexy desdobra, ainda, os direitos à prestação em três
modalidades: direitos à proteção, direitos à participação pelo procedimento e direito à prestações
positivas (2004, p. 127). O direito à proteção tem como conteúdo inibir a agressão direta ao
49
Art. 5º da Lei de Ação Civil Pública: “Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:m
[...]V - a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;
b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à
livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”.
50
Estamos, aqui, adaptando o exemplo dado por Alexy (2004, p. 125) à temática ambiental.
51
A hipótese está descrita no art. 21 da Lei 9.985/00, que versa sobre o Sistema Nacional de Unidades de
Conservação: “A reserva particular do Patrimônio Natural é uma área privada, gravada com perpetuidade, com o
objetivo de conservar a diversidade biológica. §1º O gravame de que trata este artigo constará de termo de
compromisso assinado perante o órgão ambiental, que verificará a existência de interesse público, e será averbado à
margem da inscrição no Registro Público de Imóveis. §2º Só poderá ser permitida, na Reserva Particular do
Patrimônio Natural, conforme se dispuser em regulamento: I – a pesquisa científica; II – a visitação com objetivos
turísticos, recreativos e educacionais”.
52
Alexy relata que o direito constitucional ambiental é particularmente importante para o alargamento do conceito
de “prestação”, no sentido de que abrigue, também ações positivas do Estado relacionadas com a proteção – com a
conseqüente criação de estruturas organizacionais adequadas e a produção normativa procedimentalizada, tendo em
vista que, diferentemente do direito ao bem-estar, que é satisfeito com uma mera prestação fática, o direito
fundamental só tem a possibilidade de ser efetivamente implementado quando todas estas categorias prestacionais
forem disponibilizadas ao cidadão (2004, p. 295).
31
equilíbrio ecológico; é através dele que o cidadão ganha o instrumento para exigir do Estado que
intervenha na ameaça de agressão ou na ação perturbadora do equilíbrio promovida por terceiros,
através, por exemplo, de seu aparato administrativo de fiscalização e coerção53. Por sua vez, o
direito à participação pelo procedimento envolve, na seara ambiental, o acesso do cidadão aos
mecanismos procedimentais orientados à tutela jurídica do direito fundamental, a exemplo do
procedimento de licenciamento ambiental e das audiências públicas, previstas na regulamentação
de EIA/RIMA (GAVIÃO FILHO, 2008, p. 2). Também no âmbito jurisdicional essa posição
jurídica ganha relevo, na medida em que a fundamentalidade do direito ambiental exige do
Estado a criação de mecanismos adequados ao acesso jurisdicional do cidadão (a exemplo, no
nosso sistema, da ação popular e da ação civil pública), na busca pela garantia objetiva do
direito. Por último, no que toca ao direito às prestações em sentido estrito, tem-se que o cidadão
pode exigir do Estado a melhoria das condições ambientais de determinada região degradada54.
Seria o caso de os munícipes da capital paulista exigirem do Estado ações diretas e definitivas de
recuperação da qualidade ambiental do Rio Tietê.
Veja-se que a “fundamentalização” do direito difuso ao equilíbrio ecológico não se apresenta
como uma rotulação de caráter vazio. Ao contrário, entender o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado como um direito fundamental significa pensar em deveres do Estado
para com o cidadão, bem como, tornar palpável e executável a abstrata redação do art. 225 da
Constituição Federal.
O direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado comporta, de outro lado, a
exigibilidade da conformação de condutas dos particulares ao seu conteúdo. Em franca oposição
à teoria da State Action, que preconizava a impossibilidade de eficácia horizontal dos direitos
fundamentais (SARMENTO, 2004, p. 227), há que se considerar que, atualmente, no panorama
53
Sobre atividade regulatória em material ambiental, cf. PENDERGRASS, 1996. Sobre a função protetiva do direito
penal na perspectiva do direito fundamental à qualidade ambiental, cf. GAVIÃO FILHO, 2008.
54
Nesse sentido, Gavião Filho (2008) informa que a jurisprudência pátria tem caminhado no sentido de superar a
vetusta orientação de impedimento de intervenção do poder jurisdicional na atividade do Poder Executivo, valendose da técnica da ponderação de princípios constitucionais, com vistas a garantir os direitos fundamentais. Sobre a
questão, cf. FISS, 2004.
32
de efetivação desses direitos, conquistados em realidades políticas como a do Brasil e de
Portugal55 com extremo esforço, não se pode dar as costas à sua aplicação direta nas relações
privadas56. Com efeito, ignorar a força eficacial dos direitos fundamentais nas relações privadas
é permitir a existência de dois sistemas jurídicos dentro de um único espaço soberano. Aliás, essa
perspectiva, marcadamente liberal-burguesa, de refrear o ímpeto do Estado e carnavalizar as
relações privadas, contraria frontalmente a perspectiva de solidariedade em que se inserem os
direitos de 3ª geração, caracterizados que são pelas demandas coletivas de massa. Afinal, se o
cidadão, com todos os instrumentos que possui, sempre tiver de se dirigir ao Poder Executivo do
Estado para que este, com a sua boa vontade, então passe a interferir na conduta agressiva do
particular57, se tornará perpétuo refém do poder público e de suas idiossincrasias políticopartidárias. Felizmente, o que podemos constatar do ordenamento jurídico-processual
brasileiro58, da doutrina59, bem como da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal60, é que ao
55
Referimo-nos, aqui, à superveniência de textos constitucionais libertadores de sistemas políticos despóticos e
autoritários, tal era o panorama pretérito em ambas as nações, submetidas a governos militarizados.
56
Como alerta Alexy, “A ideia de que as normas de direito fundamental afetam relações entre cidadãos, e nesse
sentido apresentam um efeito horizontal, é aceita hoje em todos os lados. O que é controverso é como e em que
extensão isso é feito” (2004, p. 355) (tradução nossa). Nesse sentido, especificamente na seara ambiental,
Rodríguez: “[...] os seres humanos têm o dever, já não moral e ético, mas jurídico, de não causar danos e de
conservar a natureza; nossa responsabilidade fundamentalmente ética dá lugar a deveres jurídicos que são
pressuposto da responsabilidade jurídica, porque esta responsabilidade surge precisamente do descumprimento de
certos deveres, deveres que podemos, devemos e sabemos cumprir (2001, p. 579) (tradução nossa).
57
Como propõe Canaris, através da vinculação indireta de terceiros aos diretos fundamentais, exercida mediante os
imperativos de tutela do Estado (2003, p. 58).
58
Refere-se, aqui, especialmente, à ação civil pública (Lei n˚ 7.347/85).
59
Benjamin salienta que o exercício da “função ambiental”, expressão por ele cunhada que representa o dever de
tutela do ambiente, é outorgada ao Estado e ao cidadão (1993, p. 51).
60
Por exemplo: “SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES.
EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem
somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas
físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam
diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos
poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS
ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade
de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o
próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias
fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à
33
cidadão foram dadas armas eficazes para a interferência direta na esfera individual de
particulares que adotem condutas lesivas ao meio ambiente. Assim, não há que se falar que
somente o Estado possui deveres correlatos ao direito difuso e fundamental ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado; ao contrário, o texto da Carta Fundamental brasileira é transparente
ao impor a “todos” o dever de defender e preservar o meio ambiente em favor das presentes e
futuras gerações. Pensar que o conteúdo constitucional vinculativo aos particulares constitui
mero adorno é ignorar a perspectiva de efetividade dos direitos fundamentais, a qual se traduz
condição sine qua non para o equilíbrio ambiental. O trabalho jurisprudencial, concorrentemente
com o trabalho legislativo, indicará o conteúdo dos deveres correlatos ao direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, a que se vinculam necessariamente os particulares,
conteúdo esse, que, para ser definido, passará inevitavelmente por um juízo de sopesamento de
valores no caso concreto61. Desde já, cabe deixar registrado que, também o direito ambiental
difuso se desdobra em posições jurídicas ativas em face de particulares, integrando a
incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A
autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com
desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a
autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir
ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se
impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III.
SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA
QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO
DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA
E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito
econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o
que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC,
sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para
determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro
social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional,
onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à
execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a
própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a
dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a
aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa
(art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO” (BRASIL, 2005).
61
Esta, pelo menos, é a orientação da teoria da eficácia imediata, capitaneada por Nipperdey (PINTO, 2007).
34
potencialidade da origem de conflitos em matéria ambiental, a qual eventualmente será
submetida, obrigatoriamente, ao corpo normativo de proteção do meio ambiente62.
O macrobem ambiental, como se vê, possui conteúdo complexo, e, portanto, deu origem a um
sistema de proteção igualmente complicado. O que importa verificar do desdobramento acerca
da fundamentalidade do direito difuso ao equilíbrio ambiental é que ele pode dar ensejo a
demandas extremamente diferentes. Cada uma delas terá um objetivo específico, fundamentação
específica e, até mesmo, sujeitos de características distintas. Por isso, a resposta ao tema da
arbitralidade poderá variar.
É certo que, para o presente trabalho, de todas as posições jurídicas delineadas a partir do estudo
do conteúdo do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a mais
importante é aquela que estabelece ao sujeito, seja o Estado, seja o particular, a obrigação de não
lesar a estabilidade das relações ecológicas. A sua inobservância impõe a aplicação da tutela
ressarcitória do meio ambiente. E se a coletividade possui um direito fundamental contra o
Estado e contra os particulares de não ter o ambiente lesado, será que a recomposição do dano
ambiental poderia ser tutelada via procedimento arbitral? Responder essa pergunta pressupõe
conhecer o sistema de reparação do dano ambiental, razão pela qual, a partir do presente
momento, é esse o assunto que será posto à nossa consideração.
A partir do que, até o presente momento, foi discutido, já é possível deduzir que o dano
ambiental difuso será sentido quando for constatada a alteração na estabilidade das relações
ecológicas, isto é, quando o macrobem ambiental tiver sua qualidade reduzida, ou, ainda,
comprometida. Assim, identificando-se o devedor da obrigação extracontratual correspondente,
62
Nada obstante, cabe deixar claro que a obrigação de particulares de reparar o dano causado ao meio ambiente está,
independentemente da horizontalidade dos direitos fundamentais, no ordenamento jurídico brasileiro, amplamente
contemplada, tanto no sistema de responsabilidade do Código Civil (Art. 927), quanto no sistema da Política
Nacional do Meio Ambiente, instituído pela Lei 6.938/81 (§1º , Art. 14).
35
caberá aos titulares do direito ambiental difuso buscar, através da tutela jurisdicional63, a sua
imediata e imprescindível recomposição.
Antes, contudo, de desdobrar o tema, é necessário fazer duas advertências: a primeira é que uma
lesão à estabilidade ambiental (macrobem), dado o caráter sinérgico das relações ecológicas64,
bem como a interdependência entre as distintas dimensões do bem ambiental (macro, micro e
bem ambiental conexo), pode significar danos em cadeia, de modo a prejudicar, a uma só vez,
além da estabilidade ambiental, o patrimônio ambiental particular e direitos da personalidade. A
segunda diz respeito ao que se entende por dano ao macrobem, que não deve ser confundido com
dano ao microbem; o corte de árvores não representa necessariamente um dano ambiental às
relações ecológicas. Para que esse corte seja assim enquadrado65, é necessário que ele
efetivamente reduza a qualidade ambiental, ultrapassando-se os “limites de tolerabilidade”
(LEITE, 2003, p. 189), prejudicando, afinal, o equilíbrio do ambiente66.
A reparação do dano ambiental difuso significa implementar mecanismos aptos a recuperar a
estabilidade ambiental violada. Por isso, em face dos objetivos67 da Lei de Política Nacional do
Meio Ambiente (LEITE, 2003, p. 209), como também dos princípio da adequação e
adaptabilidade68, vinculados ao princípio do devido processo legal em sentido substancial69 e à
63
Adiante será discutida a questão acerca da negociabilidade da recomposição da estabilidade ambiental, de modo
que aqui é prudente fazer o registro de que, nem sempre, a recomposição ambiental passará por decisão de um
terceiro imparcial.
64
V. 1.1.2 supra.
65
Nesse sentido, estamos alinhados integralmente à concepção de Sendim, quando afirma que a configuração da
tolerabilidade do dano não se situa no plano normativo, mas no plano fático (1998, p. 148).
66
Nesse sentido, o magistério de José Rubens Morato Leite: “Importa, sim, examinar, no caso conreto, se a alteração
ambiental prejudicou ou não a capacidade de uso do bem ambiental ou a capacidade funcional ecológica protegida
pelo direito”. (2003, p. 190)
67
Lei 6.938/81: “Art. 4º A Política Nacional do Meio Ambiente visará: VI – à preservação e restauração dos
recursos ambientais com vistas à sua utilização racional e disponibilidade permanente, concorrendo para a
manutenção do equilíbrio ecológico propício à vida”.
68
A respeito do tema, Cf. DIDIER Jr., 2001 e LACERDA, 2006.
69
No sentido da necessidade de aplicação do princípio da proporcionalidade, Cf. LUCON, 2005.
36
ideia de efetividade, como implementação definitiva do acesso à justiça (MARINONI, 2003, p.
304), entende-se que o sistema de indenização do dano ambiental “exige que as sanções em
direito ambiental estejam, prioritariamente, dirigidas à reconstituição, restauração e substituição
do bem ambiental” (LEITE, 2003, p. 209). Assim, diante do arcabouço principiológico
jusambiental (STEIGLEDER, 2004, p. 237), a tutela ressarcitória do dano ambiental difuso há
que seguir uma verdadeira escala de prioridades70, a qual, não observada, poderá dar lugar ao
cumprimento parcial da obrigação indenizatória, e, portanto, à continuidade da instabilidade
ambiental. Essa escala é formada por três degraus, que deverão ser pisados pelo julgador, ao
promover a condenação do agressor, subsidiariamente, conforme as circunstâncias fáticas
permitam uma, ou outra solução.
Nesse sentido, deve-se atentar para o fato de que, acima de todas as opções, a escolha mais
adequada na indenização do dano ambiental é a restauração natural, ou seja, aquela que busca
restaurar a estabilidade ambiental através da reconstituição das condições naturais originais.
Observe-se que essa via, embora seja potencialmente a melhor de todas, requer um estudo
detalhado das condições ambientais onde se operou a agressão, sendo temeroso aplicar
discricionariamente medidas de recuperação ambiental. A esse respeito, vale destacar que a
legislação ambiental do Estado da Bahia prevê instrumento elogiável na imputação de
responsabilidade administrativa ao agressor. Trata-se da imposição de apresentação de Plano de
Recuperação de Área Degradada (PRAD), como condição prévia à reestruturação das
características do ambiente, sem o qual o agressor permanecerá irregular perante a
Administração Pública71. Isto significa garantir que a restauração ecológica seja levada a efeito
com a qualidade necessária ao restabelecimento da estabilidade ambiental, buscando-se a
70
A autora comenta, ainda, que, nos sistemas português, italiano e espanhol, esta ordenação prioritária é obrigatória
(2004, p. 239).
71
Lei Estadual 10.431/2006: “Art. 33 - Os responsáveis pela degradação ambiental ficam obrigados a recuperar as
áreas afetadas, sem prejuízo de outras responsabilidades administrativas legalmente estabelecidas, através da adoção
de medidas que visem à recuperação do solo, da vegetação ou das águas e à redução dos riscos ambientais para que
se possa dar nova destinação à área. Parágrafo único. As medidas de que trata este artigo deverão estar
consubstanciadas em um Plano de Recuperação de Áreas Degradadas - PRAD a ser submetido à aprovação da
autoridade ambiental competente.”
37
máxima eficiência da medida. Aqui, busca-se o restabelecimento da qualidade ambiental através
da recuperação dos bens corpóreos do ambiente, de modo que a função ecológica por eles
exercida antes da intervenção lesiva volte a operar em intensidade integral.
Haverá casos, entretanto, que a reparação do dano ambiental não será possível no local da
agressão, dada a irreversibilidade da qualidade ambiental in loco. Obviamente, a única tutela
efetivamente útil à garantia do direito, nesse caso, seria a inibitória (TESSLER, 2004, p. 238);
porém, se o equilíbrio ambiental da localidade agredida já não é possível, há que se buscar
fortalecer essa estabilidade onde ainda o seja. Daí que se busca, alternativamente, nesses casos,
promover uma compensação ecológica in natura; não se irá estabelecer, portanto, uma
recuperação ambiental da área lesada, mas se imputará ao agressor a obrigação de promover
ações pró-ambientais, de maneira proporcional à lesão empreendida. Não se trata aqui de
defender a fungibilidade dos bens ambientais, mas apenas a de sinalizar a existência de uma via
alternativa à indenização pecuniária, quando for impossível a reconstrução da qualidade
ambiental. O ideal, sempre, é que a compensação ambiental atinja, com mais proximidade
possível, a área intervinda (STEIGLEDER, 2004, p. 253), de maneira a preservar o equilíbrio
ecológico nas regiões afetadas pelo dano ambiental. Leite (2003, p. 215) atribui desvantagem à
compensação ecológica, relacionada com a lógica capitalista de avaliação dos métodos de
compensação que a pressupõem; todavia, não entendemos que a característica está adstrita à
compensação. Em realidade, a restauração ecológica também impõe um limite econômico a ser
observado pelo julgador, na medida em que (aqui se fala em princípio geral de responsabilidade
civil) a indenização será proporcional ao dano; a aferição dos critérios de proporcionalidade,
fatalmente, passará por um raciocínio que leve em conta a avaliação econômica dos recursos
ambientais, mesmo porque a avaliação técnica acerca da estabilidade ambiental perpassa pela
fixação do que vem a ser “função ecológica” em cada ambiente particular. Na compensação
ecológica, caberá à avaliação técnica explicitar quais são os métodos tecnológicos a serem
empregados que garantirão a recuperação das funções ecológicas dos bens ambientais atingidos.
Dessa forma, se estará, finalmente, garantindo a qualidade ambiental.
A doutrina aponta, ainda, para a possibilidade de ressarcimento pecuniário dos bens lesados,
montante a ser recolhido, a teor do art. 13 da Lei 7.347/85, “a um fundo gerido por um Conselho
38
Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e
representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens
lesados”72. O objetivo do Fundo contemplado em Lei foi assim definido no seu regulamento,
veiculado por meio do Decreto 1.306/1994:
Art. 1º O Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD), criado pela lei nº 7.347, de 24 de
julho de 1985, tem por finalidade a reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao
consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico,
paisagístico, por infração à ordem econômica e a outros interesses difusos e coletivos.
Como se vê, a finalidade do Fundo de Defesa de Direitos Difusos é exatamente promover a
compensação ecológica, na tentativa de devolver ao meio ambiente a qualidade ambiental.
Assim, não há que se pensar que a ideia do Fundo de Direitos Difusos se traduz na sub-rogação
clássica do Direito Civil, já que, ali, o equivalente em dinheiro significa a substituição definitiva
do objeto da relação obrigacional. Em matéria ambiental, essa sub-rogação é apenas temporária,
tendo em vista que a administração do fundo deverá promover, com o acúmulo das receitas
provenientes das condenações, medidas para compensar os danos sofridos. Nada obstante, além
de o caminho para a compensação in natura, aqui, ser mais longo (já se viu, no item 1.1, que a
celeridade é característica importante para a tutela do meio ambiente), os titulares do direito, ao
menos no Brasil, se vêem diante dos históricos problemas de operacionalidade da gestão pública,
os quais, fatalmente, implicam a obstrução da implementação de ações que favoreçam a
qualidade do meio ambiente73.
72
A escala de prioridades a que nos referimos acima, quando se trata da preferência pela compensação in natura, em
detrimento da indenização pecuniária, não encontra respaldo imediato no ordenamento jurídico, nem na
jurisprudência, constituindo-se orientação doutrinária, que infiro ser fundamentada em interpretação constitucional
sistemática. Tal como os autores mais lidos sobre o tema, percebemos que a compensação ecológica é sempre uma
saída mais interessante ao ressarcimento do prejuízo ambiental do que a fixação de quantia em dinheiro. Entretanto,
fosse admitida a preferência obrigatória da compensação ecológica, seria difícil imaginar a impossibilidade de
compensação ecológica in natura que justificasse a opção pela indenização pelo equivalente monetário, mesmo
porque existiria sempre a possibilidade de fortalecer o equilíbrio ecológico onde as condições ambientais ainda
pudessem ser qualitativamente enriquecidas. Afinal, o recolhimento de equivalente monetário aos fundos previstos
na legislação objetiva o mesmo fim da compensação ecológica e, eventualmente, serão destinados a alguma ação
compensatória in natura.
73
A situação é denunciada por Sérgio Cruz Arenhart: “Examinando-se o relatório apresentado em 2005 pelo
Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, observa-se que, embora se alinhem os projetos
39
2.1.2 O microbem e os bens conexos: sua tutela, a relação mantida com o macrobem e o
dano ambiental individual
Doutrinariamente se deu a alcunha de “microbem” aos elementos corpóreos e patrimoniais
conformadores da qualidade ambiental (LEITE, 2004, p. 85; BENJAMIN, 1993, p. 60). Significa
isto que a ordem jurídica conferiu um valor específico à vegetação, às espécies animais, aos rios,
mares, segmentadamente, na medida em que cada um deles representa ao homem benefícios
vitais e, ao mesmo tempo, se relacionam intrinsecamente com a qualidade ambiental. Trata-se do
reconhecimento, pelo ordenamento jurídico, da relevância da “capacidade de uso humano dos
bens naturais”, que envolve diretamente as demandas de consumo das propriedades do meio para
o desenvolvimento humano, a exemplo da alimentar, energética, científica, recreativa e estética,
guardando conexão com a relação de utilidade aferida pelo ser humano aos recursos naturais
(SENDIM, 1998, p. 84). Essa proteção, no ordenamento brasileiro, foi instituída com a
publicação de diplomas normativos específicos para cada elemento patrimonial ambiental. Aqui
nos referimos ao Código de Águas, ao Código Florestal, à Lei de Mata Atlântica, Códigos de
Caça e de Pesca74, entre tantos outros que dão tratamento especial a bens jurídicos ambientais
relevantes.
apoiados pelo fundo não se sabe exatamente (na maioria dos casos) a que a verba se destina. Mais que isso, vê-se
também (ao contrário do que recomenda o art. 13 da Lei 7.347/85 e o projeto de lei em discussão, no seu art. 34,
§3º) que o produto arrecadado para o fundo com certas violações a direitos coletivos nem sempre tem revertido para
atender ao bem lesado” (2007, p. 226) e também por Ronaldo Porto Macedo Jr.: “infelizmente, os chamados Fundos
Especiais de Despesa de Reparação de Interesses Difusos Lesados (FEDRIDL), a despeito do considerável volume
de recursos que já contabilizam, em particular no Estado de São Paulo, ainda não têm gerado os efeitos que deles se
esperou no momento em que foram concebidos e constituídos. [...] Em São Paulo, onde o fundo estadual foi
constituído em 1989, até hoje nem um centavo sequer deste fundo foi utilizado. [...] Ademais, jamais foram tomadas
as medidas necessárias no sentido da identificação da origem dos bens lesados de modo a garantir a sua aplicação
prioritária na reparação dos bens ocorridos que deram origem aos recursos, critério, aliás, seguido tanto pela lei
estadual em vigor como pela lei federal e também por deliberação do próprio Conselho Gestor do FDD” (2001, p.
753).
74
Ressalte-se que, embora estas normativas busquem conferir tratamento específico a microbens, tratam eles, na
mesma medida, de proteger, reflexamente, o bem difuso à qualidade ambiental.
40
Os microbens, portanto, diferentemente dos macrobens, são apropriáveis, submetendo-se a uma
esfera patrimonial individual e obedecendo, variavelmente, a regimes de Direito Público e
Privado (LEITE, 2003, p. 85). Os “lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu
domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se
estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias
fluviais”, das “ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias
marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras”, os “recursos naturais da plataforma continental e da
zona econômica exclusiva”, são todos bens da União (Art. 20, inc. II da Constituição Federal da
República Federativa do Brasil, de 1988), embora advirta o art. 99 do Código Civil brasileiro que
os rios e mares sejam de uso comum do povo, tal qual o é o macrobem. Os bens públicos de uso
comum do povo são inalienáveis, a teor do art. 100 e 101 do Código Civil. No âmbito dos
Estados, inclui a Constituição brasileira entre os seus bens “as águas superficiais ou subterrâneas,
fluentes, emergentes e em depósito”. Como se vê, no ordenamento jurídico-constitucional pátrio,
os recursos hídricos estão vinculados à propriedade pública, isto é, a pessoas jurídicas de Direito
Público, embora o seu uso seja franqueado a todos75, já que os recursos hídricos, a teor dos
mencionados dispositivos do Código Civil, são res comunes omnium.
Quando analisada a legislação florestal, as características corpórea e patrimonial dos microbens
aparecem com maior destaque, notadamente porque, diferentemente dos rios e mares, são os
microbens florestais passíveis de apropriação por particulares. Obviamente, a normativa da
matéria instituiu diversos mecanismos limitadores do exercício da propriedade, com o objetivo
de promover sustentabilidade à utilização dos recursos naturais vegetais. Cabe aqui fazer
referência às Áreas de Preservação Permanente76, verdadeiros sítios intocáveis77, por sua rica
75
A qualidade ambiental da água é bem difuso, embora o domínio do bem material (rios, mares) seja do Estado. Art.
2º da Lei 9.433/97 (Lei de Política Nacional dos Recursos Hídricos): “Art. 2º São objetivos da Política Nacional de
Recursos Hídricos: I - assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de
qualidade adequados aos respectivos usos [...]”. Tonchia (1990, p. 216) refere que, na realidade romana, quando
ainda não havia esta bipartição conceitual do bem ambiental, os recursos naturais (portanto, os microbens) eram
verdadeiramente res comunes omnium, na medida em que não se temia a sua escassez. Com a revolução industrial e
a exploração mais agressiva dos microbens, surge a ideia de sua apropriação.
76
Lei 4.771/65. “Art. 2° Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais
formas de vegetação natural situadas: a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d'água desde o seu nível mais alto
em faixa marginal cuja largura mínima será: 1 - de 30 (trinta) metros para os cursos d'água de menos de 10 (dez)
metros de largura; 2 - de 50 (cinquenta) metros para os cursos d'água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta)
41
biodiversidade, por sua relevância cênica, ou, ainda, e principalmente, pela relevância da função
ambiental exercida; à imposição de registro de Reserva Legal em propriedades rurais, a qual
prevê a impossibilidade de intervenção em frações da terra78 e às limitações impostas à
metros de largura; 3 - de 100 (cem) metros para os cursos d'água que tenham de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos)
metros de largura; 4 - de 200 (duzentos) metros para os cursos d'água que tenham de 200 (duzentos) a 600
(seiscentos) metros de largura; 5 - de 500 (quinhentos) metros para os cursos d'água que tenham largura superior a
600 (seiscentos) metros; b) ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d'água naturais ou artificiais; c) nas nascentes,
ainda que intermitentes e nos chamados "olhos d'água", qualquer que seja a sua situação topográfica, num raio
mínimo de 50 (cinquenta) metros de largura; d) no topo de morros, montes, montanhas e serras; e) nas encostas ou
partes destas, com declividade superior a 45°, equivalente a 100% na linha de maior declive; f) nas restingas, como
fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues; g) nas bordas dos tabuleiros ou chapadas, a partir da linha de
ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a 100 (cem) metros em projeções horizontais; h) em altitude superior a
1.800 (mil e oitocentos) metros, qualquer que seja a vegetação; i) nas áreas metropolitanas definidas em lei
Parágrafo único. No caso de áreas urbanas, assim entendidas as compreendidas nos perímetros urbanos definidos por
lei municipal, e nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, em todo o território abrangido, obervar-se-á o
disposto nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo, respeitados os princípios e limites a que se refere este
artigo. Art. 3º Consideram-se, ainda, de preservação permanentes, quando assim declaradas por ato do Poder
Público, as florestas e demais formas de vegetação natural destinadas: a) a atenuar a erosão das terras; b) a fixar as
dunas; c) a formar faixas de proteção ao longo de rodovias e ferrovias; d) a auxiliar a defesa do território nacional a
critério das autoridades militares; e) a proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico ou histórico; f) a
asilar exemplares da fauna ou flora ameaçados de extinção; g) a manter o ambiente necessário à vida das populações
silvícolas; h) a assegurar condições de bem-estar público”.
77
O art. 2º, § 1° do Código Florestal, Lei 4.771/65, faz referência a algumas hipóteses excepcionais em que se
permitirá a intervenção em área de preservação permanente, a exemplo de atividades relacionadas com a utilidade
pública ou interesse social: “§ 1° A supressão total ou parcial de florestas de preservação permanente só será
admitida com prévia autorização do Poder Executivo Federal, quando for necessária à execução de obras, planos,
atividades ou projetos de utilidade pública ou interesse social”.
78
Ainda no Código Florestal: “Art. 16. As florestas e outras formas de vegetação nativa, ressalvadas as situadas em
área de preservação permanente, assim como aquelas não sujeitas ao regime de utilização limitada ou objeto de
legislação específica, são suscetíveis de supressão, desde que sejam mantidas, a título de reserva legal, no mínimo:
I - oitenta por cento, na propriedade rural situada em área de floresta localizada na Amazônia Legal; II - trinta e
cinco por cento, na propriedade rural situada em área de cerrado localizada na Amazônia Legal, sendo no mínimo
vinte por cento na propriedade e quinze por cento na forma de compensação em outra área, desde que esteja
localizada na mesma microbacia, e seja averbada nos termos do § 7o deste artigo; III - vinte por cento, na
propriedade rural situada em área de floresta ou outras formas de vegetação nativa localizada nas demais regiões do
País; e IV - vinte por cento, na propriedade rural em área de campos gerais localizada em qualquer região do País.
§ 1o O percentual de reserva legal na propriedade situada em área de floresta e cerrado será definido considerando
separadamente os índices contidos nos incisos I e II deste artigo. § 2o A vegetação da reserva legal não pode ser
suprimida, podendo apenas ser utilizada sob regime de manejo florestal sustentável, de acordo com princípios e
critérios técnicos e científicos estabelecidos no regulamento, ressalvadas as hipóteses previstas no § 3o deste artigo,
sem prejuízo das demais legislações específicas. § 3o Para cumprimento da manutenção ou compensação da área de
reserva legal em pequena propriedade ou posse rural familiar, podem ser computados os plantios de árvores
frutíferas ornamentais ou industriais, compostos por espécies exóticas, cultivadas em sistema intercalar ou em
consórcio com espécies nativas. § 4o A localização da reserva legal deve ser aprovada pelo órgão ambiental estadual
competente ou, mediante convênio, pelo órgão ambiental municipal ou outra instituição devidamente habilitada,
devendo ser considerados, no processo de aprovação, a função social da propriedade, e os seguintes critérios e
instrumentos, quando houver: I - o plano de bacia hidrográfica; II - o plano diretor municipal; III - o zoneamento
ecológico-econômico; IV - outras categorias de zoneamento ambiental; e V - a proximidade com outra Reserva
Legal, Área de Preservação Permanente, unidade de conservação ou outra área legalmente protegida. § 5o O Poder
42
intervenção em Mata Atlântica79. É preciso que se entenda que, aqui, o microbem ambiental se
apresenta como um elemento vinculado a uma esfera patrimonial privada, mas desempenha uma
função de salvaguarda do direito ambiental difuso. Pode-se dizer que dos benefícios que uma
pequena floresta, situada em propriedade privada, proporciona, extrai-se duas dimensões: a
primeira delas é o uso direto e particular desses benefícios (a beleza cênica, o nível de umidade
do ar – e, também, de temperatura - que ela oferece, a sombra, e a sensação de bem-estar advinda
de todas as citadas características, reservadas apenas ao indivíduo que detém a propriedade do
imóvel); a segunda é a função ecológica que esse conjunto de bens materiais representa para o
equilíbrio ambiental.
Os exemplos florestal e hídrico são úteis no sentido de que se compreenda exatamente o que se
pretende definir com a expressão “microbem”. Como se vê, esses, diferentemente do bem
ambiental difuso, estão sujeitos a direitos potestativos, que dão suporte à relação de propriedade
estabelecida com o respectivo titular. A vegetação, por exemplo, é um bem acessório ao imóvel,
e, como tal, acompanha o principal na transferência da sua titularidade. A vegetação
materializada, portanto, não é um bem de uso comum do povo80, tal como ocorre com os
Executivo, se for indicado pelo Zoneamento Ecológico Econômico - ZEE e pelo Zoneamento Agrícola, ouvidos o
CONAMA, o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Agricultura e do Abastecimento, poderá: I - reduzir,
para fins de recomposição, a reserva legal, na Amazônia Legal, para até cinqüenta por cento da propriedade,
excluídas, em qualquer caso, as Áreas de Preservação Permanente, os ecótonos, os sítios e ecossistemas
especialmente protegidos, os locais de expressiva biodiversidade e os corredores ecológicos; e II - ampliar as áreas
de reserva legal, em até cinqüenta por cento dos índices previstos neste Código, em todo o território nacional.
§ 6o Será admitido, pelo órgão ambiental competente, o cômputo das áreas relativas à vegetação nativa existente em
área de preservação permanente no cálculo do percentual de reserva legal, desde que não implique em conversão de
novas áreas para o uso alternativo do solo, e quando a soma da vegetação nativa em área de preservação permanente
e reserva legal exceder a: I - oitenta por cento da propriedade rural localizada na Amazônia Legal; II - cinqüenta por
cento da propriedade rural localizada nas demais regiões do País; e III - vinte e cinco por cento da pequena
propriedade definida pelas alíneas "b" e "c" do inciso I do § 2o do art. 1o.”
79
No mesmo sentido, a Lei de Mata Atlântica (Lei 11.428/2006) estabelece diversos impedimentos para a
intervenção em vegetação inserida neste bioma, por exemplo: “Art. 14. A supressão de vegetação primária e
secundária no estágio avançado de regeneração somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública, sendo
que a vegetação secundária em estágio médio de regeneração poderá ser suprimida nos casos de utilidade pública e
interesse social, em todos os casos devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo
próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto, ressalvado o disposto no
inciso I do art. 30 e nos §§ 1o e 2o do art. 31 desta Lei”.
80
Entretanto, a legislação federal registra que as florestas e demais formas de vegetação sejam bens de interesse
comum a todos os habitantes do país, referindo-se, obviamente à sua função ecológica, contributiva para a
estabilidade sistêmica do ambiente.
43
recursos hídricos. Ela se submete parcialmente ao regime de Direito Privado, na medida em que
se admite que venha a incorporar o patrimônio de particulares. Por outro lado, regras decorrentes
do princípio da função ambiental da propriedade estabelecem limitações ao exercício do direito
de propriedade em relação aos recursos naturais, de modo a garantir que a sua correlata função
ambiental seja desempenhada satisfatoriamente, apta, portanto, a contribuir com a estabilidade
ecológica.
