Os nomes próprios têm sentido? Nas próximas linhas tentaremos analisar os argumentos expostos por François Recanati em Direct Reference1 para dar resposta a esta interrogação. Em primeiro lugar, e como ponto introdutório, é útil que tenhamos em conta a distinção introduzida por Kaplan2, relativamente aos termos indexicais, entre o carácter e o conteúdo. As frases onde ocorrem expressões indexicais têm dois tipos de sentido. Um corresponde ao conteúdo e trata-se daquilo que é tradicionalmente reconhecido como a proposição, ou o pensamento em termos fregeanos. O conteúdo varia consoante os diferentes contextos em que a expressão é utilizada, é avaliado segundo as circunstâncias. Considere-se a expressão “hoje”. Usada ontem, tinha um determinado conteúdo, usada hoje, tem um outro conteúdo, de tal modo que, se quisermos manter hoje o conteúdo expresso ontem pela palavra “hoje”, temos de a substituir pela palavra “ontem”. O segundo tipo de sentido é o carácter. Trata-se da regra linguística que determina o conteúdo do termo nos diferentes contextos. É uma função dos contextos de uso possíveis para o conteúdo e corresponde a convenções linguísticas do género: “Hoje” refere-se ao dia presente, ao dia no qual usamos a expressão. Este é o seu sentido linguístico constante. Os termos indexicais são directamente referenciais na medida em que contribuem para a proposição expressa com a própria referência, não com um modo de apresentação desta. Trata-se do caso em que o único modo de apresentação presente consiste na regra semântica através da qual a referência é fixada, mas não na identificação do objecto relevante numa circunstância de avaliação. Isto é, o seu conteúdo só é determinado contextualmente. Para Recanati3, no caso dos indexicais, há ainda assim, uma forma de apresentação da referência (uma forma como esta é pensada), que não existe no caso dos nomes próprios. Estes não são associados a nenhuma forma de apresentação nem ao nível do sentido nem ao nível do pensamento, pelo que se discute se terão algum tipo de sentido. São, por isso, frequentemente considerados o protótipo das expressões directamente referenciais. 1 Recanati, François, Direct Reference – From Language to Thought, Oxford, Blackwell Publishers, 1993. Kaplan, David, Demonstratives, 1977 3 Recanati, 1993, p. 135 2 Mas os nomes próprios terão ou não sentido? A esta pergunta têm sido dadas quatro possíveis respostas que importa considerar e que são as seguintes4: 1) Os nomes próprios não têm sentido. 2) Os nomes próprios não fazem parte da linguagem. 3) Um nome próprio N significa “a entidade chamada N”. 4) O sentido de um nome próprio é a sua referência. Comecemos por considerar a primeira hipótese. A principal razão pela qual é frequente dizer-se que os nomes próprios não têm sentido é o facto de eles serem atribuídos convencionalmente, sem constrangimentos linguísticos. No caso de nomes comuns, como “gato”, só posso dizer de um objecto que é um gato, quando este reúne as características exigidas para ser considerado um gato. Há requisitos essenciais que o objecto tem de satisfazer para poder ser denotado pela palavra “gato”. No caso de um termo indexical como “aqui”, só posso usá-lo quando refiro o local onde estou, em virtude da regra linguística que lhe está associada. Mas a atribuição de um nome próprio a um objecto parece ser totalmente livre, o que parece indicar que se trata de uma expressão que não tem sentido nem em termos de conteúdo conceptual nem em termos de carácter (significado linguístico). Destituídos destes dois aspectos semânticos, os nomes próprios tornam-se as mais directamente referenciais de todas as expressões directamente referenciais, uma vez que, como vimos, os indexicais carecem de conteúdo conceptual mas têm carácter. Contudo, Recanati reconhece ao sentido de todos os termos referenciais uma característica a que chama REF5 e que, embora não esgote o sentido do termo referencial, indica que a condição de verdade (a condição de satisfação) da frase onde ele ocorre é singular. Esta noção é independente da questão extra-linguística da existência ou não existência da referência do termo, mas trata-se de uma característica semântica comum a todas as expressões referenciais. É uma característica daquilo que Recanati designa por referencialidade tipo. Desta forma, todas as expressões que pertençam a este tipo, exibem a característica REF como elemento do seu sentido. Se isto é assim, não podemos aceitar que 4 5 Recanati, 1993, p.136 Recanati, 1993, p. 17 os nomes próprios não tenham qualquer sentido, uma vez que, enquanto termos directamente referenciais, têm o ter. Pode admitir-se uma versão