Gestão do Cuidado:
Escola que Protege
[Módulo 2]
Violências, Rede de Proteção e
Sistema de Garantia de Direitos
∞∞
Cristiane Antunes Espindola Zapelini (Org.),
Daniela Motink Agostini, Maria Francisca Rodrigues
Giron, Neylen Bruggemann Bunn Junckes
GOVERNO FEDERAL
Coodenação Pedagógica
Presidência da República
Laboratório de Novas Tecnologias – LANTEC/CED
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
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Pesquisas Sobre Violências – NUVIC/CED
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M689
Módulo 2 : violências, Rede de Proteção e Sistema de Garantia de
Direitos / Cristiane Antunes Espindola Zapelini, org. - Florianópolis :
NUVIC-CED-UFSC, 2010.
280p. : il, grafs.
Curso de Especialização Gestão do Cuidado para uma Escola
que Protege
Inclui referências
ISBN 978-85-63659-02-6
1 . Violência e infância. 2. Educação – Gestão do Cuidado.
3. Sistema de Garantia de Direitos. 4. Rede de Proteção. I. Zapelini,
Cristiane Antunes Espindola.
CDU: 37:172.1
Catarina, NUVIC/CED/UFSC. Nenhuma parte deste
material poderá ser reproduzida, transmitida e
gravada sem a prévia autorização da coordenação
do Curso de Especialização A Gestão do Cuidado
para uma Escola que Protege.
Catalogação na fonte elaborada pela DECTI da Biblioteca Central da Universidade
Federal de Santa Catarina
Sumário
Apresentação .............................................................................. 5
[1] Violências e cuidado:
outros diálogos possíveis .................................................. 9
1.1 Violências e cuidado: retornando à reflexão .................................10
1.2 Breve história da infância:
transversalidades e violências..............................................................15
1.3 A escola arquitetada para a infância................................................. 35
Em síntese... ......................................................................................................... 38
Referências .......................................................................................................... 38
[2] As violências e seus contextos ...................................... 43
2.1 Violências em formas que con-formam e de-formam ........... 44
2.2 Diferentes olhares para as violências............................................... 49
2.3 Atores das violências contra crianças e adolescentes ............ 83
2.4 Grupos mais vulneráveis às violências ............................................91
2.5 Como questões de gênero explicam certas violências? .........93
2.6 Diferentes contextos das violências ................................................. 96
2.7 Como nos perdemos no caminho? ............................................... 101
2.8 Entre o privado, o familiar e o geracional ................................... 103
Em síntese... ....................................................................................................... 108
Referências ........................................................................................................ 109
[3] Rede de Proteção: a gestão do cuidado
na atenção infantojuvenil ............................................. 115
3.1 Recortes de indicadores sociais:
cenários de inspiração ............................................................................116
3.2 Breve mapeamento da região Sul do Brasil.................................121
3.3 Sistema de Garantia de Direitos ....................................................... 127
3.4 A gestão da Rede e a gestão do cuidado .................................... 134
Em síntese... ....................................................................................................... 144
Referências ........................................................................................................ 145
[4] Sistema de Garantia de Direitos na formulação
de políticas públicas ....................................................... 151
4.1 Legislação e políticas públicas:
encontros e desencontros.................................................................. 152
4.2 Sistema de garantia de direitos e intersetorialidade
das políticas públicas ............................................................................ 165
4.3 Justiça e legislação: o cuidado por meio da lei ........................171
4.4 O lugar da assistência social na
consolidação da Rede de Atenção ..................................................174
4.5 A violência como questão de saúde pública ..............................181
4.6 Educação em direitos humanos: a escola que protege ....... 185
Em síntese... ....................................................................................................... 188
Referências .........................................................................................................191
» Queridas Pessoas
É com alegria que apresentamos a vocês, educadores e educadoras desta formação, o texto que compõe nossos estudos
no Módulo II, intitulado Violências, Rede de Proteção e Sistema
de Garantia de Direitos. Nossa intenção é seguir o percurso das
reflexões sobre a gestão do cuidado, a partir do entrelaçamento com a educação biocêntrica, atentas a centralidade da vida
na arquitetura de nossos afazeres. Na mesma direção, situar a
pedagogia do afeto como contraponto no diálogo crítico sobre
as violências, suas implicações para crianças e adolescentes em
contextos de vulnerabilidade e em peculiar desenvolvimento.
Com isso, tecer olhares sobre a Rede de Proteção para ampliar
a nossa abrangência na percepção das necessidades orgânicas
que esta população demanda para que possa, como meninos e
meninas, constituírem-se em adultos socialmente responsáveis
e comprometidos com uma convivência comunitária que acolha
a todos em sua singularidade.
Arroyo, em seu livro Ofício de Mestre (2000, p. 47), aponta que a
nossa disposição de escuta sensível é reconstruída cada vez que
nos dispomos a ler e a escutar a história real, brutal da infância
popular. De tantos garotos e garotas, em suas faixas etárias diferentes, que jamais terão a oportunidade de retroceder à estação
primeira da infância não vivida. Abarcar e empreender o cuidado
com o desenvolvimento humano requer interesse para acompanhar, com atenção, a própria infância e adolescência, juventude
ou vida adulta com que convivemos. São estes sujeitos que dão
o conteúdo da nossa leitura inicial, que sugerem o tema guia de
nosso percurso educador, uma leitura nunca aprendida, nunca
aprovada porque sempre surpreendente. Com a mesma acuidade
com que refletimos a nossa prática, com que selecionamos os
fundamentos dos projetos pedagógicos, somos provocados a não
abandonar, por esquecimento, os sujeitos de nossa atuação educadora, suas histórias de sofrimento que não se enquadram em
um tema. O transbordam. A volta à infância [e à adolescência]
nos reeduca como educadores, torna-se nossa cúmplice.
Violências, qualquer que seja o matiz que lhes dá visibilidade
ou encobre seu agir, não podem ter prevalência no cotidiano das
instituições, especialmente da escola, onde crianças e adolescentes experimentam processos de aprendizagens que significam seu modo de ser em sociedade. Cada uma destas violências
produz marcas indeléveis que vão exigir políticas públicas cada
vez mais empenhadas no atendimento do que na prevenção,
retardando a garantia de direitos e obstruindo práticas solidárias
de cuidado e proteção. Violências não combinam com educação
e esta, demanda um conhecimento articulado dos instrumentos
que dispõe a sociedade para sustentar uma escola que protege
crianças, adolescentes e adultos: como se configura a Rede de
Proteção; legislação em vigor; organização das unidades que integram esta Rede... As violências operam não somente como
fenômenos que atravessam a vida de diferentes formas, mas,
como subsídios culturais que passam a constituir essa vida na
coletividade.
Nosso convite a vocês é para que mantenham a motivação expressa até aqui e com ela redescubram outros conceitos e referenciais que possam alargar os olhares e sedimentar as ações
de intervenção. Quando Heidegger (apud FERRY e RENAUT, 1989,
p. 78) escreveu um belo texto sobre a “Serenidade”, procurou
refletir sobre nossas crenças nas técnicas modernas como arcabouços que tudo pode solucionar. Convidava-nos a recuperar
o pensamento meditativo, ressaltando que não é preciso neg-
ligenciar a técnica para que essa meditação se efetive, ao contrário, apenas repensar nossa relação com ela, enxergar nossa
“cegueira” diante de procedimentos instituídos. Desafiava-nos
a conservar o pensamento acordado, considerando que o que
há de mais humano em nós é a condição de seres pensantes. E
dizia: assim, quando despertar em nós a identidade da alma perante as coisas, e o espírito se abrir ao outro, podemos esperar
alcançar um novo caminho, uma nova terra, um novo solo. Nesse
solo, a criação de obras perduráveis pode enraizar-se de novo.
Um abraço carinhoso
Florianópolis, inverno de 2010.
.Cristiane, Daniela, Francisca, e Neylen.
8
[1]
Violências e cuidado:
outros diálogos possíveis
Neylen Bruggemann Bunn Junckes
JUNCKES, Neylen Bruggemann Bunn. Violências e cuidado: outros
diálogos possíveis. In: ZAPELINI, Cristiane Antunes Espindola (Org.).
Módulo 2: violências, Rede de Proteção e Sistema de Garantia de Direitos.
Florianópolis: NUVIC-CED-UFSC, 2010. cap. 1.
[Objetivo desse Capítulo]
Lançar outras reflexões sobre as violências e apresentar o paradoxo
que identificamos entre “violências e cuidado” a partir dos aspectos
que compõem a história da infância e uma escola arquitetada para
essa infância.
9
1.1 Violências e cuidado:
retornando à reflexão
Certa vez, atravessando um rio, Cuidado viu um pedaço de
terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe
dar forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio JúA fábula-mito sobre o cuidado essencial é de origem latina com base
grega. Ela ganhou sua expressão
literária definitiva pouco antes de
Cristo, em Roma. O texto latino é
acessível em Ser e Tempo, de Martin
Heidegger, Vol. I da edição da Vozes, Petrópolis, 1989 (BOFF, 2000,
p. 263).
piter. Cuidado pediu-lhe que desse espírito à forma de argila,
o que ele fez de bom grado. Como Cuidado quis então dar
seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter proibiu e exigiu
que fosse dado seu nome. Enquanto Cuidado e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a Terra (tellus) querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço do seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno como
árbitro. Saturno pronunciou a seguinte decisão, aparentemente equitativa: Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves
receber na morte o espírito e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, porém foi o Cuidado quem
primeiro o formou, ele deve pertencer ao Cuidado enquanto
viver (HEIDEGGER, 1989 apud BOFF, 2000, p. 263).
O convite que fazemos agora é para que possamos nos deixar
envolver pela teia complexa do fenômeno das violências. Nossa
intenção é que os educadores e as educadoras em formação se
permitam pensar sobre e como este fenômeno nos abraça, desde
os pequenos afazeres diários, até as grandes catástrofes em que
a humanidade esteve e está envolvida. Como nós refletimos e
sentimos as violências no cotidiano? E, na escola, o que observamos nas relações, na organização das rotinas, nos tempos e espaços? Como as diferentes manifestações de violências atravessam e afetam a nossa corporeidade e a convivência interpessoal?
Violências, para Sousa (2002), são toda e qualquer circunstância
que ameace a organização dos sistemas vivos, mesmo correndo
os riscos inerentes a toda tentativa de apreensão conceitual.
10
Vírus-violência
Um ponto final nesse incêndio.
Tantos sentimentos queimados.
Quantos sonhos destruídos.
Banalizou-se a morte.
Sobreviver é questão de sorte.
Avança a epidemia.
Doença social.
Sociedade doente, amedrontada.
Infestada, pelo vírus-violência...
Ciência urbana mal planejada.
Tudo se resolve com “tiros na cara”.
Realidade muita cara.
É o preço da vida.
Valor paralelo, poder paralelo.
A lei da inconstituição.
Nem pensar em dizer não.
Assim que funciona.
Mundo podre do vírus-violência.
Que ainda não tem cura.
E mata por conta própria.
Mata à queima-roupa.
São vidas levadas ao acaso.
Banalizou-se a morte.
Sobreviver é questão de sorte.
Desenha-se uma guerra não-declarada.
O medo é declarado.
Insegurança.
Ser humano perverso.
Medo.
E um vírus chamado violência...
Fonte: Carvalho (2005).
11
[Condição humana]
Para Hannah Arendt (1987), a
condição humana não é a mesma coisa que natureza humana.
A condição humana diz respeito
às formas de vida que o homem
impõe a si mesmo para sobreviver. São condições que tendem
a suprir a existência do homem,
as quais variam de acordo com o
lugar e o momento histórico do
qual o homem é parte. Nesse sentido, todos os homens são condicionados. Até mesmo aqueles que
condicionam o comportamento
de outros se tornam condicionados pelo próprio movimento de
condicionar.
As violências atuam não apenas como fenômenos que atravessam a vida de variadas formas, mas como dados culturais que
passam a constituir essa vida na coletividade. Dadoun (1998),
após explorar a visão do ser humano em diversas denominações, considera o homo sapiens como sujeito capaz de pensar e
pensar-se, a partir da inteligência. Do mesmo modo, como homo
violens, capaz de destruir e destruir-se, a partir também dessa
inteligência. Ou seja, um ser que pode utilizar a sabedoria para
criar a vida e/ou a perversão (ROUDINESCO, 2008) para violentá-la,
uma característica intrínseca à condição humana. Nesse sentido,
as violências são pensadas principalmente pelo prisma das suas
formas de manifestações, sobre a ótica do externo como acontecimento alheio ao desejo humano. No entanto, essas violências
estão presentes na condição do humano, nos marcos culturais
que lhe humanizam e que se definem em relação com outrem,
ainda que orientado pelas referências da relação consigo.
O conceito de perversão foi problematizado por Elizabeth Roudinesco, em seu livro “A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos”. A autora problematiza as noções de perversão ao afirmar que esta é uma circunstância da espécie humana:
o mundo animal está excluído dela, assim como do crime.
Não somente é uma circunstância humana, presente em todas as culturas, como supõe a pré-existência da fala, da linguagem. [Diz ainda que] embora vivamos num mundo em
que a ciência ocupou o lugar de autoridade divina, o corpo
o da alma, e o desvio o do mal, a perversão é sempre, queiramos ou não, sinônimo de perversidade. E, sejam quais
forem seus aspectos, ela aponta sempre, para uma espécie
de negativo da liberdade: aniquilamento, desumanização,
ódio, destruição, domínio, crueldade, superação de si. Mas
perversão é também criatividade, superação de si, grandeza
(ROUDINESCO, 2008, p. 11).
12
Com essa compreensão, retomamos a reflexão proposta por Sousa (2002), no Módulo I, sobre a pluralização do termo para inscrever as violências como “figuras de desordens” (BALANDIER,
1997), as quais compõem o social e cruzam as trajetórias dos
sujeitos, tecendo, na contemporaneidade, suas redes, seus estilos de convivência com referenciais agressivos, adquiridos na experiência cultural que modula o encontro com o outro. Pensando
nas violências como artefatos vivos da condição humana e social
e, ainda, como rituais costurados nas relações, as diferentes situações de vulnerabilidade da infância podem ser vistas em foco.
Em diferentes intensidades, as violências deixam marcas indeléveis nas trajetórias humanas e sociais e constituem sentidos e
significados conforme o contexto em que se fazem realidades,
bem como o grau e a intensidade com que acontecem.
Restrepo (1998) assinala que as violências se manifestam de forma física, por exemplo, quando a dificuldade é reconhecer o
outro na sua legitimidade, a qual é constituída pela diversidade de atributos que coletivamente vão sendo incorporados na
experiência social. Certas violências se manifestam de formas
mais silenciosas, especialmente quando aquele que violenta não
explicita, por atitudes, seus desejos, mas simboliza que suas
intenções não querem maltratar o outro, então, insiste para que
ele acredite que está agindo para o seu bem, como agem alguns
adultos quando violentam crianças e adolescentes. Quando as
atitudes anseiam por relações homogêneas, perdem de vista a
singularidade tão essencial a cada um e contribuem para gerar
outras violências.
Há elos afetivos que estão relacionados com as violências e geram sentimentos confusamente amorosos, como é o caso do
abuso sexual entre pai e filha, em que a criança não consegue
diferenciar amor e violências. Nesses elos, encontram-se tendências agressivas que submetem o outro a situações impositivas,
13
as quais criam circunstâncias violentas em que este é tratado
como objeto. As violências causam também desordens nos campos sociais, inter-relacionais e intrarredacionais. Nas configurações familiares, observamos que as violências se realizam quando é esperado que um dos integrantes ocupe um determinado
papel e cumpra-o no mesmo ritmo de outro membro do grupo,
de forma a corresponder às expectativas anunciadas nesta relação. Violenta-se diariamente aquele/a que desempenha funções
reais ou imaginárias, que nem sempre correspondem aos desdobramentos da ordem instituída, e mais, não aparecem como
exigências condicionadas à competência individual.