Nesse sentido, é importante frisar que, em função do caráter patrimonial dos microbens, não se
deve incorrer no equívoco de atribuir-lhes apenas a aptidão de satisfazer as necessidades
humanas: enquanto o macrobem é um bem imaterial, porquanto é concebido como a estabilidade
da inter-relação das leis da natureza, o microbem se traduz em uma unidade material, que
participa dessa estabilidade, com a função ecológica que exerce. O microbem está para o
macrobem, assim como está a peça para o puzzle. Cada elemento natural desempenha sua função
para o equilíbrio sistêmico, de modo que o ajuste total das suas peças possibilita a sua
estabilidade. No momento em que uma delas estiver deslocada (assim como uma peça do puzzle
pode estar perdida), não há como atingir o equilíbrio ambiental (fica impossível concluir o
puzzle). Para melhor de visualização dessa ideia, imagine-se que, em determinado ecossistema
equilibrado, inserido em Reserva Particular do Patrimônio Natural, o proprietário tenha ali
introduzido uma espécie animal exótica “A”, que, reproduzindo-se como uma verdadeira praga,
deu cabo de uma população vegetal “B”, cuja função sistêmica, dentre outras, era servir de base
alimentar para a população “C” de animais. A alteração comprometeu o funcionamento de todo o
sistema local, espalhando-se o problema, inclusive, em propriedades circunvizinhas e corredores
ecológicos81 adjacentes. “B”, no nosso exemplo, deixou de existir, razão que provocou uma
verdadeira catástrofe em cadeia. Vê-se, portanto, que cada indivíduo presente nesse ecossistema
(microbens), embora inserido no domínio de um particular, desempenha uma função ambiental, a
qual contribui diretamente para a estabilidade da qualidade sistêmica, cujo comprometimento
pode facilmente ultrapassar a esfera de interesses do proprietário das terras onde surgiu o foco do
81
O conceito de corredores ecológicos é dado pelo art. 2º, inc. XIX da Lei 9.985/2000, que trata do Sistema
Nacional das Unidades de Conservação (SNUC): “porções de ecossistemas naturais ou seminaturais, ligando
unidades de conservação, que possibilitam entre elas o fluxo de genes e o movimento da biota, facilitando a
dispersão de espécies e a recolonização de áreas degradadas, bem como a manutenção de populações que demandam
para sua sobrevivência áreas com extensão maior do que aquela das unidades individuais”.
44
desequilíbrio. Por isso, os indivíduos atuantes no equilíbrio ambiental, por mais que estejam
vinculados à esfera patrimonial de alguém, possuem um valor intrínseco, e, portanto, são
merecedores da proteção e da necessária preservação. Se apenas o equilíbrio ambiental fosse
tutelado, as peças que o fazem funcionar poderiam ser subtraídas paulatinamente, até o momento
de arruinar o macrobem por completo82. Eis a função ecológica de cada indivíduo.
Há quem entenda, porém, que o microbem se refere, mais além do recurso ambiental corpóreo,
dotado de função ecológica, a bens ambientais conexos83. Diversos são os bens que a doutrina,
ao longo da evolução do Direito Ambiental, tem indicado como conexos ao equilíbrio ambiental,
e, por vezes, mesmo, inseparáveis da noção de ambiente ecologicamente equilibrado84. Com
efeito, é o bem-estar do homem que tem sido a preocupação-chave das cartas de direitos
universais85. A qualidade de vida traz uma ideia de felicidade mínima ao ser humano, a qual
depende de uma série de elementos variáveis86, conforme o estágio de evolução do homem. No
pacote da qualidade de vida, de fato, poderiam caber diversos bens, entre os quais Ebenda, citado
por Mateo (1991, p. 101), relaciona liberdade, segurança, emprego, educação, entorno físico,
entorno social, saúde, justiça, aos quais se poderia adicionar a incolumidade, a salubridade e a
82
Nesse sentido, Leitão (1997, p. 40) adverte que o melhor caminho para proteger o meio ambiente é a proteção do
meio ambiente natural ou físico. Em outras palavras, o microbem.
83
A expressão se justifica em função de o direito aqui referido, embora não mantenha nenhuma relação direta com a
estabilidade do equilíbrio ecológico, tal é o caso do microbem, ser suposto do macrobem ambiental. Aliás, é esta a
característica que o distingue do microbem; enquanto o primeiro é pressuposto do macrobem, o bem ambiental
conexo é condicionado ao macrobem.
84
Ainda que o tema mereça um estudo pormenorizado que não cabe desenvolver no corpo deste trabalho,
registramos que o caráter conexo do direito à saúde, à integridade física, e aos direitos da personalidade de modo
geral, não autoriza a sua equiparação ao microbem, dado que este desempenha uma função ecológica direta na
composição do macrobem ambiental, fenômeno que não se verifica no bem ambiental conexo.
85
Benjamin refere que a proteção da saúde é a origem do esforço de preservação ambiental (1993, p. 13),
reforçando, mais uma vez, o argumento de que os bens jurídicos qualidade ambiental e saúde não se confundem,
mas são dependentes entre si: “a funcionalização da proteção ambiental é recente, pois anteriormente à década de 70
praticamente não se falava em meio-ambiente um como valor em si mesmo. Tutelava-se, quando muito, a saúde, o
patrimônio histórico e artístico, assim como certos direitos de vizinhança, só reflexamente ambientais” (1993, p. 51).
86
Em passagem bem-humorada, Mateo desfere duro golpe contra os defensores do conceito de qualidade de vida,
denunciando a sua inutilidade, uma vez que, “para algumas pessoas pode ser um inequívoco indicador de alto
standard de vida o consumo de champagne francês ou charutos havanos, enquanto outras abdicarão de tabaco e
álcool precisamente com vistas a alcançar melhor qualidade de vida” (1991, p. 100) [tradução nossa].
45
vida, todos, não se admire, hoje contemplados, com algumas variações, por normativas em nível
internacional, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que adverte que o
homem goza do direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida
adequadas em um meio de qualidade tal que lhe permita ter uma vida digna e gozar de bemestar87.
É também nesse sentido que se reclama ao Direito Ambiental o enquadramento nos direitos da
personalidade (TONCHIA, 1990, p. 215), correlacionado à integridade física, à vida, à saúde e à
qualidade de vida das pessoas88 (CERQUEIRA, 2009, p. 37). Por isso é que também os direitos
individuais que afetam diretamente a esfera da personalidade do sujeito do direito ambiental
implicam a incidência paralela da tutela individual, com o objetivo de salvaguardar os direitos
contemplados através do núcleo constitucional da dignidade humana (CERQUEIRA, 2009, p.
37).
Para Mateo, a qualidade de vida envolve, essencialmente, um suobstrato físico, identificado pelas
condições mínimas que deve ter o meio físico; uma referência antropológica, cujo conteúdo
exprime uma solidariedade transgeracional; abrange, também, a tutela do bem-estar, estabelecida
a partir do atendimento às necessidades básicas do cidadão (alimentação, moradia, saúde e
educação); a tutela ambiental e, por fim, a conservação dos recursos renováveis (1991, p. 102105). O conceito de qualidade de vida se consubstancia em mais uma necessidade humana, de
modo a aproximar a experiência vital do homem à sua merecedora dignidade. Olhando sob esse
prisma, a qualidade de vida significaria, no âmbito da proteção do Direito Ambiental, um dos
elementos do conteúdo da dignidade da pessoa humana, concebida como “a referência da
representação do valor do ser humano” (ALEXANDRINO, 2008, p. 505). Portanto, aqui, o
ambiente sadio se configura como um verdadeiro direito fundamental da personalidade, ao qual o
homem deverá ter acesso imediato.
87
88
Cf. Art. 25 do documento.
Cerqueira informa que “Vida, saúde e qualidade de vida têm sido vistas como uma unidade indissolúvel,
necessária ao desenvolvimento pleno das potencialidades individuais, passando, portanto, a servir de parâmetro para
a análise da ilicitude das relações públicas e particulares”(2009, p. 37).
46
Dias (2008, p. 334) defende que o direito fundamental à saúde possui uma dimensão subjetiva e
objetiva, em que a primeira apresenta caráter individual, na medida em que ao cidadão é dado o
direito de exigir do Estado as prestações necessárias ao alcance do seu bem-estar físico e mental
e a segunda oferece um caráter fundamental social, impondo ao Estado “a obrigação de editar
normas que criem as condições materiais e institucionais para seu exercício, de proteger o
indivíduo contra agressões de terceiros e fornecer prestações aos cidadãos”. Dentre os direitos de
defesa embutidos no direito fundamental à “sadia qualidade de vida” está, obviamente, o de o
seu titular não ter a sua condição de bem estar físico e mental lesado por terceiros particulares ou
pelo Estado.
Nesse ponto específico, o direito ao meio ambiente equilibrado e o direito à saúde se aproximam
de modo peculiar, na medida em que a esfera de proteção do bem ambiental difuso pode vir a
atingir a esfera de interesses do particular, causando danos à sua condição física e mental.
Exemplo claro da situação é o comprometimento da saúde de pessoas como resultado da
contaminação de mananciais hídricos: o contato com água contaminada, com o passar dos anos,
vem promover a ocorrência de doenças graves em seres humanos. É evidente que, nesse caso, os
danos ambientais interfeririam diretamente na lesão a outro bem da vida, o qual não se confunde
com o micro ou o macrobem, mas com o direito fundamental à saúde. Tonchia (1990, p. 221),
nesse sentido, salienta que a tutela à saúde abriga também o direito ao ambiente saudável,
coadunando com a ideia do caput do art. 225 da Constituição Federal, que vê no direito
ambiental um pressuposto à sadia qualidade de vida. Em virtude de a degradação ambiental
afetar a saúde de particulares, diz-se dos danos individuais por eles sofridos que são danos
reflexos ou danos por ricochete.
Disto é possível concluir que o microbem se caracteriza essencialmente por sua capacidade de
aproveitamento direto pelo indivíduo, na medida em que representa à vida diária uma
utilidade/benefício que facilita o desenvolvimento humano, de um lado, constituindo-se elemento
participativo nas funções de estabilidade ambiental, de outro (com a ressalva de que essa função
não se atribui aos bens conexos). Por isso, ao inverso do que ocorre com o macrobem, diz-se que
a tutela do microbem pode ser exercida também pelo particular, na dimensão em que a sua
degradação lhe imponha prejuízos individuais.
47
A tutela jurídica dos microbens encontra respaldo nos direitos de vizinhança e nos direitos da
personalidade. Do ponto de vista do seu caráter patrimonial, o proprietário tem o interesse
(fundado no direito individual de propriedade e no difuso, simultaneamente, embora, em relação
a este último lhe falte legitimidade ad causam89) de manter incólumes os bens ambientais de que
dispõe nos limites do seu domínio. Assim, ao proprietário caberá se insurgir contra ações de
quem, eventualmente, tenha o potencial de lesar o seu patrimônio ambiental.
Ao sujeito que teve a sua saúde lesada, a sua integridade física atingida, a sua qualidade de vida
comprometida, do ponto de vista individual, caberá valer-se da tutela ressarcitória do meio
ambiente, já que os danos que sofreu, independentemente de não manterem uma função
diretamente ecológica, resultaram de uma instabilidade do ambiente. Por isso, dado que o
microbem é pressuposto ao macrobem, que a garantia do bem conexo depende da estabilidade
ambiental, e, além disso, que a proteção do “dano de vizinhança” representa uma “contribuição
reflexa na proteção ao meio ambiente” (LEITE, 2003, p. 142), aplica-se, para todos os casos o
regime jurídico de responsabilidade civil ambiental, tal qual ocorre com a proteção do direito
difuso. O Direito do Ambiente, como se vê, possui também uma tutela privada, decorrente do
exercício dos direitos subjetivos que ora se inserem no seu conteúdo, ora dele dependem.
Obviamente, os danos causados aos recursos naturais, ainda que estejam vinculados à
propriedade privada, por sua função ecológica, deverão ser ressarcidos observando-se a mesma
escala de prioridades da tutela do direito ambiental difuso, o que não será observado nos casos de
ressarcimento aos danos ambientais por ricochete.
89
É importante referir que esta limitação, no direito brasileiro, está atualmente sendo objeto de discussão
(FERRARESI, 2007, p. 136), já que o anteprojeto do Código Brasileiro de Processo Coletivo, já referido neste
trabalho, prevê a possibilidade, mediante a importação de instituto de direito norte-americano da representação
adequada, através da qual uma pessoa (um particular) se encarrega, em juízo, de ser o “porta-voz” ou “gestor
judicial” (GIDI, 2007, p. 100)
48
2.2 O SISTEMA DE ARBITRABILIDADE
A arbitragem é um meio alternativo de solução de controvérsias, mas, invariavelmente, as
legislações nacionais estabelecem limites à sua abrangência. Aqui e ali, os Estados optam por
garantir à sua própria atividade judicante um monopólio jurídico objetivo, reservando à
apreciação de seus julgadores um campo material específico. Entretanto, o nosso desafio, à frente
do problema posto – a arbitrabilidade indenizatória do dano ambiental -, é verificar em que
medida esses limites obstaculizam a solução de um conflito assim caracterizado pela via
arbitral90. A ele.
2.2.1 Critérios clássicos de arbitrabilidade: vigentes e úteis até quando?
A regra geral na arbitragem é que o objeto da controvérsia não poderá ser indisponível (RICCI,
2007, p. 404). Essa informação é verificada com alguma clareza diante de rápida consulta à
legislação pátria e estrangeira relacionada à arbitragem. O Brasil (lei 9.307/96 – art. 1º); a
Bolívia (Lei de Arbitragem e Conciliação – art. 3º); a Costa Rica (lei nº 7.727 de resolução
alternativa de conflitos e promoção da paz social – art. 2º); a França (Código Civil – art. 2.059);
o Peru91 (Lei de Arbitragem – art. 1º); a Espanha (Lei de Arbitragem – art. 2º, §1º); a Itália92 (art.
806 do Código de Processo Civil); Portugal (Lei de Arbitragem – art. 1º) e Suíça (Concordat de
26 de março de 1969 – art. 5º), todos utilizam o critério da disponibilidade da matéria como
baliza de arbitrabilidade.
90
Esta verificação, embora mencionados os critérios de diversas legislações nacionais, se restringirá ao ordenamento
jurídico brasileiro.
91
O caso peruano guarda um pormenor que muito interessa ao nosso tema, o qual será alhures objeto de nossa
apreciação.
92
A Itália teve o critério de arbitrabilidade modificado pelo decreto legislativo 40 de 2006, quando passou a adotar a
disponibilidade em vez da transigibilidade.
49
Na Argentina, o art. 737, do Código de Processo Civil, salienta que a arbitragem não comporta
matéria transigível93; o art. 1.676 do Código Judiciário da Bélgica; o art. 115 do decreto 1.818/98
da Colômbia; o art. 1º da Lei de Arbitragem sueca; o art. 3º da Lei de Arbitragem Comercial da
Venezuela; o art. 774 do Código Processual do Paraguai; o art. 476 do Código Geral de Processo
do Uruguai, todos vedam a apreciação pelo tribunal arbitral de matéria que não seja objeto de
transação.
A Alemanha, a Áustria, a Lei de Arbitragem Internacional da Suíça (BLESSING, 2000, p. 172)
não exigem a disponibilidade do direito, mas tão somente a sua patrimonialidade. A esse grupo
também se juntaram, para arbitragens internacionais, Argentina e Polônia (CRISTÓFARO;
NEY, p. 336).
Brasil e Costa Rica, além do critério da disponibilidade, exigem a patrimonialidade.
Os Estados Unidos e o Reino Unido não oferecem critérios de arbitrabilidade na legislação94,
cabendo à jurisprudência a delimitação da abrangência da atividade arbitral. Há notícias de que,
nos Estados Unidos, a arbitrabilidade é presumida, cabendo à parte que não deseja a ela se
submeter o ônus de provar incompatibilidade da via com o thema decidendum (PINHEIRO,
2005, p. 105). Essa é a mesma notícia que nos traz Youssef sobre os sistemas australiano e
canadense, cuja normativa arbitral silencia sobre o assunto e a doutrina se posiciona pela
presunção da arbitrabilidade (2009, p. 56).
93
Caivano (2008, p. 132) atenta para o fato de que, adicionalmente, no sistema argentino, a lide não poderá
extrapolar o interesse das partes litigantes. Entretanto, desconfiamos que não se trata de restrição reservada ao
direito argentino, tendo em vista que, regra geral, se a causa impuser um litisconsórcio passivo necessário, por
exemplo, a parte não integrada originariamente no litígio não será, obviamente, forçada a se inserir na contenda em
um tribunal arbitral, salvo tenha ela assim convencionado no passado e, notificada a ingressar na lide, adotado
postura negligente.
94
Gidi refere que o conceito teórico de direito indisponível é inexistente no direito americano (2007, p. 309)
50
A intervenção do Ministério Público tem sido apontada, na doutrina (GARCEZ, p. 52), também,
como critério impeditivo de arbitrabilidade. Na Itália, a questão já ganhou corpo95,
especificamente no que toca à nova regulamentação do sistema societário naquele país. É o nº 4
do art. 34 do Decreto Legislativo nº 5, de 17 de janeiro de 2003 que estabelece,
peremptoriamente: “não podem ser objeto de cláusula compromissória as controvérsias em que a
Lei preveja intervenção obrigatória do Ministério Público” [tradução nossa]. Luisio alerta que a
necessidade da presença do Ministério Público é indício de indisponibilidade do direito (2007, p.
356). No caso brasileiro, tal critério não imporia grandes novidades ao sistema, tendo em vista
que as hipóteses de intervenção obrigatória do parquet, por aqui, coincidem, invariavelmente,
com litígios envolvendo matéria indisponível96.
Transigibilidade, disponibilidade, patrimonialidade, injuntividade da norma, ordem pública não
são sinônimos. Cada uma dessas expressões possui, especialmente ao operador do Direito, um
significado próprio e representam às discussões envolvendo arbitragem, especial importância.
Confundi-las é comprar um bilhete para o equívoco. Compreendê-las é permitir o
desenvolvimento de um raciocínio estruturado, apto à análise crítica das opções que faz o
legislador, no intuito de condicionar a resolução de um conflito através da arbitragem.
Exatamente porque esses critérios representam uma obstrução à arbitragem é que conhecer o seu
conteúdo ultrapassa a relevância teórica, para definir os rumos do acesso à arbitragem mundo
afora.
Na grande maioria dos ordenamentos jurídicos, as matérias indisponíveis não são passíveis de
transação, o que pode desencadear, em alguns, a crença de que, ao se falar em disponibilidade e
transigibilidade, se está tratando da mesma questão. Isto não é exato. A transigibilidade é a
possibilidade de submeter determinado litígio à transação, a qual, por sua vez, constitui o
95
Punzi informa que a vinculação da inarbitrabilidade à intervenção do Ministério Público já era prevista no art.
1104 no Código de Processo Civil para o estado del Re di Sardegna de 1859, bem como no art. 1080 do Código per
il Regno delle Due Sicilie (2000, p. 224).
96
Art. 82 do Código de Processo Civil.
51
negócio jurídico destinado à realização da autocomposição de uma controvérsia97. A
disponibilidade é uma qualidade de uma situação jurídica, que admite, por vontade do seu titular,
a sua modificação ou extinção, em maior, ou menor grau98. Assim, as partes podem por fim a
uma controvérsia, sem que seja necessário modificar ou extinguir as situações jurídicas postas
em causa. Portanto, a transação é o veículo através do qual uma situação jurídica (disponível ou
indisponível) poderá (ou não, no segundo caso) ser extinta ou modificada; o certo é que ela
promoverá o efeito de por fim à controvérsia. A vedação da transigibilidade dos direitos
indisponíveis é mera opção de política legislativa (VERDE, 2006, p. 63). Não é incompatível a
transação com os direitos indisponíveis. Desde que, através dela, não disponham deles as partes,
será possível utilizá-la para por fim à controvérsia.
De fato, não é o melhor caminho vincular transigibilidade e arbitrabilidade, ainda que se deseje a
ela impor obstáculos99. Raul Ventura denunciou (1986, p. 321) a inutilidade de se valer da via
indireta da transigibilidade para se chegar à disponibilidade, já que, na maioria dos
ordenamentos, a transação é permitida apenas nos casos em que se possa dispor do direito.
97
Código civil brasileiro, Art. 840: “É lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante
concessões mútuas”.
98
O prof. Castro Mendes alerta que, “regra geral, as relações jurídicas são apenas relativamente indisponíveis”
(1986, p. 210). Nesse mesmo sentido, adverte Henrique Damiano que “A indisponibilidade, contudo, comporta
graus. Assim, pode ser absoluta ou relativa. A primeira envolve situações excepcionalíssimas, tais como o direito à
vida, à personalidade e ao trabalho livre. A indisponibilidade relativa atinge a uma gama significativa de direitos e
garantias: alimentos, registro do contrato de emprego na CTPS, salários, estabilidade e garantia no emprego,
depósitos do FGTS, horas extras, adicional de insalubridade, de periculosidade e noturno, férias, repouso semanal
remunerado, aviso prévio e intervalo para descanso. Na indisponibilidade relativa, ao contrário do que se passa na
absoluta, a renúncia e a transação têm lugar, conquanto sujeitas a restrições e limitações. Mas não se pode negar que
o salário, o aviso prévio, as férias, os adicionais, a garantia de emprego e outros direitos “indisponíveis e
irrenunciáveis”, ordinariamente, encontram no judiciário trabalhista sede para transações, acordos e conciliações que
denotam a relatividade da indisponibilidade” (2002, p. 18). Ainda para efeito de determinação do conceito de
indisponibilidade, vale lembrar a lição de Verde, para quem “é indisponível o direito a respeito de qual existe um
impedimento expresso ou implícito (ou seja, derivante da natureza intrínseca do mesmo), de renúncia ou perda (ou
de conformação de maneira diversa daquela prevista por lei)” (2005, p. 93) [tradução livre].
99
No Brasil, defende esta vinculação Marcos Paulo de Almeida Salles, quando salienta que a arbitragem “deve
portar as mesmas características da expectativa que têm as partes que se submetem aos sacrifícios próprios das
transações” (2000, p. 361).
52
Transigível, portanto, é a matéria autorizada pela legislação a ser submetida à transação100. “São
disponíveis aqueles bens que podem ser livremente alienados ou negociados, por encontrarem-se
desembaraçados, tendo o alienante plena capacidade jurídica para tanto” (CARMONA, 2004, p.
56). Disponível é a relação jurídica cujos efeitos podem ser determinados pelas partes (CASTRO
MENDES, 1986, p. 206), relacionada com a renunciabilidade de determinados bens jurídicos101.
Com isso, há que se considerar que nem toda matéria indisponível será necessariamente
intransigível, bem como, nem toda matéria intransigível será automaticamente indisponível.
Essas condições variarão conforme cada ordenamento jurídico. Nota-se que o critério da
transigibilidade possui um espectro mais abrangente (CECHELLA, 2005, p. 38), podendo, ao
gosto do legislador, adicionar ao rol das matérias transigíveis, inclusive, situações jurídicas
indisponíveis102. Equiparar a transação (transigibilidade) à arbitragem (arbitrabilidade) é
100
A legislação argentina, que adota como critério de arbitrabilidade as questões transigíveis, estabeleceu um rol de
matérias sujeitas à transação (Código Civil da Nação, arts. 832 e ss.); a legislação italiana, que fazia menção à
transigibilidade até 2006, por sua vez, identificou a matéria sujeita à transação com a disponibilidade do direito em
causa (Código Civil italiano, art. 1.966); na Venezuela, a transação também está restrita a direitos disponíveis
(Código Civil, art. 1.714). Naturalmente, nos casos em que a legislação indicar como matéria transigível aquela que
verse sobre direito disponível será possível estabelecer uma equiparação entre os conceitos, mas por um motivo
meramente circunstancial.
101
A dificuldade da determinação da disponibilidade de uma relação jurídica foi destacada por Castro Mendes, que a
relacionou com a existência, em regra, de relações jurídicas relativamente indisponíveis. E exemplifica com a
relação jurídica “de que a parte só pode dispor por certa forma: duas pessoas de sexo diferente, não se verificando
qualquer impedimento, podem livremente casar. É um efeito jurídico disponível. Daqui em rigor deveria resultar a
possibilidade de uma acção declaratória do casamento seguida de confissão do pedido: uma espécie de casamento
processual. Tal não é possível: o casamento só pode provar-se por certidão do registo civil (Código do Registo Civil,
art. 5º); não é de outro modo, nem sequer por sentença” (1986, p. 211-212).
102
Embora este posicionamento pareça, a alguns, uma heresia jurídica, dado que a transação, na tradição juscivilista,
envolve a concessão de direitos (Código Civil brasileiro, art. 840), o que não seria permitido em relação a direitos
indisponíveis, no item em que tratarmos do Termo de Ajustamento de Conduta, o nosso raciocínio poderá se
afigurar, dogmaticamente, mais bem situado. Entretanto, apenas para que, desde já, ponha-se em cheque a
dogmática juscivilista atinente à matéria, pense-se em transação penal envolvendo o caput do art. 129 do Código
Penal, cujos bens protegidos são a integridade física e a saúde humanas, já há quase quinze anos autorizada pela Lei
9.099. Nesse sentido, Gian Franco Ricci adverte: “Se é verdade, de fato, que é possível haver transação sobre
direitos disponíveis, o contrário não o é, no sentido de que apenas os direitos disponíveis sejam passíveis de
transação” (2007, p. 760). O conceito de transação trazido por Pontes de Miranda em certa medida diverge do
quanto dispunha, à época da redação do texto, o art. 1.025 do Código Civil então vigente: enquanto a redação da Lei
falava em “concessões mútuas”, o autor preferia dizer que se tratava a transação de “negócio jurídico bilateral que
afasta disputa ou dúvida (incerteza) entre os dois ou mais contratantes, a respeito de relações jurídicas existentes
entre eles” (1977, p. 266).
53
desconhecer o seu flagrante caráter jurisdicional; se é equivocado confundir a figura do árbitro
com a do juiz, é equívoco ainda mais grosseiro confundir os poderes do árbitro com os poderes
das partes.
Disponibilidade também não se confunde com patrimonialidade. É verdade que ambas são
qualidades de situações jurídicas. A situação jurídica disponível é aquela que pode ser
modificada ou extinta por livre escolha do seu titular. Entretanto, quando se lança mão da
expressão patrimonialidade, quer-se referir que o Direito admite que uma determinada situação
jurídica possa ser trocada por dinheiro (MENEZES CORDEIRO, 1999, p. 103). Feliz exemplo
para separar as duas noções é o direito do trabalhador ao salário mínimo (Consolidação das Leis
do Trabalho, art. 76), cuja indisponibilidade é tão manifesta quanto a sua apreciação monetária.
Há casos, entretanto, que a indisponibilidade gera ausência de patrimonialidade. O direito ao
equilíbrio ambiental, por exemplo, é um bem que poderia ser trocado por dinheiro, não fosse a
sua indisponibilidade. Ela o torna não apropriável e não cedível. O direito de propriedade sobre
um cadáver poderia ter caráter patrimonial, não fosse proibido pela legislação apropriar-se de um
(salvo casos específicos de experimentos científicos e destinação educacional).
Não se deve, ainda, confundir indisponibilidade do direito com injuntividade normativa
(LUISIO, 2007, p. 357). A confusão tem origem no fato de que ambas a indisponibilidade da
situação jurídica e a injuntividade da norma representam a limitação da autonomia privada. A
regra jurídica raramente dirá que determinada situação jurídica é indisponível103: apenas dará
pistas. Dirá, por exemplo, que se alcança a maioridade aos dezoitos anos de idade ou que é
inviolável a honra... Não mais. A indisponibilidade da situação jurídica determinada pela norma
se concretiza a partir de sua interpretação. Perguntará o intérprete: é possível dispor da condição
de pessoa? É possível renunciar à integridade física? Em que nível (posso vender o meu cabelo,
mas não posso vender o meu fígado)? A ele responderão os recursos hermenêuticos de que
lançar mão, aliados ao valor que comumente se reconhece a cada uma dessas situações; a partir
disso, responderá se a situação jurídica é disponível ou indisponível, ou, ainda, relativamente
103
Punzi lembra que a disponibilidade dos direitos decorre de uma disposição de lei – mais ou menos explícita – que
expressamente a preveja o impedimento do exercício para o titular de um poder autônomo, em função do tipo do
interesse tutelado ou da natureza do direito (2008, p. 173).
54
indisponível104 (BARBIERI; BELLA, 2007, p. 98). A regra injuntiva também limitará o
exercício do direito; nem sempre tal limitação implicará a sua irrenunciabilidade,
intransmissibilidade105, tutelável a qualquer tempo (ZUCCONI GALLI FONSECA, 2005, p.
483). Não pode o sujeito A adotar a conduta Y. A invalidade da citação não sanada nulifica a
sentença. É inviolável a honra. O comando normativo pode redundar em impossibilidade de
modificação ou extinção de uma situação jurídica. É apenas uma das possibilidades. A norma do
art. 100 do Código Civil brasileiro é, ao mesmo tempo, injuntiva e resulta no estabelecimento de
uma situação jurídica indisponível, os direitos de propriedade sobre os bens públicos de uso
comum do povo: “Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis,
enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a Lei determinar”. Por outro lado, vejase o art. 166 do mesmo diploma: “É nulo o negócio jurídico quando: [...] IV – não revestir a
forma prescrita em Lei”. Diferentemente, nesse caso, não se pode dizer que a norma implica o
estabelecimento de uma situação jurídica indisponível. Manda a Lei que o contrato seja
celebrado em observância a determinadas normas e que, em caso contrário, será inválido. Não
há, portanto, como confundir situações jurídicas disponíveis com normas dispositivas e situações
jurídicas indisponíveis com normas injuntivas. São qualificações estabelecidas a partir de
parâmetros distintos. Não se deve defender que o árbitro não pode julgar questão que verse sobre
normas injuntivas, já que, nem sempre, a injuntividade remeterá à indisponibilidade de uma
situação jurídica (CRISCUOLO, 2002, p. 48). Não se trata, assim, de raciocínio automático;
quando se depara o intérprete com a norma injuntiva (resultante do sistema normativo do Estado
ou da ordem pública), deverá analisar se o comando normativo remete à indisponibilidade da
situação jurídica, isto é, se dali emerge uma situação jurídica que não pode ser modificada ou
extinta pela vontade da parte. Sucumbir à confusão dos conceitos significa restringir
equivocadamente o âmbito de aplicação da tutela arbitral106.
104
Em sentido oposto, Gian Franco Ricci, 2006, p. 267.
105
Verde, entretanto, acredita que a transmissibilidade não implica a indisponibilidade da situação jurídica (2005, p.
92).
106
Ventura adverte que mencionada restrição causaria à tutela arbitral muitos inconvenientes : “ou os árbitros
deveriam ‘esquecer’ nos seus julgamentos as normas imperativas , ou os árbitros deveriam dar-se por incompetentes
logo que, por iniciativa de alguma das partes ou ex officio, surgisse uma questão de interpretação ou aplicação de
norma imperativa (1986, p. 324).
55
Já não possui muita força o critério de “ordem pública”107, verificado em algumas legislações108.
A ordem pública, constituindo-se em um conjunto de “regras e princípios aptos a manter a
unicidade das instituições do foro e a proteger os profundos sentimentos de justiça e moral de
determinada sociedade em determinada época” (COSTA; PIMENTA, 1999, p. 375), comporta,
como é evidente, normas injuntivas. Hanotiau e Caprasse, referem, citando a Corte Belga de
Cassação, que “pertence à ordem pública norma que contenha os essenciais interesses do Estado
ou público de modo geral109, ou norma que determine, em Direito Privado, requisitos jurídicos
fundamentais sobre os quais a ordem econômica e moral se sustentam” (2008, p. 729). A norma
injuntiva não é necessariamente norma de ordem pública, mas fatalmente a norma de ordem
pública será injuntiva. De qualquer modo, valer-se de ordem pública e de norma injuntiva é pisar
em terreno onde a autonomia da vontade não vai muito longe, razão pela qual, embora não se
possa confundir o seu conteúdo com a disponibilidade da situação jurídica, como vimos, é de se
registrar que, também nesse plano, não há possibilidade de exercício da vontade particular. Isto,
mais uma vez, não representa necessariamente a inadmissibilidade da submissão do litígio à
apreciação de juízo arbitral, já que, novamente, nem sempre uma questão de ordem pública
determinará a indisponibilidade da situação jurídica. Nesse caso, caberá ao árbitro cuidar de não
violar a ordem pública com a sua decisão, ou ainda, negar-se a seguir com o procedimento
arbitral caso as regras escolhidas pelas partes para solucionar o litígio contrariem a ordem
pública e os bons costumes110.
Não se deve, ainda, confundir indisponibilidade do direito material com indisponibilidade da
intervenção judicial (TALAMINI, 2005, p. 62). Essa discussão se aplica aos casos em que é o
presentante (o Estado) ou o representante (o Ministério Público) do interesse público o
107
Luís de Lima Pinheiro informa que a jurisprudência francesa evoluiu no sentido da flexibilização deste critério,
bem como, no âmbito da arbitragem internacional, esta flexibilização é ainda maior (2005, p. 104). No mesmo
sentido, Caramelo, 2006, p. 1237. Youssef relata que, desde os anos 50, a jurisprudência francesa decretou a morte
do critério naquele país, tornando letra morta o art. 2060 do Code civile (2009, p. 58).
108
Lei de arbitragem e conciliação da Bolívia, art. 3º; Código Civil francês, art. 2.059; 1.707, n˚ 3 do Código
Judiciário belga.
109
“[...] as questões que envolvem a ordem pública são – pelo menos no tocante aos aspectos específicos de
interesses público, coletivo, difuso ou geral – indisponíveis” (COSTA; PIMENTA, 1999, p. 381).
110
Cf. Lei 9.307/1996, art. 2º, §1º.
56
responsável pela gestão de bens que dizem respeito à coletividade. Não submeter uma demanda
ao Judiciário não implica a disposição do bem; ao contrário, na hipótese em que o Estado ou o
Ministério Público entendem que não se trata a oportunidade de defender o bem público, dada a
constatação de sua integridade, não há porque dar as costas à racionalidade e residir aos tribunais
em busca de um litígio inócuo. Quer isto dizer que a proteção do interesse público não pode ser
confundida com um estímulo à administração de causas sabidamente perdidas pela
Administração Pública, que se encaminham aos tribunais do Estado para praticar verdadeira
“teimosia”. A defesa do interesse público pela Administração Pública e pelo Ministério Público,
em juízo, deve pressupor, antes de tudo, boa-fé. Defender o interesse público não é o mesmo que
defender os interesses do Estado e de suas estruturas, como se a sua organização constituísse um
fim em si mesmo. Por isso, há que se compreender que, em muitos casos, o Estado e o Ministério
Público poderão entrar em entendimento com os seus supostos adversários, através de
instrumentos como a transação, a exemplo do Termo de Ajustamento de Conduta, sem que, para
isso, seja indispensável dispor do interesse público. Em uma questão jurídica, admitir que “o
outro tem razão” não significa disposição do bem; significa que a integridade do bem, naquele
momento, foi respeitada; se está apenas buscando a solução da controvérsia. Pode estar em
discussão um erro operacional da administração pública ou uma interpretação equivocada do
inquérito civil, pelo Ministério Público. Assim, a razão de ser da vinculação da disponibilidade
com a arbitrabilidade, nesse passo, cai por terra: submeter uma questão indisponível ao juízo
arbitral não implica a violação do bem indisponível; se dos instrumentos de autocomposição não
decorre essa consequência, o que dizer de um procedimento de caráter jurisdicional, dotado de
imparcialidade e todas as demais garantias do devido processo legal?