mais fraca da 1), na qual o sentido dos nomes próprios se reduz à característica REF, mas não que não têm nenhuma espécie de sentido. Neste caso, não diríamos que têm carácter, uma vez que não indicam a entidade que referem de nenhum modo particular, não permitindo que esta seja identificada contextualmente, mas indicam que há uma entidade x qualquer que, satisfazendo o predicado presente na frase onde o nome ocorre, a torna verdadeira. Mesmo esta interpretação de 1) pode ser alvo se duas interpretações diferentes. Numa reinterpretação mais forte, ela implica a equivalência de sentido de todos os nomes próprios: todos eles indicam, e apenas indicam, uma intenção referencial por parte do falante. Mas esta visão parece ser manifestamente inaceitável, uma vez que o nome, por meio da convenção que o associa à referência, permite identificá-la. Mas uma reinterpretação mais fraca, reconhece a existência de convenções entre nomes próprios genuínos e indivíduos particulares e que é por intermédio delas que é veiculada uma quantidade substancial de informação acerca destes últimos. Ainda assim, mantemos a ideia de que o sentido do nome se reduz a REF, uma vez que essa informação não é veiculada pelo sentido, mas por um mecanismo extra-linguístico, uma convenção social. Isto conduz-nos a uma versão da tese 2), segundo a qual as convenções através das quais se ligam os nomes às coisas por eles denotadas não são parte da linguagem. Obviamente, há um sentido mínimo no qual os nomes são forçosamente parte da linguagem, dado que eles formam uma categoria gramatical, o que torna a alternativa 2) inaceitável se interpretada literalmente. Não obstante, as convenções por meio das quais eles se estabelecem como nome de esta ou aquela entidade são contextuais e extra-linguísticas. Recanati reconhece nesta versão uma interpretação razoável de 2). Até porque, se 2) estiver correcta, tornar-se compreensível por que razão não é exigido o conhecimento de todos os objectos denotados pelos nomes próprios para que se seja linguisticamente competente. No entanto, ainda que esse seja o caso, a versão de 1) que consideramos não pode ser aceite tal como está. Isto porque o facto de a convenção de nomeação ser extra-linguística, não altera o facto de o nome próprio ter um valor semântico, o que, em certa medida, é um facto linguístico. A ideia de que um nome tem um correspondente estabelecido por convenção faz parte da definição da categoria dos nomes próprios, por oposição a outras categorias de termos singulares. E isto tem como consequência que a característica REF não é o único elemento constitutivo do sentido dos nomes próprios, uma vez que não se trata apenas de reconhecer que existe uma entidade x, tal que a frase em que o ocorre o nome próprio é verdadeira se esse x satisfizer o seu predicado, mas que esse x é também aquilo que corresponde, convencionalmente, ao nome. Isto conduz-nos precisamente ao que é alegado pela perspectiva indexical, traduzida pela resposta 3): o sentido de um nome próprio inclui a característica REF, mas também um modo de apresentação da sua referência, isto é, um carácter. A referência de um nome próprio é apresentada como sendo o portador do nome, em virtude da convenção linguística que assim o determina. Trata-se de uma convenção comum a todos os nomes próprios, que consiste na regra geral que permite ao ouvinte determinar, no contexto, a referência do nome. Ela corresponde a uma convenção social que associa o nome ao objecto e determina que este seja a sua referência, de tal modo que, para cada nome próprio, há uma convenção específica. De cada vez que um nome é usado, faz-se apelo à convenção linguística correspondente, através da qual a convenção social que o liga ao indivíduo particular é invocada. Um nome próprio refere, deste ponto de vista, por convenção linguística, o objecto escolhido por convenção social. A referência do nome depende do contexto, tal como qualquer outra expressão indexical. O sentido linguístico atribuído pela perspectiva indexical aos nomes próprios coloca o ouvinte perante uma relação R, que é suposto estabelecer-se no contexto entre a expressão indexical e a referência. Conhecer R corresponde a identificar a referência, o objecto que contextualmente está nessa relação com a expressão. Os nomes próprios são apenas mais um caso deste fenómeno. O seu sentido remete o ouvinte para uma relação que se estabelece contextualmente entre o nome e a sua referência. O nome N refere a entidade chamada N no contexto de uso da frase. Existem, porém, diferenças entre indexicais puros e nomes próprios, de tal modo que muitos resistem a considerar estes últimos