Violências podem ser concebidas de maneira ampla e com variados sentidos, conforme já problematizadas no texto do Módulo I,
de acordo com a intensidade com que se manifestam. A Organização Mundial de Saúde (OMS) diz que:
a violência é o uso intencional de força ou de poder físico,
na forma real ou de ameaça contra si mesmo, contra outra
pessoa, ou contra um grupo ou comunidade que resulta, ou
tem grandes chances de resultar em ferimentos, morte, danos psicológicos, subdesenvolvimento ou privação. (KRUG et
al., 2002, p. 27).
Mas podemos pensar nas violências como fenômenos paradoxais e contrários às diferentes práticas de cuidado. E, como destaca Heidegger (1989), há um entrelaçamento entre cuidado, ser
e tempo, entendendo que o ser humano é capaz de pensar nos
processos que constituirão seu futuro e suas possibilidades.
Nesse sentido, é possível pensar práticas de cuidado em que os
sujeitos passam a ser figura e deixam de ser fundo na grande
tela das relações humanas. Com isso, atuam em prol da vida,
da convivência pacífica e da liberdade de expressão. Podemos
afirmar que é possível nascer um cuidado sem condutas vio-
14
lentas, uma gestão que tenha por intencionalidade antecipar-se
ao bem-estar daqueles com quem convivemos. A compreensão
do paradoxo “violências e cuidados” nos ajuda a pensar no que
tem constituído os diversos significados sobre as violências, nos
diferentes campos de conhecimento que englobam a cultura, a
história, a ciência, a educação, as crenças, os lugares, as experiências, os contextos nos quais se situam os seres humanos.
1.2 Breve história da infância:
transversalidades e
violências
Para que seja possível aprofundar o entendimento sobre as violências, vamos apresentar uma breve localização, na história,
das crianças, dos adolescentes e de suas infâncias, guiadas por
um olhar de transversalidades com as situações de violências.
Numa abordagem histórica, a infância foi concebida tanto em
ambientes atravessados por práticas de violências quanto em
circunstâncias banhadas por justificativas de uma dada época
para localizar o lugar dessa população entre os adultos. Dizer a
infância ainda requer um olhar complexo que possibilite outra
leitura acerca das nossas interpretações, particularmente quando infância e violências se encontram.
A história evidencia que a criança não ocupa um lugar de reconhecimento legítimo na convivência com os adultos, a quem
sempre coube a decisão absoluta sobre o seu destino. Práticas
comuns ilustram essa informação: deixá-la na roda dos expostos;
jogá-la viva em rios e matagais; provocar sua morte por asfixia
colocando-a para dormir entre os pais, o que era permitido na
legalidade da época, desde que se configurasse com caráter aci-
15
[Criança]
No pequeno Dicionário Aurélio
da Língua Portuguesa (FERREIRA, 2004), a palavra “criança” é
designada como ser humano que
se começa a criar, menino ou menina; e “infância” como o período
do crescimento, no ser humano,
que se estende do nascimento até
a puberdade.
dental; ser tratada como objeto descartável, na antiguidade clássica; ser considerada defeituosa quando nascia malformada; se
menina e negra, as justificativas para o abandono e o infanticídio
eram cabíveis; se pobres, as que sobreviviam eram exploradas no
trabalho infantil doméstico, rural e fabril, como em nossos dias.
O desafio de estudar certos contextos relacionados à infância nos
remete à percepção que temos do lugar que ocupamos como
adultos e educadores/as para falar da criança e do adolescente.
Lajolo (1997, p. 225) realça essa imagem ao esclarecer que as
palavras “infante”, “infância” e os demais cognatos reportam à
ideia de ausência de fala. Ou seja,
Essa noção de infância, como qualidade ou estado do infante, daquele que não fala, constrói-se a partir dos prefixos e radicais lingüísticos que compõem a palavra: in = prefixo, que
indica negação; fante = particípio presente do verbo latino
fari, que significa falar, dizer. (LAJOLO, 1997, p. 225).
Kuhlmann Jr. e Fernandes (2004, p. 15-16) compreendem a infância “como a concepção ou a representação que os adultos fazem
sobre o período inicial da vida, ou como o próprio período vivido
pela criança, o sujeito real que vive essa fase da vida”, em que
a infância é uma condição das crianças. Esses autores apontam
que a palavra infância lembra um período da vida e,
no limite da significação, o período da palavra inarticulada, o
período que poderíamos chamar da construção/apropriação
de um sistema pessoal de comunicação, de signos e de sinais
destinados a fazer-se ouvir; por sua vez, o vocábulo infância
indica uma realidade psicobiológica referenciada ao indivíduo. (KUHLMANN JR.; FERNANDES, 2004, p. 15-16).
Essa lógica linguística empregada na designação do ser humano,
em seus primeiros anos de vida, contribui para marcar o silên-
16
cio devastador que é impingido às crianças e aos adolescentes,
sublimando seus desejos, amordaçando seus pedidos de socorro
quando são violentados, adestrando seus pensamentos e reduzindo os espaços em que vivem para dificultar a aprendizagem
essencial de ser sujeito da própria história. “Por não se falar, a
infância não se fala e, não se falando não ocupa a primeira pessoa nos discursos que dela se ocupam” (LAJOLO, 1997, p. 226). De
acordo com essa compreensão, Kuhlmann Jr. e Fernandes (2004,
p. 16) destacam porque existem dificuldades para que os protagonistas que vivenciam a infância formulem uma abrangência a
respeito da sua história. Para eles, pelo fato de a criança não se
apresentar como sujeito de suas experiências,
talvez a forma mais direta de percepcioná-la, individualmente ou em grupo, seja precisamente captá-la com base nas
significações atribuídas aos diversos discursos que tentam
definir historicamente o que é ser criança. (KUHLMANN JR.;
FERNANDES, 2004, p. 16).
A noção histórica de infância e os significados do estado de
ser criança, bem como seus lugares nas vivências das sociedades, foram concebidos com diversos e controversos contornos.
Os registros existentes foram constituídos, muitas vezes, pelos
olhares adultocêntricos, os quais partiam da premissa que as
crianças não tinham capacidade para construir seus apontamentos, para expressar sua forma de sentir e compreender o mundo
onde estavam imersas.
Heywood (2004, p. 21) desvela algumas transformações nas concepções de infância ao longo da história da humanidade e traz,
em seus estudos, aspectos que explicam a criança como um construto social, que se modifica com o passar do tempo. Para o autor,
há variações entre os grupos sociais e étnicos dentro de qualquer
sociedade. Por essa razão, “a infância é, pois, em grande medida,
17
resultado das expectativas dos adultos.” (HEYWOOD, 2004, p. 21).
Em certos contextos, ela representa o mundo angelical da inocência e da desterritorialização; em outros, atende à pornografia
adulta e pode ser colocada em bordéis ou obrigada a sevícias
físicas e sexuais, conforme perspectiva postulada; de sagrada à
profana, a infância controversa os papéis a ela destinados.
Ao informar que foi a partir dos séculos XV, XVI e XVII que as
crianças passaram a ser vistas pelos adultos como seres que
precisavam de algum tratamento especial, Heywood (2004, p. 2830) enfatiza que só então eles as preparavam para pertencer ao
seu mundo, embora esse pertencimento fosse condizente com
a percepção destes. Na Alta Idade Média, o autor assinala que
a criança recebia as primeiras e raras noções de um “ser em
processo”, sugerida então a partir de sua dinâmica corporal, de
seu crescimento, no entanto, suas definições eram imprecisas e
algumas vezes desdenhadas. Para Heywood,
a medievalista Doris Desclais Berkvam resume a peculiaridade da infância medieval em seu caráter ‘desestruturado e
indefinido’, embarcando ‘o tempo e o espaço da juventude,
independentemente de onde acontecesse, ou quanto tempo
durasse’. [Faz referência também a contribuição do historiador Jacques Lê Gof, com a importante constatação de que
neste período histórico, a sociedade] não tinha tempo para
compaixão ou admiração pelas crianças, de forma que mal
as notava. (HEYWOOD, 2004, p. 34).
Nessa época, as crianças tinham responsabilidades diferentes
para cada faixa etária e havia um nivelamento das tarefas a
serem executadas, conforme a idade. Para a infância e a adolescência, reconheciam-se períodos distintos de crescimento, mas
o espaço para falar sobre o que sentiam e a existência de quem
os considerasse capazes era uma possibilidade rara. Naquele
18
cenário, estava intrínseca a necessidade de que seguissem os
passos de seus pais, “com ocupação de sua posição na vida,
claramente mapeados com antecedência” (HEYWOOD, 2004, p.
30). As diferenças entre as expectativas traçadas para meninos e
meninas já apareciam como uma questão de gênero na era medieval, apresentando aspectos importantes para a compreensão
da construção social que se reflete até a modernidade. Para as
meninas, entre os quatro e os sete anos, eram ensinados preceitos em conformidade com o que a sociedade esperava delas:
estar preparadas para o casamento e a maternidade (HEYWOOD,
2004, p. 28).
A condição feminina nessa construção sócio-histórica se revela
em perspectiva relacional e é enfocada por Veiga (2004, p. 48),
ao distinguir a formação entre os sexos e a necessidade de que
a mulher aprendesse de forma racionalizada a ser boa mãe,
boa esposa e boa dona de casa. A ênfase predominante era
a de que desse aprendizado derivaria a formação da criança
civilizada e a constituição de uma família harmoniosa.
É importante salientar que essa visão difundida sobre o papel da mulher, historicamente relembrada, traz em suas bases
uma compreensão nuclear da família, comumente considerada estruturada, com condições econômicas adequadas para a
manutenção dos seus, ou seja, “um sólido ambiente familiar,
o lar acolhedor, filhos educados e a esposa dedicada ao marido, às crianças e desobrigada de qualquer trabalho produtivo”
(ABREU, 2007, p. 291). As mulheres continuam enraizadas no
lugar de mães amorosas, aprisionadas pela produção e reprodução dos padrões de honestidade e moralidade monogâmicas,
com encargos diretos vinculados à saúde e civilidade de seus
filhos e filhas.
19
As mudanças que marcaram os séculos possibilitaram à população jovem, de algum modo, manter ou alterar o olhar sobre as
mulheres, as meninas e crianças, conforme a educação recebida
em casa, na escola, nas cidades e na zona rural, nos ambientes
de convivência. É inegável a luta política e cultural contemporânea para protegê-las das violências, para territorializá-las na comunidade de direitos, para garantir-lhes o acesso às políticas públicas de cuidado. Há um tanto de preocupação com o sofrimento
e as discriminações que a elas são imputados, mas a visibilidade
das violências a que são submetidas evidencia o quanto ainda
se está longe de uma sociedade com oportunidades iguais para
homens e mulheres, à medida que ainda vivemos em um espaço social feito também de outras desigualdades. Dessa forma,
torna-se cada vez mais presente, nas relações estabelecidas, o
investimento social e psicológico nas ações destinadas às mulheres, meninas e crianças, e maiores recursos vêm sendo despendidos para a sua educação e saúde, para segurança e cuidado.
No que se refere às crianças e aos adolescentes com deficiências física e mental, de acordo com as explicações de Pessotti
(1984), na Antiguidade Clássica, embora haja poucos registros
que comprovem os argumentos em pauta, eles eram considerados subumanos. Por isso eram abolidos da convivência pública
ou abandonados, uma vez que não correspondiam aos ideais
atléticos e intelectuais necessários à organização sociocultural
própria daquela época.
Com a difusão do Cristianismo na Europa, aos deficientes se atribuiu a alma para que pudessem ser reconhecidos como pessoas
e, por conseguinte, “filhos de Deus” (PESSOTTI, 1984). Os sujeitos
com deficiências ganharam a condição de humanos, com o direito de sobreviver em contato com os demais. Desse modo, sua
humanidade emerge a partir do momento em que é conferido
um papel aos “cuidadores” desses: expiar suas culpas e promo-
20
ver a prática da caridade como meio de salvação desses outros
disformes. Naquele momento, a preocupação se concentrava na
salvação das almas para que elas não fossem para o inferno, e
não em qualquer proposta educacional. Os sujeitos com deficiências, ao receber sua humanidade, ganhavam também uma
herança adequada: isolamento em instituições familiares ou manicomiais e exclusão das atividades públicas, da escolarização,
do casamento, já que eram segregados e encaminhados também
para clausuras em conventos e igrejas e, mais tarde, em asilos
e hospitais.
Para Pessotti (1984, p. 7), a ambivalência caridade-castigo marcava a atitude medieval diante da deficiência mental. A ética cristã,
apesar de impedir a eliminação (a morte) do deficiente mental, como era comum na Antiguidade, mantinha viva a rejeição
que se expressava nesta ambiguidade proteção-segregação. Com
isso os castigos foram atenuados e transformados em práticas
de confinamento. O ato de segregar as diferenças se constituía
numa atitude caridosa, já que o asilo proporcionava abrigo e
alimentação enquanto escondia da publicização conservadora as
feiuras das deficiências. Esses rituais garantiam, dessa forma, a
assepsia social que perdura até os nossos dias frente às tantas
diferenças que constituem a humanidade. Rejeitamos pessoas
gordas, negras, pobres; as que se encontram em espaços de
mendicância ou aquelas que vivem nas ruas; outras que não
aprenderam a falar a norma padrão imposta pela escolarização;
as que acreditamos que não aprendem na escola, que dizemos
ser indisciplinadas; aquelas que contrariam os padrões de beleza
que moldam nossos referenciais.
Esforços eram envidados para transformar as faces das deficiências, de maneira a amenizar o impacto que causavam e alimentar
as conjurações que inspiravam o imaginário social. Uma possível
reflexão está nas características e representações de deficiên-
21
cias, que, por serem tão marcantes, levavam à suposição de que
pessoas com deficiência mental, por exemplo, eram endemoniadas, tanto por seu aspecto físico, quanto pela própria condição
de respostas cognitivas e intelectuais que delas esperavam. É
provável que o peso tenha recaído sobre o corpo, pois a “carne”
já ocupava um valor inferior na escala dos valores cristãos.
A mudança de concepções acerca da infância começa a ser constatada a partir do século XVII, com o aparecimento de outros sentimentos em relação a esta. Ali tem início a criação de espaços
dentro da constituição familiar, e o afeto dos adultos em relação
à criança vai se instituir como um dos fatores que impossibilita
seu afastamento da vida cotidiana. Emerge como um ser ativo,
ou seja, começa a estar presente nas consignações daqueles que
estão à sua volta. Heywood (2004, p. 36), com os estudos que faz
através de historiadores, lembra que o movimento dos puritanos
foi decisivo para que o interesse sobre as crianças prevalecesse.
“Um interesse permanente pelas crianças, na Inglaterra, começou com os puritanos, que foram os primeiros a questionar sobre
a natureza e seu lugar na sociedade” (HEYWOOD, 2004, p. 36).
O movimento dos puritanos caracterizava-se pelo entendimento de que as crianças nasciam como fardos sujos, oriundas
do pecado original, e/ou como pequenas víboras. Essa percepção inferiorizada a respeito das crianças também se fazia presente na França, onde às denominavam como fracas e culpadas
de pecado original. Mas, mesmo assim,
jansenistas do século XVII, em Port-Royal, e outros educadores, afirmavam que as crianças valiam à atenção; que se deveria dedicar a vida à sua instrução e que cada indivíduo precisava ser compreendido e auxiliado. (HEYWOOD, 2004, p. 36).