Por último, não é recomendável equiparar a indisponibilidade do interesse público com a
indisponibilidade do direito patrimonial do Estado. A indisponibilidade do interesse público se
traduz na impossibilidade de vulnerá-lo, isto é, de permitir que o interesse público sucumba a
interesse particular. Por isso mesmo, em dadas ocasiões, o Estado terá de renunciar direitos,
exatamente com vistas a atender o interesse público: imagine-se, aqui, o caso de um edifício
público cujo valor de mercado tenha subido vertiginosamente em função da construção de um
shopping nos seus arredores, decidindo o administrador público, no intuito de aumentar o poder
de investimentos de seu governo em educação, por exemplo, aliená-lo, transferindo-se a sede do
57
Poder Público a um local onde a especulação imobiliária não tenha chegado com tanta força.
Embora o bem público tenha sido objeto de disposição, não restou por ser posto em negociação o
interesse público. Isto significa que, nem todos os bens vinculados ao Estado são indisponíveis,
podendo, portanto, a administração se valer, nesses casos, consoante o permissivo da legislação
brasileira, de meios alternativos de solução de conflitos.
Disponíveis, indisponíveis, transigíveis, intransigíveis, patrimoniais, extra-patrimoniais. Antes de
tudo, é preciso lembrar que todas essas expressões representam qualificações de direitos, e,
assim, merecem a devida proteção. Como se nota, as legislações ocidentais cuidaram de permitir
o acesso à arbitragem, especialmente, às relações jurídicas de caráter negocial; entretanto,
considerando que, cada vez mais, se reclama acesso aos direitos, o qual não tem sido garantido
de modo satisfatório, na atividade desempenhada pelo Poder Judiciário, será que não estamos
prestes a assistir uma alteração desse quadro? E, caso seja negativa a resposta, não deveríamos
trabalhar nesse sentido? Por que, afinal, aos bens jurídicos de caráter disponível são ampliadas as
opções de tutela e, contrariamente, aos bens jurídicos de caráter indisponível, se oferece apenas
uma opção? Pretende-se, mais uma vez, como denunciou Kafka, fechar aos camponeses a porta
da Justiça? Ainda há espaço para que a ingenuidade se dobre ao mito do Estado-juiz-provedor?
Edoardo Flavio Ricci (2007, p. 407), nesse sentido, defende a inexistência de razões de fundo111
para que a arbitrabilidade esteja vinculada à indisponibilidade do objeto da causa. Em verdade,
para o autor, esse panorama estaria relacionado com fundamentos de caráter histórico e político:
o fundamento de caráter histórico se refere à antiga concepção do processo como algo conjugado
ao direito material, no sentido de que, regulando-se o instrumento, estar-se-ia regulando o
substrato, daí porque não seria juridicamente viável convencionar procedimento de lide cujo
111
O debate sobre a essencialidade do critério da disponibilidade tem origem, pelo menos no ambiente doutrinário
italiano, na concepção da natureza jurídica da arbitragem. A corrente contratualista se desenvolveu com bastante
força na Itália (por exemplo, RUFFINI, 2002, p. 145), e, por conta disto, passou a atribuir à arbitragem as limitações
inerentes a um contrato. Sergio la China, nesse passo, defende que o árbitro não pode decidir sobre matéria
indisponível porque, diferentemente do juiz, a sua autoridade não é própria, mas provém da vontade das partes. Se a
lei não lhes permite autocompor a controvérsia sobre matéria indisponível, automaticamente, segundo o raciocínio
do autor, não poderiam as partes escolher quem o fizesse em seu lugar. É estranho que o mesmo autor reconhece que
a questão não é ontológica, mas remete ao mero “ciúmes” do Estado em manter sob a sua tutela matérias mais
sensíveis (2007, p. 41). Mais à frente demonstraremos os motivos pelos quais não nos filiamos a esse entendimento.
58
objeto, por sua natureza, fosse indisponível; o fundamento político, mais tarde, confirmaria o
fundamento histórico, traduzido pela concepção de jurisdição como exercício da soberania112 do
Estado113, em contraposição à ideia de jurisdição como serviço a ser prestado aos cidadãos.
Quanto mais alinhada estiver a corrente política à primeira concepção, mais restrições serão
impostas às resoluções privadas de litígios e, dentre elas, a arbitragem.
A esses fundamentos, Karim Youssef adiciona que, dada a histórica relação que a arbitragem
estabeleceu com a solução de controvérsias de natureza comercial, criou-se em torno dos árbitros
uma imagem de “homens do comércio” e, a ela acompanhada, uma desconfiança de que eles não
dariam, seja pela parcialidade decorrente de seu posicionamento ideológico, seja pela presumida
inabilidade em matéria pública, às normas de caráter público a aplicabilidade devida (2009, p.
49). Esse mesmo autor defende que toda essa desconfiança já não tem lugar para ser exercitada
no presente contexto internacional da arbitragem114. É que “a arbitragem internacional é uma
justiça sofisticada, que amadureceu para conferir proteção suficiente às partes mais fracas ou ao
interesse público” (2009, p. 64) [tradução nossa].
Comentando o sistema italiano, Berlinguer (1999, p. 125) verifica uma inadaptação dos critérios
de arbitrabilidade (fundados em uma concepção privatística) à atividade desenvolvida pelos
árbitros, na medida em que, embora a natureza decisória e resolutiva da arbitragem seja
reconhecida de modo geral, o ordenamento segue impondo limites operativos criados e
112
É fundamental referir o n˚ 2 do art. 209 da Constituição portuguesa, que expressamente traz a arbitragem inserida
no capítulo “Organização dos Tribunais”, em reconhecimento pleno do múnus público judicante da atividade. No
Brasil, a Constituição faz tímida menção à arbitragem, quando aborda a solução de conflitos coletivos de natureza
trabalhista (Art. 114, §1º e 2º).
113
Nesse mesmo sentido, Remo Caponi comenta que o Estado moderno, na tentativa de remediar a degeneração do
processo romano-canônico, entre os séculos XVII e XVIII, apropriou-se da função judicante (2008, p. 101).
114
Explicando o mesmo fenômeno, La China ressalta que “se pode dizer que a razão de fundo do fenômeno
positivo da inarbitrabilidade está no ciúmes do Estado pelo próprio poder jurisdicional, na relutância em
descentralizá-lo e privatizá-lo ou fracioná-lo em mil feudos, quase como um regresso ao bom tempo antigo, em
função do temor que tem de que os valores que estabelece como os mais importantes na escala de valores jurídicos e
sociais do ordenamento possam fugir pela via arbitral à cognição dos juízes estaduais e sejam assim menos
convictamente aplicados e defendidos”. (2007, p. 41) [tradução nossa]
59
concebidos para regular um contrato. Quer isso significar que não há porque estabelecer limites
impeditivos de arbitrabilidade se a função da arbitragem possui claramente caráter público.
Raul Ventura já há mais de 20 anos manifestou a sua incompreensão acerca da exigência do
requisito da disponibilidade. Com efeito, o autor considera a ideia válida para a aplicação do
instituto da transação e duvida “que o julgamento por um tribunal arbitral de litígio sobre o
direito disponível afecte a indisponibilidade do direito” (1986, p. 321).
Caramelo (2006, p. 1253) critica com veemência o critério de arbitrabilidade da lei portuguesa,
na medida em que acredita não ser ele “adequadamente operativo para delimitar, claramente e
com segurança o espaço da arbitrabilidade no campo do Direito das Sociedades”, arrematando,
por fim, que, na verdade, a imposição do limite
se assenta numa desconfiança (ainda que inconfessada) do Estado-legislador (quando é
a Lei que estabelece o critério da arbitrabilidade) ou dos tribunais estaduais (quando
esse critério é definido por via jurisprudencial) relativamente à capacidade e/ou à
vontade dos árbitros de respeitarem e fazerem respeitar normas ou princípios
considerados como particularmente importantes e, por isso, como obrigatoriamente
aplicáveis em quaisquer circunstâncias.
Paula Costa e Silva, identificando na convenção de arbitragem um negócio processual que regula
um pressuposto processual – a competência – alerta que, respeitada a indisponibilidade
substantiva do direito em litígio, “impedindo-se a celebração de negócios processuais com
eficácia substantiva compositiva, nenhuma razão poderá militar contra a decisão por árbitros”
(2009, p. 20).
Entretanto, classicamente, o raciocínio tem sido diverso. Para muitos, a disponibilidade seria
critério adesivo à arbitrabilidade, tendo em vista que a natureza negocial da convenção de
arbitragem tornaria incompatível a apreciação por árbitros matéria indisponível. Ruffini, nesse
sentido, comentando a reforma do Direito Societário italiano, impõe objeções à admissibilidade
60
da arbitrabilidade dos direitos indisponíveis115. Algumas preocupações o inclinam a adotar tal
posicionamento: em primeiro lugar, parece ao autor que existe uma contradição de caráter
constitucional116 no fato de ser a vontade das partes requisito de admissibilidade da arbitragem117
e, simultaneamente, esteja essa vontade direcionada a dirimir conflito sobre o qual não exerce
influência118 (2004, p. 506); a segunda estaria relacionada com o fato de o tribunal ser
estabelecido extraordinaria e especialmente com o objetivo de solucionar o conflito (2004, p.
510).
Sob a nossa ótica, as preocupações do autor não comprometem, nem a compatibilidade
constitucional, nem o bom funcionamento do sistema jurisdicional. A respeito da primeira
preocupação: de início, não nos parece que a autonomia da vontade é a fonte atributiva do poder
do árbitro119 (2004, p. 508), mas se apresenta como o estabelecimento de sua competência, cuja
motivação, no procedimento arbitral, está geralmente conectada com as habilidades técnicas de
que são dotados os julgadores. Os poderes do árbitro, abstratamente considerados, estão todos
destacados na legislação atinente à matéria. O risco de considerar a autonomia da vontade a fonte
atributiva do poder do árbitro é o de confundir a convenção arbitral com uma delegação de
poderes das partes. Se assim for entendido, não caberá ao árbitro exercer atividade judicante,
mas ao inverso, seu papel estará restrito a mediar um acordo de vontades, o que não é a exata
115
O autor não está sozinho na conclusão de que não há arbitrabilidade de direito indisponível no sistema italiano.
Grande parte da doutrina italiana o acompanha, a exemplo de Verde (2006), Luisio (2007), Punzi (2008), Barbieri e
Bella (2007), Cechella (2005), Chiarloni (2004), Gian Franco Ricci (2007), Rubbino-Sammartano (2002), entre
outros.
116
“Art. 102. A função jurisdicional é exercitada pelos magistrados ordinários instituídos e regulados pela norma
sobre o ordenamento judiciário.
Não podem ser instituídos juízos extraordinários ou juízes especiais. Podem somente ser instituídos órgãos
judiciários com seções especializadas para determinadas matérias, também com a participação dos cidadãos idôneos
não integrantes da magistratura.
A lei regula os casos e as formas da participação direta do povo na administração da justiça”.
117
Em recente comentário ao renovado art. 806 do Código de Processo Civil italiano, o autor deixa ainda mais
evidente o seu posicionamento a respeito do tema: “No momento em que o fundamento da arbitragem reside na
autonomia privada, é claro que a área da comprometibilidade aos árbitros coincide tendencialmente com aquela da
disponibilidade dos direitos” (2008, p. 5658) (tradução nossa).
118
Também nesse sentido, PUNZI, 2008, p. 172.
119
Nesse sentido, CONSOLO, 2003, p. 252.
61
concepção aplicável ao instituto. O árbitro – tal como o juiz - não está autorizado a promover a
disposição da relação jurídica, mas a verificar, inclusive aplicando normas de ordem pública e
regras e princípios jurídicos de caráter injuntivo, no âmbito litigioso, a quem assiste razão. Sua
missão não é compor o litígio através da disposição de direitos, mas sim prestar a efetiva e
adequada tutela jurisdicional. O poder do árbitro, independentemente do objeto da causa que
julga, provém da Lei120; quando as partes escolhem os árbitros da causa, estão apenas escolhendo
as suas habilidades individuais, através de sua nomeação, é dizer, estão constituindo a sua
competência para julgar. Não estão as partes, sob nenhum aspecto, transferindo aos árbitros
poderes seus, mesmo porque não lhes é atribuído o poder de julgar, mas, tão somente, quando for
possível, conforme o objeto em litígio, o de realizar concessões. Não há inconstitucionalidade,
portanto, porque nem sequer há exorbitância de poderes; o árbitro julga os pedidos e
requerimentos dos litigantes, assim como faz o juiz de direito. A convenção de arbitragem, por
constituir-se um negócio jurídico processual (COSTA e SILVA, p. 20), não limita
ontologicamente o objeto do litígio121.
Já no que toca à objeção concernente ao caráter extraordinário do tribunal, que constitui a
segunda preocupação do autor, cuja constitucionalidade estaria assentada na vontade das partes,
o que, no caso de arbitragem processante de direitos indisponíveis, não seria verificado, o nosso
raciocínio busca no fundamento histórico da regra de impedimento de tribunal de exceção o
argumento para refutar o posicionamento. O impedimento do tribunal de exceção é
essencialmente uma garantia dada ao cidadão contra o Estado, que goza plenamente do direito
fundamental ao processo justo (fair trial). Suas razões históricas remontam a um sistema
constitucional introduzido – também na Itália, em um Estado democrático juvenil pós Mussolini
– como uma reação a um regime político totalitário, que se utilizava de mecanismos como o
tribunal de exceção para forjar o oferecimento de uma oportunidade de defesa que nunca existia,
voltados essencialmente à aniquilação das forças políticas que contra tal regime se opunham.
120
Punzi, a respeito da questão, assevera que a premissa para considerar possível a arbitrabilidade de direitos
indisponíveis é observar na Lei o fundamento da arbitragem, e não na vontade das partes (2008, p. 172).
121
Nesse sentido, é útil a ideia lançada por Capone, para quem existe, atualmente, uma direção ao equilíbrio da
incidência da autonomia privada na evolução processual, na medida em que não obstaculize a efetividade do
processo e a justa composição da controvérsia (2008, p. 102).
62
Com efeito, a proibição constitucional não pode ser estendida à arbitrabilidade de situações
jurídicas indisponíveis. Aqui, a escolha pela via arbitral é sempre facultativa, com composição
do corpo de julgadores determinada pela vontade das partes. Não se arriscam, com isto, a serem
condenadas previamente por um tribunal político. O tribunal arbitral ad hoc não é político; é
técnico, e, mesmo mais do que o juiz estatal, sente maior necessidade de se distanciar de suas
convicções ideológico-políticas, uma vez que, constatada a inclinação política de determinado
árbitro ou colégio arbitral, terá ele cada vez mais dificuldade de sobreviver na profissão. O
fundamento da convenção de arbitragem é o consenso de submeter o litígio a um corpo de
julgadores técnicos e imparciais; no âmbito de resolução de grandes e complexas questões
jurídicas (que envolvem, normalmente, grandes valores), buscar uma solução efetivamente justa
(no sentido de que as partes litigantes reconheçam a sua consistência técnica, ainda que isto não
seja suficiente para alcançar uma satisfação plena, dado que o perdedor nunca estará satisfeito) é
garantir a subsistência do tribunal e do árbitro no mercado de arbitragem. Não há, portanto,
nenhuma razão lógica que autorize o intérprete a estender uma proibição constitucional
historicamente posicionada, de finalidade completamente diversa, para obstar a possibilidade de
uma arbitragem de situações jurídicas indisponíveis.
Obviamente, de modo geral, o direito positivo de diversos países foi influenciado pela concepção
de que a decisão arbitral seria simplesmente um ato negocial, em detrimento de sua apreciação
enquanto ato processual de exercício jurisdição. É necessário, entretanto, observar que esse
panorama foi modificado. No panorama doutrinário do Brasil122, pode-se hoje dizer que
prevalecem as vozes que defendem o caráter jurisdicional da arbitragem123. Não sem motivo o
legislador brasileiro escolheu a expressão “sentença” para se referir à decisão arbitral124. Tal
como referenciado por Ricci (2001, p. 263), essa decisão arbitral produz os idênticos efeitos da
sentença e, portanto, não existe uma razão consistente para que se estabeleça conexão entre a
disponibilidade do objeto da causa e arbitrabilidade.
122
Entre tantos, Bueno, 2007, p. 13; Didier Jr., 2009, p 83; Rodrigues, 2008, p. 78, Martins, 2001a, p. 351. Em
sentido contrário, ainda, Marinoni, 2006, p. 148; Theodoro Jr., 2008, p. 42.
123
Não se nega, por conta disto, evidentemente, o caráter contratual da convenção de arbitragem.
124
A lei 9.307/1996 se refere à “sentença arbitral” durante toda a sua extensão.
63
A tutela arbitral de direitos indisponíveis não pode – e nem deve – ser idêntica à tutela arbitral de
direitos disponíveis. O procedimento – e o processo – devem se adaptar ao direito discutido125,
sob pena de inviabilizar-se a sua tutela. Imaginar um procedimento arbitral de direitos
indisponíveis é pensar em uma remodelação de todo o sistema arbitral, constituído
primordialmente com o objetivo de atender interesses eminentemente privados; agora, se for
levada a efeito a expansão dessa tecnologia à tutela de direitos indisponíveis, será imperativa
uma readequação do sistema às necessidades características desses direitos. Por isso, os
eventuais receios que surjam da inclusão dos direitos indisponíveis em um sistema que não foi
originariamente pensado para tutelá-los devem ser superados pela criatividade e esforço dos
juristas em encontrar mecanismos adequados de adaptação.
2.2.2 Novos rumos da arbitrabilidade: onde há fumaça, há fogo
Se hoje o utente do serviço judiciário exige do prestador rapidez e eficiência e se estamos de
acordo com Paula Costa e Silva, no que toca à inexistência de razões de caráter ontológico para
que se vincule à arbitralidade o critério da disponibilidade dos direitos em litígio, não seria
natural que os movimentos de mudança desse panorama não aparecessem. De fato, eles estão
cada vez mais visíveis nas culturas jurídicas internas dos países, bem como, no Direito
Internacional e a arbitrabilidade de litígios envolvendo direitos indisponíveis tem ganhado força
notável. O ceticismo doutrinário, que, eventualmente, ainda possa ser encontrado, quanto à
mudança dos critérios de arbitrabilidade, e, consequentemente, os obstáculos impostos a essa via,
hoje, inevitavelmente, só podem ser interpretados como resistência, a qual, por sua vez, tem
encontrado severa contra-resistência: já há quem tenha anunciado a morte da inarbitralidade
(YOUSSEF, 2009). Embora de nossa parte exista a crença de que essa profecia será confirmada
em um futuro breve, o fato é que, hoje, ainda, o mundo rediscute os impedimentos de acesso à
arbitragem. Portanto, aos céticos (ou resistentes), fica o alerta: onde há fumaça, há fogo.
125
Em matéria de arbitragem ambiental, esta iniciativa foi tomada pela Corte Permanente de Arbitragem, no sentido
de adaptar o modelo normativo da UNCITRAL às necessidades do direito ambiental, adaptação a que se fará
referência adiante. Sobre os princípios da adaptação e da adaptabilidade, cf. DIDIER Jr., 2001.
64
2.2.2.1 Mudanças no direito positivo estrangeiro: o Direito alemão, a legislação societária e a
reforma da regulação arbitral na Itália
Algumas experiências legislativas confirmam que os clássicos critérios de arbitrabilidade têm
sido revistos, no intuito de garantir-se um acesso mais amplo dos utentes do serviço jurisdicional
às vantagens do procedimento arbitral. Vale a pena conhecê-las mais de perto.
2.2.2.1.1 O Direito alemão
No Direito alemão, a partir da incorporação pelo Código de Processo Civil da Lei de Arbitragem
de 1˚ de Janeiro de 1998126, provavelmente influenciado pelos critérios de arbitrabilidade
previstos na Lei Federal Suíça sobre Direito Internacional Privado, de 1987, que regula
arbitragem internacional, restou à patrimonialidade do direito discutido representar, única e
isoladamente, restrição à arbitrabilidade de um litígio. Diz o art. 1.030 do Código de Processo
Civil alemão: “qualquer causa que envolver interesse econômico (vermögensrechtlicher
Anspruch) poderá ser matéria de convenção de arbitragem” [tradução nossa]. O critério de
arbitrabilidade da legislação alemã permite que bens suscetíveis de avaliação monetária sejam
trazidos à apreciação do tribunal arbitral, possa o seu titular dele dispor, ou não.
A respeito do conceito de interesse econômico, Bockstiegel, Kröll e Nacimiento (2008, p. 116117) esclarecem que
Ações que envolvam interesse econômico não se restringem àquelas em que se pretenda
o pagamento de determinada quantia em dinheiro, mas também ações declaratórias e
constitutivas. Ações inibitórias e revocatórias estão também contempladas pelo
interesse econômico, se elas forem propostas no intuito de proteger interesse
econômico. [tradução nossa]
Somente na falta do critério de patrimonialidade na relação jurídica que se pretende por à
apreciação do juízo arbitral é que se fará uso do critério da transigibilidade, consoante adverte o
126
O texto alemão anterior à reforma, segundo informam Bockstiegel, Kröll e Nacimiento (2008, p. 114) e Lörcher
(1998, p. 87), vinculava a arbitralidade à transigibilidade.
65
n˚ 1 do art. 1030 do Código de Processo Civil alemão: “A convenção arbitral que tenha como
objeto causas que não envolvam interesse econômico produzirão efeitos legais se as partes
possuírem poderes de transação” [tradução nossa].
Observe-se que, embora o direito positivo tedesco tenha colocado impedimento à arbitrabilidade
dos direitos não-patrimoniais, a arbitrabilidade de direitos indisponíveis representa passo
gigantesco em direção à ampliação do acesso à tutela arbitral, na medida em que favorece a
extensão objetiva da apreciação das contendas.
Não obstante tenha o ordenamento alemão estabelecido como regra geral a patrimonialidade da
situação jurídica, a lei que renovou a regulação do sistema arbitral preservou os sistemas
especiais estabelecidos fora do 10º livro do Código de Processo Civil alemão, dentre os quais
merece destaque algumas matérias de Direito Trabalhista (SANGIOVANNI, 2006, p. 235).
O sistema alemão, inaugurado em 1998, foi repetido na Áustria a partir de 1º de julho 2006, com
a reforma da Lei de Arbitragem desse país. Com efeito, essa particularidade é um mais um forte
indício de que os clássicos critérios de arbitrabilidade estão prestes a ruir.
2.2.2.1.2 A arbitragem na Itália e as particularidades da reforma societária
A Itália, com o objetivo de tornar mais eficiente a legislação societária, promoveu modificações
nos critérios de arbitrabilidade restritas à matéria. Em 3 de outubro de 2001, o parlamento
italiano promulgou a lei n˚ 366, delegando ao Poder Executivo a possibilidade de regulamentar
matéria de Direito Societário127. O n˚ 3 do art. 12 dessa Lei previu norma interessante a respeito
da arbitrabilidade objetiva:
127
Art. 1º, n˚ 1: “Fica delegado o Governo a adotar, dentro de um ano da entrada em vigor da presente Lei, um ou
mais decretos legislativos que versem sobre a reforma orgânica da disciplina das sociedades de capital e
cooperativas, a disciplina dos ilícitos penais e administrativos concernentes à sociedade comercial, bem como novas
normas de processo voltadas à definição do procedimento na matéria de que trata o art. 12 desta Lei”. [tradução
nossa]
66
O Governo poderá também prever a possibilidade que o estatuto da sociedade
comercial contenha cláusula compromissória, em derrogação aos arts. 806 e 808 do
código de processo civil, para todas ou algumas das controvérsias societárias de que
fala o n˚ 1. No caso que a controvérsia verse sobre questão que não possa ser objeto de
transação, a cláusula compromissória deverá se referir à arbitragem de direito, ficando
excluído o juízo de equidade, e o laudo será impugnável também por violação de Lei.
[tradução nossa]
Quando a norma obriga a adoção da arbitragem de direito nos casos em que a cláusula
compromissória versa sobre matéria intransigível128, viabiliza a interpretação de que ela admite a
possibilidade de sua apreciação em procedimento arbitral129 (ZUCCONI GALLI FONSECA,
2005, p. 485).
Apesar da clara redação nesse sentido, na Itália se estabeleceu no ambiente doutrinário um rico
debate acerca da extensão da arbitrabilidade em matéria societária. Com efeito, a timidez do
legislador delegado (Decreto Legislativo n˚ 5 de 2003130), no que toca ao exercício do poder de
128
À época da reforma societária, o Código de Processo Civil italiano ainda tinha como critério de arbitrabilidade a
transigibilidade, embora, como já se fez menção neste trabalho, o código civil daquele país definisse como
transigíveis as matérias relacionadas a direitos indisponíveis.
129
130
Em sentido contrário, Ruffini, 2004, p. 503.
“Art. 34. Objeto e efeito da cláusula compromissória estatária. 1. O ato constitutivo da sociedade, à exceção
daquelas que fazem recurso ao mercado de capital de risco, nos termos da norma do artigo 2325-bis do código civil,
pode, mediante cláusula compromissória, prever a submissão a árbitros de algumas ou de todas as controvérsias
emergentes entre os sócios e entre os sócios e a sociedade que tenham por objeto direitos disponíveis relacionados à
atividade social. 2. A cláusula deverá prever o número e o modo de nomeação dos árbitros, conferindo, em todos os
casos, sob pena de nulidade, o poder de nomeação a árbitros que sejam sujeitos estranhos à sociedade. Quando este
poder não for exercitado, a nomeação será solicitada ao presidente do tribunal do lugar da sede da sociedade. 3. A
cláusula vincula a sociedade e todos os seus sócios, inclusive aqueles cuja qualidade de sócio é objeto da
controvérsia. 4. Os atos constitutivos podem prever que a cláusula tenha como objeto controvérsia promovida pelos
administradores, gerentes e diretores ou que envolva conflito entre eles e, neste caso, a ela ficam vinculados a partir
da aceitação do encargo. 5. Não pode ser objeto de cláusula compromissória a controvérsia para a qual a Lei preveja
a intervenção obrigatória do ministério público. 6. A alteração do ato constitutivo, que introduza ou suprima cláusula
compromissória, deve ser aprovada pelos sócios que representem, pelo menos, dois terços do capital social. Os
sócios anuentes ou divergentes podem, no prazo de noventa dias seguintes à alteração, exercitar o direito de retirada.
Art. 35. Disciplina inderrogável do procedimento arbitral. 1. A demanda de arbitragem proposta pela sociedade ou
contra ela será protocolizada no registro da empresa e será acessível aos sócios. 2. No procedimento arbitral levado a
efeito a partir da cláusula compromissória de que trata o art. 34, a intervenção de terceiros nos termos do art. 105 do
código de processo civil, bem como a intervenção de sócios nos termos dos arts. 106 e 107 do mesmo código será
67
derrogação dos critérios de arbitrabilidade dispostos no Código de Processo Civil italiano, assim
como uma elaboração infeliz do texto (RUFFINI, 2004, p. 501-502), deu lugar a um largo debate
doutrinário acerca do alcance real da quebra de conexão entre transigibilidade do direito e
arbitrabilidade.
Edoardo Flavio Ricci, de um lado, deduziu da normativa delegada três categorias de litígios,
passíveis de submissão à tutela arbitral: as que tenham por objeto a validade da deliberação de
assembleia; aquelas em que se envolvam os administradores, gerentes e diretores e aquelas
relativas a direitos disponíveis, decorrentes da relação entre os sócios ou entre os sócios e a
sociedade131. Em relação à primeira, o autor conclui que não há como negar que se trata de
arbitrabilidade de matéria indisponível, tendo em consideração que a normativa abriga tanto a
impugnação à nulidade132, quanto à anulabilidade (2003, p. 522). A arbitrabilidade de questões
indisponíveis se repetiria na segunda hipótese, no seu entendimento, já que o n˚ 4 do art. 34 do
decreto legislativo n˚ 5 de 17 de janeiro de 2003 silencia quanto à necessidade do requisito de
disponibilidade da controvérsia que envolva administradores, gerentes e diretores. Para Ricci,
portanto, se o legislador exigiu a disponibilidade para a terceira hipótese e não o fez em relação à
admitida até a primeira audiência de conciliação. Se aplica o art. 820, n˚ 2, do código de processo civil. 3. No
procedimento arbitral não se aplica o art. 819, número 1, do código de processo civil; todavia, o laudo é sempre
impugnável, também em derrogação ao quanto previsto para a arbitragem internacional do art. 838 do código de
processo civil, à norma do art. 829, número 1, e 831 do mesmo código. 4. As disposições do laudo são vinculantes à
sociedade. 5. A submissão à arbitragem, também não ritual, de uma controvérsia não faz precluir o recurso à tutela
cautelar da norma do art. 669-quinquies do código de processo civil, mas se a cláusula compromissória permite a
submissão à arbitragem de controvérsia que tenha por objeto a validade de deliberação assemblear, aos árbitros
compete sempre o poder, mediante decisão interlocutória irrecorrível, de suspender a eficácia da deliberação. Art.
36. Decisão de direito. 1. Também se a cláusula compromissória autoriza os árbitros a decidirem por juízo de
equidade, com laudo não impugnável, os árbitros deverão decidir segundo direito, com laudo impugnável conforme
a norma do art. 829, n˚ 2, do código de processo civil, quando, para decidir, tenham de conhecer de questão não
arbitrável ou quando o objeto do juízo seja constituída da validade de deliberação assemblear. 2. A presente
disposição se aplica também ao laudo proviente de uma arbitragem internacional.”
131
João Bosco Lee relata que, na Argentina, são inarbitráveis os litígios relativos a controvérsias entre os sócios e a
sociedade, à qualidade dos sócios e à exclusão de dirigente da sociedade (2000, p. 355).
132
Argumenta o autor que a nulidade da deliberação de assembleia se trata de situação jurídica indisponível já que
as partes não podem solucioná-la mediante uma composição negocial (2003, p. 522). Esse argumento, todavia, não é
suficiente para caracterizar uma situação jurídica indisponível; em verdade, a irrenunciabilidade da nulidade de
deliberação de assembleia deriva da eficácia coletiva – além dos problemas decorrentes desse fato – da prevalência
do defeito jurídico identificado no ato mencionado.
68
segunda, significa dizer que admitiu para esta o acesso ao juízo arbitral, independentemente da
natureza do litígio. Estaria, portanto, na Itália, embora em um âmbito substantivo restrito,
relativizada a regra segundo a qual a arbitragem poderá ser levada a efeito apenas em situações
que pretendam solucionar litígios de caráter transigível.
Adicione-se a essas informações o fato de o mencionado decreto legislativo trazer enunciado
proibitivo da arbitrabilidade de questões em que a intervenção do Ministério Público seja
obrigatória, o que, mais uma vez, inclina o intérprete a acreditar que o legislador delegado teria,
de fato, se utilizado dos poderes de derrogação conferidos pela legge 366. Ainda que boa parte
da doutrina italiana133 se posicione no sentido de que a citada norma representa um exemplo de
indisponibilidade da situação jurídica, deve-se reconhecer que é válida a interpretação que
sustenta, especificamente em matéria societária, a arbitrabilidade de situações jurídicas
indisponíveis em que não seja obrigatória a intervenção do Ministério Público, com exceção da
hipótese prevista no n˚ 1 do art. 34, leitura originariamente levada a efeito por Elio Fazzalari134
(2002, p. 444). Os indícios, a bem da verdade, são vistosos para que se admita a arbitrabilidade
de objeto indisponível em matéria societária: uma norma com poderes de derrogação de regra
geral (estatuída no Código de Processo Civil Italiano), em vez de silenciar, evitando, assim, por
em dúvida a arbitrabilidade de matéria indisponível, alerta aos seus destinatários a
impossibilidade de se estabelecer juízo arbitral nas ocasiões em que não seja obrigatória a
presença do Ministério Público. Ao nosso aviso, isto significa que o legislador delegado,
utilizando-se de seus poderes de derrogação, admitiu a arbitrabilidade de direitos indisponíveis
em matéria societária, impondo, entretanto, um limite: a não intervenção obrigatória do
133
Luisio, por exemplo, entende que é vedada em matéria societária a arbitrabilidade de causas em que seja
obrigatória a presença do Ministério Público, bem como aquelas que versem sobre direitos indisponíveis (2006, p.
566).
134
Embora o autor adote essa postura interpretativa, é necessário pontuar que a sua redação indica uma desconfiança
quanto à compatibilidade constitucional da inovação legislativa, medida que, no seu entendimento, vulnera o sistema
e a experiência da arbitragem, e dá vida a qualquer outra coisa, “que parece evocar um novo fantasma de jurisdição
especial” (2002, p. 444) [tradução nossa]. Em artigo mais recente, o autor sustenta que a natureza não jurisdicional
da arbitragem está ancorada no art. 102 da Constituição italiana, que, no seu entender, reserva aos magistrados o
exercício da função jurisdicional (2004, p. 662).
69
Ministério Público. Esse posicionamento, entretanto, não é adotado por boa parte da doutrina
italiana.
Vejamos: Ruffini acredita que o legislador delegado não teria, em nenhuma hipótese,
flexibilizado os critérios de arbitrabilidade previstos no Código de Processo Civil italiano (2004,
p. 505), especialmente porque, conforme a sua leitura, não se deve presumir do silêncio da
legislação consequências dessa magnitude, já que a lei delegante dava a faculdade (e não a
obrigação) ao legislador delegado de derrogar a normativa disposta na codificação (2004, p.
502). Chiarloni argumentou que o legislador delegado não utilizou os poderes conferidos pela
normativa delegante135 (2004, p. 127). O autor defende que a redação da nova normativa
societária admite, no máximo, a interpretação da possibilidade de cognição incidenter tantum de
matéria indisponível em procedimento arbitral, consoante o art. 819 do Código de Processo Civil
italiano. Bove também se posiciona nessa linha, constatando, na redação do decreto legislativo, a
inexistência de alteração nos critérios de arbitrabilidade (2008, p. 935). Zucconi Galli Fonseca,
por sua vez, rejeita a interpretação que admite a arbitrabilidade de situações jurídicas
indisponíveis tendo em vista a redação do número 1 do art. 34 do decreto legislativo, que remete
à disponibilidade dos direitos nos litígios entre sócios e entre sócios e a sociedade (2005, p. 463).
A respeito da referência da norma ao impedimento de arbitrabilidade em relação a questões
envolvendo a intervenção obrigatória do ministério público, o autor entende que se trata de
menção exemplificativa.
A jurisprudência italiana, entretanto, conforme notícia trazida por Gian Franco Ricci, hesitou
entre os argumentos provenientes da polêmica instaurada: algumas decisões se inclinaram por
obstaculizar o acesso à arbitragem de matéria que orbitasse interesse social (da sociedade como
um todo) ou de terceiros (2007, p. 763); outras concluíram exatamente o inverso: “a impugnação
decisão em assembleia de sociedade de capital constitui matéria convencionável, ainda que
regulada por norma de interesse geral” (2007, p. 765) [tradução nossa].
135
Nesse sentido, também, RUFFINI, 2004, p. 501.
70
Mais tarde, a arbitrabilidade, ainda na Itália, de situações jurídicas indisponíveis por muito pouco
não seria confirmada pelo decreto legislativo n˚ 40 de 2006, que conferiu nova redação ao art.
806 do Código de Processo italiano: “As partes podem submeter a árbitros controvérsia que não
tenha por objeto direitos indisponíveis, salvo expressa proibição de Lei” [tradução nossa]136.
Com respeito à parte final do dispositivo, reconhece Bove que, embora não seja possível fixar
com clareza o seu conteúdo, é certo que se trata de um outro princípio geral de arbitrabilidade
(BOVE, 2007).