uma categoria de indexicais. Uma delas reside no facto de, no caso dos indexicais comuns, a referida relação R se estabelecer entre uma ocorrência particular do indexical (um token) e a referência no contexto, enquanto no caso dos nomes próprios essa relação se estabelecer entre o nome próprio enquanto expressão tipo e o indivíduo que se convencionou ser a sua referência. A outra, possivelmente mais relevante, é o facto de cada um dos indexicais comuns estar associado a relações R específicas, isto é, a cada tipo de expressão indexical corresponde uma relação própria, de acordo com as regras semânticas da linguagem.6 Mas os nomes próprios estão subordinados a uma única regra semântica, idêntica em todos os casos, o que, no entender de Recanati, parece querer dizer que todos eles têm o mesmo significado: a característica REF e o modo de apresentação “portador do nome”. Ainda que a existência destas diferenças possam suscitar dificuldades ao ponto de vista indexical, a verdade é que parece haver uma enorme proximidade entre a categoria dos indexicais e os nomes próprios, nomeadamente porque estes, tal como aqueles, estão referencialmente dependentes do contexto. Por último, resta-nos considerar a alternativa 4), segundo a qual o sentido de um nome próprio é a sua referência. Este ponto de vista considera que a convenção que liga o nome próprio ao seu portador é linguística. Deste modo, consideremos o caso do nome “Aristóteles” e a existência de um filósofo com esse nome e de um armador com esse nome. Existem, realmente, dois nomes distintos com a forma “Aristóteles”, não apenas um. São homónimos, partilham a mesma forma fonológica, mas participam em diferentes convenções linguísticas, uma que associa um nome ao filósofo, outra que associa um nome ao armador. A individuação do nome é feita pelo conjunto da sua forma com o seu portador. Esta teoria da Homonímia, como Recanati a apelida, contrasta com a ideia de indexicalidade especialmente na forma como a natureza da convenção de nomeação é encarada: para aquela trata-se de um fenómeno linguístico, para esta de um fenómeno contextual, não-linguístico. O primeiro ponto a favor da indexicalidade é o facto de as convenções de nomeação não parecerem ser linguísticas, na medida em que não é necessário conhecer o portador do nome para se dominar a linguagem. A competência linguística não depende disso, como parece implicar a tese da homonímia. Contudo, esta responde à objecção indexical recorrendo à ideia de que, sendo a linguagem um fenómeno eminentemente social, dá lugar à divisão do 6 Por exemplo, para o indexical “Eu” a regra determina a referência ao falante, para o “Aqui”, o lugar em que se encontra, etc trabalho linguístico. Este conceito, apresentado por Putnam7, aponta para a hipótese de uma divisão da competência linguística pela comunidade como um todo, segundo a qual apenas uma elite de peritos detém o domínio total de algumas áreas da linguagem, sendo que a competência linguística do falante médio não carece desse grau de exigência. Só colectivamente se pode alcançar o domínio total da linguagem, que não é detido por nenhum indivíduo isoladamente. O ponto de vista homonímico privilegia o domínio comunitário da linguagem em detrimento do domínio individual, sempre parcial. Os indivíduos pedem sempre de empréstimo à comunidade a referência de alguns aspectos do mundo que não dominam, mas acerca dos quais estão aptos a falar. Os peritos estão numa posição privilegiada para fixar as referências dos termos que pertencem ao domínio em que são especialistas. Contudo, o falante médio tem, como já dissemos, uma competência linguística parcial, o que não equivale a dizer que não sabe nada, mas que tem menos informação acerca da extensão dos termos do que têm os especialistas. Note-se que a tese da universalidade da divisão do trabalho linguístico, nos moldes em que foi formulada por Putnam, dizia respeito especialmente a outro tipo de palavras, nomeadamente termos para espécies naturais. Para estes termos, uma elite de especialistas detém o conhecimento integral daquilo que constitui a sua extensão, enquanto o falante médio detém um conhecimento mais ou menos reduzido dos seus principais traços. A esse conhecimento “normal”, isto é, ao que os falantes normais associam como descrição estandardizada das características típicas que algo deve ter para que seja reconhecido como referência de um termo dá-se o nome de estereótipo. Ora, no caso dos nomes próprios, que é o caso do qual aqui nos ocupamos, nada disto acontece. Não há qualquer necessidade de estereótipos associados aos nomes próprios. A exigência para a competência linguística