22
Com essas mudanças de percepção sobre o espaço a ser ocupado pelas crianças, nasceu a importância do cuidado, inicialmente
com o sentido de assistência, que vai se delineando gradativamente no seio das relações com os adultos. A educação e a inserção das crianças nas escolas, progressivamente, configuram-se a
partir da diferenciação entre esses dois espaços. Heywood (2004,
p. 37) aponta que
enquanto alguns historiadores observavam a esfera cultural
para explicar o interesse renovado da criança durante este
período, outros destacaram o impacto das transformações
econômicas, argumentando que entre os séculos XV e XVIII,
se testemunhou o surgimento do capitalismo na Europa
Ocidental.
Outra questão importante para a compreensão do lugar ocupado
pela criança na história da humanidade remete aos mecanismos
utilizados para justificar o seu abandono, com especial destaque
para a criação da Roda dos Expostos. Sua origem data da Idade
Média e, na Itália, com a aparição das confrarias de caridade, as
Rodas tinham por objetivo recolher, nas instituições, as crianças
rejeitadas por seus familiares. Com isso, as crianças eram salvas da morte e as mães permaneceriam no anonimato, evitando
enfrentar as marcas morais da sua época, ou o constrangimento
das perdas. Ao mesmo tempo, a igreja acreditava cumprir sua
função: garantir o anonimato de quem abandonava e praticar a
caridade. Além disso,
a Roda poderia servir para defender a honra das famílias,
cujas filhas teriam engravidado fora do casamento, isto é, a
roda serviu também de subterfúgio para se regular o tamanho das famílias, dado que na época não havia métodos eficazes de controle da natalidade. (MARCÍLIO, 1997, p. 72).
23
No século XIX, a Roda dos Expostos
regulamentou a prática do abandono das crianças, camuflada pelos
ideais da caridade que permitiam
recolhimento dos “enjeitados” em
instituições já destinadas às meninas
pobres. A Roda serviu para revelar
as contradições do modelo familiar
patriarcal, sustentado na moralidade de aparências, e as dificuldades
de muitas famílias para garantir a
sobrevivência dos filhos. Buscavam,
na caridade cristã, materializada nas
Santas Casas, uma possibilidade de
sobrevivência de “seus pequenos”.
24
No caso brasileiro, além desses aspectos, a Roda dos Expostos foi
vinculada à Santa Casa, a qual cumpriu também um importante
papel, pois essa unidade religiosa, aproximadamente por um século, foi a única instituição de assistência à criança abandonada
(MARCÍLIO, 1997, p. 51). A importância histórica do lugar da criança explicita que a prática de abandonar filhos pequenos é muito
antiga e está enraizada na dinâmica relacional dos agrupamentos
familiares e sociais, característicos de cada época.
Então podemos constatar que:
•
É antigo o abandono social da criança – desde a Antiguidade Clássica.
•
Os mitos gregos já traziam o abandono através da figura
de Édipo; na religião, temos o caso de Moisés, abandonado
num cesto de vime; a filosofia retrata o caso de Rômulo e
Remo, abandonados e amamentados por uma loba.
•
Gregos e Romanos evidenciavam pouca preocupação com
o infanticídio.
•
Na Idade Média, a mortalidade infantil era altíssima; em
toda a Europa, chegou a 80% no período do Renascimento.
•
Não existiam métodos e conhecimentos que amenizassem
o abandono e o sofrimento da criança.
•
Portanto, a ideia de que a criança sempre foi protegida
precisa ser revisitada; historicamente, os adultos vêm desistindo das crianças e é essa uma das razões que vai
justificar a terceirização do outro.
•
Existia, ainda, a Roda dos Expostos, uma solução criada
pela Igreja; a Oblata, uma prática em que famílias pobres e
ricas doavam filhos indesejados para conventos, igrejas ou
mosteiros, para que ali se tornassem religiosos; Amas de
leite, quase sempre mulheres negras, escravas, recrutadas
para cuidarem de crianças abandonadas, até que pudessem voltar ao convívio com adultos.
Algumas práticas de transição:
•
Colocar crianças abandonadas na casa de outras famílias,
onde eram iniciadas nos trabalhos domésticos, desde os
três anos de idade.
[!]
Saiba mais em:
MARTINS FILHO, José. A
criança terceirizada: os descaminhos
das relações familiares no mundo
contemporâneo. Campinas, SP:
Papirus, 2007.
25
[!]
Saiba mais em:
MARTINS FILHO, José. A
criança terceirizada: os descaminhos
das relações familiares no mundo
contemporâneo. Campinas, SP:
Papirus, 2007.
A obra de John Locke, Some thoughts
concerning education (Algumas
reflexões sobre a educação), datada
de 1693, foi apontada pela historiadora Margaret Ezell como uma das
mais importantes influências que
possibilitou modificações de atitudes
em relação à infância no século XVIII
(HEYWOOD, 2004, p. 37).
•
No período conhecido como Brasil Colônia, crianças escravizadas se alimentavam de sobras jogadas ao chão, junto
com os cães, para que não esquecessem a sua condição
inferior.
•
Já no século XIX, as crianças foram introduzidas nas fábricas, como aprendizes, junto com seus pais, empobrecidos;
aí começou, oficialmente, o Trabalho Infantil.
A importância da criança e o que deve ser feito com ela aparece
com entusiasmo no século XVII, com pensadores como Locke,
Rousseau e os primeiros românticos. Esses atribuíam à criança
uma importância por ela mesma, e não como adultos imperfeitos. A concepção de criança como uma tábula rasa, expressa
por Locke, buscava se contrapor ao entendimento forjado pelo
discurso do pecado original, o qual sentenciava que a criança era
possuída de certas características inerentes a ela.
A partir da noção lockiana de que a educação pode fazer
“uma grande diferença para a humanidade”, existe uma lógica na sugestão de que ele considerava a criança como nascida nem boa nem má (HEYWOOD, 2004, p. 37).
Compreendemos que mudanças de paradigmas não acontecem
apenas porque as desejamos, mas quando uma comunidade,
de maneira complexa, adota novas posturas. Mesmo assim, a
percepção anterior permanece imbricada, em conflito com os
pressupostos atuais, como no caso das crianças, que ainda hoje
carregam o fardo dos pontos de vista, impregnados pelas noções
“cristãs de impureza” (HEYWOOD, 2004, p. 37).
As contra-argumentações que surgiam como respostas a esse
novo olhar que Locke afirmava sobre e para a criança estavam
ainda carregadas de entendimentos especulativos, os quais
apontavam que “a aprendizagem envolvia uma luta longa para
26
ensinar a criança a ‘dominar suas inclinações’, e submeter seu
apetite à razão” (HEYWOOD, 2004, p. 37). Críticos da obra de Locke assinalam que ele não conseguia se desprender da cultura
que forjou sua visão de mundo em relação à infância, já que, em
seus escritos, estava presente a percepção negativa da infância,
com argumentos voltados ao uso da razão com as crianças:
com o descuido, a desatenção e a alegria que lhe são característicos, as crianças precisavam de ajuda: eram pessoas
fracas sofrendo de uma enfermidade natural. (HEYWOOD,
2004, p. 38).
A obra de Heywood (2004) aponta Jean-Jacques Rousseau como
um estudioso que efetivamente combateu a tradição cristã do pecado original e trouxe para as relações estabelecidas com as crianças uma visão diferente acerca da infância. Rousseau ressaltava
que “a criança nasce inocente, mas corre o risco de ser sufocada
por preconceitos, autoridade, necessidade, exemplo, em todas
as instituições sociais em que estamos submersos.” (HEYWOOD,
2004, p. 38). Cabe observar que Rousseau, com sua obra intitulada
Emílio, dirigiu às mães a responsabilidade da educação de seus
filhos, ao destacar a necessidade de se criar tratados de educação
que fossem dirigidos a elas. O aprendizado seria importante tanto
para as crianças, quanto para as mães, “portanto, para Rousseau,
não somente as crianças acham-se em estados de aprender, como
também as mães, as mulheres.” (VEIGA, 2004, p. 53).
Rousseau defendia que a “infância tem formas próprias de ver,
pensar, sentir e particularmente, sua própria forma de raciocínio,
sensível, pueril, diferentemente da razão intelectual ou humana
do adulto.” (HEYWOOD, 2004, p. 38). Havia a proposição de que
o aprendizado deveria iniciar a partir da relação de vivência com
as coisas (da experiência), e não a partir dos homens. Mas preocupava-se com a relação estabelecida entre mães e seus filhos e
A modernidade enseja uma nova tarefa para a mulher, com a concretização do ideal de família feliz: viver
o amor pelo trabalho doméstico e
pelo lar. Essa valorização ganhou visibilidade enquanto conceito quando as mulheres burguesas se tornaram “senhoras do lar”, mesmo com
ajuda de governantas, consolidando
o padrão esperado de “boa mulher”
igual a boa dona de casa. A família
demonstrava sua distinção social,
entre outras coisas, pela dedicação
de suas mulheres exclusivamente
aos papéis familiares.
27
alertava que muitos “mimos”, por parte delas, os exacerbariam
de afetividade e poderiam “estragá-los”. Pede, portanto, o controle da afetividade nas relações estabelecidas (VEIGA, 2004, p. 54).
A visão rousseauniana sofreu modificações e foi questionada a
partir dos séculos XVIII e XIX quando, no cenário das teses que
envolviam a infância, surgia a contribuição da concepção romântica. Uma das diferenças importantes apontada pelos românticos
se contrapunha ao entendimento de Rousseau, de que as crianças não se tornavam virtuosas durante os primeiros doze anos
de sua vida. Os românticos falavam de uma criança possuidora
de saberes, com uma apurada sensibilidade estética e com uma
consciência mais profunda das verdades morais duradouras.
(HEYWOOD, 2004, p. 38).
Surgia a condição de uma criança como alguém que tinha o que
ensinar para os adultos que a cercavam, contestando também
a visão de que ela era uma tábula rasa e possibilitando uma
redefinição das relações sociais construídas para com a infância. Porém, Heywood lembra que essas ideias românticas tinham
mais reflexos nos círculos de classe média, porque ali havia a
preocupação para com o desenvolvimento da criança, para com
a sua domesticidade e educação.
No final do século XIX e início do XX, o modo de reconhecer a
criança foi modificado no cenário social e se configuraram outras percepções a partir de temas que envolviam a sua inserção
no campo de trabalho. Questionamentos foram sendo efetivados no sentido de sacralizar essa infância, um movimento que
tinha como objetivo a retirada “dos pequenos” dos ambientes
de trabalho, pois “lucrar a partir do trabalho de crianças era tocar de forma profana em algo sagrado” (HEYWOOD, 2004, p. 42).
O autor evidencia que esse movimento possibilitou agregar um
valor sentimental para com a criança, alargar os espaços de per-
28
tencimento em que ela estava presente, criar outros caminhos
para uma reconceituação da infância e fazer surgir uma versão
politizada da criança romântica.
Apresentou-se, nesse período histórico, a noção da adolescência
como uma infância prolongada, estimulando-se a compreensão
de um período amplo de transição entre a infância e a idade
adulta. Heywood (2004, p. 43) aponta que
o interesse elevado na definição de um período prolongado de infância e adolescência a partir do final do século XIX
pode ser explicado parcialmente pelo fato de que os jovens
eram cada vez mais segregados dos adultos nesse momento,
especialmente em escolas organizadas por idade.
Criavam-se outras formas de apartação na convivência, com artefatos culturais que marcavam as distinções entre os sujeitos,
mas também o status econômico a que pertenciam.
Até então falamos sobre alguns entendimentos históricos, sobre
a condição da criança na trajetória da humanidade, para tornar
relevante a reflexão sobre as violências que marcam o processo
de desenvolvimento da infância. Essas violências têm dimensões
ampliadas e podem ser compreendidas a partir do conceito de
Sousa (2002, p. 31), apresentado no material didático do Módulo
I. Essas violências são sentidas na pele e na alma, atravessam
a corporalidade viva e se instalam na existência. Assim, quando
vivenciadas pelas crianças, estas têm o agravante da ausência de
seu consentimento e da questão vital de estarem em um tempo
peculiar de desenvolvimento.
Violências: todo e qualquer processo
que produza desorganização emocional do sujeito, a partir de situações em
que este é submetido ao domínio e
controle de um outro; caracterizamse por relações de domínio, em que
alguém é tratado como objeto, e na
radicalidade, como toda e qualquer
circunstância que ameace a organização dos sistemas vivos.
Sanderson (2005, p. 3) chama a atenção para a dimensão cultural
das violências, lançada para explanar ensinamentos conforme
as tradições. Como exemplo, podemos observar que, nos rituais
de cuidados domésticos com as crianças, acontecem as surras
29
severas, que são legitimadas como meio de garantir a obediência
e a aceitação daquilo que os adultos consideram necessário para
uma boa formação do caráter, para uma educação exemplar. Em
muitas sociedades, não se considera os espancamentos abusivos. No ocidente, ainda é aceitável deixar os bebês sozinhos
na própria cama ou no “seu” quarto durante a noite; manter
horários rígidos para a amamentação ou deixá-los chorando até
a exaustão para que adormeçam e aprendam, desde cedo, a não
se tornarem manhosos.
Esse autor ressalta que “em sociedades cada vez mais multiculturais, certamente é importante estar sensível a todas as práticas culturais, mas, ao mesmo tempo, devem ser observadas as
necessidades da criança dentro de uma estrutura que a proteja.”
(SANDERSON, 2005, p. 3). Ele indica a necessidade de se compreender a diferença entre cuidado dos filhos, em seu aspecto
culturalmente normativo, e o cuidado que possibilita e naturaliza
o abuso e a negligência. Sanderson lembra que, na Índia, como
se sabe, em tempos remotos, era comum que adultos masturbassem as crianças para tranquilizá-las, com realce para fazer
dormir bem as meninas e para os meninos como forma de se
tornarem másculos. Ou seja, essas práticas não eram identificadas como abuso sexual (SANDERSON, 2005, p. 8).
Esse mesmo autor diz que
historicamente, em algumas partes da Índia, o incesto era a
regra e não a exceção [...]; os baigas, uma tribo indo-européia
da Índia, ainda praticavam o casamento incestuoso entre pai/
filha, mãe/filho, irmãos, avós e netos. (SANDERSON, 2005, p. 8).
Em alguns casos, as crianças com cinco ou seis anos serviam
como possibilidade de cura para os mais velhos, situação em
que eram usadas sexualmente em dormitórios destinados para
esse fim. Era aceitável a união e a venda de crianças para ho-
30
mens mais velhos, para a exploração sexual, como também para
se tornarem donzelas de templos, proporcionando serviços sexuais para adoradores (SANDERSON, 2005, p. 8).
A China também entra no contexto situado por Sanderson como
país em que prevaleceram e talvez ainda prevaleçam, em certas regiões, práticas culturais que tornavam/tornam crianças em
servas sexuais, escravas de adultos que podiam ser vendidas
para a prostituição. O castramento era outro rito presente nas
famílias, para que os meninos se tornassem eunucos, enquanto
outros fetiches se materializavam na decisão de atar os pés das
meninas para moldá-los como representação da “flor de lótus
e, ao mesmo tempo”, para que tivessem “a aparência de um
pênis substituto que seria utilizado como fetiche durante o ato
sexual”. (SANDERSON, 2005, p. 9). O Japão, por sua vez, tinha
como regulamento de seus tribunais o casamento incestuoso,
uma prática longamente tolerada. O casamento entre pai e filha
comumente era praticado após o falecimento da mãe, e o incesto
também permeava as relações entre irmãos, primos, tios e tias
(SANDERSON, 2005, p. 9).