Perdeu o legislador delegado uma excelente oportunidade para quitar as dúvidas existentes137
com respeito à arbitrabilidade de direitos indisponíveis na Itália. Ainda assim, ao nosso aviso, a
envergadura da hesitação na produção legislativa em comento dá espaço a discussões acerca da
possibilidade de aplicação de uma interpretação extensiva do dispositivo138 e, portanto, à
verificação uma abertura do ordenamento italiano para a adoção de novos critérios de
arbitrabilidade139, o que, nesse sentido, reforça a tese de que a suposta conexão entre
disponibilidade do direito e arbitrabilidade é, antes de tudo, mera opção de política legislativa. A
regra geral da arbitrabilidade, assim, continua a ser a disponibilidade dos direitos; entretanto, é
possível sustentar que legislação específica poderá dispor diferentemente, permitindo, cada vez
mais, maior abrangência de matérias – e, portanto, de demandas – cujo acesso à arbitragem é
atualmente obstaculizado. A legislação societária é apenas uma das primeiras a integrar esse rol
excepcional.
136
Reforça essa ideia o comentário de Elena Zucconi Galli Fonseca, quando lembra que a lei delegante n˚ 80/05
estabeleceu no seu art. 1, n˚ 3, alínea b, que deveria ser a disponibilidade do objeto o único e suficiente pressuposto
da arbitragem, “salvo diversa disposição de lei” (2007, p. 1050), e, como demonstra Ruffini (2006, p. 54), o
mencionado texto permitiria a interpretação em favor da arbitrabilidade de situações jurídicas indisponíveis no
direito italiano.
137
Referimo-nos aqui, especialmente, às ideias contrapostas entre Ruffini e E. F. Ricci.
138
Outra interpretação possível é a de que lei superveniente poderá restringir o critério de arbitrabilidade previsto no
art. 806 (ZUCCONI GALLI FONSECA, 2007, p. 1157; BOVE, 2007). É bem verdade que não foi encontrada
referência na doutrina italiana que defenda a possibilidade de arbitrabilidade de direitos indisponíveis, com o que
reconhecemos que a interpretação ampliativa referenciada, embora útil, não tem se mostrado viável na Itália.
139
Luisio adverte que a arbitragem de direito indisponível, no sistema italiano, requer uma expressa previsão
normativa, embora o fenômeno ainda não tenha sido implementado naquele ordenamento jurídico (2007, p. 356).
71
Como se vê, a normativa italiana vem evoluindo no sentido de ampliar, cada vez mais, o espaço
objetivo da arbitrabilidade. É natural que, no processo de flexibilização desses critérios, exista
por parte da doutrina e da jurisprudência uma luta de manifestações favoráveis e contrárias à
tendência legislativa. Contudo, não se pode negar que, uma vez tendo a polêmica alcançado
grande relevo no cenário acadêmico e forense, a flexibilização dos critérios de arbitrabilidade na
Itália é cada vez mais uma realidade do que uma possibilidade.
2.2.2.2 O artigo 852 do código civil: derrogação do sistema de arbitrabilidade da lei
9.307/1996?
O Código Civil brasileiro vigente, com entrada em vigor a partir de 11 de janeiro de 2003, trouxe
em seu art. 852 a seguinte redação: “É vedado compromisso para solução de questões de estado,
de direito pessoal de família e de outras que não tenham caráter estritamente patrimonial”. O
dispositivo seguinte, por sua vez, esclareceu que “admite-se nos contratos a cláusula
compromissória, para resolver divergências mediante juízo arbitral, na forma estabelecida em
Lei especial”.
A forma como foi publicada a redação da matéria no Código Civil suscita dúvidas quanto à
manutenção do sistema de arbitrabilidade presente na lei 9.307/96, que admite ser sujeito a
procedimento arbitral controvérsias de caráter patrimonial e disponível. No que respeita
exclusivamente à cláusula compromissória, parece que os critérios de arbitrabilidade estariam
conservados, já que o dispositivo expressamente remete ao sistema geral. O problema
hermenêutico, entretanto, aparece quanto ao compromisso arbitral, firmado, normalmente, a
posteriori, quando o vínculo obrigacional já se aperfeiçoou.
Diz a letra da lei que o compromisso arbitral é vedado para a solução de questões de estado,
direitos de família e outras que não tenham caráter estritamente patrimonial. Ricci, a partir da
leitura do dispositivo, sugere que, quanto ao compromisso, o Código Civil teria derrogado o
sistema geral de arbitrabilidade no direito brasileiro, passando a admitir a sujeição de situações
jurídicas indisponíveis à arbitragem (2007, p. 411). Na doutrina brasileira, Scavone Jr.
acompanha o seu raciocínio (2008, p. 27). Tepedino, Barboza e Moraes, embora não enfrentem
72
diretamente a questão, comentando o art. 852, concluem “que apenas situações subjetivas
estritamente patrimoniais podem ser resolvidas por meio do compromisso” (2006, p. 679). Já
José Augusto Delgado extrai da redação que “Os direitos indisponíveis não poderão, em face da
regra acima [o art. 852 do Código Civil], ser submetidos ao compromisso” (2004, p. 363).
A postura interpretativa, diz o autor italiano, é mais questão de coragem do que de técnica
jurídica (2007, p. 411). Preferimos, entretanto, pensar que se trata muito mais de um
posicionamento ideológico de fundo dogmático-moral, que ainda desconfia da figura do árbitro
para solucionar problemas relacionados com a família, com a vida, com a sexualidade, e,
portanto receia que um julgador desvinculado do jogo político do Estado seja demasiado
independente, e com isto se habilite a alterar os códigos comportamentais da sociedade.
O intérprete brasileiro possui todos os instrumentos à mão para considerar superada a regra que
limita o âmbito objetivo de aplicação do compromisso arbitral. O nosso entendimento é que o
conteúdo da norma, de fato, autoriza a arbitrabilidade de situações jurídicas indisponíveis que
possuam conteúdo patrimonial. Com efeito, é bem provável que, o legislador brasileiro, atento às
modificações no cenário internacional, cuja evolução vem sendo construída, como se viu, ao
longo das últimas duas décadas, tenha desejado incorporar ao sistema de arbitrabilidade nacional
as inovações observadas no Direito alemão, suíço, austríaco, norte-americano, britânico... Longe,
entretanto, de buscar a mens legislatoris, deve o intérprete buscar o significado das regras e dos
princípios conforme melhor contribuam para cumprir com o objetivo do Direito, que é, afinal,
pacificar as relações sociais. Parece-nos que, no quesito específico da arbitrabilidade, essa
finalidade será atingida com maior eficiência se for possível tutelar toda e qualquer qualidade de
direitos através de vias alternativas de solução de controvérsias.
2.2.2.3 A arbitrabilidade das “causas impossíveis”
No início deste trabalho se disse que a arbitragem historicamente possui forte vínculo com as
questões que envolvem o comércio internacional. No entanto, modernamente a utilização do
instituto tem se espalhado por outras áreas do Direito, abrangendo, por vezes, disciplinas
73
aparentemente incompatíveis com o instituto. Em realidade, os limites de arbitrabilidade
impostos pelas legislações conduziram um desenvolvimento da arbitragem objetivamente
restrito. Esse panorama, entretanto, vem sendo paulatinamente modificado, levando-se em conta
que temas como Direito do Trabalho, legislação anti-truste, atos de império em contratos
públicos e até conflitos envolvendo propriedade intelectual tem sido recorrentemente objeto de
discussões concernentes à possibilidade de sua apreciação por juízo arbitral.
No intuito de verificar a arbitrabilidade dos danos ambientais, é de fundamental importância
conhecer, ainda que de forma breve, como temas que guardam alguma semelhança com a
questão ambiental – presença do Estado na controvérsia, direitos coletivos, aparentes
indisponibilidade das situações jurídicas – saíram da sombra da inarbitrabilidade e passaram a
ser objeto de apreciação de tribunais arbitrais.
2.2.2.3.1 Arbitragem e o Estado como parte: avanços no Brasil e em Portugal
O Estado, quando realiza atos de gestão, está autorizado a se submeter à tutela arbitral. É esse o
entendimento que tem seguido fortes vozes da jurisprudência140 e doutrina brasileiras141, e,
depois de um certo esforço, também o Tribunal de Contas da União (ANDRADE, p. 10). Para
Carmona, o fundamento da possibilidade reside no fato de que “quando o Estado atua fora de sua
condição de entidade pública, praticando atos de natureza privada – onde poderia ser substituído
por um particular na relação jurídica negocial – não se pode pretender aplicáveis as normas
próprias dos contratos administrativos” (2004, p. 62)142. A arbitrabilidade das relações
contratuais envolvendo o Estado estaria, portanto, adstrita àquelas relações jurídicas em que o
Estado se equipara a um particular, critério que remete diretamente à distinção proposta pela
140
Entre elas, o caso Lage, antigo julgamento do Supremo Tribunal Federal no AI n˚ 52.181-GB. Ademais, TJDF,
Conselho Especial, MS n˚ 1998002003066-9, j. em 18.5.1999; TAPR, 7ª Câmara Cível, AI n˚ 137-401-6, j. em
11.02.2004; STJ, 2ª Turma, Resp n˚ 612.439.
141
Carmona (2004, p. 62); Valença Filho (2007, p. 453); Scavone Jr. (p. 45); Garcez (p. 74).
142
Também assim Pedro Batista Martins (2001b, p. 331).
74
doutrina administrativista entre os contratos “tipicamente administrativos” e “contratos da
administração”143.
Nesse sentido, acena para a possibilidade de aceitação pelo Estado das condições e
procedimentos estabelecidos por organismos multilaterais – dentre os quais, normalmente, está
inserida a arbitragem como mecanismo de solução de controvérsias - em contratos que envolvam
o empréstimo de verba para investimento público o art. 42, §5º da lei 8.666/93, e, mais
expressamente, o art. 11 do decreto-lei 1.312/1974 remete à solução de controvérsias à via
arbitral. Paralelamente, a jurisprudência brasileira, liderada pelo julgamento no Recurso Especial
n˚ 612.439, achou no caráter privado das atividades desenvolvidas pelas empresas públicas e
pelas sociedades de economia mista o fundamento para admitir a sua arbitrabilidade subjetiva.
O problema da arbitrabilidade subjetiva do Estado guarda conexão com uma equivocada relação
que se costuma estabelecer entre indisponibilidade do interesse público e disponibilidade do
patrimônio estatal, como se sempre que o patrimônio do Estado fosse posto à disposição, o
interesse público estaria sendo, automaticamente, violado. Como já ficou registrado
anteriormente, esse entendimento não merece nossas homenagens144.
Por outro lado, a Lei de Arbitragem brasileira não estabelece nenhuma limitação para que o
Estado seja signatário de convenção de arbitragem, mesmo porque ele é também credor e
devedor de direitos patrimoniais disponíveis. O impedimento da presença do Estado em
procedimento arbitral teria, também, a ver com a ausência de previsão legal (SCAVONE JR., p.
143
A respeito do assunto, vale a pena suscitar as palavras de Maria Sylvia Zanella di Pietro, para quem, “A
expressão contratos da Administração é utilizada, em sentido amplo, para abranger todos os contratos celebrados
pela Administração Pública, seja sob regime de direito público, seja sob regime de direito privado. E a expressão
contrato administrativo é reservada para designar tão-somente os ajustes que a Administração, nessa qualidade,
celebra com pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, para a consecução de fins públicos, segundo
regime jurídico de direito público” (2004, p. 240).
144
Sobre a questão, vale a pena referir decisão unânime do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em acórdão cujo
voto foi proferido pela desembargadora relatora Nancy Adrighi: “É notória a indisponibilidade do interesse público.
E a possibilidade de questões ou discordâncias contratuais, que não possam ser solucionadas amigavelmente, serem
discutidas por juízo arbitral não afeta dita indisponibilidade. Veja-se que os contratos visam a adaptação e a
ampliação da Estação de Tratamento de Esgotos de Brasília. Este é o fim público almejado. Para sua consecução, há
o fornecimento de diversos bens, prestação de obras civis, serviços de montagens eletromecânicas, pagamento e etc,
conforme pactuado” (BRASIL, 1999).
75
45), o que, em verdade, é objeção sem muito fundamento, já que o remédio para a tão sentida
ausência de “autorização legal” poderia ser extraída dos dispositivos gerais de arbitragem, que,
desde a sua entrada em vigor, em 1996, nunca fizeram nenhuma restrição à participação de ente
público no procedimento arbitral145 (LEMES, 2007, p. 119-120). O debate, entretanto, no Brasil,
perdeu alguma força com a presença da hipótese em diversos diplomas legais. Hoje, no plano do
Direito Administrativo, a discussão que se põe à mesa é a possibilidade de o Estado
convencionar a arbitrabilidade de conflito decorrente do exercício da função administrativa do
Estado (ius imperii). Alguns diplomas na legislação sugerem, efetivamente, que a matéria tem
avançado146 nesse sentido.
A lei 9.478/97 dispõe sobre a política energética nacional e sobre as atividades relacionadas ao
monopólio do petróleo, e, entre outras coisas, institui a Agência Nacional do Petróleo (ANP).
Dois dispositivos específicos apontam para meios alternativos de solução de controvérsias. O art.
43 do diploma previne que o contrato de concessão de exploração, desenvolvimento e produção
de petróleo e gás natural “definirá as regras sobre solução de controvérsias, relacionadas com o
contrato e sua execução, inclusive a conciliação e a arbitragem internacional”. Norma
semelhante se verifica do inc. XV do art. 93 da lei 9.472/97 (Lei de Telecomunicações147),
embora, nessa ocasião, não se faça menção direta à arbitragem148; do art. 23-A da lei 8.987/95
145
Em sentido contrário, Sérgio de Andréa Ferreira, para quem, com fundamento em raciocínio desenvolvido por
Pontes de Miranda, a capacidade de contratar de que fala a lei deve ser específica quanto ao objeto posto à
apreciação dos árbitros (2002, p. 43).
146
É interessante anotar que os Estados do Rio de Janeiro e São Paulo se anteciparam à legislação federal no que
concerne à previsão da arbitrabilidade subjetiva do Estado, quando, através das Leis 1.481/1989 e 7.535/1982,
respectivamente, estabeleceram dispositivos que permitiam a solução de controvérsias através do juízo arbitral e de
vias amigáveis (FERREIRA, p. 39).
147
Pedro Batista Martins salienta que a Anatel restringiu o recurso à arbitragem em três hipóteses: “: (a) violação
dos direitos da operadora no que toca à proteção de sua situação econômica; (b) revisão de tarifas, e (c) fixação das
indenizações devidas quando da extinção do contrato, inclusive quanto aos bens reversíveis: (2009).
148
“Art. 93. O contrato de concessão indicará: XV - o foro e o modo para solução extrajudicial das divergências
contratuais”.
76
(Lei de Concessão e Permissão da Prestação dos Serviços Públicos)149; do art. 35, inc. XVI da lei
10.233/2001150 (Sistema de Transporte Aquaviário e Terrestre); do inc. III do art. 11 da lei
11.079/2004151 (Lei de Parcerias Público-Privadas) e dos §§5º e 6º do art. 4º da lei 10.848/2002
(Mercado Atacadista de Energia Elétrica)152 . Veja-se que aqui não se está lidando com matérias
envolvendo situações em que o Estado atua simplesmente na qualidade de particular, tendo em
vista que trata o contrato de concessão de delegar aos particulares a prestação do serviço público
a ser usufruído pelos administrados. Portanto, não se pode equiparar a hipótese ora discutida
àquela em que o Estado abre certame licitatório para a compra de material de escritório, por
exemplo. Nessa situação, de fato, não se fazem presentes na relação jurídica contratual, com
tanta intensidade, as características relacionadas com a função administrativa do Estado,
contrariamente ao que se observa nos contratos de concessão a que se referem todos os diplomas
legislativos mencionados. Embora, nesse caso, se verifique uma evolução do legislador
brasileiro, em admitir a arbitrabilidade subjetiva do Estado em situações que envolvam o
exercício de atos de império, não se pode daqui extrair que se admitiu, em termos gerais, na
legislação pátria, a arbitrabilidade de litígios de natureza indisponível. Isto porque, quando o
Estado firma contrato de concessão de serviço público, está dispondo da prestação/execução do
serviço e não do serviço em si e de sua qualidade. Ademais, eventual arbitragem que ponha em
149
“O contrato de concessão poderá prever o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas
decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos
termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996”.
150
“Art. 35. O contrato de concessão deverá refletir fielmente as condições do edital e da proposta vencedora e terá
como cláusulas essenciais as relativas a:XVI – regras sobre solução de controvérsias relacionadas com o contrato e
sua execução, inclusive a conciliação e a arbitragem;”
151
“Art. 11. O instrumento convocatório conterá minuta do contrato, indicará expressamente a submissão da
licitação às normas desta Lei e observará, no que couber, os §§ 3o e 4o do art. 15, os arts. 18, 19 e 21 da Lei no 8.987,
de 13 de fevereiro de 1995, podendo ainda prever: III – o emprego dos mecanismos privados de resolução de
disputas, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei no 9.307, de 23
de setembro de 1996, para dirimir conflitos decorrentes ou relacionados ao contrato”.
152
“§ 5o As regras para a resolução das eventuais divergências entre os agentes integrantes da CCEE serão
estabelecidas na convenção de comercialização e em seu estatuto social, que deverão tratar do mecanismo e da
convenção de arbitragem, nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996. § 6o As empresas públicas e as
sociedades de economia mista, suas subsidiárias ou controladas, titulares de concessão, permissão e autorização,
ficam autorizadas a integrar a CCEE e a aderir ao mecanismo e à convenção de arbitragem previstos no § 5o deste
artigo.”
77
questão controvérsia relacionada com concessões de serviço público versará sobre a observância
das obrigações pactuadas pelas partes, jamais sobre as posturas, condutas ou atos praticados pelo
Estado no exercício de seu poder de império, ligado às chamadas “cláusulas exorbitantes”
(LEMES, 2007, p. 135). Infelizmente, ainda no panorama vigente, não é possível que um árbitro
determine se o Estado atuou bem ou mal. Poderá, entretanto, sanar controvérsias em contratos
administrativos stricto sensu, em primeiro lugar, porque não há nada que vede a presença do
Estado em procedimentos arbitrais, e, em segundo, porque não há nada de indisponível na
relação jurídica que tem por objeto a delegação da execução de serviços públicos e a
exigibilidade do cumprimento das obrigações pactuadas nessa oportunidade.
Norma da lei 9.748/97 chama atenção. Trata-se do seu art. 20, que assim dispõe: “O regimento
interno da Agência Nacional do Petróleo disporá sobre os procedimentos a serem adotados para a
solução de conflitos entre agentes econômicos, e entre estes e usuários e consumidores, com
ênfase na conciliação e no arbitramento153”. Com efeito, dentre os conflitos que podem surgir
entre agentes econômicos e usuários e consumidores, estão aqueles relacionados com a questão
ambiental, já que “proteger o meio ambiente e promover a conservação de energia” é um dos
objetivos da política enérgica nacional, estabelecidos no art. 1º deste mesmo diploma normativo.
Pois bem. O regimento interno da agência reguladora, aprovado pela portaria MME (Ministério
de Minas e Energia) Nº 215, de 1º de julho de 1998, determina o seguinte:
Art. 33. Para os fins previstos no art. 20 da lei nº 9.478, de 1997, a ANP, mediante
conciliação e arbitramento, atuará de forma a: I - dirimir eventuais divergências entre os
agentes econômicos e entre estes e usuários e consumidores; II - resolver conflitos
decorrentes das atividades de regulamentação, contratação e fiscalização no âmbito
geral da Indústria do Petróleo e da Distribuição e Revenda de derivados de petróleo e
álcool combustível; III - proferir decisão final, com força terminativa, caso não haja
153
Não se confunda o pacto de arbitramento, atividade de solução de puras questões de fato (PONTES DE
MIRANDA, 1977, p. 228), com arbitragem, método alternativo de solução de controvérsias que pressupõe o
exercício da função jurisdicional. A redação do art. 33 do regimento interno da ANP, contudo, menciona “decisão
com força terminativa”, o que, a priori, nos parece expressão que se compatibiliza melhor com arbitragem do que
com arbitramento. Tibúrcio e Medeiros estudaram com mais profundidade o dispositivo e chegaram à conclusão de
que o método de solução de conflitos proposto na norma não se confunde com a arbitragem, mas se trata de um
“procedimento de solução de conflitos com características próprias, que se distingue da arbitragem” (2005, p. 59).
78
acordo entre as partes em conflito; IV - utilizar os casos já mediados pela Agência
como precedentes para novas decisões e como subsídios para a eventual
regulamentação do conflito resolvido.
Cogita-se, portanto, a possibilidade de dirimir conflitos de natureza ambiental no cotidiano da
agência reguladora, promovendo-se, assim, conciliação e arbitramento na área. Aqui,
diferentemente, do que se coloca relativamente aos contratos de concessão, existiria a
possibilidade de a autarquia promover a transação de direitos indisponíveis. Estaria a legislação
específica colocando essa possibilidade? Estudo aprofundado de campo nas controvérsias
solucionadas pela ANP sugeriria, pelo menos, algum indício de que a resposta ao
questionamento é viável. Desde já, entretanto, pode-se afirmar que a legislação potencialemente
admite tal possibilidade; resta saber, entretanto, se controvérsias de natureza ambiental (cabíveis
no inc. II do art. 23 do regimento interno) tem sido submetidas às instâncias de conciliação e
arbitramento da Agência e, em segundo, qual grau de eficácia se tem dado a esses instrumentos.
Em Portugal, o tema da arbitrabilidade dos atos de império do Estado já há algum tempo não é
novidade. Mas, entre os lusitanos, o avanço foi maior. Robin de Andrade (2009, p. 17-18) e
Esquível (2004, p. 192) informam que, naquele país, a partir da lei 15/2002, de 22 de Fevereiro,
que aprovou o Código de Processo nos Tribunais Administrativos, especialmente do que consta
de seus arts. 180 e 185, passou-se a admitir a arbitrabilidade dos atos administrativos de império
(“actos administrativos relativos à respectiva execução”) (art. 180, 1, a), bem como aqueles “que
possam ser revogados sem fundamento na sua invalidade” (art. 180, 1, c). Assim, desde então, a
legalidade dos atos praticados pela administração pública, relativamente à execução dos
contratos, em Portugal, passou a ser livremente objeto de convenção de arbitragem. O argumento
de que o poder de império se traduz em uma situação jurídica indisponível (CORREIA, 1995, p.
132), ao nosso aviso, nesse caso, teria o potencial de causar uma verdadeira ruptura no sistema
português geral de arbitrabilidade , já que, bem vistas as circunstâncias, se está permitindo,
diante do teor dos arts. 180 do Código português de Processo nos Tribunais Administrativos, um
paralelismo: a regra geral de inarbitrabilidade remete à indisponibilidade dos interesses em
litígio; nada obstante, a Lei do Contencioso Administrativo admite a arbitrabilidade de uma
79
situação jurídica indisponível, tal é o poder de império para a prática de atos administrativos
stricto sensu154.
É bem provável, se seguirmos a linha argumentativa de Correia, admitirmos que o sistema
português vem endossando a arbitrabilidade de situações jurídicas indisponíveis. Aqui, tal como
no caso da reforma societária na Itália, o “vazamento” aparece em uma área específica do direito
material. Nada nos faz crer que será possível repará-lo. Ao contrário, como a essa altura já se
pode perceber, a tendência aponta para a sua expansão.
Uma última informação a respeito do tema: a doutrina italiana vem defendendo, após a reforma
do Código de Processo Civil, que abrangeu também o sistema do Direito de Arbitragem, em face
do art. 808-bis do mencionado diploma normativo, a arbitrabilidade de controvérsias
relacionadas com a prestação de serviços públicos (VERDE, 2007, p. 11), os quais, sabemos,
eventualmente podem remeter a situações jurídicas de caráter indisponível.
Duas importantes questões merecem ser destacadas dessas considerações: a primeira diz respeito
à já difundida admissibilidade da submissão do Estado à decisão arbitral, a chamada
arbitrabilidade subjetiva do Estado, uma vez que se trata de ente com capacidade de contratar; a
segunda questão diz respeito à possibilidade de a arbitragem versar sobre contratos
administrativos stricto sensu, porque, a respeito do cumprimento das obrigações neles pactuadas,
não é possível observar a presença de situações jurídicas indisponíveis. Isso confirma que nem
toda matéria que envolve o interesse público gera necessariamente situações jurídicas
indisponíveis, e, portanto, não é necessariamente inarbitrável. Está, por outro lado, mais do que
claro que o problema da inarbitrabilidade de situações jurídicas indisponíveis titularizadas pela
Administração Pública, assim como em relação às situações jurídicas de modo geral, é uma
questão de política legislativa, que, em Portugal, avançou para dar acesso à solução de
154
Em sentido contrário se posiciona Oliveira: “Ora, se o legislador, decidindo abrir a via arbitral ao controlo da
legalidade de actos administrativos, optou por circunscrevê-la àqueles actos que respeitam à execução de contratos
administrativos (classicamente associados ao exercício de uma margem livre de actuação administrativa) foi por ter
tido ainda em vista o critério geral de arbitrabilidade vigente na nossa ordem jurídica. Desde logo por esta razão se
há-de, pois, reconhecer que a abertura referida, ao invés de significar o afastamento do critério da disponibilidade do
direito, antes veio – porventura inesperadamente – confirmá-lo” (2007, p. 30).
80
controvérsias envolvendo atos de poder de império do Estado através da arbitragem, o que, como
se vê, não é nada anormal.
2.2.2.3.2 Arbitragem em matéria tributária
A área tributária é um campo que contém duas características muito sensíveis para aqueles que
temem a arbitragem: em primeiro lugar, a presença de interesses diretos do Estado, os quais, logo
acima, demonstraram já não ser exatamente um grande problema; em segundo, o frequente
elogio a uma norma pseudo-dogmática e, por conta disto, verdadeiramente mítica, a qual consiste
em defender que os conflitos envolvendo receita pública não podem ser solucionados por um
julgador “descomprometido”, já que é o “interesse público” que se está pondo em risco.
Park (2009, p. 179) já acenou para a resistência de alguns à arbitrabilidade fiscal. Entretanto, o
autor alerta que existem três situações em que arbitrabilidade em matéria tributária tem sido
desenvolvida: controvérsias tributárias emergentes de negócios (por exemplo, em uma situação
de aquisição de uma empresa por outra, a fixação da responsabilidade pelo recolhimento dos
tributos lançados em momento anterior à transação); exigibilidade dupla (ou tripla, ou
quádrupla...) de tributos idênticos por dois ou mais países sobre o mesmo fato gerador
(arbitragens envolvendo conflito entre Estados, no intuito de dirimir questões envolvendo
tratados internacionais em matéria tributária, com o objetivo de verificar qual deles fará jus ao
recolhimento do tributo); questões envolvendo matéria tributária entre investidores estrangeiros e
o Estado receptor, cuja arbitrabilidade é normalmente prevista também em tratados
internacionais e em que o objeto chega a tocar temas como arbitrariedade na imposição do
tributo ou efeito confiscatório da medida adotada pelo ente Público (PARK, p. 179).
É bem verdade que nenhuma das três hipóteses ataca diretamente o núcleo fulcral da
arbitrabilidade da matéria tributária. No primeiro caso, o que se está discutindo, em verdade, é a
responsabilidade civil pelo pagamento dos tributos, que será, perante o fisco, absolutamente
irrelevante. A rigor, não se trata de “litígio com objeto fiscal”, mas, tão somente, “litígio com
incidência fiscal” (OLIVEIRA, p. 45). A segunda contempla matéria internacional envolvendo
81
Estados, cujo acesso aos tribunais arbitrais tem histórico forte, ainda que envolva questões
repelidas pelos critérios de arbitrabilidade do Direito doméstico155. A terceira também apresenta
um conflito internacional, entre Estado e investidor estrangeiro. No que respeita a esse particular,
viu-se, também no tópico anterior, que, o ordenamento brasileiro admite a resolução de conflitos
via arbitragem entre o Estado brasileiro e os organismos internacionais de financiamento. Assim,
embora as informações confirmem a tese de que não existe razão ontológica para a imposição de
obstáculos à arbitrabilidade, é certo não contribuem para que se conclua pela admissibilidade da
arbitrabilidade dos conflitos mais comuns de natureza tributária, em que o Estado discute com o
contribuinte a exigibilidade do crédito tributário, a legalidade do lançamento e o quantum
devido.
Uma notícia, porém, proveniente do Direito interno norte-americano parece sinalizar essa
hipótese. Park refere que a regra 124 do Tribunal Fiscal dos Estados Unidos autoriza o
contribuinte e a Receita Federal (IRS) a submeterem controvérsia à arbitragem, desde que eles
convencionem acerca de cinco aspectos: a) as questões a serem resolvidas; b) a escolha dos
árbitros, ou, ao menos, o procedimento de escolha dos árbitros; c) as condições de pagamento
dos honorários do árbitros; d) a proibição de comunicação ex parte com os árbitros; e) a
vinculação à decisão dos árbitros (PARK, 1994, p. 27). Não se trata, é verdade, de norma
recente. Está-se, contudo, diante de um exemplo real de que a arbitrabilidade de matéria
tributária é viável. Observe-se que, nesse caso, não se está cogitando de litígios entre particulares
envolvendo matéria fiscal, em que o árbitro apenas se dispõe a conhecer de questão tributária,
com a finalidade de solucionar conflito de natureza disponível e patrimonial. Está mais do que
evidente que ao árbitro, mesmo nos ordenamentos jurídicos em que é a ordem pública um
critério de arbitrabilidade, é facultado fazê-lo.
No Brasil, interessante discussão tem sido levantada a respeito da transação tributária, prevista
nos arts. 171 e 172 do Código Tributário Nacional, modalidade de extinção do crédito
155
Youssef comenta que, na Nova Zelândia, a Alta Corte decidiu, em matéria de arbitrabilidade internacional de
normas anti-truste, que a aderência à comunidade internacional e a importância do comércio internacional se
sobrepõem, para esse mister, ao interesse público nacional (2009, p. 56).
82
tributário156. A perplexidade que daí decorre tem fundamento na clássica advertência doutrinária
acerca da indisponibilidade do crédito tributário (GOLDSCHMIDT, 1999, p. 54). Assim, dada à
suposta natureza indisponível da situação jurídica em questão, como, “mediante concessões
mútuas”, alcançar a solução de uma controvérsia? Só há uma saída para o mistério: o crédito
tributário, afinal, não é tão indisponível assim (OLIVEIRA, p. 52). Se a Lei expressamente
autoriza a sua remissão (art. 150, §6º da Constitução Federal), e, expressamente, autoriza a sua
transação mediante a aplicação de um regime de concessões mútuas, bem como outras formas de
disposição (Código Tributário Nacional, arts. 151, inc. VI e 156, inc. II, III, IV, VIII, XI), é
essencial concluir que o crédito tributário, para esse efeito, não é puramente uma situação
jurídica indisponível157. É verdade que a Administração Pública não está autorizada a dispor,
como se fosse um particular, do dinheiro público. Não lhe é permitido, por exemplo, doá-lo a
instituições de caridade158. Por outro lado, goza de certa margem de disposição que a Lei lhe
conferiu, no intuito de administrar a receita pública e racionalizar o cumprimento da obrigação
tributária. É também verdade que a transação tributária depende de superveniência de Lei que a
autorize, cuja produção poderá ser encampada por todos os entes da federação, nos limites de
suas competências de arrecadação. Veja-se, nesse sentido, o teor do parágrafo único do art. 1º do
projeto de lei n˚ 5.082/2009, em tramitação na Câmara dos Deputados: “Em qualquer das
modalidades de transação de que trata esta lei, a Fazenda Nacional poderá, em juízo de
conveniência e oportunidade, obedecidos os dispositivos desta lei, celebrar transação, sempre
que motivadamente entender que atende ao interesse público”. O mencionado projeto regula
156
“Art 171. A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária
celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e conseqüente extinção de
crédito tributário. Art. 172. A lei pode autorizar a autoridade administrativa a conceder, por despacho fundamentado,
remissão total ou parcial do crédito tributário, atendendo: I - à situação econômica do sujeito passivo; II - ao erro ou
ignorância excusáveis do sujeito passivo, quanto a matéria de fato; III - à diminuta importância do crédito tributário;
IV - a considerações de eqüidade, em relação com as características pessoais ou materiais do caso; V - a condições
peculiares a determinada região do território da entidade tributante.”
157
José Souto Maior Borges sugere uma indisponibilidade relativa do crédito tributário, quando identifica no art.
141 Código Tributário Nacional que o crédito tributário só se modifica ou se extingue nos casos nele previstos
(1999, p.69). Se há relatividade na indisponibilidade da dita situação jurídica, é natural concluir que há um núcleo
do qual o Fisco está autorizado, pela própria lei, a dispor.
158
O regime privado de doação em nada corresponde ao sistema de transferência de recursos públicos, em regime de
cooperação mútua, de que trata a Lei 9.790/1999.
83
minuciosamente a matéria, estabelecendo limites e procedimentos para a resolução da
controvérsia tributária via transação.
Ora, se estamos de acordo, que o crédito tributário possui um núcleo de disponibilidade bastante
desenvolvido, a ponto de a legislação admitir a remissão de dívida e a transação tributária, não há
como concluir de modo distinto, senão pela arbitrabilidade da controvérsia tributária, mesmo
entre Estado e contribuinte. Se a Lei autoriza que as partes, “mediante concessões mútuas”,
solucionem a controvérsia tributária, não há como negar que a Administração Pública poderá
optar pela via arbitral para dirimir controvérsias relacionadas ao tema.
Relativamente às contribuições sociais, salienta Raimundo Luiz de Andrade que a Constituição
autorizou expressamente a sua arbitrabilidade, através do art. 114, §§1º e 3º (2007, p. 143-144).
E, se assim é, quais são os elementos distintivos das contribuições sociais dos demais tributos
que permitem ao legislador constitucional admitir a sua arbitrabilidade? Se eles não existem, é
inadmissível, do ponto de vista hermenêutico-analógico, considerar que apenas as contribuições
sociais constituem objeto arbitrável. Tamanha incongruência não pode, sob pena de tornar o
sistema absolutamente ilógico, prosperar. Por isso, se estão as contribuições sociais autorizadas
pela Constituição Federal a formar objeto de convenção de arbitragem, assim também deverá ser
o entendimento sobre toda a matéria tributária.
Está claro, mais uma vez, que não é correto obstaculizar o acesso do Estado à arbitragem sob o
fundamento de que só pode a Administração Pública agir secundum legem, como se fosse
necessário, para cada passo que o Poder Público dá, a elaboração de uma lei específica.
Relativamente à arbitragem, está cada vez mais sacramentada a ideia de que o Estado pode litigar
em juízos arbitrais, sob autorização da normativa geral de arbitragem estabelecida no
ordenamento jurídico brasileiro, a qual não oferece nenhuma vedação, nem sequer subliminar, à
participação do Poder Público em procedimentos arbitrais. O crédito tributário possui um núcleo
verdadeiramente indisponível, na medida em que ao Estado não é facultado doá-lo, comprometêlo, utilizá-lo para fins diversos que não o interesse público. Por outro lado - está claro o anverso
da moeda -, a obrigação tributária possui um núcleo também verdadeiramente disponível, através
do qual se autoriza a sua negociação, modo de pagamento, remissão, e, inclusive, anistia. Não é
84
pelo fato de o bem da vida estar ligado ao interesse público que aparece uma crosta de
indisponibilidade absoluta no seu entorno. As exigências do dia-a-dia, especialmente em matéria
tributária, que guarda estreita conexão com a oscilação econômica, orientam a adoção, pelo
Estado, de mecanismos eficientes que objetivam a realização do crédito tributário – e
inevitavelmente impõe a disponibilização de suas situações jurídicas -, sem o qual, certamente, o
interesse público restaria desassistido.