é mínima neste domínio. Um falante não necessita de conhecer nada acerca daquilo ou de quem o nome próprio refere para ser um utente competente da língua.8 De acordo com a frequência da palavra, com a sua maior ou menor difusão na comunidade linguística, os estereótipos associados são mais ou menos extensos, mais ou 7 Putnam, Hilary, The Meaning of ‘Meaning’, in Philosophical Papers, vol.2, Cambridge University Press, 1975 8 Recanati, 1993, p.147: “[…] um utente competente do Inglês tem de saber pelo menos que um sofá é um assento. Mas não precisa sequer de saber que Banilla é um homem (em vez de um gato ou um carro); tudo o que um utente competente tem de fazer é reconhecer a palavra “Banilla” como nome próprio de um qualquer objecto” menos fortes. A palavras pouco frequentes correspondem estereótipos mais fracos. Quando um estereótipo é pobre, a palavra diz-se local, por oposição às palavras centrais, cujo estereótipo associado é mais rico. O que acontece com os nomes próprios é que têm um carácter essencialmente local: “são como termos técnicos especializados: a um utente comum da linguagem não se requer que saiba nada acerca da extensão de tais palavras – não se requer sequer que saiba que elas existem”9. Note-se que o carácter local dos nomes próprios constitui um ponto a favor da ideia de que as convenções que atribuem um nome a um portador não são de natureza linguística. Se nenhum tipo de conhecimento acerca da referência de um nome próprio é exigida a um falante competente, isso parece constituir forte evidência de que as convenções em causa não se encontram entre as regras semânticas que constituem a linguagem. Mas, assim sendo, isso contribui para a justificação do ponto de vista indexical relativamente aos nomes próprios e para o enfraquecimento da teoria da homonímia. Na base do dilema indexicalidade / homonínia parece estar a questão da individuação das linguagens. Isto é, se considerarmos que por linguagem se deve entender uma linguagem natural, como o Português, o Inglês ou Francês, espalhada no espaço e no tempo, optamos por uma perspectiva indexical, segundo a qual as convenções através das quais se atribuem nomes próprios fazem parte de contextos específicos. São convenções localizadas, restritas a um quadro específico de circunstâncias extra-linguísticas que lhes dá sentido. No conjunto de uma linguagem natural, elas surgem como regras contextualmente localizadas. Mas se optarmos por considerar uma linguagem que é ela própria uma sub-região no seio de uma comunidade linguística alargada, estreitando assim o conceito de linguagem e considerarmos que as convenções para atribuição de nomes são parte integrante dessa “sublinguagem”, obtemos os resultados propostos pelo ponto de vista da homonímia. Mas a própria questão da individuação de uma linguagem mostra-se profundamente problemática, como objecta Chomsky (citado por Recanati): “O termo ‘linguagem’ tal como é usado no discurso normal envolve factores sociopolíticos e normativos obscuros”10. A individuação de uma linguagem natural homogénea corresponde a uma comunidade linguística ideal, que não se encontra realizada em parte alguma. A sugestão de Chomsky não vai, porém, 9 Recanati, 1993, p.148 Recanati, 1993, p.150 10 no sentido de reduzir a ideia de linguagem a linguagens individuais nas quais as convenções em causa ficassem destituídas do seu carácter social essencial à comunicação. Trata-se apenas de chamar a atenção para uma dificuldade que parece subsistir na análise de qualquer aspecto da linguagem, como o que aqui nos ocupou. Aliás, as próprias conclusões alcançadas por Chomsky não advogam o ponto de vista da homonímia. Recanati reconhecendo estas dificuldades apontadas, rejeita a ideia de uma concepção das convenções em causa como elementos semânticos, regras de natureza linguística. Sem deixarmos de reconhecer que ambas as alternativas apresentam problemas, a adopção de uma posição que possa incluir e acomodar os óbvios aspectos sociais da linguagem parece-nos, como a Recanati, constituir a opção mais atraente. E neste sentido, a atribuição de um nome a um indivíduo parece-nos ser um fenómeno essencialmente extra-linguístico, no sentido em que se trata de uma convenção social, contextual, e não de uma regra semântica. Bibliografia - Kaplan, David, Demonstratives, 1977 - Putnam, Hilary, The Meaning of ‘Meaning’, in Philosophical Papers, vol.2, Cambridge University Press, 1975 - Recanati, François, Direct Reference – From Language to Thought, Oxford, Blackwell Publishers, 1993 Ana Sofia Vidal Pereira Soares Mestrado em Filosofia Área de especialização em Filosofia Analítica Seminário de Orientação II