[Eunuco]
Homens castrados que tinham
a função de guarda dos haréns
orientais.
[Fetiche]
Crença no poder sobrenatural ou
mágico de certos objetos materiais.
O casamento de crianças era outra prática recorrente no Oriente Médio, aceitável também entre irmãos, como o concubinato
infantil, escravidão sexual e prostituição nos Templos, independentemente dos sexos. Porém, Sanderson (2005, p. 9) destaca a
questão de gênero, já que as mulheres, desde sempre, eram/são
mais abusadas sexualmente, o que denuncia o lugar ocupado
por elas nas relações sociais estabelecidas.
A mutilação genital feminina constituía-se em prática assimilada
como ritual de iniciação, embutida em grandes significados religiosos e culturais. Mas a prática de excisão genital feminina também teve espaço na constituição dos seres humanos na Europa
e nos Estados Unidos, exercida em espaços ilegais. Na África,
em determinadas comunidades, ainda se constata esse tirocínio,
[Excisão genital]
Prática realizada que consiste na
amputação do clitóris da mulher
de modo a que esta não possa
sentir prazer durante o ato sexual.
[Tirocínio]
Aprendizado, primeiro ensino.
31
que, entre outras coisas, contribui para aumentar os indicadores
de mortes por infecções, pela epidemia da aids, manter as meninas em cenários de subserviência aos ditames adultocêntricos.
Tudo isso se torna um fator agravante na medida em que o abuso
sexual não se restringe ao modelo que se conhece, mais evidente no âmbito doméstico. Ele se espraia culturalmente por todas
as esferas do tecido social e penetra o imaginário coletivo para
causar indignação ou aceitação.
No Brasil, as relações de violências que historicamente envolvem
crianças e adolescentes não indicam um quadro muito distinto
do que ocorreu e ocorre em outros países. Ramos (2007) ressalta como essa população é inserida em experiências violentas,
como fatores que marcam a organização da sociedade. Nas embarcações portuguesas do século XVI, como ilustram os acontecimentos, era dramática a situação enfrentada por crianças e
adolescentes, já que permaneciam, durante meses, em alto mar,
numa convivência com adultos e onde era rara a presença de
mulheres, uma figura quase sempre proibida, o que facilitava as
práticas de abusos e gerava um terreno fértil para sujeições e
explorações dos pequenos a bordo.
Crianças, mesmo acompanhadas dos pais, eram violadas por
pedófilos e as órfãs tinham que ser guardadas e vigiadas cuidadosamente, a fim de manterem-se virgens, pelo menos,
até que chegassem à Colônia. (RAMOS, 2007, p. 19).
Vale ressaltar que as crianças eram preferidas para o trabalho
dentro das naus, uma vez que comiam menos e ocupavam lugar
reduzido para dormirem e para a convivência cotidiana. Os grumetes, como as crianças eram nomeadas enquanto mão-de-obra
e força produtiva, eram
em torno de 18% do total dos tripulantes [...]; a partir do século XVII e principalmente, de meados do século XVIII, o núme-
32
ro de grumetes nos navios lusitanos chegou a ser o mesmo
que o número de marinheiros e, algumas vezes, até superior
devido à falta de profissionais adultos. (RAMOS, 2007, p. 23).
A vida dessas crianças e adolescentes, no interior dessas naus,
era marcada por inúmeras violências, de caráter patético, desde
o pagamento reduzido em relação ao trabalho exercido, até as
inúmeras formas de maus tratos que configuravam as relações
entre adultos e crianças.
Os miúdos eram sistematicamente acometidos de inanição e
escorbuto; os grumetes eram estuprados por marinheiros, e
quer por medo ou por vergonha, dificilmente se queixavam
para os oficiais, até porque, muitas vezes, eram os próprios
[Escorbuto]
Doença provocada pela falta da
vitamina C, que resulta no apodrecimento das gengivas.
oficiais os autores das violências [...]; alguns grumetes podiam mesmo prostituir-se como forma de obter proteção do
adulto. (RAMOS, 2007, p. 27, grifo nosso).
Nessa história luso-brasileira, há ainda outras perversões que merecem destaque. Olhando a partir do quesito gênero, meninas
órfãs de pai eram retiradas à força de sua família e eram embarcadas sob a categoria de “órfãs do Rei”. Ramos (2007, p. 32) diz que,
“dada a falta de mulheres brancas nas possessões portuguesas, a
Coroa procurou reunir meninas e moças pobres de 14 a 30 anos,
nos orfanatos de Lisboa e Porto, a fim de enviá-las à Índia”. A
permanência dessas meninas-moças nos navios, sem contar com
o cuidado de alguém que as protegessem, favorecia distintas formas de violências, desde o estupro até as privações alimentares.
O cotidiano marcado por humilhações, fome, sede, fadiga, abusos
sexuais era um dos grandes desafios enfrentados pelas crianças
e pelos adolescentes embarcados. Ramos (2007, p. 49) afirma que
a história do cotidiano infantil a bordo das embarcações portuguesas quinhentistas foi, de fato, uma história de tragédias
pessoais e coletivas. A história das crianças, de qualquer ida-
33
de, nas naus do século XVI só pode ser classificada, portanto,
como uma história marítima trágica, ou se preferirem como
uma história trágico-marítima.
As violências compõem a história da humanidade e se inscrevem como condutas que afetam diferentes sujeitos, de modo
emblemático, crianças e adolescentes. A relação entre lugares e
experiências enseja a importância de um pensamento complexo que englobe o mundo pensado e que encontre, na reflexão,
uma forma mais adequada para construir explicações. O sentido dessas violências e o valor para o desenvolvimento peculiar
de crianças e adolescentes decorrem da proximidade atribuída
entre os lugares e as experiências, com seus dados genuínos.
Ou seja, para falar das violências, torna-se indispensável situar
onde elas acontecem e como buscam suas justificativas para que
possamos discernir seus fundamentos e formular conhecimentos
pertinentes, mesmo que provisórios.
Nelson Mandela, quando escreveu o Preâmbulo do Relatório
Mundial sobre Violência e Saúde, deixou-nos como presente a
sabedoria de seu estilo de luta para instigar a nossa reflexão. Ele
nos lembra como as concepções vigentes estão encharcadas de
heranças históricas:
O século vinte será lembrado como um século marcado pela
violência. Em uma escala jamais vista e nunca antes possível
na história da humanidade, ele nos oprime com seu legado de
destruição em massa, de violência imposta. Mas esse legado –
resultado de novas tecnologias a serviço de ideologias de ódio
– não é o único que carregamos, nem que devemos enfrentar. Menos visível, mas ainda mais disseminado, é o legado do
sofrimento individual diário. É a dor das crianças que sofrem
abusos provenientes das pessoas que deveriam protegê-las,
mulheres feridas ou humilhadas por parceiros violentos, pessoas idosas maltratadas por aqueles que são os responsáveis
34
pelos seus cuidados, jovens oprimidos por outros jovens e
pessoas de todas as idades que infligem violência contra si
próprias. Este sofrimento – e há muitos outros exemplos que
eu poderia citar – é um legado que se reproduz quando novas
gerações aprendem com a violência de gerações passadas,
quando as vítimas aprendem com seus agressores, e quando
se permite que se mantenham as condições sociais que nutrem a violência. Nenhum país, nenhuma cidade, nenhuma
comunidade está imune à violência, mas, também, não estamos impotentes diante dela. (KRUG et al., 2002, p. 09).
1.3 A escola arquitetada
para a infância
Compreender a função social da escola foi sempre um esforço
de todos aqueles que dedicam sua inteligência a pesquisar esse
tema e a ensinar ali. Esse esforço implica reconhecer, nessa escola, os espaços em que crianças e adolescentes estão inseridos
e as concepções que sobre eles se desdobram como aprendizagens pretendidas. De algum modo, exige situar a escola como
instituição feita de inter e transculturas, criadoras e reprodutoras
de visões de mundo que formam os sujeitos.
Kuhlmann Jr. e Fernandes (2004, p. 23) nos fazem pensar que
a defesa da instituição escolar como o lugar da criança revestiu-se da ilusão de que a escola seria um meio de afastá-la da
sociedade, foco da degeneração moral, de modo que, sob a
condução de educadores incorruptíveis, ela fosse educada
para uma vida regida por valores opostos aos vigentes.
Os conflitos e as conquistas contemporâneos indicam que a escola cumpriu os desígnios da história no mesmo movimento em
35
que os contestou, forjando sinuosidades e descompassos em
sua função social, com e sem determinismos que a enraízam na
comunidade onde se materializa como instituição.
[Visceral]
A parte mais íntima de qualquer
coisa.
Para Kohan (2003, p. 15), “quando nos deixamos atravessar pela
experiência”, esta produz incômodos e obstáculos, reconhecendo
que as relações sociais são conflituosas por excelência. A escola
não escapa desse contexto e vive sua contradição e inventividade atravessada pelas experiências que acumulou em processo.
Esse sentimento nos aparece quando se efetiva o encontro com
crianças violentadas, pois abarca todas as nossas experiências
de infância e escolaridade. A construção de paradigmas sobre
elas contribui para contornar, antropologicamente, modos de
concebê-las nas práticas educativas, nos contextos de atenção
às suas demandas viscerais e sociais, na maneira adultocêntrica
como nelas encravamos o nosso mundo. É aí também que se
pensa e se realiza a intervenção das políticas públicas, lapidadas
pelos adultos para o seu pertencimento contemporâneo.
Arroyo, em seu livro Ofício de Mestre (2000, p. 47) lembra que,
paradoxalmente, a nossa capacidade de escuta sensível é renovada cada vez que nos dispomos, com toda a nossa corporeidade, a “ler e a escutar a história real, brutal da infância popular”.
De tantos meninos e meninas, em suas faixas etárias diferentes,
que jamais terão a oportunidade de retornar “à estação primeira
da infância não vivida.” (ARROYO, 2000, p. 47). Compreender e
empreender o cuidado com o desenvolvimento humano gera a
disposição de acompanhar, com atenção, a “própria infância e
adolescência, juventude ou vida adulta com que convivemos.”
(ARROYO, 2000, p. 47). São estes e estas, nossa leitura inicial, o
tema guia de nosso percurso educador, “nunca aprendida, nunca
aprovada porque sempre surpreendente.” (ARROYO, 2000, p. 47).
Com a mesma importância que refletimos a nossa prática, que
elegemos os conteúdos dos projetos pedagógicos, somos desa-
36
fiados a não abandonar, por esquecimento, os sujeitos de nossa
ação educadora e suas histórias de sofrimento. À volta à infância
nos reeduca como educadores, torna-se nossa cúmplice.
Saberes e ofícios diversos foram aniquilados pela industrialização com o advento das tecnologias. A escola, afetada por essa
composição, perdeu aspectos de seu movimento peculiar e se
viu obrigada a adequar-se às novas exigências do mercado. Relações interpessoais ganharam sentidos de produtividade, de
cumprimento de normas padronizadas e hierárquicas, de decisões pouco democráticas e, principalmente, de controle das subjetividades. Imersa em resistências e contradições, incorporou
saberes de guerra para a educação de crianças e adolescentes,
confirmando processos tensos de eliminação dos ofícios e dos
artífices. Com isso, a escuta da infância não aconteceu como se
esperava, tampouco o prestígio de sua legitimidade em formação. Nesses embates, as comunidades construíram saberes culturalmente seus, que, na maioria das vezes, está em dissonância
com o conhecimento escolar.
Um exemplo de como se constituem processos paralelos que geram violências no interior da escola é o fato de crianças e adolescentes serem tratados a partir dos diagnósticos de deficiências.
As influências do século XVIII marcaram, de modo extraordinário,
a educação escolar ao transformá-la em epicentro das atenções,
mas apenas nos momentos em que ela era indispensável para
somar na manutenção das benesses dos segmentos dominantes da sociedade. A escola assumia a função de socializar os
conteúdos científicos e técnicos e dela se exigia que garantisse
a incorporação dos valores da sociedade capitalista emergente.
No Brasil, as perspectivas sobre a educação dos sujeitos com
deficiências foram se construindo paralelamente à educação das
crianças consideradas normais, embora, na finalidade da escola, não estivesse contemplada a escolarização, pela via regular,
37
dos deficientes mentais por exemplo. Enquanto se promoviam
políticas e práticas de inclusão das diferenças, situações de segregação, exclusão, manutenção do fracasso escolar e diversas
violências eram gestadas.
»»Em síntese...
Este capítulo procurou retomar os referenciais sobre as violências
e a interface com o cuidado, viajando pelas concepções historicamente construídas em torno da infância e as práticas instituídas
de abandono que nossas crianças foram (e são) submetidas.
E de algum modo, situar a escola como instituição feita de inter e
transculturas, criadoras e reprodutoras de visões de mundo que
formam os sujeitos. Isto porque ao longo da história a escola foi
tomando contornos cada vez mais paradoxais, entre eles Sujeito
Normal/Anormal, Inclusão/Exclusão, Sucesso/Fracasso escolar e
Violências/Cuidado.
»»Referências
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40
42
[2]
As violências e seus contextos
Maria Francisca Rodrigues Giron
GIRON, Maria Francisca Rodrigues. As violências e seus contextos. In:
ZAPELINI, Cristiane Antunes Espindola (Org.). Módulo 2: violências, Rede
de Proteção e Sistema de Garantia de Direitos. Florianópolis: NUVIC-CEDUFSC, 2010. cap. 2.
[Objetivo desse Capítulo]
Dialogar com o fenômeno das violências apresentando suas formas
e caracterizações, na multidimensionalidade dos contextos nos quais
estão envolvidos os sujeitos, com suas práticas sociais.
43
2.1 Violências em formas que
con-formam e de-formam
Violência
O movimento começou, o lixo fede nas calçadas.
Todo mundo circulando, as avenidas congestionadas.
O dia terminou, a violência continua.
Todo mundo provocando todo mundo nas ruas.
A violência está em todo lugar.
Não é por causa do álcool,
Nem é por causa das drogas.
A violência é nossa vizinha,
Não é só por culpa sua,
Nem é só por culpa minha.
Violência gera violência.
Violência doméstica, violência cotidiana,
São gemidos de dor, todo mundo se engana...
Você não tem o que fazer, saia pra rua,
Pra quebrar minha cabeça ou pra que quebrem a sua.
Violência gera violência.
Com os amigos que tenho não preciso inimigos.
Aí fora ninguém fala comigo.
Será que tudo está podre, será que todos estão vazios?
Não existe razão, nem existem motivos.
Não adianta suplicar porque ninguém responde,
Não adianta implorar, todo mundo se esconde.
É difícil acreditar que somos nós os culpados,
É mais fácil culpar deus ou então o diabo.
Fonte: Britto e Gavin (200-).
44
As violências são multiformes, tecidas tanto na sutileza das relações interpessoais, quanto nos gestos explícitos que con-formam
a convivência social. Uma e outra de-formam a qualidade da nossa humanização porque fazem desaparecer a gentileza da escuta; destroem a suavidade da palavra em comunicação; asfixiam
a reverência mútua presente nos diálogos; queimam a paciência
para aprender o que ainda não se sabe e a generosidade para
compartilhar as aprendizagens já consolidadas; geram prescrições e juízos de valor; escondem e dissimulam preconceitos,
jeitos estigmatizantes de olhar o outro; insistem na anulação do
diverso que difere; ampliam os espaços das ausências; degradam a possibilidade de uma cumplicidade em comunhão, como
bem nos ensina Paulo Freire, onde nos dizemos, nos revelamos
e nos construímos em presença uns dos outros.