2.2.2.3.3 O Direito do Trabalho e a arbitragem
A arbitragem em matéria coletiva159 trabalhista160 foi erigida ao patamar constitucional, no
Brasil, a partir da entrada em vigor da Emenda Constitucional n˚ 45/2004, que tratou de
remodelar o art. 114 da Constituição Federal. Na ocasião, o Poder Constuinte delegado definiu,
no §1º do mencionado dispositivo, que “frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger
árbitros”. Ora, da norma em tela é possível extrair uma conclusão e uma pergunta. Primeiro, a
conclusão: se havia alguma dúvida acerca da arbitrabilidade da matéria trabalhista, em virtude da
indisponibilidade das situações jurídicas titularizadas pelo empregado, a Emenda Constitucional
se encarregou de executar o seu réquiem. Em segundo lugar: o silêncio quanto à resolução de
conflitos trabalhistas individuais representa a sua impossibilidade?
A resposta à questão merece um tratamento preliminar, que implica investigar a situação de
(in)disponibilidade das situações jurídicas decorrentes da relação de trabalho, assim como as
variações a que se submete quando ganham uma dimensão coletiva. Nesse sentido, determina o
art. 444 da Consolidação das Leis do Trabalho: “Art. 444 - As relações contratuais de trabalho
159
Rubino-Sammartano adverte que, na Itália, a arbitrabilidade de questões trabalhistas sofre duas limitações: deve
estar prevista no acordo coletivo ou em lei especial e é proibida a não impugnabilidade da sentença arbitral (2002, p.
236). Borghese deixa claro que, também a arbitrabilidade de matéria trabalhista individual, embora há pouco tempo
não admitida, observadas essas duas limitações, atualmente é possível, inclusive no que respeita às relações
trabalhistas com o Estado (2008, p. 8-10).
160
Mesmo antes da entrada em vigor da alteração constitucional, a matéria já tinha algum espaço no ordenamento
jurídico brasileiro, quando o legislador ordinário, ainda em 1989, previu aos trabalhadores o direito de greve, desde
que superadas as etapas de solução de controvérsias (negociação e “recursos da via arbitral”, nos arts. 3º e 7º da Lei
7.783.
85
podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às
disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às
decisões das autoridades competentes”. Embora informe a doutrina que existe resistência
(CARMONA, p. 57-58; SCAVONE JR., p. 39) no tocante à arbitrabilidade de conflitos
individuais de natureza trabalhista, fundada na hipossuficiência do empregado, há, aqui e ali,
alguns sinais de que ela pode ser vencida. É o caso do aresto transcrito:
Juízo arbitral na solução de conflitos trabalhistas. Sentença arbitral. Coisa julgada.
Cumpridas todas as exigências legais, e desde que respeitadas as garantias mínimas
previstas no ordenamento jurídico trabalhista é possível a solução dos conflitos
individuais trabalhistas pela utilização da arbitragem, ainda mais quando assistido o
reclamante pelo sindicato, ou quando houver norma coletiva dispondo a respeito.
Todavia, até que a matéria seja amadurecida no âmbito das relações laborais, entendo,
por enquanto, que a sentença arbitral não pode fazer coisa julgada no processo do
trabalho, devido, principalmente, ao princípio da irrenunciabilidade dos direitos
laborais, dependendo cada caso dos seus contornos fáticos e jurídicos, cabendo ao
magistrado dar-lhe o valor que entender devido, como equivalente jurisdicional de
solução dos conflitos. (TRT/3ª Região. RO 14832/2001, Rel. Juiz Maurílio Brasi, 1ª T.,
j. 25.2.2002, DJMG 8.3.2002).
Para Henrique Damiano, as situações jurídicas advindas da relação de trabalho, em sua grande
maioria, são relativamente indisponíveis, ou seja, comportam um núcleo de disponibilidade, do
que resulta que essas questões poderiam ser submetidas à arbitragem (2002, p. 19). Mais
vanguardista é o entendimento de José Celso Martins, para quem a indisponibilidade das
situações jurídicas decorrentes dos direitos do trabalho se dissolve com o encerramento do
contrato de trabalho, considerando que “toda e qualquer lesão ao direito anteriormente
indisponível e protegido com características de interesse público, será transformada em
indenização de natureza patrimonial”161 (2006, p. 58). De fato, nota-se que o legislador da
matéria processual do trabalho, no Brasil, deu várias162 oportunidades163 para que as partes
161
No mesmo sentido, Pinheiro, 2005, p. 107. Comentando a questão em França, Hanotiau, 2002, p. 226.
162
Cf. Arts. 514, “c”; 625-D; 764; 831; 846; 850; 852-E, todos da Consolidação das Leis do Trabalho.
86
cheguem a um entendimento “por mútuas concessões”. Se é possível transigir164, mesmo fora
dos juízos estatais, sobre questões trabalhistas, não há motivos para que a jurisprudência vede o
acesso à arbitragem. Decisão do Tribunal Superior do Trabalho, em 2005165, vem respaldar a
assertiva:
[...] O juízo arbitral tem plena aplicabilidade na esfera trabalhista porque há direitos
patrimoniais disponíveis no âmbito do direito do trabalho. É que, ao se afirmar,
genericamente, que os direitos trabalhistas constituem direitos patrimoniais
indisponíveis, não se leva em conta que o princípio da irrenunciabilidade de tais direitos
foi, em diversas situações, mitigado pelo legislador. Isso porque, apenas no ato da
contratação ou na vigência de um contrato de trabalho considera-se perfeitamente
válida a tese da indisponibilidade dos direitos trabalhistas, posto que é de se reconhecer
que a desvantagem em que uma das partes se encontra, pode impedi-lo de manifestar
livremente vontade. Após a dissolução do pacto, no entanto, não há que se falar em
vulnerabilidade, hipossuficiência, irrenunciabilidade ou indisponibilidade, na medida
em que empregado não mais está dependente do empregador.
Aparentemente, as vozes que se impõem pela utilização da arbitragem em litígios individuais
trabalhistas já desempenham um papel importante no panorama do Direito brasileiro166. Como se
163
Em decisão liminar recentíssima, nas ADI’s n˚ 2139 e 2160, o Supremo Tribunal Federal determinou a
possibilidade de o demandante prescindir da Comissão de Conciliação para se dirigir diretamente à Justiça do
Trabalho.
164
O raciocínio não tem por fundamento a equiparação entre transigibilidade e arbitrabilidade, o que seria um
equívoco, como já ficou registrado anteriormente; entretanto, reconhece-se que, na tradição civilista brasileira, a
transação pressupõe “mútuas concessões”, e, portanto, disposição de situações jurídicas.
165
Em 2008, a corte repetiu confirmou o entendimento, em voto de lavra do Ministro Ives Gandra Martins:
“ARBITRAGEM POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO PARA SOLUÇÃO DE CONFLITOS TRABALHISTAS
HIPÓTESE FÁTICA DE PRESSÃO PARA RECURSO AO JUÍZO ARBITRAL INTERPRETAÇÃO DA LEI
9.307/96 À LUZ DOS FATOS SÚMULAS 126 E 221 DO TST. 1. A arbitragem (Lei 9.307/96) é passível de
utilização para solução dos conflitos trabalhistas, constituindo, com as comissões de conciliação prévia (CLT, arts.
625-A a 625-H), meios alternativos de composição de conflitos, que desafogam o Judiciário e podem proporcionar
soluções mais satisfatórias do que as impostas pelo Estado-juiz”.
166
Cassio Telles Ferreira Neto divulga estatística do Conselho Arbitral do Estado de São Paulo (CAESP), em artigo
publicado em 2003, a qual aponta que 20% dos litígios levados àquela instituição tinham origem no direito civil,
14% no direito comercial, 5% no direito do consumidor, 1% no direito internacional, ao passo que a matéria
trabalhista respondia por 60% das causas levadas ao tribunal (2003, p. 377).
87
viu, a tese da disponibilidade do quantum indenizatório requerido a posteriori tem sido acolhida
pelo Tribunal Superior do Trabalho, garantindo ao pleiteante o acesso livre aos juízos arbitrais.
Portanto, não há que se inferir, na constitucionalização da arbitragem em matéria coletiva, um
comando constitucional negativo implícito, dirigido a obstar a arbitrabilidade dos litígios
trabalhistas individuais, visto que tal interpretação não encontra nenhum fundamento jurídico em
todo o sistema.
É importante que se esclareça alguns pontos. Em primeiro lugar, a situação jurídica coletiva não
é, obviamente, equivalente à situação jurídica individual, podendo a qualificação quanto à
disponibilidade variar, conforme a vontade do legislador, sem que isso configure nenhuma
incongruência. De um lado, tenho o direito individual à não redução salarial, irrenunciável,
inegociável. De outro, tenho o direito coletivo de negociar a redução de salário de toda a
categoria.
Em segundo lugar, não é a mesma situação jurídica o direito à percepção de horas extras no
momento em que se faz vigente o contrato de trabalho e o seu correspondente indenizatório
pecuniário, quando o contrato se encerrou. No primeiro caso, a situação jurídica é o direito à
percepção de horas extras durante o vínculo de emprego. Não é facultado ao seu titular dele abrir
mão no intuito, por exemplo, de ser mantido no cargo em detrimento de seus colegas. Na
segunda hipótese, a situação jurídica é o direito à indenização em virtude da violação de seu
direito à não percepção de horas extras. O titular já não mantém relação jurídica de natureza
trabalhista com o empregador. A relação jurídica agora tem natureza civil (embora originária de
relação jurídica trabalhista), relativamente à exigibilidade do cumprimento de obrigação
contratual, bem como os prejuízos decorrentes de sua injusta privação. O direito à percepção de
hora extra pelo empregado é situação jurídica indisponível; o direito à indenização pela não
percepção das horas extras no momento devido é uma situação jurídica disponível. Ali, o
legislador precisa proteger o vínculo de emprego, impedindo que o exército de reserva que se
candidata à sua vaga prejudique suas condições de trabalho. Aqui, o credor do montante
indenizatório já não necessita de tanta proteção, sendo, por vezes, de seu próprio interesse dispor
de parte do montante indenizatório a que faz jus, para fruí-lo imediatamente.
88
2.2.2.3.4 Direito da Concorrência, legislação antitruste e arbitragem
Polêmica discussão sobre arbitrabilidade envolve os direitos ligados à normativa de proteção da
concorrência. Trata-se, como lembra Hanotiau, de “instrumento essencial da economia de
mercado e do desenvolvimento harmonioso do comércio” (2002, p. 120), e, portanto, sua
proteção, ao mesmo, tempo, remete a interesses particulares (dos concorrentes) e difusos167 (dos
consumidores).
A história da abitrabilidade de questões envolvendo Direito Concorrencial tem fortes referências
na jurisprudência da Suprema Corte Norte-Americana. Jarvin (1985, p. 74-75) revela que o
julgado Mitsubishi vs. Soler provocou uma mudança de rota substancial nos limites de
arbitrabilidade em matéria de concorrência. Até então, aquela Corte seguia o entendimento
firmado no caso American Safety vs. McGuire, quando se decidiu pela inarbitrabilidade de
controvérsias sobre antitrust, com fundamento em alguns argumentos, dentre os quais: a) a
resolução de conflitos de natureza concorrencial exigia análise econômica e jurídica sofisticada,
o que, em princípio, seria incompatível com o sistema arbitral, voltado à resolução rápida,
desburocratizada e fundado em “bom senso” e equidade; b) matéria de importância dessa
envergadura não poderia ser submetida a árbitros, provenientes dos quadros do setor empresarial.
A base argumentativa do mencionado aresto seria posteriormente quebrada no caso
Mitsubishi168, quando a mesma Corte, atacando o argumento “a”, sustentou que adaptabilidade e
acesso à alta especialização são marcas registradas da arbitragem e, rejeitando o argumento “b”,
e com fundamento na intervenção da CCI, na qualidade de amicus curiae, manifestou a sua
crença na competência, imparcialidade e segurança no julgamento dos árbitros (JARVIN, p. 76).
Jarvin vai ainda mais além, para defender que os árbitros não só poderiam solucionar a
controvérsia, como aplicar os dispositivos de sanção civil169 às partes que concorreram
167
Nesse sentido, Cristofaro e Ney: “A proteção legal à concorrência funda-se na tutela de direitos perntencentes à
“coletividade” (parágrafo único do art. 1º da Lei n˚ 8.884/94), que extrapolam a órbita individual, direitos de todos,
mas de ninguém”. (2003, p. 346)
168
A Suprema Corte restringiu o âmbito de sua tese às controvérsias internacionais, embora não tenha expressado
que os conflitos domésticos estivessem proibidos do acesso à arbitragem (JARVIN, p. 74).
169
No sistema concorrencial norte-americano, as treble damages contituem uma indenização à parte lesada pelo
comportamento ofensivo à livre concorrência, e, simultaneamente, uma sanção ao ofensor, na medida em que o
89
ilegalmente ao monopólio (1985, p. 70). Em seguida, Mclaughlin aponta para a internalização da
arbitrabilidade em matéria antitrust nos casos Nghiem v. NEC Electronics, Inc ., em 1993 e
Coors Brewing Co. v. Molson Breweries, em 1995 (1996, p. 132).
No âmbito do Direito Comunitário europeu, é admitida a arbitrabilidade inter partes de
controvérsia relativa às normas de concorrência (LEW, 2009, p. 256). O autor sinaliza que a
medida serve para evitar que o tribunal arbitral atue como um substitutivo do órgão regulatório
da concorrência (a Comissão Europeia), aplicando multas às partes: a sua atuação é restrita a
verificar o cumprimento/inadimplemento de obrigações pactuadas entre as partes litigantes. Nos
Estados Unidos, o poder punitivo do árbitro, segundo Jarvin, poderia ser maior, tendo em vista
que as chamadas treble damages são convertidas em benefício da parte litigante e não do Estado.
Em ambos os casos, é certo que o árbitro está autorizado a interferir em matéria concorrencial,
desde que seja isto pressuposto para solucionar um problema contratual (LEW, p. 257).
Esse entendimento não significa que a decisão gere efeitos jurídicos no âmbito restrito das
partes. A livre concorrência, como defende Tércio Sampaio Ferraz Jr., citado por Eros Grau
(2007, p. 210), é, na verdade, “forma de tutela do consumidor, na medida em que
competitividade induz a uma distribuição de recursos a mais baixo preço”. Sempre que um
particular se vale de norma imperativa relacionada com a livre concorrência para requerer a
nulidade de um contrato, por exemplo, está, por tabela, tutelando o direito difuso do mercado
consumidor. Naturalmente, as legislações antitrust pressupõem uma preocupação do Estado em
efetivar o controle da atividade econômica, que envolve a saúde dos setores mais sensíveis de
uma sociedade: emprego, dignidade, qualidade de vida.
Nessa direção é que Bridgeman informa que a Comissão Europeia tem feito esforços para que as
fusões de empresas no âmbito da União Europeia firmem um compromisso arbitral erga omnes,
para que terceiros eventualmente prejudicados por comportamento anti-concorrencial possam
aceder à tutela arbitral, no intuito de solucionar o conflito (2008, p. 160).
valor da indenização, após fixado, é multiplicado por três, montante convertido integralmente em benefício da parte
ofendida.
90
Na Itália a controvérsia em matéria antitrust, seja aquela fundada no Direito doméstico, seja
aquela fundada no Direito comunitário, apesar do potencial alcance de seus efeitos170, é matéria
comprometível (RUFFINI, 2008, p. 5672).
Também assim se manifestam Cristofaro e Ney, quanto à arbitrabilidade do Direito Antitruste no
Brasil (2003, p. 359), desde que respeitados os limites postos na legislação em vigor – a
disponibilidade e a patrimonialidade da controvérsia.
Novamente, os avanços da arbitrabilidade do Direito Concorrencial surgiram originariamente da
esfera internacional dos litígios. Entretanto, especialmente nos Estados Unidos, o
questionamento da arbitrabilidade dos litígios internacionais levou ao questionamento da
arbitrabilidade dos litígios domésticos, de onde se viu que não havia motivos essenciais para
vedar o acesso à tutela arbitral em controvérsias dessa natureza.
A pergunta que cabe fazer nessa altura é se, diante do panorama evolutivo da arbitrabilidade em
matéria concorrencial é possível identificar um precedente de arbitrabilidade de direitos difusos.
No âmbito da arbitrabilidade inter partes do Direito Concorrencial, restrita às obrigações
pactuadas entre as partes, é viável a identificação de arbitrabilidade de direitos difusos, embora o
impacto dos efeitos jurídicos da sentença seja sentido mais diretamente pelos litigantes. Caso se
desenvolva a arbitrabilidade erga omnes, referenciada por Bridgeman, é bem provável que se
estará admitindo a via arbitral para a discussão de direitos indisponíveis e difusos, com
correspondência direta com o interesse público comunitário.
É certo que assistir ao avanço das legislações domésticas é tarefa que requer mais paciência;
entretanto, lembre-se que, nos Estados Unidos, a internalização da arbitrabilidade de conflitos
em matéria antitrust se deu exatamente a partir da admissibilidade no âmbito internacional.
170
Di Brozolo, por exemplo, afirma que não se pode invocar em favor da inarbitrabilidade de questões
concorrenciais a sua natureza indisponível (1999, p. 673).
91
2.2.2.3.5 Arbitrabilidade e propriedade intelectual
Um quinto campo sensível de arbitrabilidade diz respeito às controvérsias relacionadas com o
sistema de proteção da propriedade intelectual. Em um primeiro aspecto, o direito do autor
estaria intimamente ligado com os direitos da personalidade, relacionado com a sua honra e
dignidade, de onde, em alguns ordenamentos jurídicos, é extraído o fundamento para a defesa de
sua inarbitrabilidade (MATAKOU, 2009, p. 265). Considera-se a obra uma verdadeira extensão
da personalidade do autor, razão pela qual, a correspondente violação pode significar o
comprometimento direto de sua reputação. Em um segundo aspecto, a discussão da
arbitrabilidade da propriedade intelectual perpassa pelos títulos de registro de marcas e patentes,
emitidos pelo Estado. Um conflito envolvendo a validade do registro, da marca ou patente
poderia, eventualmente, afetar terceiros, uma vez que os efeitos do registro, tal como funciona
como uma escritura pública de registro de imóveis, vincula o bem a um sujeito de direito, com
oponibilidade erga omnes.
Obviamente, a polêmica se instaura com mais força no segundo aspecto do que no primeiro.
Embora em alguns países a arbitrabilidade do direito do autor seja obstaculizada (MANTAKOU,
2009, p. 265), a reparabilidade do dano moral decorrente de sua violação, constituindo-se uma
situação jurídica patrimonial e disponível, poderá, no sistema brasileiro, ser submetida à
arbitragem. Novamente aqui, como já se discutiu no âmbito do Direito Trabalhista, o direito à
indenização não é equivalente ao direito próprio. Não pode o autor negociar cláusula contratual
que viole a sua honra, assim como, diante do critério da disponibilidade, o tribunal arbitral não
poderá apreciar questão que envolva a disposição do direito do autor. Nada obsta, entretanto, que
o pedido indenizatório correspondente à violação – objeto que poderia ser livremente negociado
com o causador do dano, via, inclusive, transação – seja submetido à tutela arbitral.
O problema fica mais interessante quando o que se discute é a arbitrabilidade sobre a invalidade
do registro de marcas e patentes, tratando-se de ato estatal, decorrente do exercício de seu poder
de império. Nos Estados Unidos, na Suíça, na Bélgica (YOUSSEF, 2009, p. 53) e no Canadá
(HANOTIAU, 2002, p. 210) não existem óbices; em muitos países da União Europeia se trata de
matéria reservada à apreciação da jurisdição estatal (MANTAKOU, 2009, p. 266-267),
92
especialmente na Alemanha, que criou um tribunal especializado para resolver litígios dessa
natureza (SIMMS, 1999, p. 35). Em Portugal, a questão não esbarra na indisponibilidade da
situação jurídica ou no fato de ser a questão matéria “de ordem pública”. Pinheiro sustenta que,
naquele país, há autorização expressa do Código de Propriedade Intelectual que viabiliza a
arbitrabilidade de todas as questões “susceptíveis de recurso judicial” (Art. 48, n˚ 1), o que
abrange, segundo o seu entendimento, “as decisões do Instituto Nacional de Propriedade
Industrial que concedam ou recusem direitos de propriedade industrial ou relativas a
transmissões, licenças, declarações de caducidade ou a quaisquer outros actos que afectem,
modifiquem ou extingam direitos de propriedade industrial” (2005, p. 110). A arbitragem só será
viável, entretanto, caso não existam contra-interessados, ou ainda se eles consentirem em
submeter o pleito à tutela arbitral (OLIVEIRA, p. 41). Essa limitação, segundo Oliveira (p. 42),
obstrui a discutibilidade da invalidade do título em via arbitral, tendo em vista que,
invariavelmente, a declaração de nulidade do título teria efeito erga omnes. Entretanto, não
concordamos com a posição da autora171. A nulidade do título afeta a esfera jurídica de terceiro o titular da patente -, o qual, obviamente, não pediria a nulidade de seu próprio título. Uma vez
concordando o terceiro em se submeter ao procedimento arbitral, não existem óbices na lei
portuguesa para que a sentença arbitral declare a invalidade do título. Se a interpretação da
expressão “contra-interessados”, presente no n˚ 2 do art. 48 do decreto-lei 36/2003 de 5 de
março, resultar em restrição de arbitrabilidade aos casos em que se deseje nulificar o título, em
virtude de sua oponibilidade erga omnes, deverá ela ser empreendida também nos demais casos
suscitados por Pinheiro, por exemplo, transmissão do título e declaração de caducidade da
licença, já que, também nesses casos, os efeitos da sentença arbitral constituiriam uma situação
jurídica oponível erga omnes. Parece-nos que o conteúdo da norma orienta à interpretação
restritiva da expressão “interesse jurídico”, para condicionar a arbitrabilidade de causas que
versem sobre a propriedade industrial à sujeição, apenas, dos interessados diretos na questão172.
171
Em oposição à posição da autora, se argumenta que não há presença de ordem pública nesses casos, a menos que
a estrutura de uma indústria em particular transforme a resolução do problema entre os particulares em fato
altamente relevante ao público geral (CARON, p. 442).
172
Cabe fazer uma exceção ao raciocínio, que diz respeito aos casos em que a questão verse sobre a quebra de
patente vinculada ao interesse público. Tal é o caso dos medicamentos que compõem o chamado coquetel antiAIDS. Nesse caso, para que fosse possível se valer da norma do n˚ 2 do art. 48 do decreto-lei 36/2003 de 5 de
março, seria necessário estudar uma forma de fazer-se representar a coletividade difusa, através, quiçá, da aplicação
93
Esse entendimento permite que se advogue a tese de que, em Portugal, em duas ocasiões (a
primeira tratamos no item 2.2.2.4.1), o ordenamento jurídico aponta para a arbitrabilidade de
situações jurídicas indisponíveis.
Na Itália, a doutrina não se declara favorável à arbitrabilidade de situações jurídicas
indisponíveis em matéria de propriedade intelectual (ZUCCONI GALLI FONSECA, 2007, p.
1166). Nada obstante, o decreto legislativo n˚ 30/05, que instituiu naquele ordenamento o recente
código de propriedade intelectual manda aplicar às relações jurídicas de propriedade industrial e
concorrência desleal o regime de arbitrabilidade do Direito Societário, no que couber. Assim,
todo o debate já referenciado acerca do assunto pode vir a ser transplantado à matéria de
propriedade intelectual, dado que, aberta a possibilidade interpretativa da arbitrabilidade de
situações jurídicas indisponíveis (RICCI, 2003, p. 522), pelo menos em tese esse panorama
viabilizaria a sujeição de invalidade de marcas e patentes em face do Estado à tutela arbitral.
No Brasil, a doutrina manifesta que deve se excluir do âmbito da arbitrabilidade as questões que
versem sobre anulação de título de patente “ou outras questões em que o interesse público esteja
presente” (LEMES, 2004, p. 2). Como já se pode presumir, discordamos do fragmento da
consideração que estabelece entre o interesse público e a inarbitrabilidade uma conexão
automática que já se provou não existir. Quanto à inarbitrabilidade da validade do título de
patente, parece-nos que se trata de conclusão, do ponto de vista dogmático, acertada. O poder de
império do Estado é uma situação jurídica indisponível, a qual, diante da legislação em vigor no
país, não é suscetível de apreciação em procedimento arbitral. Concluir pela inarbitrabilidade de
determinado objeto não significar pactuar com o impedimento. Nesse passo, Brekoulaskis
salienta que não há nada de inerente na decisão arbitral que não permita que ela produza efeitos
erga omnes; para tanto, basta que o Estado aceite a validade da decisão arbitral para promover
uma alteração nos registros públicos de patentes (2009, p. 35). Concordamos com a posição. O
preconceito denunciado por Youssef (2009, p. 49) representa a ausência de razões fortes para a
manutenção do critério de arbitrabilidade e, de nossa parte, desconfiamos que o Estado ainda é
do instituo da representação adequada, já referenciada neste trabalho, proveniente da Rule 23(a)(4), do sistema
norte-americano de ações coletivas.
94
arrogante o suficiente para interpretar como afronta a sua soberania decisões vinculativas de
particulares.
A resistência, entretanto, não deve perdurar por muito mais. Hanotiau acredita que a reserva de
domínio da inarbitrabilidade caminha para ser cada vez mais reduzida (2002, p. 212), e, cada vez
mais, mais ordenamentos permitirão a arbitrabilidade erga omnes da validade do título de
patente. Concordamos com ele.
2.2.2.4 Uma constatação: a inarbitrabilidade vem enfraquecendo
Depois de visitar algumas das áreas do direito substantivo onde a arbitrabilidade ainda é assunto
controverso foi possível verificar que, em muitos dos casos, o acesso à arbitragem tem sido cada
vez mais – e com mais força – flexibilizado.
No Direito Administrativo, foi possível identificar que a presença do Estado na arbitragem não é
um sinal de violação ao interesse público, mesmo porque em algumas situações o Estado atua
como um agente econômico qualquer. Na legislação portuguesa, entretanto, viu-se que se admite
a arbitrabilidade de atos administrativos stricto sensu, contrariando a tese de que não existe
arbitrabilidade de situações jurídicas indisponíveis.
Na Itália, a legislação societária avançou para admitir arbitrabilidade de controvérsias em
matéria de deliberação de assembleia e questões envolvendo a responsabilidade dos gestores da
sociedade, ambos os casos absolutamente alheios à esfera contratual.
Analisando a arbitrabilidade de matéria tributária, verifica-se que as situações jurídicas
decorrentes do crédito tributário possuem um núcleo disponível passível de sujeição à tutela
arbitral, já que, ainda que guardem estreita conexão do interesse público.
A relação jurídica individual trabalhista, durante o seu curso, não pode ser submetida à
arbitragem, tendo em vista que as situações jurídicas titularizadas pelo empregado, durante o
95
curso do vínculo, são qualificadas como indisponíveis. Entretanto, encerrado o contrato de
trabalho, e, portanto, renovada a qualificação das situações jurídicas do ex-empregado, nesse
momento dotadas de caráter indenizatório, a sujeição à arbitragem seria viável. No âmbito
coletivo, a arbitrabilidade trabalhista, no Direito brasileiro, tem assento constitucional, e,
portanto, já não é ponto controverso.
O Direito norte-americano abriu as portas para a arbitrabilidade de matéria que atingia interesses
difusos indisponíveis, através do caso Mitsubishi vs. Soler. Desde então, a questão, que tratava
de arbitragem internacional, foi o ponto de partida para a internalização da arbitrabilidade de
controvérsias relacionadas com o Direito Concorrencial.
Também foi pioneiro o Direito norte-americano no que se relaciona à arbitrabilidade de
controvérsias sobre propriedade intelectual, cujo ponto sensível guardava conexão com a eficácia
da sentença arbitral nas licenças de patentes e marcas emitidas pelos Estados. No Direito
português, se viu que a nulidade de atos do Estado poderá ser decretada por árbitro, sempre com
a condição de que os interessados diretos na questão aceitem litigar nessa modalidade.
Viu-se, ademais, o intenso debate sobre a existência de arbitrabilidade de situações jurídicas
indisponíveis na Itália, especialmente no que concerne diretamente ao Direito Societário;
ademais, verificou-se que o Direito alemão, em conjunto com o austríaco, não mais impõe a
disponibilidade como impedimento de acesso à via arbitral; mencionou-se, ainda, que a alteração
do Código de 2002 pode ter causado uma alteração silenciosa no sistema, dispensando o critério
da disponibilidade para os casos em que se submeta controvérsia à arbitragem mediante a
formalização de um compromisso arbitral.
Avanços pontuais conjugados podem causar profundo impacto na cultura da arbitralidade ao
redor de todo o mundo, em muito pouco tempo. No capítulo a seguir, investigaremos em que
medida essas mudanças, já sentidas em áreas do direito material historicamente consideradas
insuscetíveis de arbitrabilidade, podem refletir também no Direito Ambiental e, com um olhar
mais atencioso, no âmbito do ressarcimento do dano ambiental.
96
3 A ARBITRABILIDADE DO RESSARCIMENTO DO DANO AMBIENTAL
No capítulo anterior, demos dois passos prévios ao oferecimento de uma resposta ao problema da
arbitrabilidade do ressarcimento do dano ambiental: identificamos o conteúdo do Direito
Ambiental e estudamos os critérios de arbitrabilidade na legislação nacional e no Direito
comparado, ocasião em que visitamos a crítica doutrinária sobre os motivos da permanência de
tais obstáculos no ordenamento jurídico.
Agora que temos em nosso poder essas informações, é chegado o momento de relacioná-las, o
que, certamente, nos permitirá responder às questões que tanto nos inquietam desde o início
desta pesquisa: existe algum direito ambiental susceptível de arbitrabilidade? Se há, qual(is) e
por quê? Qual(is) constitui(em) situações jurídicas disponíveis, indisponíveis, patrimoniais, extra
patrimoniais? Até que ponto a inovação legislativa trazida pelo Código Civil de 2002 influencia
nessa análise?
Temos convicção, contudo, de que a adição de algumas notícias, relacionadas especificamente
com a arbitragem ambiental, será de grande valia para construir as conclusões que pretendemos
oferecer a seguir. Por isso, antes de arrematar o assunto, convém discutir temas que
consideramos estrategicamente importantes no intuito de perseguir a finalidade do trabalho. A
eles.
3.1 ARBITRAGEM AMBIENTAL EM CURSO NO MUNDO
A arbitragem internacional é um grande pólo de avanço da Arbitragem Ambiental.
Paralelamente, alguns países têm elaborado legislações que, direta ou indiretamente, remetem à
possibilidade de submeter controvérsia ambiental a um tribunal arbitral. Por isso, em certa
medida, é lícito afirmar que a Arbitragem Ambiental está em curso no mundo.
97
3.1.1 Direito Ambiental e arbitragem internacional: uma realidade
Atualmente, algumas iniciativas de arbitragem ambiental institucional internacional dão conta de
mais um forte indício para o avanço das potencialidades da tutela arbitral em matéria
jusambiental. Assim, desde já, é necessário ficar registrado que, independentemente dos critérios
de arbitrabilidade dos ordenamentos nacionais, a tutela do bem ambiental via arbitragem existe e
está em curso no mundo. De fato, como já se fez menção no capítulo anterior, o fenômeno da
“arbitrabilização” de matérias classicamente tidas por inarbitráveis geralmente se desenvolve, de
início, a partir da necessidade de resolução de um conflito de caráter internacional173. Talvez, no
Direito Ambiental, essa primeira etapa já tenha sido iniciada.
O Tribunal Internacional de Arbitragem e Conciliação Ambiental (ICEAC – Internation Court of
Environmental Arbitration and Conciliation) foi estabelecido na cidade do México em 1994,
com a participação de 28 juristas de 22 países, com o objetivo de oferecer a Estados e
particulares (inclusive organizações conservacionistas, portanto, geralmente organizações nãogovernamentais) duas modalidades de resolução de controvérsias, voltadas à pacificação de
conflitos de natureza ambiental. Como não poderia deixar de ser, a instituição conta com um
corpo de juristas altamente especializado na matéria. Atualmente, o Tribunal possui sede na
capital mexicana e, simultaneamente, em San Sebastian, Espanha.
Infelizmente, dada a confidencialidade das decisões daquele tribunal, não se pode dizer muito
sobre jurisprudência174 acerca de sua validade175. Cogita-se, aqui, a hipótese de necessidade de
173
Por exemplo, em litígios envolvendo matéria antitrust, como ficou evidenciado no item 2.2.2.3.4 do capítulo
precedente.
174
Nesse sentido, vale trazer à colação as palavras do Dr. Ramón Ojeda Mestre, Secretário da Corte, em entrevista
concedida ao Centro de Estudios Jurídicos Ambientales, organização não governamental mexicana, voltada para o
estudo da matéria ambiental: “Os melhores êxitos [da Corte, em relação a efetividade da defesa do meio ambiente]
ficam, como no caso das intervenções arbitrais e de mediação de nossa Corte, restritos ao conhecimento de muito
poucos, porque o convênio de início das partes proíbe que se faça difusão ou publicidade dos laudos ou acordos”.
(CENTRO DE ESTUDIOS JURIDICOS Y AMBIENTALES, 2009) [tradução livre]
175
Desde o seu nascimento, nos informa Baragaña (1996, p. 140), que, no ano de 1996, o tribunal havia recebido
dezessete petições de intervenção. Durante a pesquisa bibliográfica, não foram encontrados documentos referentes a
estes casos.
98
utilização do aparato estatal para o cumprimento forçado das obrigações determinadas na
sentença arbitral proveniente da Corte, situação em que, necessariamente, seria suscitada a
questão da sua validade no que toca à questão da arbitrabilidade, variável em cada sistema
interno. Nos casos de não reconhecimento espontâneo da decisão pela parte derrotada, a Corte
emite uma opinião consultiva sobre a questão, que fica registrada no seu banco de dados,
gravando, assim, um “ônus moral” àquele que desrespeitou o decisum. Deve-se ressaltar,
entretanto, que o problema da efetividade das decisões dos tribunais internacionais,
especialmente quando se está diante de um litígio entre Estados, não é exatamente um problema
da via arbitral, mas do Direito Internacional de modo geral. Também os tribunais supraestatais
sofrem desse mal. Entretanto, um conflito entre particulares, levado a efeito no Tribunal
Internacional de Arbitragem e Conciliação Ambiental, poderá, certamente, desencadear um
processo de cumprimento forçado em jurisdição estatal doméstica, preenchidos os requisitos de
arbitrabilidade de cada Direito interno.
Em um segundo plano, é importante informar que a Corte Permanente de Arbitragem, embora
não seja exatamente um tribunal arbitral constituído especificamente para solucionar conflitos
em matéria ambiental, adotou, a partir de 2001, um regulamento opcional específico atinente ao
tema. A ideia era adaptar o procedimento arbitral da Lei Modelo da Comissão das Nações
Unidas para o Desenvolvimento do Comércio Internacional (UNCITRAL) – utilizado pela Corte
em seus procedimentos – às necessidades particulares das questões ambientais176.
Assim, por exemplo, o art. 16 da nova normativa adiciona a hipótese de reunião do tribunal,
independentemente da vontade das partes, em qualquer lugar, para inspecionar propriedade ou
176
“Introdução – Este regulamento é baseado nas regras de arbitragem estabelecidas pela UNCITRAL, com
adaptações voltadas a: [...] (v) proporcionar a elaboração de uma lista de árbitros especializados, mencionada no art.
8(3) e de experts técnicos, mencionados no art. 27(5) deste regulamento. [...] Artigo 8 [...] 3. Na nomeação de
árbitros em conformidade com este regulamento, as partes e a autoridade competente para exercer a nomeação são
livres para designar a atribuição a pessoas que não fazem parte do corpo de membros da Corte Permanente de
Arbitragem em Haia. Com o objetivo de auxiliar as partes e a autoridade competente para exercer a nomeação, o
Secretário-Geral disponibilizará uma lista de pessoas consideradas especializadas na matéria para a qual este
regulamento foi estabelecido” (tradução nossa).
99
documentos. Outro dispositivo interessante que o regulamento apresenta é o art. 21, que prevê a
possibilidade de o tribunal, a pedido da parte, adotar medidas preventivas à proteção do meio
ambiente, enquanto estiver o litígio sub iudice. A proposta da Corte é exatamente idêntica à do
Tribunal Internacional de Arbitragem e Conciliação Ambiental: oferecer serviço jurisdicional
especializado e adequado à matéria ambiental, no sentido de maximizar as possibilidades de
efetivação dos direitos discutidos na causa. Por isso, apesar de a instituição servir à solução de
controvérsias com conteúdo conexo às mais variadas disciplinas via arbitragem, a Corte
disponibiliza ao usuário uma lista de árbitros e peritos especializados na avaliação jurídica e
técnica de conflitos ambientais.
Convenções internacionais que tocam o tema da qualidade do meio ambiente também
frequentemente fazem menção à resolução de conflitos via arbitragem, institucional ou ad hoc. É
o caso da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, que em seu art. 287 prevê a
possibilidade de os Estados escolherem “um tribunal arbitral especial, constituído em
conformidade com o Anexo VIII para uma ou várias das categorias de controvérsias que nele
especificam”, dentre as quais aquelas relativas à proteção e preservação do meio ambiente
marinho. Birnie e Boyle comentam que o Tratado da Antártica sobre proteção do meio ambiente,
de 1991 remete todas as disputas à arbitragem, assim como o Tratado da Organização Mundial
do Comércio prevê diversas formas de resolução de litígios, dentre as quais a arbitragem, muitas
delas envolvendo matéria ambiental (2002, p. 221). Romano (2007, p. 1053) atenta para
Convenção de prevenção de poluição marinha por liberação de rejeitos de 1972, que direciona as
partes signatárias a solucionar a controvérsia por arbitragem; além desta, dá-se relevo à
Convenção sobre segurança de gestão de gastos de combustíveis e segurança de resíduos
radioativos, que, através de seu art. 38, orienta a solução de conflitos via arbitragem. Nesse
mesmo sentido, a Convenção de Espoo, que trata do contexto transfronteiriço da avaliação de
impacto ambiental, também faz referência, no seu art. 15, à arbitragem como método de
resolução de controvérsias.
Ainda sobre o tema, merece destaque o Decreto Federal brasileiro 2.519, de 16 de Março de
1998. Trata-se de normativa que internalizou a Convenção sobre a diversidade biológica,
assinada no Rio de Janeiro entre diversos países, dentre os quais o Brasil, em 5 de junho de 1992.
100
Tentava o texto internacional uniformizar a proteção à biodiversidade, através do acordo de
desenvolvimento de medidas protetivas concretas em cada Estado, a exemplo do estabelecimento
de unidades de conservação e espaços territoriais especialmente protegidos; políticas de
conversação in situ e ex situ; pacto de utilização sustentável dos componentes da biodiversidade;
fixação da necessidade de avaliações de impacto ambiental; acesso a recursos genéticos e regras
de transferência de tecnologias relacionadas com a manutenção da biodiversidade. Não há
dúvida, portanto, que a convenção trata de bens ambientais relacionados com o macrobem. Nada
obstante, o seu art. 27, n˚ 3, “a”, estabelece a possibilidade de resolução de conflitos entre as
partes contratantes via arbitragem e, para tanto, a Convenção estabelece um pequeno rol, no seu
anexo I, de regras aplicáveis a uma eventual arbitragem voltada à solução de conflitos entre os
Estados-parte. Observe-se que a promulgação interna da Convenção, no Brasil, se deu dois anos
após a entrada em vigor da Lei de Arbitragem brasileira. Não se pretende com isto dizer que se
operou no sistema brasileiro uma derrogação dos critérios de arbitrabilidade em relação a todas
as matérias capazes de formar objeto de convenção de arbitragem, mas é natural que, se o Estado
brasileiro se compromete à possibilidade de se submeter à arbitragem em matéria ambiental177,
em momento posterior à promulgação de Lei que limita à patrimonialidade e à disponibilidade
do interesse em causa a convenção de arbitragem, o estudioso suscite, no mínimo, dúvidas
quanto à possibilidade jurídico-dogmática no ordenamento para arbitrabilidade de questões
ambientais, inclusive aquelas que versem sobre direitos indisponíveis.
3.1.2 A Arbitragem Ambiental no Peru
A Lei de Arbitragem peruana n˚ 26.572 de 3 de janeiro de 1996 propôs, entre seu leque de
arbitrabilidade, a discussão de matéria ambiental, nos termos do seu art. 1º: “Podem se submeter
à arbitragem as controvérsias determinadas ou determináveis sobre as quais as partes tenham
faculdade de livre disposição, assim como aquelas relativas a matéria ambiental” [tradução
livre]. As suas disposições transitórias indicam ainda que “O Conselho Nacional do Ambiente é
177
Note-se aqui que o Estado, nesse caso, não estaria realizando ato de gestão, mas estaria no pleno exercício da
autoridade, o que prova que o critério adotado pela jurisprudência brasileira, abordado no item 2.2.2.4.1, para
interpretar como válida a convenção de arbitragem celebrada pelo Estado, é absolutamente inócuo.
101
a instituição organizadora da arbitragem ambiental, devendo cumprir com os artigos e
disposições contidas na presente lei, nos seus termos previstos”. [tradução nossa]
Cinco anos mais tarde, uma nova normativa viria suscitar, mais uma vez, o tema da
arbitrabilidade de matéria ambiental. Trata-se do Decreto Supremo n° 022-2001-PCM, de 8 de
Março de 2001, que em sua primeira disposição complementar esclareceria que “mediante
decreto do Conselho Diretivo se estabelecerão as disposições necessárias para organizar a
arbitragem ambiental a que se refere a décima primeira disposição transitória da lei n° 26.572”
[tradução nossa].
É necessário advertir que o marco regulatório para a arbitragem peruana já não é a sua lei
26.572, mas, em sua substituição, foi publicado no Diário Oficial do Peru, em 28 de junho de
2008, o Decreto Legislativo 1.071, no exercício do poder legislativo delegado transferido ao
Executivo pela lei 29.157. A referida normativa, que expressamente revogou a anterior, não mais
faz menção à arbitragem ambiental.
Entretanto, a legislação peruana sobre arbitragem ambiental não se esgotou nas disposições
fincadas na revogada Lei de Arbitragem. A Lei Geral do Ambiente (lei 28.611), sancionada
naquele país em 27 de novembro de 2002, no seu capítulo 3, intitulado “Meios para a resolução e
gestão de conflitos ambientais”, traz uma normativa interessantíssima sobre o tema, a qual, para
melhor visualização, é abaixo transcrita:
Artigo 152.- Da arbitragem e conciliação
Podem se submeter à arbitragem e conciliação as controvérsias ou pretensões
ambientais determinadas ou determináveis que versem sobre direitos patrimoniais ou
outros que sejam de livre disposição pelas partes. Em particular, poderão se submeter a
esses meios os seguintes casos: a. Determinação de quantias indenizatórias por danos
ambientais ou por comissão de delitos contra o meio ambiente e os recursos naturais. b.
Definição de obrigações compensatórias que possam surgir de um processo
administrativo, sejam monetárias ou não. c.
Controvérsias na execução e
implementação de contratos de acesso e aproveitamento de recursos naturais. d.
Limitações ao direito de propriedade pré-existente à criação e implementação de uma
área natural protegida de caráter nacional. e. Conflitos entre usuários com direitos
102
superpostos e incompatíveis sobre espaços ou recursos sujeitos a ordenamento ou
zonificação ambiental. [tradução livre]
Veja-se que, mais uma vez, o critério da disponibilidade dos direitos é dispensado. Aqui, basta
que a causa verse sobre direitos patrimoniais para que o sistema confira à arbitragem a validade
necessária para extrair da sentença os efeitos jurídicos que lhe são correspondentes. Note-se que
a noção de patrimonialidade não está adstrita à obrigação de dar dinheiro, mas qualquer outra
que possa, eventualmente, envolver interesse econômico178.
Alternativamente, quando não estiver presente o interesse patrimonial, a legislação peruana
permite que sejam submetidas à arbitragem os interesses de livre disposição das partes. O critério
de patrimonialidade vem em primeiro lugar – a regra geral é a arbitrabilidade de causas de onde
se possa extrair interesse econômico. Em segundo, caso essa possibilidade não se confirme, a
legislação viabiliza a arbitrabilidade pelo critério da disponibilidade do direito.
Carlos Matheus López, comentando a legislação peruana, adverte que é clara a arbitrabilidade de
questões ambientais no Peru, acrescentando, ainda, inexistirem obstáculos para que o Estado
participe do procedimento arbitral, dado que se trata de litígios que envolvem direitos coletivos
(2003, p. 434).
Como é possível verificar, o autor não só reconhece na legislação a possibilidade de submeter à
arbitragem conflitos ambientais, como interpreta que a legislação admite a arbitrabilidade de
direitos difusos ambientais. De fato, desde que seja respeitado o critério da patrimonialidade, tal
como requer o art. 152 da Lei Geral do Ambiente, parece plenamente possível, no sistema
peruano, a submissão de conflito ambiental de natureza difusa a tribunal arbitral.
178
O assunto foi abordado quando tratamos do sistema de arbitrabilidade do direito alemão (item 2.2.2.1.1).
103
3.1.3 Arbitragem Ambiental em Portugal?
Para a surpresa de muitos, Portugal, atualmente, possui duas previsões normativas que remetem à
arbitrabilidade de questões ambientais.
Referimo-nos, em primeiro lugar, ao decreto-lei 109/94 de 26 de abril, o qual propõe uma nova
regulação da atividade de prospecção e exploração petrolífera, no intuito de tornar o país mais
atrativo a investimentos estrangeiros nessa área. Como não poderia deixar de ser, o mencionado
decreto-lei não descurou da integridade ambiental, condicionando a atividade petrolífera à sua
compatibilidade nesse quesito. Com efeito, o art. 7º da disciplina normativa enuncia que
Em qualquer caso, a atribuição de direitos relativos às atividades de prospecção,
pesquisa, desenvolvimento e produção de petróleo só pode ser feita com salvaguarda
dos interesses nacionais em matéria de defesa, de ambiente, de navegação e
investigação, de gestão e preservação dos recursos do mar.
Assim, o concessionário da exploração da atividade petrolífera estará obviamente condicionado a
observar as limitações previstas no dispositivo supratranscrito.
Lembre-se que, em Portugal, existe previsão legal para a arbitrabilidade de questões que
envolvem atos administrativos relacionados com a execução de contratos administrativos179 (art.
180, 1, a, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), razão pela qual seria possível
imaginar, diante do conteúdo do decreto-lei 109/94 de 26 de abril, uma arbitragem que
envolvesse o descumprimento de obrigação concernente à adoção de mecanismos preventivos
pelo concessionário.
Essa hipótese, no particular assunto da exploração de petróleo, em Portugal, é reforçada pelo art.
80 do mesmo decreto-lei, que expressamente remete a solução de controvérsias entre Estado e
particular à arbitragem, desde que objetivem solucionar controvérsia na qualidade de
contratantes. Dessa assertiva importa indagar se estaria excluída a arbitrabilidade de
179
Cf. item 2.2.2.3.1.
104
descumprimento de cláusula contratual relativa a obrigações voltadas à salvaguarda da qualidade
ambiental. É de se reconhecer, no mínimo, que uma das respostas possíveis seria a afirmativa; se,
antes de tudo, o decreto-lei expressamente adverte que a atribuição de direitos relacionados com
a atividade petrolífera será condicionada à salvaguarda do ambiente, é natural que exista nos
contratos administrativos de concessão o estabelecimento de obrigações180, positivas e negativas,
voltadas à consecução de tal finalidade. Isto é, o Estado, atuando como parte contratante
vinculada à norma de caráter injuntivo, não poderá deixar de exigir do concessionário conduta
compatível com a qualidade do meio-ambiente, pelo que, sob a autorização do art. 80 do decretolei, poderá submeter conflito ambiental de origem contratual a tribunal arbitral, a ser sediado em
Lisboa181. É bem provável que os avessos à arbitrabilidade de matéria indisponível objetarão à
tal proposta interpretativa, arguindo que a expressão “nos termos da legislação processual
portuguesa”, presente ao final da redação do dispositivo mencionado, remete ao quanto disposto
na Lei de Arbitragem Voluntária 31/86, e, consequentemente, limita a devolução aos árbitros à
disponibilidade das situações jurídicas em causa. Entretanto, a adoção de uma postura
interpretativa apta a superar os critérios clássicos de arbitrabilidade pode orientar o significado
da expressão à observância dos princípios que conformam o devido processo legal, o que
condiciona a arbitrabilidade da matéria ambiental à aplicação do ordenamento jurídico
processual português, em detrimento de arbitragem por equidade, por exemplo, ou de
ordenamentos jurídicos alienígenas.
Se a arbitrabilidade de direitos difusos na hipótese do decreto-lei 109/94 depende da adoção de
uma postura interpretativa mais vanguardista, o mesmo não se pode dizer quanto à situação
180
O decreto-lei 109/94 elenca, pelo menos, uma delas: “Art. 70º Segurança e higiene do pessoal e instalações – 1.
No exercício das actividades a que respeita o presente diploma, deverão ser observadas as normas gerais relativas às
condições de segurança, higiene e saúde no trabalho e, bem assim, as disposições comunitárias relativas à protecção
dos trabalhadores das indústrias extractivas. 2. Para os efeitos do disposto no número anterior, e sem prejuízo de
outras medidas preventivas previstas na lei, deverá a concessionária apresentar antecipadamente no GPEP, quando
aplicáveis, os seguintes planos: a) De protecção contra eventuais erupções não controladas de hidrocarbonetos e
emanações gasosas; b) De formação do pessoal para a sua protecção contra as referidas erupções e emanações; c) De
evacuação das populações vizinhas”.
181
“Art. 80º Arbitragem – Os diferendos que ocorram eventualmente entre o Estado e as concessionárias,
relativamente à interpretação ou aplicação das disposições legais e contratuais que regulam as relações entre as
partes na qualidade de contratantes, serão resolvidos por tribunal arbitral, a funcionar em Lisboa, nos termos da
legislação processual portuguesa”.
105
descrita no decreto-lei 198-A/2001, de 6 de Julho, também português. Dispõe o diploma sobre o
regime jurídico da concessão do exercício da atividade de recuperação ambiental das áreas
degradadas por exploração mineral, na qual figura como concessionária a Companhia de
Indústria e Serviços Mineiros e Ambientais S/A – EXMIN, por um prazo de 10 (dez) anos,
portanto, avença vigente até 2011. A norma objetiva a correção de passivos ambientais
decorrentes de atividades minerais desempenhadas em Portugal no passado, que causaram
estragos de grande relevo, sentidos até os dias atuais.
A primeira constatação que se deve fazer a partir do conteúdo182 do decreto-lei é que a normativa
interfere diretamente no equilíbrio ambiental, é dizer, no que anteriormente conceituamos por
macrobem. A segunda é que, a partir do anexo do decreto-lei, que institui as bases para o
contrato de concessão, no seu item XXVII, o qual estabelece que “Nos litígios emergentes do
contrato de concessão poderá o Estado celebrar convenção de arbitragem”, o Direito português
passou a exibir uma hipótese de arbitrabilidade de direito ambiental difuso. Nota-se que a
estrutura do dispositivo foi montada exatamente para garantir a viabilidade da arbitrabilidade de
questão ambiental, já que existe previsão legal para que litígios emergentes da execução de
contratos administrativos sejam submetidos à apreciação de árbitros, inclusive no que respeita a
situações jurídicas indisponíveis.
A inovação legislativa é específica, mas, por ter sido oriunda da competência legislativa do
Governo (os decretos-lei em Portugal são de competência do Conselho de Ministros, órgão do
Governo – Art. 198 da Constituição Portuguesa e podem versar sobre matéria que não seja
reservada à Assembleia da Repúlica – Art. 165), poder-se-ia argumentar a sua invalidade;
182
“Artigo 3º Objectivos A recuperação das áreas mineiras degradadas visa a valorização ambiental, cultural e
económica, garantindo a defesa do interesse público e a preservação do património ambiental, tendo em vista: a)
Eliminar, em condições de estabilidade a longo prazo, os factores de risco que constituam ameaça para a saúde e a
segurança públicas, resultantes da poluição de águas, da contaminação de solos, de resíduos de extracção e
tratamento e da eventual existência de cavidades desprotegidas; b) Reabilitar a envolvente paisagística e as
condições naturais de desenvolvimento da flora e da fauna locais, tendo como referência os habitats anteriores às
explorações; c) Assegurar a preservação do património abandonado pelas antigas explorações, sempre que este
apresente significativa relevância, quer económica, quer em termos de testemunhos de arqueologia industrial; d)
Assegurar as condições necessárias para o estudo, preservação e valorização de vestígios arqueológicos,
eventualmente existentes, relacionados com a actividade mineira; e) Permitir uma utilização futura das áreas
recuperadas, em função da sua aptidão específica, em cada caso concreto, designadamente para utilização agrícola
ou florestal, promoção turística e cultural, além de outros tipos de aproveitamento que se revelem adequados e
convenientes”.
106
entretanto, as normas de processo, em Portugal – e aqui nos referimos aos critérios de
arbitrabilidade dispostos na Lei de Arbitragem Volutária 31/86, não constam da reserva de
competência da Assembleia da República, razão pela qual tal objeção seria facilmente
combatida. A sua constitucionalidade, entretanto, estaria, em uma primeira análise, garantida,
considerado fosse o diploma desenvolvimento da Lei de Bases do Ambiente, matéria de
competência legislativa do Governo183.
É bem verdade que um decreto-lei, com abrangência eficacial restrita a uma específica concessão
não gira ponta-cabeça o sistema de arbitrabilidade do país. Contudo, vê-se claramente que o
Governo, no particular, abriu um precedente legislativo rumo a arbitrabilidade de questões
ambientais de caráter difuso.
3.1.4 Arbitragem Ambiental no Brasil?
No Brasil, dois indícios de arbitrabilidade de matéria ambiental merecem nossa atenção. Tanto a
legislação, quanto a prática forense dão notícias sobre o assunto no território nacional.
3.1.4.1 O art. 23, §§1º a 3º, do Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos
A última versão do anteprojeto do Código Brasileiro de Processo Coletivo, enviado em 2007 ao
Ministério da Justiça, cuja complexa elaboração foi coordenada por Ada Pellegrini Grinover e
Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, contém dois dispositivos que interessam de maneira direta
ao objeto da nossa investigação.
Referimo-nos aos §§1º a 3º do art. 25 do anteprojeto, tem que como proposta original de redação
o texto seguinte:
183
Esta constatação resultou de discussões mantidas com Paula Costa e Silva, durante a orientação da pesquisa. O
tema é interessante e, para uma conclusão consistente, merece um estudo aprofundado, o qual não cabe nos limites
do presente trabalho.
107
Art. 25. Audiência preliminar – Encerrada a fase postulatória, o juiz designará
audiência preliminar, a qual comparecerão as partes ou seus procuradores, habilitados a
transigir:
§1º. O juiz ouvirá as partes sobre os motivos e fundamentos da demanda e tentará a
conciliação, sem prejuízo de sugerir outras formas adequadas de solução do conflito,
como a mediação, a arbitragem e a avaliação neutra de terceiro.
§2º. A avaliação neutra de terceiro, de confiança das partes, obtida no prazo fixado pelo
juiz, é sigilosa, inclusive para este, e não vinculante para as partes, sendo sua finalidade
exclusiva a de orientá-las na tentativa de composição amigável do conflito.
§3º. Preservada a indisponibilidade do bem jurídico coletivo, as partes poderão transigir
sobre o modo de cumprimento da obrigação.
Em primeiro lugar, há que se destacar a menção expressa à arbitragem como via “adequada” de
solução de conflitos de caráter coletivo, norma que, aprovada pelo congresso nacional, afastaria
de vez a dúvida sobre a arbitrabilidade de litígios dessa natureza. Além da arbitragem, o
dispositivo menciona a mediação e a avaliação neutra de terceiro184, instituto utilizado no Direito
norte-americano (GRINOVER; GONÇALVES, p. 255).
Em segundo, é importante observar com atenção a norma prevista no §3º, que preserva, na
transação, a indisponibilidade dos bens jurídicos coletivos. O estudo das opções interpretativas
advindas desse dispositivo merece nosso cuidado. Se, de um lado, vinculássemos a
transigibilidade à disponibilidade, concluiríamos, de imediato, que o anteprojeto navega no
mesmo sentido da lei de arbitragem vigente, impondo à arbitrabilidade o limite da
disponibilidade da situação jurídica, já que o §3º impõe à transação a preservação da
indisponibilidade da situação jurídica objeto da controvérsia. De outro, se acompanhássemos o
raciocínio interpretativo de Ricci quanto ao silêncio da norma delegada a respeito da
arbitrabilidade das controvérsias societárias envolvendo os diretores, administradores e gerentes,
184
Sobre o instituto, vale apresentar a lição de Plapinger e Stienstra: “A sessão de avaliação neutra anterior (early
neutral evaluaton) começa com o avaliador explicando o processo e estabelecendo os procedimentos a serem
adotados. Cada parte, então, promove uma breve exposição relacionando os fatos, obstáculos legais e as provas. A
seguir, o avaliador poderá realizar perguntas aleatórias a ambas as partes, tentar esclarecer argumentos, explorar
falhas probatórias, e testar forças e fraquezas. O avaliar ajuda as partes a analisar as suas posições e identificar áreaschave de convergências e divergências. O avaliador, então, prepara uma avaliação escrita do caso e a apresenta às
partes”. (1996, p. 63) [tradução livre]
108
bem como aquelas concernetes à validade da deliberação assemblear (2003, p. 522), chegaríamos
à conclusão de que o dispositivo proposto no anteprojeto estaria sugerindo uma superação
materialmente específica dos limites de arbitrabilidade presentes na normativa geral de
arbitragem.
Na hipótese de entrar em vigor a normativa processual coletiva com a redação acima transcrita, é
certo que o intérprete brasileiro terá um grande desafio posto à sua frente, bem como, em suas
mãos, carregará a responsabilidade de definir os rumos dos critérios de arbitrabilidade dos
direitos difusos. Oxalá tome ele a opção de ampliar o acesso à justiça, garantindo aos
jurisdicionados a possibilidade de submeter a controvérsia ambiental à juízos especializados e
aptos a prestar a tutela com eficiência, precisão e rapidez.
3.1.4.2 Uum caso concreto: Fiat e Ministério Público firmam compromisso a respeito de
emissão de poluentes à atmosfera
Bertucci (2009) noticiou, em artigo publicado no sítio eletrônico da Ordem dos Advogados de
Mato Grosso do Sul, a ocorrência de um caso concreto de arbitragem envolvendo Ministério
Público, a montadora de automóveis Fiat e a Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São
Paulo. Aparentemente, discutiu-se no processo a adequação da montadora às normas de emissão
de gases na atmosfera.
No Brasil, o precedente de maior destaque é o caso ocorrido em Minas Gerais no qual
figuraram o Ministério Público (conciliados), a empresa FIAT AUTOMÓVEIS e a
SEMA/SP e que, levado ao conhecimento do primeiro a fabricação de veículos em
desacordo com as normas relativas à emissão de poluentes. Em síntese, para dar
respaldo ao compromisso assumido entre as partes, o Ministério Público Estadual
encaminhou a solução obtida mediante a arbitragem ao Conselho do Ministério Público
local e ao Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA). (BERTUCCI, 2009)
Segundo a redação do texto, o procedimento arbitral já teve o seu fim, uma vez que “solução
obtida” teria sido encaminhada ao Conselho do Ministério Público de Minas Gerais e ao
Conselho Nacional do Meio Ambiente.
109
Embora até o fechamento da redação deste trabalho não tenhamos logrado êxito no contato com
o Ministério Público de São Paulo e com a Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São
Paulo, no sentido de ter acesso a qualquer fonte de pesquisa que nos permitisse uma avaliação
não especulativa do assunto, suspeitamos que o objeto da arbitragem, no caso em comento, tenha
ultrapassado os limites de arbitrabilidade dispostos na lei 9.307/96, tendo em vista que a emissão
de poluentes à atmosfera dificilmente se enquadraria na tutela ambiental do microbem. Sendo
assim, resta saber se a sentença obtida através do procedimento foi respeitada pelas partes
compromitentes, já que situação contrária abriria a possibilidade de um controle judicial a
posteriori sobre a validade do procedimento. Tal processo judicial, se existiu, ou se está em
curso, certamente inauguraria, ou inaugurará, a jurisprudência brasileira acerca da arbitrabilidade
de direitos ambientais de caráter indisponível.
3.2 EXISTE COMPATIBILIDADE ENTRE O CONTEÚDO DO DIREITO AMBIENTAL E
OS CRITÉRIOS DE ARBITRABILIDADE?
É chegado o momento de cruzar as informações: os critérios de arbitrabilidade combinam com o
conteúdo do Direito Ambiental identificado? Esta tarefa será dividida em três etapas. A primeira
analisará a compatibilidade do sistema arbitral com os danos ambientais conexos; a segunda,
investigará se a possibilidade de apreciação arbitral de danos aos microbens ambientais; por
último, buscaremos resolver o problema da arbitrabilidade do macrobem ambiental.
A análise terá como ponto de partida os critérios de arbitrabilidade previstos no art. 1º da lei
9.307/96. A interpretação proposta no item 2.2.2.2, por ora, ficará suspensa, mesmo porque, caso
ela aqui fosse adotada, provavelmente todo este capítulo restaria infrutífero. Por outro lado, a
grande maioria da doutrina continua defendendo que os critérios de arbitrabilidade dispostos na
lei 9.307/96 reinam absolutos no ordenamento brasileiro. Ambos os motivos nos impelem a
construir o nosso raciocínio a partir dos mencionados critérios.
Antes de fazê-lo, entretanto, convém analisar como funciona e o que representa, no sistema
pátrio, o instituto do compromisso de ajustamento de conduta, previsto na lei 7.347/1985 (Lei de
110
Ação Civil Pública). Trata-se de mais uma pista que auxilia no raciocínio a respeito da
arbitrabilidade de questões que envolvam agressão ao meio ambiente e a sua tutela ressarcitória.
3.2.1 Disponibilidade, patrimonialidade e o compromisso de ajustamento de conduta
A imposição de obstáculos à arbitrabilidade de conflitos ambientais se apresenta ainda menos
eficaz quando é posta em debate a natureza jurídica do termo de compromisso de ajustamento de
conduta, figura prevista no §6º do art. 5º da lei 7.347 de 1985.
Sobre o instituto, diz a Lei que “os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados
compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá
eficácia de título executivo extrajudicial”.
Duas observações merecem destaque. Primeira: a legitimidade para tomar compromisso de
ajustamento de conduta é exclusiva dos órgãos públicos, diferentemente da abrangência dada
pela Lei à propositura da ação civil pública. Da regra, ficam excluídas as associações (art. 5º, inc.
V). Segunda: a redação da norma deixa claro que a sua finalidade é buscar o ajustamento da
conduta do agressor às exigências legais. Dessa particularidade se extrai um dos fundamentos
para a corrente que nega a natureza de transação ao instituto.
O fato é que o compromisso de ajustamento de conduta é, tanto quanto a arbitragem, um método
não judicial de solução de conflitos ambientais, no qual, a autonomia da vontade – novamente,
tanto quanto na arbitragem - exerce um papel fundamental. Sendo um instrumento de
pacificação, o instituto oferece uma via alternativa à efetivação do acesso à justiça, que evita a
demanda coletiva e, ao mesmo tempo, oferece aos destinatários da norma o seu mesmo efeito
(RODRIGUES, 2004, p. 91) – a exequibilidade das obrigações advindas da decisão.
Fincadas essas observações, interessa para o nosso estudo verificar o que se tem discutido acerca
da natureza jurídica do compromisso de ajustamento de conduta, com vistas a verificar a
abrangência da admissibilidade de seu objeto de tutela.
111
José Rubens Morato Leite registrou ser o compromisso de ajustamento de conduta instituto
autônomo, na medida em que regula uma ordem social e jurídica diferenciada daquela de que se
ocupam os instrumentos clássicos de Direito Privado, tal como a transação (2004, p. 106).
Porém, em obra publicada em conjunto com Lima e Ferreira, defendeu, no ano posterior, tratar o
instrumento de “figura peculiar de transação” (2005, p. 332). Segundo o seu raciocínio, através
do compromisso de ajustamento de conduta, “não se pode admitir a continuidade da conduta
inquinada de ilegal e lesiva ao meio ambiente, nem o seu temperamento” e o compromisso
“somente pode versar sobre prazos ou condições para o efetivo cumprimento das normas legais
que regem a matéria, não sendo de se admitir a tolerância com a prática de ato contrário ao
interesse jurídico-ambiental” (2004, p. 107). Parece-lhe, porém, – na oportunidade em que
escreve em conjunto com Lima e Ferreira - que “a ação civil pública e o TAC [termo de
ajustamento de conduta] são instrumentos capazes de possibilitar a reparação do dano ambiental
da forma mais integral possível” (2005, p. 342).
Marcelo Abelha Rodrigues não enxerga no compromisso de ajustamento de conduta a figura da
transação. Para o autor, “por intermédio do compromisso, obviamente, não se dispõe do direito
material”, tendo em vista que a indisponibilidade do direito ambiental, no seu entendimento,
decorre especialmente da ausência de legitimidade dos responsáveis pela propositura da ação
civil pública (2004, p. 95). Consoante a primeira posição adotada por Leite (2004) e o
entendimento defendido por Rodrigues (2004), o compromisso de ajustamento se afastaria do
conceito de transação185, considerando que esta implica um regime de “concessões mútuas”.
Alonso Jr. vai mais longe, argumentando que não é possível reconhecer no instituto as mesmas
características da transação, já que os conflitos por ela solucionados se restringiriam àqueles
envolvendo situações jurídicas patrimoniais de caráter privado (2006, p. 177).
Nada obstante, a posição mais radical talvez seja aquela adotada por José dos Santos Carvalho
Filho, para quem o compromisso de ajustamento de conduta nada mais é do que “o ato jurídico
pelo qual a pessoa, reconhecendo implicitamente que a sua conduta ofende interesse difuso ou
185
Também assim, FIORILLO, 2005, p. 372 e MAZZILI, 2007, p. 238.
112
coletivo, assume o compromisso de eliminar a ofensa através da adequação de seu
comportamento às exigências legais” (2004, p. 238). Veja-se que, aqui, o autor considera que a
margem de autonomia da vontade exercida pelo compromissário é irrelevante na determinação
dos efeitos jurídicos do compromisso, razão pela qual prefere alocar o instituto no rol dos atos
jurídicos, classificando-o de “unilateral quanto à manifestação volitiva” (2004, p. 238).
Estamos, contudo, alinhados com aqueles que identificam no compromisso de ajustamento um
mecanismo de transação186 (GRINOVER; GONÇALVES, 2006, p. 250), embora nos pareça
claro que, nesse caso, ficam impossibilitadas as partes de negociarem a respeito de renúncia ou
cessão de situações jurídicas indisponíveis. Está claro que, mesmo quando se está diante de
situações jurídicas indisponíveis, há elementos cuja transigibilidade é permitida: por exemplo, o
Ministério Público pode renunciar à recuperação imediata de área agredida, em função da
constatação de que o agressor não seria capaz de executá-la de imediato. Com isto, ele garante
que o prejuízo será ressarcido, e, ao mesmo tempo, não coloca o devedor em uma situação de
insustentabilidade econômica. Nesse sentido, alerta Mancuso que haverá casos em que a “não
celebração do acordo laboraria contra a tutela do interesse metaindividual objetivado” (2002, p.
239). De fato, o objetivo da ação civil pública não é a vitória no processo, mas, evidentemente, a
efetivação do direito substantivo187. Tem razão o autor quando diz que a transação em ação civil
pública não deve ser afastada sob o fundamento de ausência de legitimidade do demandante,
visto que poderá ele identificar, através do acordo, uma tutela mais eficiente do direito que
pretende reclamar perante o Poder Judiciário (2002, p. 243). Desde que a efetiva tutela seja
garantida por transação, nada impede que direitos indisponíveis sejam transacionados, com a
ressalva de que jamais poderão ser renunciados ou cedidos na sua integralidade188.
186
A esse respeito vale mencionar a proposta de regulação do instituto trazida pelo anteprojeto de Código Brasileiro
de Processos Coletivos, no seu art. 19, §10: “O termo de ajustamento de conduta terá natureza jurídica de transação,
com eficácia de título executivo extrajudicial, sem prejuízo da possibilidade de homologação judicial do
compromisso, hipótese em que sua eficácia será de título executivo judicial”.
187
Estamos de acordo, nesse particular, com Luiz Guilherme Marinoni, para quem a efetivação dos direitos através
do processo se dá a partir do emprego das técnicas processuais adequadas às particularidades do direito in status
assertionis (2006, p. 238).
188
Recorde-se, aqui, o sistema de gradação de disponibilidade da situação jurídica, sugerido por Castro Mendes,
admitindo-se a classificação das situações jurídicas em disponíveis e indisponíveis.
113
Com efeito, submeter o direito indisponível à transação não significa necessariamente promover
a sua disposição; a transação envolvendo matéria ambiental buscará estabelecer o tempo, o modo
e lugar de cumprimento da obrigação de caráter ressarcitório189, sem, que, com isto, seja
viabilizada a disponibilidade de situações indisponíveis. É um equívoco considerar que a
expressão “exigências legais”, prevista no §6º do art. 5º da lei 7.347/1985 seja capaz de estancar
a margem de negociabilidade do compromisso, como se a restituição da qualidade bem
ambiental fosse algo tão simples como restituir dinheiro. É correto pensar que o titular do direito
ambiental difuso deve receber em retorno tudo o que lhe foi privado pela ação lesiva. Entretanto,
quem conhece a complexidade das questões ambientais sabe que determinar a restituição dessa
qualidade perpassa por um sem-número de variáveis, as quais podem (e, em certos casos, devem)
passar por vias de negociação. A Lei prevê que a responsabilidade pelo dano ambiental enseja a
obrigação de indenizar. Entre a declaração condenatória e a efetivação do direito há um abismo
interminável, determinado por uma auto-explicativa ausência de regulação legislativa. Cada caso
terá particularidades suficientemente relevantes para que as partes possam encontrar a melhor
solução possível. Entre dois ou mais caminhos que chegam a um mesmo lugar (a efetividade da
qualidade ambiental), poderão compromitente e compromissário escolher o que melhor lhes
convier, com vistas a alcançar a satisfação do direito. Assim, temos que o compromisso de
ajustamento de conduta se enquadra perfeitamente no conceito de transação, a um, porque,
consoante afirmamos no capítulo anterior, a transação, nos seus contornos conceituais, não está
adstrita à extinção de controvérsias relacionadas exclusivamente a direitos disponíveis190. Essa
orientação, vigente em virtude do quanto disposto no art. 1025 do Código Civil, decorre de
política legislativa e, mesmo assim, em casos específicos, como na transação penal, o seu
conteúdo é mitigado. A dois, principalmente, o conteúdo da expressão “concessões mútuas” não
se relaciona exclusivamente com o núcleo da obrigação; a transação não se desnaturará se as
concessões forem empreendidas quanto ao tempo, lugar e modo de cumprimento.