Eis porque se pode afirmar que as violências alcançam uma extensão sem medidas exatas. Elas atravessam conflitos de classes, fazem germinar práticas de segregação que mutilam culturalmente as pessoas, especialmente as mais empobrecidas.
Vem à lembrança um dizer de Manoel de Barros, em O Casaco,
intuindo-nos de que, mesmo em circunstâncias adversas, todos
nós queremos amanhecer:
Um homem estava anoitecido. Sentia-se por dentro um trapo
social, igual se, por fora, usasse um casaco rasgado e sujo.
Tentou sair da angústia, isto ser, ele queria jogar o casaco
rasgado e sujo no lixo. Ele queria amanhecer. (BARROS, 2010).
Quando as violências são justificadas, elas permitem que determinados atores, em conformidade com a posição que ocupam
na organização do Estado e da Sociedade Civil, afirmem a necessidade do uso da força para subordinar alguém, fortalecendo o
controle policialesco e gerando mais violências. A história traz
como ilustração vários atores, dirigentes eleitos ou autoempos-
45
sados pelas ditaduras, chefes nomeados, gestores públicos, pessoas em postos culturais de mando. Associados às circunstâncias, encontram, nas violências, motivos de prazer, pelo poder
que elas trazem em suas entranhas. São manifestações que elevam o prestígio pessoal, que aumentam a audiência dos meios
de comunicação, e tentam convencer toda a sociedade de que
a brutalidade é necessária para manter a ordem das coisas. A
escola, com suas particularidades, também se inspira nessas
convicções.
Explica-se, com isso, por que as violências contra crianças e adolescentes são praticadas com certa constância por diferentes atores e em distintos lugares, com prevalência na esfera doméstica.
A classificação mais usual denomina como formas de violências:
violência física, psicológica e sexual. Essa especificação serve
para construir indicadores que orientem as políticas públicas de
prevenção e atenção. A violência sexual, por sua vez, é dividida
em abuso e exploração sexual comercial; o abuso sexual em
intra e extrafamiliar; a exploração sexual em prostituição, pornografia, turismo sexual e tráfico de pessoas para fins sexuais; a
violência psicológica como
tortura, produção de medo agregado com imagens e objetos
de pavor, exigência de silenciamento sob ameaças verbais;
violências físicas, como negligência alimentar e de vestuário,
espancamentos, agressões com objetos que produzam dor e
machucados corporais. (SOUSA, 2002).
No entanto, uma análise mais rigorosa dessa classificação revela
imprecisões e lacunas que não podemos deixar de apreciar, à
medida que nenhuma forma de violência é exclusiva. Ao contrário, toda vez que violentamos alguém, o fazemos com recursos
variados, usamos xingamentos e gestos que se acrescentam com
a tonalidade da voz por exemplo. Para quem sofre aquela violên-
46
cia, inúmeras outras dores são sentidas na corporeidade, mesmo
sem o consentimento da vítima, que desconhece as marcas que
serão inscritas em sua vida a partir dessa experiência. Nesse sentido, a análise de situações objetivas pressupõe estabelecer interfaces subjetivas, já que essas diferentes formas de violências
não são excludentes, mas associadas. Outro acontecimento que
ilustra a nossa reflexão refere-se à violência sexual, uma forma
de violência física e psicológica. Para nós, não há violência física
separada do sofrimento psicológico. Na exploração sexual comercial, encontram-se presentes, além da exploração econômica, as
violências estrutural, física, psicológica, social e moral. Isso nos
faz compreender que lidamos todo o tempo com violências.
Esse cenário não se origina de um simples nível isolado, mas de
momentos em que a história de meninos e meninas constitui
instâncias de possibilidades, quando o olhar sobre a infância e
a adolescência não os desenraiza dos lugares social e histórico
em que existem e quando são considerados como atores sociais, ainda que imersos em situações de vulnerabilidade e em
experiências de exclusão decorrentes de um panorama coletivo
de violências. E, ainda, quando os riscos que enfrentam estão
associados às condições precárias de vida, ao uso de drogas, às
diversas experimentações sexuais, à intolerância pública e privada, entre outros acontecimentos graves.
Os educadores que atuam em escolas, Organizações Não-Governamentais (ONGs), na educação do campo e de jovens e adultos,
ou em outros espaços pedagógicos, ainda carecem de formação
continuada que lhes ajudem com alternativas de proteção. Nos
encontros pedagógicos, revelam a necessidade de se considerar
as relações entre infância, adolescência, juventude e violências
como subsídios fundamentais para uma reflexão sobre o papel
de uma “escola que protege”. A Educação, com todos aos saberes que engendra, incentiva a elaboração de projetos de inter-
47
venção, de ações organizadas que contemplem as referências
vividas por crianças e adolescentes: as violências. É essencial
desvelar o movimento real desse mundo, onde se constroem
saberes dentro e fora da escola, nos movimentos sociais, mas
que precisam dialogar e explicitar os propósitos de uma outra
trajetória de vida para essa população, socialmente vulnerável.
Pensamos, com efeito, que a formação continuada tem um papel
definidor para que os educadores possam escolher realizar atividades político-pedagógicas de interlocução com muitos saberes,
abertas aos novos projetos de vida para todos, principalmente
para crianças e adolescentes. Com esse entendimento, vão considerar que existem públicos diferenciados, que os sujeitos que
participam dos processos educativos estão sendo ensinados por
eles. Como coloca Marques (1998, p. 145),
tais processos se dão, desde os lugares das relações educativas imediatas e diretas, tais como os grupos primários, os
grupos de convivência, de trabalho, de lazer, a sala de aula
e, no interior dela, os subgrupos de alunos e professores, até
nas articulações mais amplas mediadas por organizações e
instituições de natureza econômica, política, cultural, educacional etc.
Assim, todo trabalho escolar é entendido como uma prática político-pedagógica, ou seja, como um conjunto de ações intencionais precedido de reflexões, em que educadores/as e outros/as
profissionais se encontram com um grupo de crianças, adolescentes, jovens ou adultos para realizar a sua docência centrada
na vida.
48
2.2 Diferentes olhares
para as violências
Quando a mão arrogante insiste em possuir o outro, deixa
de ser seda para tornar-se garra, fracassando o encontro e
abrindo-se passagem à incorporação. A singularidade é devorada. A possibilidade do diálogo desaparece. A ternura é
substituída pela violência (RESTREPO, 1998).
Como já realçamos anteriormente, certos estudos sobre violências utilizam quatro tipos de classificação: a negligência, a violência psicológica, a violência física e a sexual. Essa classificação
padronizada pode esconder questões subjetivas salutares para
compreendermos as implicações inerentes às violências praticadas contra outrem. Ampliar nosso olhar para esse apanhado de
informações significa mergulhar nessa complexa rede de espaços
sociais que também promovem ações calcadas em gestos culturalmente agressivos, que nem sempre oferecem uma perspectiva
atualizada da dimensão do problema a ser enfrentado na defesa
dos direitos de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Gestos que não se guiam na perspectiva do cuidado
de si e do outro, o que traduz um dos objetivos deste Curso de
Especialização.
Utilizaremos, como base para a reflexão dos diferentes olhares
para as violências, o documento intitulado A Escola que Protege:
enfrentando a violência contra crianças e adolescentes, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do
Ministério da Educação (BRASIL, 2007).
49
2.2.1 Violência estrutural: a expressão
das desigualdades
O Brasil é um país com enormes desigualdades econômicas e
sociais, e sua população historicamente é separada em classes,
com uma cultura adultocêntrica, pautada em valores sexistas,
machistas, com nebulosos recortes étnicos e raciais, com padrões de normalidade que refutam sujeitos e expressões que escapem aos seus ditames. Então podemos afirmar que é um mito
descrever este país como lugar em que vive “um povo” pacífico.
As relações predominantes evidenciam uma nação extremamente violenta, que destrói vidas em proporções similares a de uma
guerra civil, como mostram os conflitos de enfrentamento do
narcotráfico nas grandes cidades. São conflitos de natureza sangrenta, os quais não cuidam inclusive de crianças e adolescentes
enredados no uso que fazem de sua incipiente maturidade para
tomar decisões e de suas condições de empobrecimento. Tratase, portanto, de violências cumulativas e excludentes. Estudos
atuais revelam os altos índices de mortalidade de crianças e adolescentes, provocados por causas externas ligadas ao tráfico de
drogas, pela atuação das gangues de extermínio de adolescentes
em conflito com a lei, bem como, por homicídios, suicídios e
acidentes de toda ordem.
Minayo (1994) denomina esse conjunto de violência estrutural,
que se caracteriza pelo destaque na atuação das classes, grupos ou nações econômicas, ou politicamente dominantes, que se
utiliza de leis e instituições para manter sua situação privilegiada, como se isso fosse um direito natural. Apesar das garantias
democráticas claramente expressas no texto da Constituição de
1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1999),
as políticas públicas nem sempre estão comprometidas com o
50
princípio constitucional da prioridade absoluta às crianças e aos
adolescentes.
É o Estado um dos principais responsáveis pela violência estrutural e, para minimizar essa realidade, o Governo Federal busca
criar e efetivar projetos e programas, tais como: Escola que Protege, Sentinela, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI)
e o Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil no Território Brasileiro (PAIR).
Embora haja um esforço institucional de enfrentamento das violências praticadas contra crianças e adolescentes, sabemos que
a concretização das ações, muitas vezes, é cercada de ineficiências, mesclada por corrupções que desviam recursos e gera favorecimentos político-partidários, tornando insuficiente o efeito
das políticas públicas e sem eficácia preventiva. Faltam pontes
entre a apropriação do conhecimento gerado pela sociedade organizada em defesa dos direitos civis e as reais propostas de
ação. Com relação às violências que se desdobram no ambiente
familiar, por exemplo, ainda é muito recente a identificação desse problema, o que dificulta a adoção de medidas competentes,
já que existem diferentes compreensões acerca do fenômeno.
As instituições que realizam pesquisas contribuem para sistematizar indicadores que possam trazer subsídios em políticas
de atenção às demandas sociais. Mas torná-las disponíveis para
atender a diversidade das fontes originárias requer decisão
política e escolhas por uma nação que se recusa a abandonar
seus filhos. De posse das informações existentes e de inquéritos populacionais nacionais, o Estado reafirma sua disposição
de enfrentar as violências que produz e minimizar os fatores
que dificultam as ações em torno de estimativas mais acuradas.
Ademais, é importante reconhecer que a maioria dos indicadores sistematizados na área da vulnerabilidade infantojuvenil, por
51
exemplo, reflete somente os casos mais visíveis e/ou graves de
violências. Possivelmente, a escassez de uma metodologia básica capaz de gerar um reconhecimento mais abrangente e situado
nas rotinas das instituições poderia trazer clareza na formulação de diretrizes eficientes, abertas ao diálogo e estimuladas a
estabelecer fluxos adequados dessas informações entre todas
as instâncias responsáveis pelo cuidado de crianças e adolescentes. Queremos dizer que, lamentavelmente, há instituições
envolvidas na Rede de Proteção que também contribuem para o
agravamento da situação.
2.2.2 Violências simbólicas: a
construção da inferioridade
O conceito de violência simbólica foi criado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu para descrever o processo pelo qual a classe
que domina economicamente impõe sua cultura aos dominados. Bourdieu, juntamente com o sociólogo Jean-Claude Passeron
(1970 apud BRASIL, 2007, p. 32), parte do princípio de que a cultura, ou o sistema simbólico, configura-se como artefatos arbitrários, uma vez que se assenta em uma única realidade, tecida por
mitos e preconceitos que são dados como naturais. São exemplos disso: a mulher é mais fraca do que o homem; os negros
são menos inteligentes do que os brancos; todo adolescente é
revoltado; o homossexual é um doente; os pobres são preguiçosos (MINAYO, 1994). Há outros que continuamos a afirmar: os homens violentam as mulheres porque elas os provocam; mulher
apanha porque merece; em briga de marido e mulher ninguém
mete e a colher; as famílias pobres são desestruturadas.
O sistema simbólico de uma determinada cultura é uma construção social. Sua manutenção é fundamental para a perpetuação
52
de uma determinada sociedade, como o modelo capitalista em
que vivemos, através da interiorização dos aportes culturais dominantes pelas pessoas. Ele se traduz na imposição “legítima”
e dissimulada dos valores e símbolos de poder que se tornam
naturais, inquestionáveis e mesmo invisíveis no dia-a-dia. Pense
sobre isso! Podemos definir violências simbólicas como exercício
e difusão de uma superioridade fundada em mitos, símbolos,
imagens, afirmações, mídia e construções sociais que discriminam, humilham, inferiorizam, excluem.
Outra possível acepção é a de que se trata do estabelecimento
de regras, de normas, crenças e valores que obrigam o outro a
consentir pela obediência, pela dominação ou servidão. A escola,
como um dos lugares de formação humana, tem um papel fundamental na introjeção e na desconstrução das violências simbólicas e das práticas culturais da inferiorização que abrangem
gênero, raça, etnia, classe social, escolaridade e geração.
2.2.3 Violências institucionais: onde falta
o cuidado, submerge a proteção
As violências institucionais têm diferentes fisionomias e se caracterizam por estar sempre associadas às condições específicas
dos locais onde ocorrem: nas prisões, nos hospitais, nas ruas,
nos postos de saúde, no ambiente familiar, nas escolas, nos abrigos e nas casas de passagem, nos tribunais e ministérios, nos
espaços onde há relações hierárquicas e verticais instaladas para
assegurar uma situação contínua de mando e obediência. Essas
violências acontecem porque, nas instituições, são criadas as
condições materiais e simbólicas, de forma que “os gestores” e
“seus” funcionários possam exercer o que aqui denominamos
como violência estrutural.
53
Com outras configurações, encontramos instituições subordinadas, nas quais se mantém a precariedade do quadro de pessoal
e de equipamentos modernos; onde se repetem cotidianamente
as filas de espera, justificadas pela falta de material de trabalho, pelos horários inadequados de atendimento, pela ausência
de profissionais. Ou seja, muitos são os adereços que procuram
justificar a insuficiência do atendimento à população, embora
deixem transparecer que ele existe, conservando o desrespeito
aos direitos essenciais dos usuários. Essas práticas são também
manifestações de violências.
Nelas habitam outros tipos de violências que podem passar despercebidos: é a negligência profissional. Seu espectro mais visível é o desprezo dedicado à esfera pública, o desinteresse para
com as pessoas e suas necessidades imediatas, caracterizados
pelo despreparo na formação, ou pela preguiça social, em que
o outro se torna indiferente. Perduram as violações de direitos,
como é o caso de crianças e adolescentes, ignorados na validade
de seus pleitos e negligenciados pela ineficiência profissional, ou
pela falta de compromisso político. Embrutecidos em suas condições de trabalho, muitos profissionais se tornam “inabilitados”
para identificar os sinais de risco e as marcas de atitudes violentas que estão em curso e que poderão levar a outras violências,
tais como o abuso sexual, ou até mesmo a morte (L’APICCIRELLA,
2006 apud BRASIL, 2007, p. 33).
É urgente nos perguntarmos: como foram sendo colocadas e
aceitas as vendas que tampam ou embaçam o nosso olhar, no
espaço institucional em que atuamos? Michel Random (2002, p.
26), ao refletir sobre “o território do olhar”, de imediato nos pergunta: “está nosso olhar limitado aos nossos sentidos, a nossas
avaliações, a nossa subjetividade? Um olhar que, infinitamente,
se refletiria em seu próprio espelho?” É possível perceber as
realidades que se derramam por sobre nossos corpos, pelo chão
54
onde nossos pés pisam? O que se esconde atrás de nosso olhar
viciado, intoxicado de tanto ver o mesmo? É possível um novo
jeito de olhar o outro, a nós, aos nossos lugares? O que é preciso
para que possamos agir com amor ao próximo, sem negligenciar
as ações políticas em todas as suas acepções?