O que em verdade define a natureza jurídica do compromisso de ajustamento de conduta é o seu
caráter negocial: é o compromisso de ajustamento de conduta um verdadeiro negócio jurídico
189
Nesse mesmo sentido entendem Fink (2001, p. 118) e Vieira (2001, p. 227).
190
Ver item 2.2.1 do capítulo 2.
114
bilateral (COUTO; CARVALHO, 302), já que os efeitos jurídicos do ato são definidos pelas
próprias partes, ainda que a elas não seja permitido manipular alguns deles. De fato, o que
constitui essencialmente o objeto do compromisso de ajustamento de conduta não é o direito
indisponível. A parte responsável por sua tutela não pode abrir mão da integridade do bem
ambiental e, como se pode deduzir, não é possível pensar em transferência de direito difuso,
tendo em vista que a sua característica essencial é ser titularizado por um conjunto indeterminado
de sujeitos. Contudo, a transação pode versar, uma vez violado o direito indisponível à qualidade
ambiental, sobre o modo, o tempo e o lugar correspondente ao cumprimento da obrigação de
restituir o statu quo ante. Sobre essas condições será possível viabilizar um regime de
concessões mútuas, em que o agressor apresente suas possibilidades e o representante dos
titulares do direito ao macrobem busque encontrar a solução mais eficiente para que os
representados passem a novamente gozar dos benefícios do seu desfrute.
Em linhas gerais, o que se pretende dizer é que, se é permitida a transação envolvendo os
detalhes da recomposição do dano ambiental. Ainda que a Lei exclua os entes privados
legitimados à propositura da ação civil pública da negociação, é bem provável que o sistema
igualmente admita que semelhante controvérsia, face os critérios constantes do art. 1º da lei
9.307/96, seja suscetível de arbitrabilidade.
3.2.2 Danos reflexos e a tutela ressarcitória arbitral
Os direitos ambientais conexos recebem do ordenamento jurídico uma proteção equivalente ao
direito ambiental difuso. Tal como foi possível verificar no capítulo anterior, essa categoria de
direitos ambientais não compreende situações jurídicas com características uniformes,
justificando-se o seu agrupamento apenas por terem em comum o fato de nascerem a partir de
um desequilíbrio do meio ambiente, bem como, no anverso da moeda, a sua proteção representar
contribuição à proteção ambiental (LEITE, 2003, p 142).
Dada à diversidade das características desses direitos, é impossível remetê-los a um
enquadramento definitivo nos conceitos de disponibilidade e patrimonialidade. Portanto, a nossa
115
proposta é analisá-los de acordo com as suas especificidades. Desde já, é importante registrar que
nem todos os bens conexos afetados por lesão ao macrobem possuem natureza individual191.
Como se viu, também o direito à saúde possui uma expressão individual e outra coletiva, cuja
violação pode suscitar, igualmente, pretensões de ambas naturezas. Resta saber, portanto, se as
situações jurídicas correspondentes a essa violação podem ser qualificadas de patrimoniais e
disponíveis. Outra advertência merece registro: o objetivo do nosso estudo é verificar a
arbitrabilidade da tutela ressarcitória do dano ambiental, razão pela qual por ora ficam excluídas
de nossas considerações as tutelas inibitória e de remoção do ilícito, as quais, em conjunto com a
tutela ressarcitória, perfazem o conjunto de instrumentos aptos à proteção jurisdicional do meio
ambiente (TESSLER, 2004).
3.2.2.1 Os danos à propriedade individual resultantes de agressão ao ambiente e os danos aos
direitos da personalidade
Que fique desde já esclarecido que não se analisa no presente momento a propriedade com
função ecológica. Trata o presente item de verificar se a violação à propriedade destituída de
função ecológica pode ser certificada pelo juízo arbitral e, também, se as consequências jurídicas
da ação lesiva podem ser imputadas por árbitros ao agressor.
Um exemplo: o sujeito A é proprietário de uma generosa porção de terra situada à beira da
estrada, na altura onde um veículo transportador de substância tóxica tombou, ocasionando o
vazamento do material ao solo em um raio de quinze metros do acidente. É óbvio que a referida
substância, além de contaminar o solo e provocar a morte de espécies da fauna e da flora no
entorno do vazamento, pôs a perder a primeira safra de uvas viníferas do tipo X, o qual
finalmente se adaptou ao terreno após seis anos de experimentos com o emprego de técnicas
especiais, resultado de grande esforço pessoal de A.
191
Nada obstante, quanto às repercussões individuais do dano ao equilíbrio ambiental, vale colacionar a lição de
Leite: “Não há dúvida de que este dano individual pode ser elencado dentro do gênero dano ambiental, levando em
consideração que a lesão patrimonial ou extrapatrimonial que sofre o proprietário, em seu bem, ou a doença que
contrai uma pessoa, inclusive a morte, podem ser oriundas da lesão ambiental” (LEITE, 2003, p. 141-142).
116
O caso em análise resulta para A duas espécies de prejuízo: um de natureza patrimonial, outro de
natureza extrapatrimonial. Evidentemente, A faz jus ao ressarcimento pelos danos causados à sua
propriedade: o correspondente pecuniário ao que gastou com suas pesquisas, com o plantio e o
equivalente àquilo que ganharia com a produção do vinho a partir da safra de uvas do tipo X; a
indenização pelo tempo valor de utilização do solo nas condições em que se encontrava, até o
momento em que se realize a sua integral reparação, de modo que esteja apto a produzir aquela
qualidade de uvas, bem como todos os lucros cessantes próximos decorrentes da paralização de
sua atividade. De outra parte, é certo que A, para tornar o seu solo apto a produzir determinada
qualidade de uvas, investiu suas forças e crenças pessoais durante anos de estudos e
experimentos, de onde resulta a sua imensurável frustração.
É certo que em relação ao primeiro grupo de prejuízos o tribunal arbitral se fará apto a a)
conhecer os fatos, b) certificar, a partir deles, se o ordenamento jurídico imputa responsabilidade
à parte acusada192 (os envolvidos com o vazamento da substância tóxica) e, por fim, se for o
caso, c) determinar as obrigações que viabilizem a satisfação do direito pela parte agredida. A
violação do direito de propriedade promove o nascimento de situações jurídicas de caráter
patrimonial e disponível. A proteção da propriedade privada está ligada à ideia de interesse
econômico e, como é óbvio, à proteção do patrimônio privado; está claro que a indenização pelos
danos advindos da violação à propriedade podem ser “trocados por dinheiro” (MENEZES
CORDEIRO, 1999, p. 103), mesmo quando seja a infungibilidade a característica mais marcante
do bem atingido. O bem infungível (tal qual a primeira safra da espécie rara de uva vinífera X),
embora tenha um valor inestimável por suas características singulares (GOMES, 2000, p. 222),
não pode ser confundido com a coisa fora do comércio, a qual, definitivamente, não pode ser
“trocada por dinheiro”. Diferentemente do bem infungível, o regime da coisa fora do comércio
normalmente sobrepõe o interesse público ao interesse econômico, razão pela qual as situações
jurídicas advindas da vinculação de tais bens a determinados sujeitos afastam a patrimonialidade.
Se a discussão orbita em torno de ressarcimento de bens disponíveis, tais como os do exemplo
apresentado, a conclusão imediata é que a sua indenização não poderá se revestir do caráter da
192
Partindo-se do pressupostos, neste caso, de que as partes convencionaram solucionar o conflito em instâncias
decisórias arbitrais.
117
indisponibilidade. Não há dúvida, portanto, quanto à arbitrabilidade dessa espécie de bens
conexos.
Outro grupo de danos individuais ambientais por ricochete, que se relacionam com a condição
de proprietário, são os que se revestem de caráter extrapatrimonial. De fato, uma lesão ao
patrimônio individual, com origem em um dano ao ambiente, pode implicar o sofrimento e a dor
daquele que teve os bens ofendidos. A reparabilidade do dano ambiental individual de viés
extrapatrimonial é, consoante informa Guimarães, hipótese que já não admite muita
controvérsia193, usufruindo de respaldo em recente jurisprudência pátria194 (2008, p. 65). Nesse
sentido, relembrando as conclusões a que chegamos a respeito da arbitrabilidade dos conflitos
indenizatórios de natureza trabalhista, cabe indagar se os danos extrapatrimoniais resultam
consequências jurídicas patrimoniais ou extrapatrimoniais, disponíveis ou indisponíveis. Não
entendemos como a situação pode diferir do regime aplicável à indenização do dano moral
tradicional, de origem civilística195. Aliás, aqui as semelhanças apontam para a arbitrabilidade do
ressarcimento por danos ambientais extrapatrimoniais. É certo que não é admissível a
arbitrabilidade de causas que versam sobre os direitos da personalidade, tal como a honra, a
193
São palavras da autora: “Na verdade, não há muita controvérsia a respeito da existência do dano moral ambiental
individual, visto que se uma lesão ambiental afeta diretamente, por exemplo, o patrimônio de um indivíduo
comerciante – poluindo a água de sua fazenda, contaminando o rebanho etc. –, é óbvio que esse indivíduo poderá
pleitear uma indenização em virtude da ocorrência de um dano moral ambiental, conforme as conseqüências
advindas da agressão” (2008, p. 65)
194
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA. INDENIZAÇÃO. VAZAMENTO DE ÓLEO NA BAÍA DE
GUANABARA. DANOS MATERIAIS E MORAIS. NULIDADE DA SENTENÇA. INOCORRÊNCIA. (...) Se a
parte postulou a prova oral e dela não se desincumbiu, correta é a decisão que a declarou perdida e, posteriormente,
preclusa, ante a ausência de interposição de qualquer recurso. Se a despeito da prova precária relativa à condição de
pescador a parte demonstra que sobrevivia da atividade do pescado na região atingida, tendo inclusive sido
beneficiada pelo Programa de Atendimento à Comunidade, deve ser reconhecido o direito à indenização pelos danos
materiais e morais decorrentes do vazamento de óleo na Baía de Guanabara. RECURSO PARCIALMENTE
PROVIDO” (BRASIL, 2003).
195
Nesse direção, é importante trazer as palavras de Antônio José de Mattos Neto (2005, p. 153): “O caráter da
extrapatrimonialidade não exclui a possibilidade do titular do direito auferir vantagem econômica, se houver lesão
da qual resulte dano. Nesse caso, o dano produz um direito patrimonial ao ofendido consubstanciado na
indenização”.
118
liberdade196. Entretanto, o direito à indenização por danos morais advindo da violação desses
direitos constitui situação jurídica de caráter patrimonial e disponível. Ainda que se consinta que
referidos bens jurídicos são inestimáveis e não podem ser objeto de negócio jurídico, advogar
que a sua violação, por conta disto, não pode resultar em indenização de caráter patrimonial
(mesmo porque a indenização, nesse caso, tem caráter compensatório e não restitutivo), inclusive
de natureza pecuniária, é endossar a impunidade do agressor e permitir a irressarcibilidade de um
prejuízo grave e injusto. Em outras palavras, é negar a tutela jurisdicional do direito. Está claro,
portanto, que a situação jurídica advinda da violação de um direito da personalidade apresenta
caráter patrimonial.
Resta indagar se o ordenamento impõe a sua irrenunciabilidade e a sua intransmissibilidade. A
resposta é negativa. Não existem óbices para que o ofendido renuncie o direito (o bem obtido
com a indenização) ou, ainda, obtendo-o, ceda a sua fruição a terceiros, constatação que permite
assegurar o seu caráter disponível. Portanto, não pairam dúvidas quanto à arbitrabilidade, uma
vez identificados o agressor e a agressão (reconhecida, portanto, a responsabilidade pelo dano),
do conteúdo condenatório apto a efetivar o direito do sujeito lesado.
Uma dúvida, contudo, ainda merece ser discutida. Está o tribunal autorizado a certificar a
ocorrência de uma violação ao direito indisponível? É dizer: quando o tribunal arbitral, no
momento em que o pleito que lhe for dirigido estiver restrito a decidir sobre o ressarcimento de
dano extrapatrimonial por lesão ao patrimônio, tiver de identificar a violação ao direito
indisponível (a integridade psíquica), identificar quem a provocou, e, assim, determinar o
conteúdo condenatório, caberá a submissão da controvérsia à arbitragem? A controvérsia que
impõe ao árbitro investigar a ocorrência de uma ofensa a um direito disponível é um “litígio
relativo a direito patrimonial disponível”?
196
Roxana Cardoso Brasileiro Borges, sobre o assunto, adverte que “o direito da personalidade, em si, não é
disponível stricto sensu, ou seja: não é transmissível nem renunciável. [...] Mas expressões do uso do direito da
personalidade podem ser cedidas, de forma limitada, com especificações quanto à duração da cessão e quanto à
finalidade do uso. Há, portanto, certa esfera de disponibilidade em alguns direitos de personalidade” (2005, p. 119120).
119
A resposta ao problema passa por uma questão prévia. É preciso saber qual o alcance da norma
que restringe o acesso à arbitragem. Trata-se de mais um obstáculo hermenêutico. “Litígios
relativos a direitos patrimoniais disponíveis” são aqueles que, do início ao fim, discutem
exclusivamente “direitos patrimoniais disponíveis” ou a expressão admite a discussão de direitos
extrapatrimoniais indisponíveis no âmbito do procedimento arbitral, desde que o pedido
endereçado ao tribunal não permita que os árbitros invadam o núcleo indisponível da res in
iudicium deducta? Scavone Jr. parece se inclinar por responder a esse questionamento mediante
a escolha da segunda opção:
[...] Ninguém pode transacionar, abrindo mão do seu direito à honra, que é um direito
da personalidade.
Todavia, a afronta à honra da pessoa gera o direito de receber indenização por danos
morais.
Assim, diante da afronta ao seu direito, nada obsta que, através de compromisso arbitral
com o ofensor, o valor da reparação seja arbitrado nos termos da lei 9.307/1996.
Nesse contexto, o árbitro não pode decidir se a pessoa tem ou não o direito à honra, vez
que este direito é indisponível.
Todavia, nada obsta que decida acerca do fato que enseja a afronta ao direito à honra e
quanto à liquidação dessa afronta. (2008, p. 27)
De fato, o que orienta a arbitrabilidade é a esfera de intervenção do decisor, cujos limites são
estabelecidos pelo autor no momento da propositura da demanda. Assim, se a pretensão levada
ao juízo envolve, única e exclusivamente, a percepção de indenização por prejuízos sofridos a
partir de lesão provocada a direitos indisponíveis de que é titular o demandante, fica garantida a
validade da sentença arbitral. Sobre o assunto a doutrina italiana197 se manifesta em voz
uníssona, para admitir a arbitrabilidade de pleito indenizatório decorrente de violação de direitos
indisponíveis, inclusive aquele decorrente de conduta criminosa (RUFFINI, p. 5670). Está fora
de discussão, portanto, que a tutela ressarcitória do dano extrapatrimonial ambiental de caráter
individual pode ser prestada pelo tribunal arbitral. No nosso exemplo, portanto, A poderia
celebrar com o responsável pelo vazamento de substância tóxica convenção de arbitragem para
discutir a) se o réu foi responsável pela lesão e, b) o objeto do ressarcimento, mas a certificação
197
Entre tantos, Zucconi Galli Fonseca (2007, p. 24), Ruffini (2008, p. 5670), La China (2007, p. 45).
120
da violação ao direito indisponível deverá passar, como veremos a seguir, pelo crivo do tribunal
estatal.
A essa altura já é possível observar que o raciocínio desenvolvido para o ressarcimento via
arbitragem do dano extrapatrimonial ambiental, que se relaciona com a integridade psíquica do
indivíduo, e, portanto, se estrutura na violação de um direito indisponível, deve ser aplicado aos
demais direitos da personalidade que eventualmente podem sofrer com um efeito reflexo de uma
lesão provocada ao meio ambiente, em especial o direito à integridade física.
Dito isto, interessa saber se Scavone Jr., ao afirmar que o árbitro pode decidir sobre o fato que
desencadeia a violação do direito indisponível, está com a razão. A questão perpassa pela norma
que trata da necessidade de remessa dos autos ao juízo estatal, nos casos em que o árbitro se
depara com “controvérsia acerca de direitos indisponíveis” de caráter prejudicial à resolução do
mérito. A observar o problema do ângulo do direito positivo, as diferentes situações que podem
advir da hipótese enfrentam os mesmos obstáculos.
Há controvérsia acerca de direitos indisponíveis quando o autor afirma o fato desencadeador da
violação à honra e o nega o réu? Evidentemente, uma controvérsia sobre fato não é controvérsia
sobre direito. Nesse caso, poder-se-ia pensar que o tribunal arbitral não teria a obrigação de
enviar os autos ao juízo estatal, para que o magistrado se pronunciasse sobre a questão; afinal,
estaria o tribunal arbitral discutindo o fato, não o direito. Contudo, é de se reconhecer que a
resolução pelo tribunal arbitral, relacionada com a controvérsia de natureza fática se endereçaria
a dar provimento ou não a uma pretensão indenizatória, a qual, automaticamente, atingiria os
obstáculos impostos pela Lei. O conhecimento sobre a controvérsia fática não se extingue na
declaração (da existência ou inexistência do fato, por exemplo), diante do caso analisado: se
presta a definir se a pretensão indenizatória merece acolhimento. No final das contas, ainda que
solucionando uma questão de fato, o árbitro se pronunciaria, da mesma forma, sobre a violação
de um direito de caráter indisponível, hipótese vedada pelo art. 1º da lei 9.307/96. Por isso,
discordamos de Scavone Jr., quando assevera que “nada obsta que decida acerca do fato que
enseja a afronta ao direito à honra” (2008, p. 27).
121
Não há dúvidas sobre a necessidade de remessa dos autos a juízo estatal do pleito indenizatório,
igualmente, quando há controvérsia acerca de direitos indisponíveis em que é incontroverso o
fato, mas discute-se se o acontecimento implica a violação de direito indisponível. Aqui,
novamente, o árbitro estará diante de questão prejudicial de caráter indisponível e o seu
conhecimento, ainda que incidenter tantum, é vedado pelo ordenamento jurídico pátrio.
Em realidade, essa interpretação, embora fundada na letra da legislação, é contraproducente.
Quando a hipótese tratada se refere à tutela ressarcitória de danos a direitos indisponíveis, a meta
do autor é alcançar a satisfação de um direito disponível. Entretanto, no intuito de perseguir uma
conclusão a respeito do direito alegado, o decisor terá, necessariamente, de analisar uma questão
prejudicial de direito. A remessa dos autos à justiça estatal, nesse caso, é absolutamente
infrutífera, para todos os lados: para as partes será um tormento, já que o procedimento arbitral
tardará tanto quanto o fizer a análise da questão prejudicial pelo juiz togado, sem falar na
insegurança que a sua decisão, produzida por um julgador sem especialização, poderá trazer às
relações jurídicas estabelecidas; para o juiz, e para os seus jurisdicionados, a entrada de
processos advindos de tribunais arbitrais gera mais atraso nos processos originários do serviço
estatal. Ninguém ganha, todos perdem. A isto se deve adicionar que as questões prejudiciais
“constituem antecedente lógico para o conhecimento da pretensão do autor, mas [...] não são
decididas pelo juiz da causa, e sim, incidentalmente, resolvidas por ele, porque sobre elas
ninguém pede decisão específica do magistrado” (MARINONI, 2005, p. 155). Uma vez que a
questão não integra o decisum, não será contemplada pelos efeitos da coisa julgada. Se esta não a
alcança, certamente a resolução da questão prejudicial não terá a aptidão de por em risco a
integridade do direito indisponível, salvo quando a parte propuser uma ação declaratória
incidental (arts. 5º e 325 do Código de Processo Civil brasileiro). Não há, portanto, fundamento
decente que sustente a manutenção da regra de remessa dos autos ao juízo estatal, quanto o
árbitro se depara com uma questão prejudicial que remete a uma situação jurídica indisponível.
Infelizmente, consoante adverte Carmona (2004, p. 291), “a Lei fez uma opção198, que
seguramente não é a melhor, mas há de ser respeitada”.
198
A recente reforma do sistema italiano fez uma opção que certamente o autor consideraria melhor: o art. 819 do
Código de Processo Civil abriu a possibilidade para que os árbitros conheçam de questões envolvendo direitos
indisponíveis incidenter tantum.
122
As conclusões apresentadas até aqui devem ser aplicadas integralmente à tutela coletiva dos
direitos individuais homogêneos. Por sua essência, os direitos individuais homogêneos, como já
sugere a alcunha dada pelo Código de Defesa do Consumidor, não são direitos coletivos. O bem
a ser adquirido com o implemento da tutela ressarcitória dos direitos individuais homogêneos
violados por dano por ricochete é exatamente o mesmo a ser adquirido mediante a
movimentação da tutela individual. A diferença é a modalidade da tutela pela qual a pretensão
individual é alcançada. Para que a modalidade coletiva seja utilizada, impõe a Lei que os direitos
individuais violados sejam homogêneos, é dizer, a teor do inc. III do art. 81 do Código de Defesa
do Consumidor, “decorrentes de origem comum”. Observe-se que não é o direito violado que
deve ser homogêneo para que se torne viável a utilização da tutela coletiva, mas a
homogeneidade fática da origem da lesão. O direito violado pode ser, como vimos, disponível ou
indisponível, mas o objeto a ser alcançado com a indenização terá sempre, no plano individual,
caráter disponível. A tutela coletiva de direitos individuais homogêneos, portanto, em matéria
ambiental pode ser prestada por árbitros, quando assim as partes envolvidas optarem.
3.2.2.2 Os danos à saúde provocados por omissão do Poder Público
Quando no segundo capítulo foi abordado o ponto de encontro entre o direito à saúde e o Direito
Ambiental, ventilou-se a hipótese de a contaminação de mananciais hídricos atingirem a saúde
da população que deles faz uso corrente. Naturalmente, a análise relativa aos danos provocados à
saúde dos indivíduos desemboca na violação dos direitos da personalidade (integridade física) a
que se fez referência no item precedente.
Interessa, por outro lado, a discussão acerca da dimensão objetiva do direito à saúde citada por
Dias (2008, p. 334), cujo conteúdo revela a pretensão do cidadão de assistir a um fortalecimento
da barreira de proteção imposta pelo Estado perante terceiros, a qual, por sua vez, compreende a
produção legislativa e a criação de condições materiais (por exemplo, fortalecimento da estrutura
de vigilância sanitária e a sua correspondente atividade fiscalizadora) e institucionais (por
exemplo, a criação de organismos específicos voltados ao atendimento de demandas da
população relacionadas com a proteção da saúde).
123
Vislumbra-se, aqui, diante do exemplo dado, de contaminação de mananciais hídricos, a
autorização expressa do Estado a terceiro para descarga de substâncias tóxicas em tais corpos
hídricos. Nesse caso, embora os danos à integridade física – os quais constituiriam o objeto da
controvérsia a ser submetida ao procedimento arbitral – sejam os mesmos abordados no item
anterior, o pólo passivo da demanda com objeto ressarcitório, no caso ora trazido à apreciação,
passa a ser ocupado por ente público. Essa particular característica suscitaria problemas quanto à
arbitrabilidade do litígio, caso a responsabilidade do Estado não fosse por ele previamente
reconhecida. Entraria no objeto do processo levado ao juízo arbitral a malfadada prática de atos
de império, dessa vez sem qualquer conexão com contratos públicos.
A solução do problema é análoga à desenvolvida no item anterior. Opta-se o demandante por
pedir apenas a responsabilização do Estado pelos danos à saúde. Da consequente condenação ao
ressarcimento, surgirá, necessariamente, questão prejudicial envolvendo direito indisponível,
que, no sistema pátrio, provocará a remessa dos autos à jurisdição estatal. Se, por outro lado, a
opção do demandante é dirigir ao tribunal arbitral, além do pleito indenizatório, pedido
declaratório de invalidade de ato administrativo (da autorização de descarga de efluentes
tóxicos), a conclusão é diversa. Ainda que, de lege ferenda, ao nosso juízo, não existam
fundamentos sólidos justificadores para impedir que a controvérsia em questão seja submetida ao
tribunal arbitral, é prudente afirmar que, em face do direito positivo vigente no ordenamento
brasileiro, a hipótese não é admitida. Consoante ficou anotado no capítulo anterior, no Brasil se
admite pontualmente a arbitrabilidade de conflitos oriundos de contratos administrativos de
concessão de serviços públicos, relativamente ao cumprimento/descumprimento das obrigações
pactuadas pelas partes no instrumento. Isto não quer dizer que se admitiu, na legislação – nem
mesmo a legislação específica sobre contratos de concessão de exploração de petróleo e gás
natural – a discussão acerca da validade de atos de império praticados na vigência do contrato, de
onde se extrai a informação de que não está, no ordenamento jurídico brasileiro, autorizado o
árbitro a apreciar a validade de atos administrativos. Não lhe caberia, portanto, avaliar se a
prática de ato autorizativo pelo Estado rendeu ao demandante prejuízos capazes de desencadear
os efeitos jurídicos relacionados à exigibilidade do ressarcimento. Observe-se que o raciocínio
aqui desenvolvido vale também para os casos em que for o Estado o responsável dano ambiental
ao microbem.
124
3.2.3 Danos ao microbem e a tutela ressarcitória
Dissemos que o microbem implica o aproveitamento particular das qualidades que oferece ao ser
humano. Trata-se de bem corpóreo, materializado, o qual, apesar de poder servir a um
patrimônio privado, desempenha, simultaneamente, uma função ecológica, contribuindo com a
estabilidade ambiental, conteúdo do direito ambiental difuso.
É preciso, portanto, separar o dano imposto à coletividade do dano imposto ao proprietário de
recursos naturais. É bem verdade que, em determinadas situações, quando a intensidade da
agressão for grande, geralmente o dano provocado ao equilíbrio ambiental acarretará prejuízos
sentidos também por particulares, nos limites de suas propriedades. Nada obstante, como ficou
claro no desenvolvimento do segundo capítulo, a violação a bens ambientais distintos significam
demandas distintas. O direito do proprietário sobre os recursos naturais de que tira proveito
(como se viu, não necessariamente econômico) diretamente, por sua condição de dono, uma vez
violado, desencadeará os efeitos de uma demanda indenizatória. Independentemente da tutela
coletiva que incumbe aos legitimados da Ação Civil Pública requerer, tendo a agressão contra o
microbem afetado, por tabela, o equilíbrio ambiental, ou não, o fato é que o proprietário,
assistindo à degradação ambiental dos recursos naturais presentes em sua propriedade, estará
habilitado a exigir contra o agressor uma condenação de natureza ressarcitória.
O que interessa saber, aqui, é se é válida a convenção de arbitragem firmada entre o proprietário
e o agressor. A resposta é afirmativa. O direito de propriedade sobre o microbem possui uma
particularidade, que é a imposição pela legislação de limitações ao seu exercício, exatamente em
virtude da função ecológica que ele desempenha. Entretanto, existe uma margem de
disponibilidade que cabe ao proprietário manejar. Não admite a legislação que o proprietário de
terra em que se situe cinturão de mata atlântica proceda ao seu descarte, para atribuir ao solo um
uso alternativo. O mesmo imóvel, contudo, poderá ser vendido a terceiros. Poderá ser doado.
Poderá assumir finalidade comercial, voltada à prática de ecoturismo. O objeto da convenção de
arbitragem que firma o proprietário com o agressor não poderá envolver a dimensão coletiva do
aproveitamento do recurso natural. A indenização que se pleiteia – que pode, a critério do
proprietário, ser específica (in natura), ou em dinheiro – se restringirá à recomposição do
125
patrimônio material e imaterial de que se privou o proprietário, a partir do momento em que a
agressão atingiu a sua esfera de interesses.
Cabe aqui fazer uma ressalva quanto aos bens de titularidade do Poder Público, normalmente
classificados como “bens de uso comum do povo”. É evidente que esses, embora componham o
microbem, se equiparam ao regime de indisponibilidade afeito ao macrobem, tendo em vista que
o seu aproveitamento é de toda a população. Os rios e mares são bens públicos, mas não
oferecem a mesma função patrimonial ao Estado que um edifício público. O Estado, nesses
casos, conserva em sua titularidade determinados recursos naturais com a finalidade de torná-los
acessíveis a todos indiscriminadamente, vez que a sua manutenção é essencial à qualidade de
vida da população. O Estado, em regra, não está autorizado a renunciar ou transmitir a
titularidade de bens públicos a particulares, sobretudo quando a finalidade da afetação é a
satisfação de um interesse difuso. Assim, deve-se entender que, no atual panorama do direito
positivo, não é admitida a arbitrabilidade de litígios que envolvam os microbens afetados pelo
Poder Público. Contudo, no que diz respeito à sua tutela ressarcitória, as conclusões apresentadas
no item subsequente, quando trataremos da arbitrabilidade do dano ao macrobem, serão
irrestritamente aplicáveis ao caso presente.
Salvo essa exceção, é válido afirmar que o direito de propriedade limitado que recai sobre o
microbem ambiental é relativamente disponível. O proprietário pode cedê-lo e aliená-lo, e enfim,
dele dispor. Também é patrimonial. O microbem ambiental pode ser trocado por dinheiro. O
direito indenizatório decorrente de sua violação conservará essas mesmas características.
Sendo assim, é claro que a demanda ambiental que envolva o ressarcimento por lesão ao
microbem é passível de apreciação por árbitros199. Com efeito, os critérios estabelecidos no
direito positivo vigente autorizam essa conclusão. Estando o conflito enquadrado nos critérios de
disponibilidade e de patrimonialidade, não há como afastar a possibilidade da tutela arbitral.
199
Compartilhamos o mesmo entendimento de Frangetto (2006, p. 39): “Assim, se o art. 1º da Lei n˚ 9.307/96, é
explícito em não admitir a arbitragem senão para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, fica
facilitada a arbitragem quando não se tratar do macrobem ambiental”.
126
3.2.4 Danos ao macrobem e a tutela ressarcitória
O direito à higidez do macrobem ambiental é difuso. A indisponibilidade do direito ao
macrobem decorre de sua própria natureza, mais do que da ilegitimidade para dele dispor. Com
efeito, solucionar o problema da legitimidade de disposição seria tão difícil quanto foi solucionar
o problema da legitimação processual ad causam (art. 5º da Lei de Ação Civil Pública) para
desencadear a sua tutela jurisdicional: uma cartada legislativa seria suficiente. O real problema
da disponibilidade do direito difuso a um meio ambiente equilibrado independe da sua
titularidade. A questão remete à essencialidade do bem. Imagine-se que, num exemplo absurdo,
todos os cidadãos do mundo pudessem manifestar a sua vontade em um negócio jurídico e,
assim, anuíssem que os países com limites esgotados de emissão de poluentes à atmosfera
pudessem poluir mais em troca do aporte de vultosos investimentos no continente africano,
objetivando o desenvolvimento econômico da região. Nesse exemplo, o problema da
legitimidade estaria resolvido200. Contudo, restaria um outro. A massa indeterminada de sujeitos
não pode negociar um bem que é essencial ao seu próprio bem-estar (indisponibilidade da
integridade física) e, ainda mais importante, não pode com isto por em risco outros bilhões de
vidas não-humanas, ainda que o objetivo do negócio seja o mais nobre possível. A dimensão
ética adotada com o antropocentrismo alargado revela que, através da preservação da vida
natural, preserva-se a vida humana, o que torna o direito ao equilíbrio ambiental um direito
indisponível é a essencialidade do macrobem à vida, seja humana, seja não humana. A sua
imprescindibilidade impõe o caráter inegociável do direito. Autorizar a disposição do equilíbrio
ambiental equivale a autorizar que determinado sujeito negocie seu próprio coração. O negócio
jurídico em que se verifica a disposição do direito ao equilíbrio ambiental é inválido por ilicitude
200
O direito ao equilíbrio ambiental é um direito dos sujeitos que existem; contudo, o respeito a esse direito dos que
existem interessa também aos que ainda não existem (às futuras gerações). Porém, que não é sujeito de direito não
pode adquirir direitos (deve-se lembrar, aqui, que o embrião, a massa falida, são todos entes despersonalizados, mas
são sujeitos de direito, diferentemente das “gerações futuras”). A ausência de anuência dos que ainda não existem
não configuraria um problema de legitimidade. Também não constituiria problema de legitimidade aqueles que
defendem que determinados componentes da natureza são dotados de personalidade jurídica (DIAS, 2005), já que,
nesse caso, a própria lei indica quem deve representá-los.
127
do objeto. O equilíbrio ambiental é coisa fora do comércio. Exatamente por ser indisponível é
que não pode ser trocado por dinheiro201.
Dito assim, é claro que a controvérsia que tenha por objeto litígios relativos a direito ao
equilíbrio ambiental não podem ser submetidos à arbitragem, sob pena de invalidade da
convenção de arbitragem e de todos os atos processuais praticados no curso do procedimento,
inclusive a sentença. Trata-se, como é evidente, de um problema relacionado com o direito
positivo, uma vez que, consoante se demonstrou ao longo do capítulo anterior, os critérios de
arbitrabilidade não estão intrinsecamente relacionados com a natureza do instituto, mas, em
verdade, revelam opções ideológico-morais que influenciaram a política legislativa, no momento
histórico em que a normativa de arbitrabilidade foi elaborada e aprovada.
Não se pode ignorar, contudo, que o novo art. 852 do Código Civil ofereceu à jurisprudência
uma opção interpretativa que amplia com bastante força o leque de arbitrabilidade no país. De
fato, o dispositivo alcançaria grande parte dos litígios envolvendo o meio-ambiente, já que o
pacto compromissório é o instrumento apto a submeter controvérsia à arbitragem após o
aperfeiçoamento da relação jurídica. Os critérios de arbitrabilidade tem sido flexibilizados ao
longo do tempo e do espaço. A Lei, além de conferir aos árbitros poderes de caráter jurisdicional,
a eles impõe limites e responsabilidades. A parte, por outro lado, ao firmar a convenção de
arbitragem, não autoriza o árbitro a dispor de situações jurídicas de que ela é titular. O papel do
árbitro, de fato, não é mediar um negócio. Ao contrário, sua função é equivalente a do
magistrado: garantir o contraditório e decidir, consoante determinado corpo normativo, a quem
assiste razão. Essa tarefa é cumprida quando o árbitro desvenda qual argumentação está abrigada
pela norma e qual não está. O árbitro não só pode decidir controvérsia envolvendo matéria de
ordem pública, como também está vinculado à ordem pública e à norma jurídica. O árbitro, tal
como o magistrado, está proibido de decidir contra o Direito. Portanto, a ele é vedado promover
a disposição de um direito indisponível. A adoção de tal postura enseja o controle jurisdicional e
a consequente anulação da sentença. Qual é o receio de submeter a controvérsia que envolva
201
É importante advertir que a relação de causa e efeito aqui demonstrada é específica do caso em análise, já que
não existe uma relação automática entre patrimonialidade e indisponibilidade, tal é o caso do direito à percepção do
salário mínimo.