Nosso olhar conduz nossa maneira de agir na presença e na ausência do outro, o que serve para enrijecer ou para facilitar as
oportunidades de transformação daquilo que vivemos. Nada nos
acontece fora de nossa experiência, porque nada se situa fora
de nossa interioridade; por isso Maturana (1997) não nos deixa
esquecer que nada do que fazemos, dizemos ou pensamos é
trivial; nada em nossas atitudes é inconsequente; tudo está implicado no todo do qual somos parte e totalidade a um só tempo.
Para Random (2002, p. 28),
é quase impossível vislumbrar até que ponto nada está separado na ordem orgânica e cósmica, em que o real é uma
interação instantânea entre o local e o global, o subjetivo e o
objetivo, o infinitamente pequeno e o infinitamente grande.
Nós é que aprendemos o mecanismo sutil de inventar distanciamentos, acreditando que assim podemos não nos envolver com
o mundo do qual somos co-criadores.
2.2.4 Negligência e abandono:
a existência em negação
A negligência é um tipo de relação construída entre adultos e
crianças ou adolescentes e é baseada em atitudes de omissão,
de rejeição e descaso. Manifesta-se através da indiferença para
com as suas necessidades vitais, do descompromisso com a sua
55
condição de autonomia, do desinteresse sobre os riscos a que é
submetido. A negligência está onde fixamos a negação da existência. Dados estatísticos de serviços de proteção e assistência
a crianças e adolescentes, como o Disque-Denúncia e o SOS, revelam que a negligência é uma das formas de violência mais
reiterada.
A negligência nem sempre é claramente assimilada em seus estilos e extensões. Na área da saúde, apenas para ilustrar, crianças
negligenciadas são aquelas que apresentam baixo peso, não recebem as vacinas recomendadas; que não frequentam a escola;
que são deixadas sozinhas em casa, sem o olhar atento de um
adulto; que não se alimentam de nutrientes que assegurem a
saúde; que são submetidas ao trabalho infantil, em detrimento
de seu bem-estar geral; que cumprem responsabilidades características de adultos.
Há, no entanto, modos de negligências inadmissíveis na atualidade, mas que perduram sob o nosso conhecimento, como se
fossem invisíveis:
56
•
O abandono, que forja o viver nas ruas, talvez a forma extrema do descuido;
•
Crianças que não são registradas; pais que não reconhecem e não fazem o registro da paternidade;
•
Crianças “deixadas/entregues/dadas sem papel passado” a
familiares, ou conhecidos, ou mesmo desconhecidos;
•
Crianças “pingue-pongue”, que circulam de “mão em mão”
e que “não são de ninguém”;
•
Crianças e adolescentes que assumem responsabilidades
de adultos, ao cuidarem de si e de irmãos pequenos;
•
Crianças que assumem o trabalho doméstico no lugar de
adultos;
•
Crianças e adolescentes que contribuem para a renda ou
para o sustento familiar através de orçamento advindo da
mendicância, do trabalho infantil, da exploração sexual;
•
Meninos e meninas em contextos de rua, sem proteção e
expostos às violências familiares ou comunitárias;
•
Meninos e meninas imersos no uso e tráfico de drogas,
desde a mais tenra idade, submetidos a uma miséria avassaladora e a crueldades indescritíveis.
57
Peregrinando diante dos adultos e de seus preconceitos, dos
discursos arraigados que fomentam suas desculpas, crianças e
adolescentes sofrem os resultados das negligências, embora seja
a figura materna quase sempre aquela que é responsabilizada
publicamente. É importante reafirmar, contudo, que, segundo o
artigo 4° do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990),
a família, a comunidade, a sociedade em geral e o Poder Público
são responsáveis pela proteção desses sujeitos e devem assegurar a efetivação de seus direitos. A negligência, nesse sentido,
traduz-se como negação e falta de responsabilidade da família,
da comunidade, do governo e da sociedade.
Na falta de proteção e de cuidado para com as crianças e os adolescentes, esconde-se a inexistência de uma relação amorosa, a
falta de reconhecimento da condição peculiar infantojuvenil; a
incapacidade prática de valorizá-los como sujeitos de direitos. A
não-escuta às suas necessidades provoca profunda adulteração
em seu crescimento pessoal e lhe atribui referências negativas
sobre como as pessoas convivem na coletividade. Crianças e
adolescentes negligenciados, ao viverem situações de abandono,
de privação e de exposição aos riscos, estarão sendo “formados”
pelos adultos para a possibilidade de tornarem-se adultos violentos, à medida que são essas as referências culturais e afetivas
que lhes ensinamos. Como vão se relacionar familiares e filhos/
filhas daqui a dez ou vinte anos por exemplo? Quais os ensinamentos que interiorizaram os meninos e as meninas violentados
agora pelos adultos, muitas vezes, integrantes de seu núcleo
familiar, ou próximos deles? Como a escola insere essas questões
na sua dinâmica curricular? De que maneiras nós conjugamos no
cotidiano os verbos proteger, cuidar, zelar, amar?
É importante destacar que a negligência é apenas o primeiro
estágio e também um fio da meada para os desiguais contornos
que cercam as violências praticadas contra crianças e adoles-
58
centes. Quando são protegidos, cuidados, amados e respeitados,
eles dificilmente serão expostos a vulnerabilidades e terão a
oportunidade de se tornarem adultos socialmente responsáveis
(MATURANA, 1997). As sequelas físicas, psicológicas e sociais das
negligências são extremamente graves, pois se acomodam como
ausências de um afeto qualificado, da socialização dos direitos de
filiação, de convivência familiar, de nacionalidade, de cidadania.
2.2.5 Violência física: a corporeidade
em sofrimento
A violência física contra crianças e adolescentes se revela como
relação social de poder, na qual as marcas são deixadas na corporeidade, machucando-a, causando-lhe lesões, ferimentos na
pele e na alma.
[Corporeidade]
O termo corporeidade pretende
expressar um conceito não-dualista do organismo vivo. Sair das polarizações semânticas contrapostas: corpo/alma; matéria/espírito;
mente/cérebro. Assmann (1999,
p. 150) assegura que o conceito
de corporeidade está “a serviço de
temas urgentes como: a aprendizagem como processo corporal;
o estatuto do corpo na era virtual;
a ameaça do neoplatonismo com
o advento da inteligência artificial
e da vida artificial. [...]. A corporeidade constitui a instância básica
de critérios para qualquer discurso
pertinente sobre o sujeito e a consciência histórica. A corporeidade
não é fonte complementar de critérios educacionais, mas seu foco
irradiante primeiro e principal.
De maneira visível, os espancamentos, as torturas com uso de
objetos produzem fraturas, queimaduras, traumatismos, hemorragias, escoriações, lacerações, arranhões, mordidas, equimoses, convulsões, inchaços, hematomas, mutilações, desnutrição e até morte.
A violência física se apresenta diversamente e, quando aguda,
suscita a gravidade do quadro clínico, o que propicia mensurar a
intensidade da força física utilizada pelo agressor, o grau de sofrimento causado à vítima, o agravamento dos ferimentos ocasionados pela frequência com que é aplicada e pelas sequelas que
provocam na corporeidade. Tipos mais comuns de violência física:
•
A disciplina física abusiva, com fins corretivos: tapas, surras e agressões com qualquer tipo de objeto;
59
•
Torturas utilizando instrumental sádico, ou simbólico, para
aterrorizar a criança com imagens ou promessas de aniquilamento;
•
Privações físicas deliberadas que impedem crianças e adolescentes de se alimentar, ou de ingerir água;
•
Restrições de movimentos com a prática do confinamento;
•
Privação ou transferência de abrigos, por meio da expulsão
do lar, da colocação em outra residência, da internação;
•
Trabalho forçado e inadequado à idade e ao desenvolvimento do sujeito;
•
Eliminação física com o assassinato;
•
Violência sexual.
Essa modalidade de violência é sempre acompanhada pelo medo,
pelo terror, pela submissão, pelo espanto, pelo sofrimento psíquico, constituindo-se ao mesmo tempo em outras violências que
afetam a dimensão biopsicossocial-espiritual dos sujeitos violentados. No âmbito familiar, essas violências fazem uso da força e
do poder na relação de superioridade ou de autoridade que uma
pessoa exerce sobre outra, ou que dela depende, ou que a ela
está vinculada por laços afetivos, de parentesco ou de trabalho,
entre outros. Em determinadas situações, a violência física é acobertada pelo silêncio, pela negação da autoria ou da vítima, cercada de mentiras que buscam “apagar” as marcas. Nos casos de
referência em serviços de saúde, essas marcas são muitas vezes
justificadas como se tivessem sido causadas por acidentes.
A violência física praticada contra crianças e adolescentes é
uma forma de violação dos Direitos Humanos universais e dos
direitos peculiares à pessoa em desenvolvimento, assegurados
60
na Constituição Brasileira, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Normativa Internacional. O Código Penal, no artigo
129, prevê como crimes as lesões corporais dolosas e culposas.
As situações de violência física são, muitas vezes, atendidas pelas instituições da área da saúde, que, obrigatoriamente, devem
encaminhar os casos ao Conselho Tutelar.
Essas ocorrências, por se caracterizarem como crimes, precisam
ser notificadas aos órgãos policiais.
[Conselho Tutelar]
Órgão permanente e autônomo,
não jurisdicional, encarregado pela
sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do
adolescente, com atribuições definidas pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (BRASIL, 1999).
2.2.6 Violência psicológica:
autoimagem comprometida
A violência psicológica sedimenta a relação de poder desigual
entre adultos dotados de autoridade e crianças e adolescentes
sob seu domínio. Esse poder é exercido através de atitudes arbitrárias de mando, seguidas quase sempre de agressões verbais,
chantagens, regras excessivas, ameaças, inclusive de morte; de
humilhações, desvalorização, estigmatização, desqualificação,
rejeição, isolamento; de exigências de comportamentos “éticos”
inadequados, ou acima da capacidade do indivíduo; de exploração econômica ou sexual. Essa forma de violência é corriqueira,
embora seja a modalidade que menos se notifica junto aos órgãos de proteção, porque raramente é identificada como violência e em função do alto grau de tolerância da sociedade frente a
esse tipo de abuso. Quase ninguém denuncia ou responsabiliza
familiares, parentes, professores, policiais, profissionais da saúde e da assistência, entre outros, que desqualificam, aterrorizam, fazem chantagens ou humilham crianças e adolescentes.
61
Diferentemente da violência física, a violência psicológica não
deixa traços imediatamente visíveis no corpo. Contudo, destrói
com mais vigor a autoimagem do violentado, o que se exprime
no comportamento “desajustado” da criança ou do adolescente,
principalmente na escola. Ela provoca traumas emocionais que
podem danificar o psiquismo dessa população, suas atitudes e a
qualidade do afeto inter-relacional com a natureza, traduzindose até mesmo na inabilidade da criança ou do adolescente de
interagir socialmente, de acordo com as condições consideradas
próprias de sua idade. Esse sujeito tem como probabilidade tornar-se passivo diante do sofrimento a ele impetrado, ou agressivo perante qualquer situação que se assemelhe a sua vivência
de dor e pânico.
Não é raro que a vítima tenha uma imagem deteriorada de si mesma, com baixa estima ou depressão. Pode mostrar-se extremamente ansiosa, ou negligente consigo, apresentando condutas de
desatenção, alucinatórias e estranhas, vindo até a perder a pulsão
de vida e a energia que caracterizam uma criança. Às vezes, a violência psicológica pode levar ao suicídio quando as exigências ou
o abandono se tornam insuportáveis. Como uma forma de crueldade mental, pode estar associada ou combinada com a violência
sexual e com a violência física. A violência psicológica situa-se
no conceito geral de violência como uso ilegítimo da autoridade
decorrente de uma relação de poder. Assim, no lugar de oferecer
a proteção, que é o seu dever, o adulto se relaciona com a criança
por meio da agressão verbal, gestual e do domínio, invertendo o
seu papel de educador. Essa inversão da proteção em opressão
sedimenta a “despaternalização”, ou seja, o indeferimento do papel social e pessoal de pai e mãe, do poder familiar, muitas vezes
ligada a uma tradição autoritária da disciplina.
Nesse caldo cultural que transmite, de geração em geração, uma
relação complexa de dominação/submissão, parece normal, e
62
até natural ou inquestionável, o domínio do adulto macho, da
mãe repressiva e dos chefes arbitrários. Esse autoritarismo se
espalha nas formas incorporadas de violências de gênero, no
massacre das individualidades, na opressão dos subalternos.
Não é somente na família que essa violência se revela, mas também na escola, nos serviços públicos, nos meios de transportes
e de comunicação, nas relações entre os próprios adolescentes
ou com seus irmãos mais jovens. A violência psicológica tem
como pressuposto cultural a noção de que
a criança é alguém que só age sob o medo,
a disciplina e a intimidação, devendo aceitar a intolerância do dominante como uma
atitude que lhe educa. O lugar da criança
foi desenhado ao longo da história como
lugar de objeto, de um ser incapaz, de menor valor. Esse lugar continua a ser mantido com estratégias que forçam crianças
e adolescentes a obediência servil, sem
discussão ou outra forma de resistência,
para que se submetam às punições que
castigam qualquer desvio da ordem estabelecida de cima para baixo.
Os projetos familiares e os desejos de pais
e mães, quando não são bem elaborados,
por vezes, resultam em violência psicológica. Crianças e adolescentes são forçados
a realizar projetos familiares acerca da
profissão a seguir, ou usados como objeto de chantagem nas brigas de casais. Interferem também na violência psicológica
as situações de alcoolismo que envolvem
relações parentais, de ciúmes e de vingan-
63
ças. Do ponto de vista da intervenção profissional, a violência
psicológica é vista como uma questão de saúde e bem-estar e
precisa ser enfrentada tanto no âmbito das relações familiares
quanto no contexto cultural. Eis por que é interessante construir
uma intervenção em redes, levando-se em conta a convivência
das crianças e dos adolescentes com todos os adultos que fazem parte de seu grupo comunitário. Essas relações precisam ser
curadas dos sofrimentos, em suas múltiplas dimensões: cultural,
educativa e afetiva. Nessa abordagem, o sofrimento da criança
e do adolescente ganha o foco da atenção terapêutica, através
de intervenções que podem ser realizadas por diferentes profissionais. A intenção é transformar as relações de dominação em
convivência de parcerias, incluindo os agressores nessa dinâmica
para interromper o ciclo das violências.
2.2.7 Violência sexual: o uso perverso
da sexualidade do outro
A violência sexual contra a criança e o adolescente se configura
como uma das violações de seus direitos e se caracteriza pela
transgressão da sua intimidade, com base em relações de mando
e obediência. É marcada pela perversão e pela ausência de escolhas quando a vítima é uma criança. A luta para superar essa
forma de violência é dificultada pela circunstância complexa de
seu enredo, quando deriva, em muitos casos, do envolvimento
de grupos que atuam em rede.
Além de violar Direitos Humanos universais e peculiares à pessoa em desenvolvimento, esse tipo de violência ameaça a integridade física e psicológica, destrói o sentido de respeito que é
ensinado à criança e ao adolescente, empobrece a condição de
dignidade e faz adoecer sua existência. A violência sexual, no
64
âmbito familiar, deturpa o direito a uma sexualidade segura e os
princípios de uma convivência doméstica protetora.
Na exploração sexual comercial, o explorador infringe o direito da
criança e do adolescente de não ser explorados economicamente, de não trabalhar antes dos 14 anos, e, após os 14 anos, como
aprendiz, em condições honestas, que não ofereçam perigo à
vida. A violência sexual praticada com essa população, além de
inaceitável, é ilegal, fere a ética e transgride as regras sociais
e familiares de convivência mútua e de responsabilidade dos
adultos. Contrapõem-se as possibilidades de uma vida familiar e
comunitária livre de ameaças. Nesse sentido, podemos afirmar
que a violência sexual é o abuso delituoso de crianças e adolescentes, em especial de sua sexualidade. É considerada uma
ação criminosa na legislação brasileira, já que o poder do adulto
agressor sobre crianças e adolescentes é arbitrário e desestrutura a identidade da pessoa violentada.
A violência sexual acarreta diversas consequências negativas às
crianças. Citaremos algumas:
•
São deturpadas as relações socioafetivas e culturais entre adultos e crianças/adolescentes, ao transformá-las em
relações genitalizadas, erotizadas, comerciais, violentas e
criminosas;
•
Crianças e adolescentes violentados se sentem confusos
quanto aos papéis dos adultos, o que descaracteriza as
representações sociais de pai/mãe, irmão/irmã, avô/avó,
tio/tia, professor/a, religioso/a, profissional, empregador/a.
Perde-se a legitimidade da autoridade do adulto e de suas
atribuições educativas;
•
Inverte-se a natureza das relações entre adultos e crianças/adolescentes tornando-as: desumanas; negligentes em
lugar de protetoras; agressivas e não-afetivas qualitativa-
65
mente; individualistas e narcisistas em lugar de solidárias;
dominadoras em lugar de democráticas; controladoras em
vez de libertadoras; perversas em lugar de amorosas; desestruturadoras em lugar de socializadoras;
•
É possível que se estabeleça, no sujeito violentado, estruturas psíquicas, morais e sociais pervertidas, principalmente nos casos de abusos sexuais de longa duração e na
exploração sexual comercial.
A violência sexual pode acontecer de várias formas: através do
contato físico, por meio de carícias não desejadas; com penetração oral, anal ou vaginal; com introdução do pênis ou de outros
objetos nos genitais e em outras partes do corpo da criança e
do adolescente; através da masturbação forçada, entre outras.
Também sem contato físico, por exposição obrigatória a material
pornográfico, a situações de exibicionismo, ao uso de linguagem
erotizada e em contextos inadequados.
2.2.8 Abuso sexual
O abuso sexual contra crianças e adolescentes é a marca de
um relacionamento interpessoal sexualizado, privado, com base
numa dominação perversa, e geralmente mantida em silêncio,
ou em segredo, forçados por ameaças ou compensações materiais. Os episódios de abusos sexuais, longe de serem idênticos,
distinguem-se profundamente, seja pelo autor da violência sexual, pelo seu grau de parentesco com a vítima, seja pela autoridade e responsabilidade em relação ao vitimizado. Também pela
idade e sexo da vítima e do abusador, pelo tipo de violências
cometidas, pela duração e frequência, pelo local em que o abuso
comumente acontece. Nas situações de abuso sexual, crianças
ou adolescentes são usados para gratificação orgástica de um
66
adulto, ou mesmo de um adolescente mais velho, o que pode
incluir, desde a manipulação da genitália, das mamas, até a exploração sexual, o voyeurismo, a pornografia, o exibicionismo e
o ato sexual, com ou sem penetração.
Caso Araceli: 18 de maio
Dia Nacional de Combate ao
Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes
Araceli Cabreira Crespo tinha 8 anos de idade e morava em Vitória, Espírito Santo. Era o
dia 18 de maio de 1973, e ela não havia voltado do colégio. Seu pai começou a procurá-la
pela cidade e, sem a encontrar, espalhou fotos suas pelas redações de jornais. Seis dias
depois seu corpo foi encontrado: ela havia sido drogada, estuprada, torturada e morta.
Seu corpo estava desfigurado com ácido, para que não houvesse possibilidades de identificação. Conta-se que o corpo de Araceli foi identificado pelo seu cachorro, de nome
Radar, ainda na gaveta do IML. Aí começou uma das investigações mais confusas na
história criminal do país. Os supostos assassinos, filhos de famílias ricas de Vitória, foram
absolvidos. As provas do crime destruídas. A mãe da menina, dona Lola, uma boliviana
que retornou ao país de origem logo depois da morte de Araceli, traficava drogas e foi,
indiretamente, acusada de participação no crime, pois teria pedido à menina que entregasse um envelope em um determinado edifício, na tarde do seu assassinato; era aquele
o local onde Araceli fora morta. O tempo passou e o crime prescreveu sem a punição dos
culpados. Por esse motivo o Dia 18 de Maio se transformou em Dia Nacional de Combate
ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
67
A dominação sexual perversa é uma construção deliberada, paciente e ritualizada. Ela é gerativa de um relacionamento cruel,
que se mantém através da dominação do outro em ocorrências
de longa duração. Começa por um processo de sedução, que
consiste na conquista sutil, mas que, aos poucos, vai anulando a
capacidade de percepção e de decisão da vítima. Nesses rituais,
meninos e meninas são dominados e sujeitados ao aprisionamento de uma rede nefasta de abusos.
Furniss (1993) e Perrone e Nannini (1995 apud BRASIL, 2007, p.
40) identificam, nos abusos sexuais repetitivos, uma dinâmica
capaz de gerar o “enfeitiçamento” que mantém a pessoa vitimizada como que “sequestrada” e envolvida em uma armadilha da
qual não pode e nem sabe como se livrar. Esse processo de aprisionamento é edificado através de uma trama emocional contraditória, de amor e ódio, de sedução e ameaça, que faz com que
a vítima, aterrorizada, permaneça imobilizada ou “anestesiada”.
Como uma trama, mantém-se e se solidifica através de rituais
que envolvem o silenciamento do abusado, por meio de chantagens ou de uma forma de comunicação muito particular; uma
forma perversa de anticomunicação; um monólogo que tem por
objetivo ocultar, confundir, amedrontar e manter o poder através
de não-ditos, silêncios, reticências, subentendidos. Suas formas
preferenciais de “comunicar” sem dizer claramente são: a mentira, o paradoxo, o sarcasmo, o desprezo, a desqualificação, as
mensagens de duplo sentido, a tonalidade de voz fria, a intriga,
o olhar dominador, as ordens.
A dominação sexual perversa exercida por adultos contra crianças e adolescentes pode ser incestuosa ou não, hetero ou homossexual. Ocorre, geralmente, em lugares fechados (residências, consultórios, igrejas, internatos, hospitais, escolas) e inclui
diferentes e variadas formas de relações abusivas. É incestuosa
quando o violentador é parte do grupo familiar (pai, mãe, avós,
68
tios/as, irmãos/ãs, padrasto, madrasta, cunhados/as). Nesses casos, considera-se família não apenas a consanguínea, mas também aquelas adotivas e substitutas. Os violentadores, conhecidos da vítima e/ou de sua família, aproveitam-se da confiança
que gozam, do status que possuem na convivência, do papel e
do poder que desfrutam, do lugar de privilégio que os põe em
contato direto e continuado com a vítima, da cobertura legal e
pouco sujeita a suspeitas de que dispõem.
Nas situações em que o abusador é amigo da família, invariavelmente, ele exerce uma espécie de fascinação, tanto sobre
sua vítima, quanto sobre seus familiares, apresentando-se como
uma pessoa agradável, simpática, generosa, serviçal e atenciosa
com todos, especialmente com a vítima e com seus pais. Em
diversas ocasiões, o agressor promove maneiras de favorecer
economicamente a família (ABRAPIA, 1992 apud BRASIL, 2007, p.
40). Há um completo descasamento de níveis e tratamentos por
parte do grupo familiar e dos órgãos que compõem a Rede de
Proteção, com conversas dissonantes e explicações entrecortadas por julgamentos e outras inadequações no atendimento. Não
se pode negar que, embora com tantos esforços, as dissonâncias
produzem ineficiências e deixam a Rede de Proteção vulnerável
no cumprimento de seu papel social.
2.2.9 Exploração sexual comercial
Leal e Leal (2002, p. 18) definem a exploração sexual comercial
de crianças e adolescentes como
uma relação de mercantilização (exploração/dominação) e
abuso (poder) do corpo de crianças e adolescentes (oferta),
por exploradores sexuais (mercadores), organizados em re-
69
des de comercialização local e global (mercado), ou por pais
ou responsáveis, e por consumidores de serviços sexuais pagos (demanda).
Além de exploração econômica, a exploração sexual de crianças
e adolescentes obrigados ao mercado do sexo é uma violência e
um crime.
Por seu caráter econômico, a exploração deve ser estudada e
compreendida no contexto do sistema capitalista e da sociedade
de consumo globalizados, em suas articulações com as atividades mercantis dos territórios onde ocorre. A exploração sexual
comercial, que enreda crianças e adolescentes, acontece num
mercado específico: o mercado do sexo, que toma a corporeidade do outro como mero objeto de satisfação alheia. Esse mercado
abrange, de maneira profundamente articulada, o agenciamento
sexual e a indústria pornográfica. É sustentado pelo lucro derivado da exploração do trabalho sexual, de mão-de-obra de adultos
subordinados e da população infantojuvenil.
Sustenta-se como um mercado clandestino que funciona fora
das normas legais de outros comércios, sem registro, sem o pagamento de impostos ou emissão de notas fiscais. Como um
negócio ilegal, as empresas do sexo tendem a atuar com uma
cobertura legal, na base de propinas e com um “nome fantasia”
que não corresponde à verdadeira atividade comercial ou aos
serviços de fato ofertados. Enquadram-se nessa situação muitas
boates, bares noturnos, hotéis e pousadas, bem como agências
de modelos, agências de viagem e de turismo, entre outros. É
interessante notar que a clandestinidade do mercado do sexo é
de certa forma ambígua, pois as “mercadorias” comercializadas
são altamente expostas.
A oferta de serviços sexuais, restrita durante séculos quase que
exclusivamente à prostituição, vem-se ampliando e se diversi-
70
ficando. Com o desenvolvimento da tecnologia, dos meios de
comunicação de massa, da internet e da sociedade de consumo, bem como com a liberalização sexual, o comércio do sexo
tornou-se variado e desenvolveu-se extraordinariamente com o
apoio da indústria pornográfica. A produção de mercadorias e
serviços sexuais contempla a fantasia generalizada de pedófilos
e outros abusadores. Atualmente encontra-se, no mercado do
sexo, uma multiplicidade de produtos e serviços, com distintos níveis de qualidade e preço. Há também uma significativa
diversidade no perfil dos consumidores e de profissionais que
esse mercado emprega (LEAL, 2002 apud BRASIL, 2007, p. 41). É
lucrativo e abrangente o mercado consumidor de serviços sexuais, pois o sexo, numa economia capitalista, é considerado um
artigo altamente vendável e valorizado, principalmente quando
praticado com jovens, considerado uma iguaria de significativo
valor mercadológico. A essa cultura se associam outros produtos
comercializados: pessoas, shows eróticos, fotos, revistas, objetos, vídeos e filmes pornográficos.
O conceito e as concepções acerca da exploração sexual comercial
de crianças e adolescentes evoluíram nas duas últimas décadas.
Durante muitos anos, a presença de crianças no comércio sexual
confundia-se com a prostituição infantojuvenil. O incremento do
turismo sexual, a rápida expansão do sexo via a internet, levaram à compreensão de que a pornografia, o turismo sexual e o
tráfico para fins sexuais são também formas de exploração de
crianças e de adolescentes, no organizado negócio de produção
e comercialização de “mercadorias” sexuais.
Hoje também há uma compreensão das dimensões política e
ética do fenômeno, encarado como uma questão de cidadania e
de Direitos Humanos, cuja violação constitui um crime contra a
humanidade. Há diversas visões a respeito do uso de crianças e
adolescentes no mercado do sexo: uma forma moderna de es-
71
cravidão; uma das piores formas de trabalho infantil (OIT); uma
exploração sexual comercial – concepção adotada no I Congresso
Mundial contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças, realizado em agosto de 1996, em Estocolmo. Entre as formas de
exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, é importante ressaltar que são de tal modo articuladas e inter-relacionadas que se torna difícil definir uma delas sem citar as demais.
Um exemplo claro disso é o tráfico de mulheres, que abastece
os centros da prostituição, da pornografia e do turismo sexual.
2.2.10 Prostituição
A prostituição é entendida como uma atividade na qual atos
sexuais são negociados em troca de dinheiro, da satisfação de
necessidades básicas como alimentação, vestuário, abrigo, ou
do acesso ao consumo de bens e serviços. A prostituição tem
72
diferentes configurações, serviços e preços e pode ser exercida por garotas ou garotos de programa, em bordéis, nas ruas,
em estradas, em barcos. Testemunhos de vítimas, pesquisas e
a bibliografia sobre essa problemática no Brasil evidenciam que
crianças e adolescentes envolvidos na exploração sexual comercial trabalham, em geral, nas ruas das cidades, nos portos, nas
estradas ou em bordéis, na maioria das vezes sob ordens de cafetões, cafetinas e agenciadores/as. Em especial na Região Norte
do Brasil, eles/elas seviciam meninas e meninos que trabalham
em regime de escravidão e que normalmente estão envolvidos
com o turismo sexual e o tráfico para fins sexuais. Muitas dessas
crianças e desses adolescentes moram nas ruas, são vítimas de
violências e encontram-se em circunstâncias de extrema pobreza
e exclusão social. De ambos os sexos, crianças, pré-adolescentes
e adolescentes quase sempre têm pouca ou nenhuma escolarização. As atividades a que são obrigados/as a realizar são extremamente perigosas e eles/elas estão sujeitos a todo tipo de
violências, da repressão policial à discriminação.
Profissionais, pesquisadores e estudiosos dessa temática questionam a adoção do termo “prostituição” quando envolve crianças e adolescentes. Consideram que esses sujeitos não optam
espontaneamente por esse tipo de atividade, mas são cooptados para praticá-la e, portanto, são prostituídos. São induzidos
por adultos, por suas próprias carências e imaturidade emocional, bem como pelos apelos da sociedade de consumo. Nesse
sentido, não podem ser caracterizados como trabalhadores do
sexo, mas sim como prostituídos, abusados e explorados sexual,
econômica e emocionalmente. Os clientes, os empregadores e
os intermediários que induzem, facilitam ou obrigam crianças e
adolescentes a se prostituir são todos considerados exploradores
sexuais, portanto, criminosos.
73
2.2.11 Pornografia
Trata-se da produção, exibição, divulgação, distribuição, venda,
compra, posse e utilização de material que transforme a sexualidade humana em cenas bizarras, imorais e pornográficas. Inclui
material como vídeos, revistas, espetáculos, mas também textos
literários, fotografia, publicidade, cinema, quando apresentam
ou descrevem explícito caráter pedófilo, com situações envolvendo crianças desejadas, expostas e usadas sexualmente por
adultos. Pela utilização de criança e adolescente na pornografia
se entende toda representação por qualquer meio, dedicada a
atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou toda representação das partes genitais de uma criança ou adolescente com
fins primordialmente sexuais.
No Brasil, a pornografia infantojuvenil é muito pouco estudada, o
que gera uma ausência significativa de pesquisas e de bibliografia sobre as formas de exploração sexual de crianças e de adolescentes. Pouco se sabe a respeito das vítimas, dos aliciadores,
dos produtores, dos distribuidores e dos consumidores desse
material, tampouco como funciona esse mercado específico, sua
importância econômica, os lucros auferidos, valores pagos por
esse tipo de trabalho e as condições em que as atividades acontecem (KEIROZ, 2006 apud BRASIL, 2007, p. 40).