128
direito indisponível ao árbitro? Quais equívocos poderá ele cometer, aos quais estão imunes os
magistrados? Por que os magistrados merecem uma confiança que é negada aos árbitros? O
poder simbólico do Estado é assim tão forte, capaz de convencer os jurisdicionados de que o selo
público é uma garantia que os façam dormir mais tranquilos?
Não se oferece um argumento científico que impeça o árbitro de solucionar controvérsias
relacionadas a direitos indisponíveis. Como bem relata La China, o Estado teme que, pela via
arbitral, os valores jurídicos e sociais sejam menos convictamente aplicados e defendidos pelos
árbitros (2007, p. 41). Talvez a ideia de La China resida no fato de que – tanto no Brasil, quanto
na Itália - ainda há hoje magistrados com perfil conservador, os quais, portanto, podem
eventualmente impedir que o casamento entre homossexuais seja convalidado; que se proceda ao
aborto do feto portador de anencefalia; que se permita a pesquisa com células-tronco. A questão
é que essa geração não oferecerá para sempre os seus serviços ao Estado; seus lugares serão
ocupados, cada vez mais, por magistrados formados a partir de uma concepção cada vez menos
positivista, cada vez mais pragmática e finalística, voltada à efetivação de direitos fundamentais.
Portanto, essa garantia de manutenção do status moral que o aparato jurisdicional do Estado
oferece, hoje alicerce indestrutível, amanhã será mera recordação de um tempo que já não volta.
É certo, contudo, que o maior fundamento para a rejeição da arbitrabilidade de direitos
indisponíveis é a independência do árbitro. Os árbitros não estão sujeitos a promoções de carreira
ou a cargos prestigiosos em tribunais superiores. Não estão inseridos no jogo político dos
poderes internos do Estado. Seu compromisso é com as partes: o de oferecer-lhes a melhor
decisão possível, apta a pacificar o conflito. A carreira deles depende disto. A possibilidade de
controle do ato de decisão ainda seduz a resistência à arbitrabilidade de direitos indisponíveis.
Contudo, o movimento contra a inarbitrabilidade, como se viu, é crescente, a ponto de
assistirmos em alguns países a exclusão, de seus ordenamentos jurídicos, do critério da
disponibilidade.
Admitindo-se, contudo, que os critérios de arbitrabilidade vigentes no Brasil são a
disponibilidade e a patrimonialidade do direito, resta verificar se, uma vez lesado o macrobem, é
possível submeter a controvérsia ressarcitória ao tribunal arbitral. Já ficou registrado que as
situações jurídicas do pleito indenizatório nem sempre correspondem àquelas oriundas do direito
129
protegido. Contudo, tratando-se de recomposição do equilíbrio ambiental, é fundamental descer
às minúcias da matéria no intuito de buscar uma conclusão consistente.
Uma primeira advertência quanto à indenização relacionada ao dano macrobem deve ser feita:
diferentemente das situações jurídicas de caráter ressarcitório oriundas da violação de situações
jurídicas de caráter individual (tais como os direitos da personalidade), o direito à indenização
por violação ao equilíbrio ambiental é indisponível. O bem que se pretende obter com o
cumprimento da obrigação de caráter ressarcitório, no caso da tutela do macrobem, é igualmente
indisponível. Não é possível renunciar, transmitir, alienar o objeto da indenização por violação à
qualidade ambiental, exatamente porque esse objeto serve a contribuir com a manutenção do
equilíbrio ambiental. Mesmo que o objeto da pretensão indenizatória seja dinheiro, é certo que o
destino desse montante são os fundos de reparação do meio ambiente, cuja finalidade é fortalecer
a qualidade ambiental. Veja-se que, diferentemente de uma lesão aos direitos da personalidade,
cuja reparação é aproveitada pelo indivíduo, o objeto da indenização do dano ambiental é
aproveitado pela coletividade, na mesma forma e medida que aproveita ao bem ambiental. Aliás,
por mais que se defenda que o ressarcimento por dano ao macrobem é sempre um sucedâneo, na
medida em que não é possível restabelecer as exatas condições originais, é verdade que a função
do objeto da indenização é idêntico àquela do próprio bem tutelado. Aqui reside uma outra
diferença entre indenização por lesão aos direitos da personalidade e o macrodano ambiental: a
função do objeto da indenização, nesse caso, é confortar o sofrimento por que passou a vítima,
enquanto que a função do ressarcimento do dano ao macrobem é restaurá-lo, seja através do
restabelecimento do status quo (restauração ecológica), seja pela aplicação de técnicas diversas
em locais distintos daquele agredido (compensação ambiental), seja, ainda, mediante o
recolhimento de montante pecuniário a fundos públicos que cuidam do fortalecimento do
macrobem. Se o objeto da pretensão é indisponível, está claro que o árbitro não poderá “dizer, na
base de perícias, na base de provas, se houve o dano ambiental? e condenar na sentença
arbitral?”202. Decidindo acerca da ocorrência de evento causador de dano ambiental e
condenando o réu, o árbitro estará declarando a violação a um direito indisponível, de um lado, e,
202
Os questionamentos dentro das aspas foram levantados pela professora Ada Pellegrini Grinover, na sua
“Conferência sobre arbitragem na tutela dos interesses difusos e coletivos”, p. 263.
130
de outro, estará fixando o objeto indisponível que deverá compor o ressarcimento
correspondente. A declaração constituirá, evidentemente, provimento que não se enquadra na
locução “dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”, embora estejamos de
acordo com as perplexidades manifestadas por Ada Pellegrini Grinover (2006, p. 263). Ainda
que, com grande pesar, reconhecemos que a hipótese é vedada pela ordenamento jurídico pátrio,
considerando-se prevalente a linha interpretativa clássica a respeito do art. 852 do Código Civil.
O objeto da obrigação de recomposição do macrobem também oferece algumas restrições à
arbitrabilidade em função de um outro aspecto da recomposição do macrobem. É que o dano
ambiental de caráter difuso demanda a observância a uma escala prioritária de ações, cujo
objetivo é aproximar o máximo possível o resultado do ressarcimento às condições naturais
originais. Lembre-se que o objeto indenizatório perseguido pela Lei é a restauração natural, ou
seja, a recomposição das condições ecológicas existentes em momento anterior à agressão; em
seguida, provando-se impossível essa via, buscar-se-à compensar o dano mediante a sua
substituição por bem funcionalmente equivalente (LEITE, 2003, p. 212) ou mediante a
restauração de área diversa de onde foi provocada a lesão pelo agressor (STEIGLEDER, 2004, p.
249). Steidegler extrai de diversas normas do ordenamento jurídico brasileiro o dever de atender
a essa graduação obrigacional a que deve se submeter o condenado à reparação (2004, p. 236237): primeiramente, residiria o fundamento no §1º do art. 225 da Constituição Federal, que
refere ao dever do Poder Público de “preservar e restaurar os processos ecológicos e prover o
manejo ecológico das espécies e ecossistemas”; regra específica situada no §2º do mesmo
dispositivo, relacionada a recursos minerais confirmaria a hipótese; em segundo lugar, a escala
de prioridades de ações encontraria respaldo no inc. VIII do art. 2º da lei 6.938/81, dispositivo
que estabelece como princípio da Política Nacional do Meio Ambiente “a recuperação de áreas
degradadas”; em terceiro, o fundamento estaria consignado no art. 84, §1º do Código de Defesa
do Consumidor – do que, presumimos, estaria, também, consignado no art. 461 do Código de
Processo Civil –, norma que configura a indenização em perdas e danos em alternativa
subsidiária à tutela específica.
Dito isso, a conclusão que se pode obter, a partir dos critérios de arbitrabilidade insculpidos na
legislação vigente, é a de que o objeto da obrigação indenizatória não pode constituir a
131
controvérsia a ser submetida a tribunal arbitral. Resta, portanto, investigar qual a margem de
arbitrabilidade que se coaduna com os critérios de arbitrabilidade presentes na legislação pátria.
A pouca doutrina que aborda a questão da arbitragem em matéria ambiental defende que o modo
(a quantidade e a qualidade dos meios necessárias a garantir o conteúdo da prestação), o tempo e
o lugar de cumprimento da obrigação poderiam constituir objeto da controvérsia a ser submetida
a apreciação de árbitros (FRANGETTO, p. 62; COUTO; CARVALHO, p. 329; GONÇALVES,
p. 155). Quando abordamos o tema do compromisso de ajustamento de conduta, ficou claro que
é viável a transação a respeito do modo de cumprimento, do tempo e do lugar das obrigações que
adéquem a conduta do compromissário às exigências legais. Eduardo Damião Gonçalves tem
posicionamento claro a respeito do tema. Para o autor, partindo-se da premissa de que as
condições de cumprimento da obrigação podem ser objeto de compromisso de ajustamento de
conduta, o mesmo aconteceria quando fosse posta em discussão a possibilidade de submeter a
controvérsia à arbitragem (2007, p. 155). Frangetto vai no mesmo sentido (2006, p. 63). Ada
Pellegrini Grinover pontua que, relativamente à questão ambiental,
o modo de cumprimento da obrigação, esse é disponível. Não ataca o núcleo
fundamental do direito indisponível. Mas cuida, exclusivamente, de um acordo ou de
uma arbitragem sobre a maneira de se cumprir a obrigação relativa à conservação, à
preservação, à reconstituição do meio ambiente (2006, p. 252).
Concordamos com a autora, mas sobre o seu raciocínio é fundamental pontuar o seguinte: nem
sempre a controvérsia relacionada ao modo, ao tempo e ao lugar de cumprimento da obrigação
deixará de afetar o “núcleo fundamental” indisponível da situação jurídica.
Foi dito
anteriormente que a transigibilidade de situações jurídicas indisponíveis não acarreta
necessariamente a sua disponibilidade, já que é possível negociar a respeito do tempo, lugar e
modo de cumprimento da obrigação; entretanto, em determinados casos, essa situação poderá vir
a ser implementada. Imagine-se203 que o Ministério Público firma compromisso de ajustamento
de conduta para que o responsável por queimada ilegal em Mata Atlântica, no prazo de sete dias,
203
Pedimos licença, aqui, para oferecer mais um exemplo absurdo; porém, a sua utilização se justifica a partir da
crença de que, com ele, a compreensão do tema é efetivada de modo mais eficiente.
132
faça parar o avanço do fogo. Ora, a medida é absolutamente infrutífera para garantir a higidez do
macrobem, de modo que a fixação do tempo do cumprimento da obrigação é ponto fulcral para a
proteção do direito fundamental. Assim, flexibilizando o tempo do pagamento, o Ministério
Público estaria renunciando à qualidade ambiental, hipótese vedada pelo ordenamento jurídico.
Admitir a transação a respeito do modo, tempo e lugar da obrigação em compromisso de
ajustamento de conduta é implicitamente considerar que os seus efeitos necessariamente serão
destinados a garantir a higidez do macrobem. O cumprimento da obrigação se destina a alcançar
um determinado resultado X (no caso presente, é o reequilíbrio ambiental que se pretende
alcançar), garantidor do direito material tutelado, tarefa que pode ser desempenhada com a
aplicação dos métodos A, B e C. Entretanto, havendo um método D, que alcança um resultado Y,
é evidente que a obrigação persistirá, já que a ação do devedor não foi, nesse caso, suficiente
para proporcionar o resultado apto a assegurar a tutela do direito violado. Não haverá, no juízo
arbitral, efetivamente, um pronunciamento sobre um direito indisponível, mas um julgamento
sobre a eficiência da aplicação de um método de assegurar a tutela do direito disponível. O
árbitro, portanto, pode estabelecer o modo, o tempo ou o lugar de cumprimento da obrigação,
mesmo sabendo que a sua decisão, se equivocada, poderá afetar a qualidade do objeto da
indenização? Sim. O árbitro, tal como o juiz, é prestador de tutela. A sua decisão é indiscutível
nos limites em que os seus efeitos sirvam para garantir o bem que se pretende tutelar, sobretudo
porque, no caso presente, a obrigação estipulada previamente (em instrumento particular ou em
sentença condenatória emanada do Poder Judiciário) determinará o resultado que se pretende
atingir. Se o árbitro escolhe um modo de cumprimento da obrigação que não assegura o seu
resultado, a sua decisão poderá ser anulada, por força do inc. IV do art. 32 da lei 9.307/96. A
controvérsia que busca uma apreciação sobre o modo, tempo ou lugar de cumprimento da
obrigação não versa sobre direitos indisponíveis, considerando que a higidez do direito está
garantida pela fixação do resultado a ser obtido com o seu cumprimento.
A doutrina especializada defende, ainda, que os limites de co-responsabilização pelo dano
ambiental poderiam ser discutidos em tribunal arbitral (GRINOVER; GONÇALVES, p. 261;
COUTO; CARVALHO, p. 311). Para uma análise mais aprofundada do assunto, é necessário
distinguir dois tipos de demanda que da situação podem surgir: a que visa a redistribuição dos
custos da responsabilização entre os co-responsáveis (fundada na responsabilização solidária
133
equivalente das fontes de risco) e a que objetiva rediscutir parcelas de responsabilização (definir,
entre as fontes de risco, aquelas que contribuíram mais ou menos – ou nada – para o advento do
dano). O fato é que, via de regra, a responsabilização ambiental é solidária e, com vistas ao
princípio da precaução204, não se exige para a sua configuração nexo causal fundado em certeza,
mas em probabilidade (STEIGLEDER, p. 147). Sendo assim, a determinado sujeito (chamemolo de “sujeito A”) pode ser imputada responsabilidade ambiental apenas pelo fator risco que a
sua atividade impõe ao equilíbrio ambiental, mesmo que não tenha sido ele o responsável pela
produção do fato gerador do dano. Esse mesmo sujeito A, inconformado com os prejuízos que a
responsabilização lhe impõe, pode redistribuir esse ônus a terceiros que, diante de seu
entendimento, tenham efetivamente contribuído para provocar o desequilíbrio ambiental.
Evidentemente, a causa que busca a redistribuição de prejuízos econômicos, em função do
regime de solidariedade passiva aplicado à tutela do macrobem, se enquadra nos critérios de
arbitrabilidade da lei 9.307/96, embora, do nosso ponto de vista, não esteja verdadeiramente
ligada à tutela ambiental. Por outro lado, não se poderia chegar a essa mesma conclusão se fosse
posta em discussão a arbitrabilidade da redistribuição da responsabilidade ambiental. Imagine-se,
por exemplo, que o sujeito A, inconformado com a imputação pela Administração Pública de
responsabilidade por um dano ambiental que sabe não ter cometido, propõe uma ação
declaratória em face de vários sujeitos vizinhos, que, do ponto de vista do risco, podem haver
contribuído mais do que ele na provocação do dano.
Note-se que existe uma grande diferença entre a redistribuição dos custos da responsabilização e
a redistribuição da responsabilidade em si. No primeiro caso, o responsabilizado deseja única e
exclusivamente reaver parte do dinheiro que empregou na quitação da obrigação ressarcitória
que lhe foi imposta. No segundo, deseja ele que se declare que a responsabilidade, ou parte dela,
não é sua, mas de terceiro. Aqui, pode-se efetivamente dizer que está em utilização a tutela do
macrobem. Não está em jogo apenas o quantum referente à obrigação de reparar, mas a fixação
204
O princípio da precaução está relacionado com a necessidade de estabelecimento de um sistema de controle de
riscos, de modo que a atitude diante de incertezas quanto ao impacto sobre o meio ambiente da aplicação de novas
técnicas ou tecnologias deve ser cautelosa, impedindo-se o seu emprego enquanto não for certo a segurança
ambiental na sua utilização.
134
da parcela de responsabilidade que cabe ao sujeito pela ocorrência do dano ambiental. Seria o
caso de perguntar: uma vez garantida a higidez do meio ambiente, uma vez que o sujeito
apresentou ao Estado as ferramentas necessárias a recuperar o equilíbrio ambiental, remanesceria
insuscetível à arbitragem a controvérsia que objetivasse discutir parcelas de responsabilidade
relacionada ao evento danoso? O objeto da controvérsia deve ser sempre fixado, para efeito de
investigação de arbitrabilidade, a partir do que o autor deseja da demanda. No nosso problema,
deseja o autor da demanda a declaração da responsabilidade de um terceiro, pela atividade
danosa ao meio ambiente. Essa declaração não pode ser obtida por via negocial; não pode ser
renunciada, nem transferida; aquele a quem não foi imputada a responsabilidade ambiental não
poderá tomá-la como sua, mediante um contrato firmado com o sujeito a quem foi ela imputada.
Não se altera a “verdade” por contrato. Trata-se de negócio jurídico inválido, por ilicitude do
objeto. Essa é uma situação jurídica passiva indisponível. Também não é patrimonial. Se o autor
deseja, no caso em questão, a declaração da responsabilidade de terceiro, só por tabela o
problema refletirá questão patrimonial. Mas o conteúdo imediato do pedido seguramente não
reflete tal característica. Note-se que o problema, no caso presente, não é a possibilidade de por
em risco a qualidade ambiental, hipótese que fica desde já afastada, em virtude da
responsabilidade solidária, imputável a qualquer dos prováveis causadores do dano. O fundo do
obstáculo de arbitrabilidade, no caso presente, corresponde ao caráter indisponível da
controvérsia que versa sobre a fixação da responsabilidade civil. Definitivamente, portanto, no
caso levantado pela doutrina especializada, a questão, partindo-se do direito positivo vigente, não
seria suscetível de arbitragem, salvo se ela versasse exclusivamente sobre a redistribuição dos
custos da responsabilização.
3.3 QUESTÕES POSTERIORES ÀS CONCLUSÕES QUANTO À ARBITRABILIDADE
OBJETIVA DO RESSARCIMENTO DO DANO AMBIENTAL DIFUSO
É importante considerar, além da discussão sobre a arbitrabilidade do ressarcimento do
macrodano, questões acessórias ao tema que, eventualmente, podem provocar dúvidas.
135
3.3.1 A presença do Ministério Público na controvérsia: um impeditivo de arbitrabilidade?
Antes de estudar a arbitrabilidade objetiva do pleito ressarcitório relacionado ao dano ambiental,
cabe investigar se a eventual intervenção do Ministério Público, na qualidade de fiscal da Lei,
nos termos do art. 84 do Código de Processo Civil, implicaria a inarbitrabilidade da controvérsia.
A doutrina, como se pode notar do desenvolvimento do capítulo 2 deste trabalho, adverte que a
presença do Ministério Público no litígio é interpretada como um sintoma de que a controvérsia
ali estabelecida versa sobre direito indisponível.
Desde o início da análise a que nos propusemos realizar, ressaltamos que o nosso ponto de
partida seria sempre o direito positivo, razão pela qual, a despeito da existência de opções
interpretativas mais sedutoras para a orientação que gostaríamos de dar à arbitrabilidade da
controvérsia de natureza difuso-ambiental, conservamos o teor do dispositivo que limita o acesso
ao instituto no âmbito do ordenamento pátrio como o norte do desenvolvimento do nosso
trabalho.
Por isto, a respeito da questão que versa sobre a intervenção do Ministério Público, cabe-nos
afirmar que não existe nenhum fundamento para que se interprete a possibilidade de sua presença
como um impeditivo de levar-se a controvérsia à apreciação de árbitros. O fato de a intervenção
do parquet constituir um indício de que o litígio versa sobre direitos indisponíveis não é
suficiente para que se estabeleça uma regra – nem sequer, de caráter didático – que a vincule à
indisponibilidade.
Ainda que não tenhamos encontrado nenhuma doutrina que oferecesse esse argumento para
concluir pela inarbitrabilidade da controvérsia em que se fizesse presente o Ministério Público, é
verdade que poder-se-ia arguir que o parquet estaria obrigado a intervir em um procedimento
desenvolvido por uma via jurisdicional pela qual não optou. Essa particularidade, em tese, teria o
poder de tornar a intervenção do Ministério Público um obstáculo de nível constitucional (é
inconstitucional a arbitragem obrigatória) à arbitrabilidade de litígios onde fosse admitida a sua
presença.
136
Contra essa orientação, teríamos algumas objeções a oferecer. A primeira delas diz respeito à
situação em que o Ministério Público atua como fiscal da Lei205. De fato, não se pode afastar a
ideia de que, ainda assim, o parquet assume a qualidade de parte no processo, na medida em que
contribui para que o sujeito incumbido da decisão observe os limites impostos pela Lei. Na
qualidade de fiscal da Lei, o Ministério Público é um auxiliar do juízo, na medida em que emite
ao julgador a sua opinião a respeito do deslinde da causa. A manifestação da vontade do
Ministério Público acerca da submissão da controvérsia ao tribunal arbitral é irrelevante. O seu
papel é ajudar o decisor na observância da Lei, de modo a emprestar ao seu provimento a
efetividade necessária. Assim, não existiria nenhum impedimento para que endereçasse o seu
parecer ao colégio de árbitros, sem promover nenhuma alteração quanto ao procedimento que
adota no juízo estatal. De outro lado, nos casos em que a Lei permite ao Ministério Público a
intervenção na qualidade de parte, na condição de assistente litisconsorcial, o problema da
manifestação da vontade seria solucionado com uma precaução das partes que originariamente
desejam se submeter ao juízo arbitral. Sendo, na assistência litisconsorcial, o Ministério Público
representante dos titulares do direito discutido em juízo, é certo que os efeitos da coisa julgada o
alcançarão. Assim, a manifestação da vontade do parquet, no momento em que a convenção de
arbitragem é aperfeiçoada, torna-se relevantíssima. Caberá, portanto, às partes que desejam
submeter a controvérsia ao juízo arbitral, tomar o compromisso do Ministério Público quanto à
possibilidade de intervenção futura na causa, com o fito de preservar a validade do procedimento
e da sentença arbitral.
Assim, a hipótese de o Ministério Público se valer do art. 82 do Código de Processo Civil para
intervir em litígio que pretenda obter a tutela ressarcitória do dano ambiental difuso não
inviabiliza que o procedimento corra perante tribunal arbitral, onde poderá também o parquet
postular.
205
Dinamarco cita alguns exemplos em que esta situação é configurada: “[...] quando intervém em causas
envolvendo relações de família ou registros públicos (CPC, art. 82, inc. II, LRP, art. 109, etc), em processos de
mandado de segurança, na falência ou concordata, em ações populares, em ações civis públicas promovidas por
outra entidade, em ações diretas de inconstitucionalidade, etc. (LMS, art. 10º , LF, art. 15, inc. II, art. 35, etc; LACP,
art. 5º, §1º, etc). (2004, p. 687).
137
3.3.2 Arbitrabilidade do ressarcimento do dano ambiental via aplicação de penalidade
administrativa
Outra questão a ser abordada é a da arbitrabilidade – subjetiva e objetiva – do Estado em
controvérsia sobre aplicação de sanção por infração administrativa. Seria o caso de o Estado
submeter-se à arbitragem, juntamente com o autuado por infração administrativa em função de
conduta lesiva ao meio ambiente, no intuito solucionar controvérsia relacionada com as
condições e prazos para o cumprimento da obrigação de caráter sancionador/reparatório. Quanto
à arbitrabilidade subjetiva, já ficou demonstrado que não existem óbices para que o Estado
componha a relação jurídica processual arbitral, dada a sua capacidade de contratar.
Cumpre, contudo, verificar se, do ponto de vista da arbitrabilidade objetiva, a presença do Estado
em procedimento arbitral que discuta as condições e prazos para o cumprimento da obrigação
administrativa seria um fator de afastamento da via arbitral.
A preocupação que se levanta no presente momento é o envolvimento do poder de império do
Estado na causa. É certo que, quando o objetivo da demanda for questioná-lo, árbitros não
poderão apreciar a controvérsia. Disso decorre que o demandante que visa contestar a aplicação
da infração não poderia se valer de procedimento arbitral para obter a pretensão anulatória.
Dúvida pode surgir quanto à arbitrabilidade das condições de cumprimento e prazos da
obrigação administrativa. De fato, a controvérsia poderá ser levada ao tribunal arbitral apenas no
caso em que o Estado, no ato sancionatório, deixar de indicar as vias pelas quais o autuado
deverá cumprir a obrigação, bem como os prazos que deverá atender. Nesse caso, o acesso à
arbitragem, diante do panorama legislativo vigente, é válido e não deve sofrer restrições. Por
outro lado, quando o Estado determina o modo de cumprimento da obrigação e os prazos que o
autuado deve atender, o acesso ao tribunal arbitral é vedado, já que o exercício de seu poder de
império, o qual, consoante Correia, constitui situação jurídica indisponível (1995, p. 132), seria
posto à apreciação de árbitros, hipótese vedada pelo ordenamento jurídico.
138
3.3.3 O instrumento apto a veicular a convenção de arbitragem ambiental
Eduardo Damião Gonçalves pergunta se não seria possível a inclusão de cláusula
compromissória em compromisso de ajustamento de conduta e Ada Pellegrini Grinover, por
outro lado, fala de compromisso arbitral firmado em audiência preliminar (GRINOVER;
GONÇALVES, p. 261). Não existem óbices quanto ao veículo utilizado para o estabelecimento
da convenção de arbitragem. Esteja ele presente em cláusula compromissória inserida em
contrato, em contrato apartado, em licença ambiental, em compromisso de ajustamento de
conduta, em contrato administrativo, o que importa é que sejam observados os seus requisitos de
validade, relacionados pela lei 9.307/96, bem como esteja explícito que a manifestação da
vontade de submeter à controvérsia ao juízos arbitral é livre. A expressão “contrato”, presente no
art. 3º da lei 9.307/1996 deve ser entendida como negócio jurídico processual (LIMA, 2009), já
que não há motivos para que o legislador tenha restringido a modalidade de convenção de
arbitragem a um acordo de vontades opostas, “animadas de sinal contrário” (ANTUNES
VARELA, p. 217).
Particularmente quanto à licença ambiental, é necessário pontuar que a manifestação do
compromitente deveria vir expressa no pedido de licença, na fase de abertura do procedimento
administrativo de licenciamento. É que a licença ambiental é um ato jurídico unilateral, em que o
Estado admite a intervenção do sujeito no meio ambiente, limitando as suas ações aos
parâmetros de sustentabilidade. Não cabe, no seu corpo, um negócio jurídico. Assim, para que a
licença fizesse menção à solução de controvérsias advindas da relações jurídicas advindas
daquele ato ao juízo arbitral, caberia ao interessado requerer a previsão de dispositivo com tal
conteúdo no ato de instauração do procedimento; optando o ente público por submeter a
controvérsia ao tribunal arbitral, a convenção de arbitragem seria aperfeiçoada mediante
instrumento firmado por ambas as partes, no corpo do processo administrativo, documento a que
faria menção à licença ambiental.
139
3.4 OS PROBLEMAS QUE EMERGEM DA ACEITAÇÃO DA ARBITRABILIDADE DA
CONTROVÉRSIA SOBRE O MACROBEM
Durante todo o trabalho não escondemos a nossa opção de lege ferenda pela superação dos
critérios que obstaculizam o acesso à arbitragem. Observamos que determinadas áreas do direito
material, anteriormente tidas por inarbitráveis, hoje, especialmente diante das necessidades de
resolução das controvérsias internacionais, são suscetíveis de arbitragem. Verificamos que já
alguns ordenamentos jurídicos não apresentam obstáculos à arbitrabilidade, enquanto em outros
o legislador optou por reduzir os critérios de acesso ao procedimento arbitral.
Nunca dissemos, entretanto, que a admissibilidade da arbitragem em matéria de direitos coletivos
não traria desafios ao jurista. Com efeito, o sistema arbitral foi originariamente concebido para
solucionar litígios de natureza privada e individual, razão pela qual a adaptação do procedimento
arbitral às controvérsias de caráter público e coletivo é imperiosa. Não se propõe essa
investigação a solucionar a grande variedade de problemas que emergem dessa necessária
adaptação. Como foi possível perceber até o presente momento, o objetivo do trabalho foi bem
mais modesto: o de investigar a possibilidade de submeter o ressarcimento do dano ambiental à
apreciação do juízo arbitral. Contudo, até mesmo para que uma futura investigação possa
avançar no tema da arbitragem ambiental, é salutar relacionar algumas das questões que
passaram por nossa reflexão durante o desenvolvimento deste trabalho. Para que elas façam
sentido, é necessário tomar como premissa teórica, ainda que inviável diante do direito positivo
vigente, a possibilidade de submissão à arbitragem da tutela ambiental do macrobem.
Algumas delas já foram desenvolvidas por Eduardo Damião Gonçalves (2007, p. 158-159).
Sobre elas, desenvolvemos outras, razão pela qual intercalaremos as perplexidades apresentadas
pelo autor com as nossas.
A primeira pergunta a ser feita se relaciona com a legitimidade para firmar a convenção de
arbitragem com o causador de danos ao macrobem. Quem poderá fazê-lo? Os sujeitos aptos a
perseguir a tutela arbitral difusa estão relacionados no art. 5º da lei 7.347/1985? É viável a
arbitrabilidade subjetiva dos entes legitimidos à propositura da Ação Civil Pública?
140
A partir da resposta desse questionamento caberá trazer a transcrição do primeiro problema
proposto por Gonçalves:
1.
havendo a submissão de direitos coletivos à arbitragem, quem arcará com as custas
e despesas com honorários do árbitro?206
O problema é pertinente e as perplexidades que dele se originam vão além: partindo-se da
premissa de que a legitimidade para firmar convenção de arbitragem seja, no Brasil, exclusiva
das instituições relacionadas no art. 5º da lei 4.347/1985, os entes públicos estão autorizados a
gastar recursos públicos com honorários de árbitros, tendo em vista que existe à sua disposição
um serviço público e gratuito de jurisdição? Qual a relação da eficiência do provimento, a
realização do gasto com honorários e o atendimento ao interesse público?
2.
arbitragem institucional ou ad hoc? Como efetuar a escolha da instituição? E dos
árbitros?
Mais uma vez o problema posto pelo autor guarda conexão com o regime jurídico-administrativo
a que se submete a grande maioria dos entes púbicos relacionados no art. 5º da lei 7.347/1985. O
regime de contratação dos árbitros (ou da instituição de arbitragem) estaria vinculado aos
princípios e regras da lei 8.666/1993? Deveria a contratação suceder um procedimento
licitatório?
3.
na arbitragem relacionada a direitos e interesses coletivos, deve haver obrigatória
publicidade (impedimento de sigilo)?
4.
a “coisa julgada arbitral” poderá ser equiparada à coisa julgada coletiva, tendo
efeitos erga omnes ou ultra partes (sem restringir-se às partes contratantes – vide
art. 31 da lei n˚ 9.307/1996) e ocorrendo secundum eventum litis?
206
A numeráção da pergunta foi introduzida para facilitar a leitura.
141
As regras do art. 103 e 104 do Código de Defesa do Consumidor, que tratam da coisa julgada em
processos coletivos serão aplicadas à sentença arbitral que soluciona controvérsia ambiental? De
que forma, com que intensidade?
5.
o Ministério Público poderá/deverá funcionar como custo legis no processo
arbitral, tendo outro co-legitimado
lhe dado início, através da formulação da
convenção arbitral? Ou o MP, nesse caso, apenas terá legitimidade para executar o
título executivo judicial (sentença arbitral) em caso de inadimplemento, caso não o
faça o legitimado que participou da arbitragem (atividade de natureza
fiscalizatória)?
Embora no item 3.3.1 tenhamos apresentado parte da resposta que compõem a indagação do
autor, é certo que a questão merece estudo pormenorizado, investigando a compatibilidade das
atividades do parquet com o procedimento arbitral, bem como com as funções exercidas pelo
Ministério Público enquanto órgão auxiliar da justiça, a estrutura organizacional da instituição e
os poderes do promotor.
6.
a irrecorribilidade da sentença arbitral traz prejuízos graves à defesa dos
direitos/interesses coletivos (levando em consideração até mesmo a tendência atual
representada pela preclusão da tutela antecipada, sugerida no anteoprojeto do
Código de Processos Coletivos)?
Adicionaríamos, quanto ao tema proposto pelo autor, a questão do controle de
constitucionalidade da decisão arbitral, uma vez que a superação dos critérios de arbitrabilidade
implicaria a possibilidade de devolver aos árbitros matérias envolvendo o exercício de direitos
fundamentais relacionadas ao bem ambiental.
Outros questionamentos visitaram a nossa curiosidade.
Quanto à similitude entre as demandas: existe litispendência entre as demandas coletivas
propostas na jurisdição estatal e na jurisdição arbitral? Existe a possibilidade de reunião de
processos coletivos por conexão e continência, quando um se desenvolve em um tribunal arbitral
e outro em um tribunal estatal? E o que dizer da “contradição lógica entre os julgamentos”, da
142
“necessidade ou faculdade de se reunirem os feitos conexos perante o mesmo juízo”, da
“existência de relação de prejudicialidade entre a ação coletiva e as individuais com objeto
idêntico” (VENTURI, 2007, p. 343), quando uma é processada em tribunal arbitral e outra é
processada perante o tribunal do Estado? A citação do réu, na ação coletiva processada perante o
tribunal arbitral, interrompe a prescrição da pretensão individual (VENTURI, 2007, p. 372)?
Quanto ao local de processamento do feito: poderia o tribunal arbitral funcionar em sede diversa
do local onde a lesão se implementou, diferentemente do que preconiza o art. 2º da Lei de Ação
Civil Pública?
Quanto à modalidade de arbitragem, poderiam as partes convencionar que a arbitragem fosse
levada a efeito com base em regras de equidade?
Quanto à legislação aplicável, poderiam as partes escolher as normas jurídicas necessárias à
solução do litígio?
Como se vê, o campo de pesquisa da arbitragem ambiental é vastíssimo e, ainda, pouco
explorado. Diversas dúvidas e problemas remanescem sem resposta e merecem do estudioso do
direito uma atenção especial.
143
CONCLUSÃO
O desenvolvimento do trabalho permitiu-nos verificar que existe uma gama de direitos
ambientais de natureza indenizatória que podem ser submetidos à apreciação de árbitros. Para
cada uma das espécies, atribuímos uma conclusão distinta:
Os chamados danos ambientais reflexos relacionados à propriedade individual, quer de natureza
patrimonial, quer de natureza extrapatrimonial (o dano moral ambiental), geram um direito à
indenização ao ofendido que pode ser processado perante o tribunal arbitral.
Não está autorizado o tribunal arbitral a certificar a violação a direito indisponível, ainda que o
litígio esteja circunscrito exclusivamente a questão de fato. Diante do direito positivo, ao
declarar que um fato desencadeia um efeito jurídico capaz de violar o direito indisponível, o
árbitro invade o âmbito de reserva de jurisdição do Estado.
As conclusões apresentadas acima se estendem à tutela ressarcitória dos direitos individuais
homogêneos.
Ainda que os danos reflexos sejam provocados pelo Estado, o ordenamento jurídico admite seja
a controvérsia submetida ao tribunal arbitral, desde que a prática do ato de império não integre o
objeto do litígio.
A indenização decorrente de dano ambiental ao microbem, vinculado a titular de propriedade
privada, poderá ser requerida perante o tribunal arbitral, atendidas as formalidades da convenção
de arbitragem.
O ressarcimento do macrodano ambiental não poderá ser integralmente objeto de um processo
arbitral, mas as partes poderão levar à apreciação dos árbitros os prazos, o lugar e o modo de
cumprimento da obrigação, reconhecida a responsabilidade do agressor. O sujeito apontado
como co-responsável por um macrodano ambiental não pode se valer de procedimento arbitral
para determinar novas parcelas de responsabilidade perante terceiros.
144
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA BERNARDO SILVA DE LIMA