São desconhecidas também as consequências desse tipo de
exploração sexual para meninas e meninos, pois não há uma
tradição em políticas públicas voltadas para esse problema. As
vítimas, apesar de estarem sempre expostas devido à própria natureza da atividade, são paradoxalmente desconhecidas. Constata-se, desse modo, que há, no Brasil, uma escassez de produção
teórica, de material empírico, ou mesmo de experiências acumuladas e compartilhadas para o enfrentamento da pornografia
infantojuvenil. Essa pornografia na internet constitui atualmente
74
um dos mais graves problemas a ser enfrentado pela sociedade,
nacional e internacionalmente. O rápido desenvolvimento dessa
nova modalidade de exploração sexual comercial de crianças e
adolescentes e sua imensa extensão, sua facilidade de acesso
e gravidade vêm mobilizando enormes esforços de organismos
governamentais, não-governamentais e agências internacionais
de proteção à infância.
A pornografia, na internet, exerce uma grande atração sobre
crianças e adolescentes. Torna-se indispensável que profissionais
como médicos/as, enfermeiros/as educadores/as e familiares se
preparem para enfrentar essa questão, estudando-a, discutindoa com crianças, adolescentes, jovens sob sua responsabilidade e
orientando-os sobre como se proteger dessas ações criminosas.
2.2.12 Turismo sexual
O comércio eletrônico de pornografia infanto-juvenil é um negócio
que envolve desde esquemas amadores até redes criminosas de alta
complexidade. Por se tratar de crime cibernético, de âmbito mundial,
seu enfrentamento se depara com
enormes dificuldades operacionais
e legais. No Brasil, a Polícia Federal
e a Interpol têm sua ação dificultada pela deficiência da legislação
vigente. Existem variadas formas de
pornografia que envolvem crianças
e adolescentes, inclusive a difusão de imagens de abuso sexual de
crianças de tenra idade, em cenas
de sexo perverso e sádico. Há sites
que vendem espetáculos de pornografia com crianças em tempo real,
e mesmo de necrofilia. É importante destacar a estreita articulação da
pornografia infanto-juvenil com o
tráfico de crianças e adolescentes
para fins sexuais.
O turismo sexual pode ser autônomo ou comercializado em excursões e pacotes turísticos que prometem prazer sexual “organizado”. É uma modalidade mais sofisticada de comércio sexual
em cidades turísticas e abarca turistas nacionais e estrangeiros
interessados em meninas e meninos, em homens e mulheres
jovens, quase sempre oriundos de setores pobres e excluídos, e
residentes em países denominados subdesenvolvidos ou emergentes. O serviço sexual comercializado através do turismo sexual é uma forma de prostituição, mas está geralmente associada
ao tráfico de pessoas para fins sexuais ou para trabalho escravo.
O turismo sexual é, talvez, a forma de exploração sexual mais
articulada com atividades econômicas, inclusive com o próprio
desenvolvimento do turismo.
As redes do turismo sexual, muitas vezes, são as mesmas que
promovem e ganham com o turismo em geral, envolvem profis-
75
sionais como guias turísticos, porteiros, garçons, taxistas etc. e
empresas, agências de viagem, hotéis, restaurantes, bares, barracas de praia, boates, casas de show. Crianças e adolescentes
que trabalham no turismo sexual possuem poucos anos de escolaridade e, em geral, já experimentaram ocorrências de abandonos, negligências, violências; contextos de miserabilidade que
incitam atuar nessas redes. Mais do que em outras modalidades
de exploração sexual, o turismo sexual é a atividade que mais
responde, e de forma imediata, às demandas da juventude pobre
e excluída por uma inclusão social associada ao consumo, com
acesso a boates, bares, hotéis, restaurantes, shoppings e butiques por exemplo.
O turismo sexual e o turismo em geral desenvolveram-se, simultaneamente, no Brasil, a partir do final da década de 80
do século passado, principalmente em cidades litorâneas do
Nordeste Brasileiro. Na década de 90, houve uma grande mobilização governamental e não-governamental visando o enfrentamento dessa problemática por meio de ações em rede,
algumas delas mantidas até hoje. Participam dessa rede a Secretaria Especial de Direitos Humanos, a Embratur, o Ministério
de Relações Exteriores, as companhias aéreas, os órgãos da
Segurança Pública, o Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes e os organismos
internacionais, entre outros. No entanto, apesar de todos os
esforços empreendidos, o Brasil ainda não conseguiu erradicar
essa forma de exploração sexual.
76
2.2.13 Tráfico de pessoas para
fins sexuais
De acordo com as Nações Unidas, o tráfico de pessoas significa:
recrutamento, transporte, transferência, abrigo e guarda de
pessoas por meio de ameaças, uso da força ou outras formas
Protocolo de Prevenção, Supressão
e Punição do Tráfico de Pessoas, especialmente de mulheres e crianças.
Convenção das Nações Unidas contra
o Crime Organizado Transnacional.
de coerção, abdução, fraude, enganação ou abuso de poder
e vulnerabilidade, com pagamentos ou recebimento de benefícios que facilitem o consentimento de uma pessoa que
tenha controle sobre outra, com propósitos de exploração.
(NACIONES UNIDAS, 2001, p. 35).
Isso inclui, no mínimo, “a exploração da prostituição de terceiros
ou outras formas de exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravidão ou práticas similares à escravidão, servidão ou
remoção de órgãos”.
A Assembléia das Nações Unidas, em 2000 (apud BRASIL, 2004),
definiu o tráfico de pessoas como:
[...] o movimento clandestino e ilícito de pessoas através de
fronteiras nacionais, principalmente dos países em desenvolvimento e de alguns países com economias em transição,
com o objetivo de forçar mulheres e adolescentes a entrar
em situações sexualmente ou economicamente opressoras
e exploradoras, para lucro dos aliciadores, traficantes e crime
organizado ou para outras atividades (por exemplo, trabalho
doméstico forçado, emprego ilegal e falsa adoção).
Segundo as normativas nacionais e internacionais, o tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial é crime e uma gravíssima violação dos direitos humanos.
77
A prática das redes de tráfico envolve atividades de cooptação e/
ou aliciamento, bem como o rapto, a promessa de intercâmbio,
a transferência e a hospedagem da pessoa recrutada para essa
finalidade. É relevante realçar que, no tráfico nacional ou transnacional de mulheres, crianças e adolescentes, as pessoas são
exploradas não somente nas atividades sexuais comerciais, como
a prostituição, o turismo sexual, a pornografia, mas também por
meio de trabalho forçado e escravo. Muitas jovens são seduzidas pelo sonho propagado de uma vida diferente e exitosa, com
promessas de casamento e/ou vida farta em outros países, de
sucesso profissional e de trabalho altamente remunerado. Embarcam para outros estados do país ou para outros países, onde
são forçadas a trabalhar no mercado do sexo.
As redes que alimentam o tráfico de pessoas para fins sexuais
também fazem a maquiagem das suas ações, clandestinas e criminosas, através de aparato legal, para escapar da fiscalização
e esconder as realidades vividas por essas mulheres, com as
mediações de agências de modelos, empresas de turismo, de
oferta de trabalho e emprego, de namoro-matrimônio e, mais
raramente, por agências de adoção internacional. Essa forma de
atuar e os esquemas de segurança do crime organizado, do qual
fazem parte as redes de tráfico, tornam aparentemente invisíveis
os mecanismos de exploração sexual.
A primeira importante pesquisa nacional sobre o tráfico de mulheres, crianças e adolescentes, para fins de exploração sexual
comercial no Brasil, foi realizada nos anos 2000, 2001 e 2002. Coordenada por Maria de Fátima Leal e Maria Lúcia Leal, a pesquisa
tornou-se referência obrigatória para quem quer compreender
essa realidade, pois ela identificou a existência de um grande
número de rotas nacionais e internacionais de tráfico e um contingente expressivo de adolescentes do sexo feminino traficadas
para fins de exploração sexual comercial, turismo sexual e por-
78
nografia. No entanto, o Brasil ainda se ressente da ausência de
uma maior consciência da sociedade e de uma atenção especial
de governantes, prefeitos, parlamentares e operadores das redes
de atenção e defesa de crianças e de adolescentes para a eficácia
de enfrentamento a esse tipo de crime.
2.2.14 Exploração econômica
A exploração econômica ocorre quando crianças e adolescentes
são constrangidos, convencidos ou obrigados a exercer funções
e a assumir responsabilidades de adulto, inapropriadas ao seu
desenvolvimento e circunstâncias em que se encontram. Essa
exploração é entendida como uma das piores formas de violência, porque expõe suas vítimas a muitas outras violências: negligência, agressões físicas, psicológicas e torturas que resultam
inclusive em mortes. O trabalho infantojuvenil vem sendo pesquisado, denunciado e enfrentado no âmbito nacional e internacional. No entanto, nos estudos sobre violências contra crianças
e adolescentes, ele raramente é relacionado como uma das formas de violência, apesar de tratar-se de exploração econômica e
violação dos direitos, punido na forma da lei, conforme o artigo
5° do Estatuto da Criança e do Adolescente (LEAL et al, 2002 apud
BRASIL, 2007, p. 47).
Trata-se de uma negligência, como vimos anteriormente, quando
crianças, por vezes de tenra idade, são exploradas pelos familiares, são “alugadas” para estranhos, mendigam em meio ao
trânsito, vendem mercadorias em bares, moram e transitam nas
ruas, têm de cuidar sozinhos de suas vidas e até sustentam economicamente adultos. Vivenciam um tipo de relação parental que
os leva a crer que têm obrigação de se deixar explorar porque
estão ajudando seu pai e sua mãe. Há crianças e adolescentes
79
que trabalham com a anuência ou negligência dos genitores responsáveis, em atividades ilegais e periculosas, com risco de morte e em regime de escravidão. O tráfico de drogas, a prostituição,
a pornografia e mesmo a participação em roubos e assassinatos
são atividades que podem moldar personalidades antisociais.
Há também crianças e adolescentes, na maioria do sexo feminino
e negras, que trabalham como domésticas e babás. São exploradas em jornadas de trabalho excessivas e, não raro, abusadas
sexualmente por patrões e/ou seus filhos.
2.2.15 Trabalho infantil
Um meio utilizado pelo capitalismo que, de forma brutal, adultera
a vida de milhares de crianças e adolescentes submetidos, desde
o início de suas vidas, à exploração cruel de sua força (frágil) de
trabalho para gerar lucros aos adultos. Embora a luta pela erradicação do trabalho infantil seja alvo das políticas sociais do Gover-
80
no brasileiro, que anuncia ações integradas para garantir à criança
e ao adolescente o direito à vida e ao desenvolvimento integral,
sabemos: são os meninos e as meninas situados em bolsões de
miséria e em regiões minadas pela corrupção, a qual faz desviar
recursos de orçamentos públicos destinados à reparação social
dos excluídos, os sujeitos imersos na dinâmica do trabalho infantil. Uma dinâmica nefasta, que faz morrer a infância, o direito de
estar na escola, de brincar com outras crianças, de crescer no seu
tempo interno e com experiências que lhe ensinem valores como
cuidado de si, do outro, dignidade, respeito, ética com a vida.
No Brasil, 12 anos é a idade mínima instituída para a entrada
de meninos e meninas no mercado de trabalho, desde 1891. As
Constituições de 1934, 1937 e 1946 ampliaram essa idade para
14 anos. Porém, em 1967, em plena ditadura militar, o limite
foi reduzido novamente para 12 anos. Atualmente, a Constituição Brasileira determina, como idade mínima para o ingresso no
mercado de trabalho, 16 anos. Contudo, proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre (que pode ocasionar doenças) para
jovens com menos de 18 anos. Apenas na condição de aprendiz
o adolescente pode exercer trabalho remunerado, dos 14 aos 16
anos, com direitos trabalhistas garantidos, em jornada e regime
especificados na lei. Nos termos do art. 10 da Lei n°10.097/2000,
“é proibido empregar menores de dezesseis anos de idade, salvo
na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos”.
Algumas formas de exploração do trabalho de crianças e adolescentes, como a prostituição e a participação no tráfico de drogas,
são especialmente trágicas. No primeiro caso, o machismo que
impera em amplos setores da sociedade favorece o acobertamento e a tolerância dessa prática infame em muitas regiões;
no segundo, a falta de perspectiva, a escassez de recursos e a
desesperança têm levado milhares de crianças e adolescentes
ao circuito do crime organizado, vislumbrando possibilidades de
81
ganhos fáceis e imediatos. Sabemos que essas práticas se desdobram em outras, como a prostituição e o tráfico de drogas, que
os entrelaça como autores e vítimas de ações violentas, como
tem sido verificado em estatísticas sobre jovens em contextos de
infração, de mortes em chacinas.
Em ambos os casos, crianças e adolescentes estão expostos a
todos os riscos que esse cenário oferece, sendo o pior deles o da
perda do senso de dignidade da existência humana. Necessidade,
oportunismo, preconceitos e incompreensão mesclam as explicações sobre o trabalho precoce. A situação de pobreza obriga os
pais a utilizar os/as filhos/as como mão-de-obra, a oferecê-los/as
no mercado de trabalho para aumentar a renda familiar. Como
uma das expressões da pobreza e da injusta distribuição de renda,
o trabalho infantil sempre se fez presente em nossa sociedade.
12 de junho
Dia Mundial Contra o
Trabalho Infantil
Esta data é reavivada todos os anos em 12 de junho. Em 2009, a data marcou o décimo
aniversário da adoção simbólica da Convenção n.º 182 da OIT, que definiu as piores
formas de trabalho infantil e a sua proibição. Ao mesmo tempo em que se pode celebrar
os progressos alcançados nos últimos dez anos, o dia 12 de junho, mais uma vez,
mostrou os desafios que ainda restam, enfatizando o papel fundamental da educação na
solução do problema, bem como, a emergência do combate à exploração de meninas
no trabalho infantil doméstico.
82
2.3 Atores das violências contra
crianças e adolescentes
Quando se discute violências contra crianças e adolescentes, é
comum focar-se exclusivamente nos autores, adotando uma visão
binária violentador-violentado. No entanto, as violências ocorrem
em situações nas quais outros atores participam. Quase sempre
há pessoas que têm conhecimento dessas violências e permanecem em silêncio, consentindo para que ela se mantenha, ou até
colaborando para que ela ocorra. Atores são coniventes com as
redes que sustentam as violências, como veremos a seguir.
As violências contra crianças e adolescentes, que podem ser cometidas tanto por adultos (de ambos os sexos), quanto por outros adolescentes, é correntemente classificada como intra ou
extrafamiliar. A análise das situações de violências tem revelado
que essa classificação é demasiado genérica, insuficiente para
acolher a diversidade dos autores e atores envolvidos nessas situações. Por outro lado, essa classificação refere-se às violências
privadas, a relacionamentos interpessoais violentos, não incluindo as violências públicas, mercantilizadas, como a exploração
sexual comercial.
Nas violências privadas, classificadas como violências intra e extrafamiliar, é importante identificar os atores e os autores que
se encontram implicados. A violência intrafamiliar pode ser praticada tanto pelos genitores ou responsáveis quanto por parentes mais ou menos próximos das vítimas. No entanto, é preciso
estabelecer o grau de autoridade do violentador sobre a vítima.
Na violência extrafamiliar, definir o grau de conhecimento e o
tipo de convivência existente entre atores, autores/as e violentados/as, serve para localizar se quem violenta é uma pessoa:
83
•
Ligada aos familiares, com estreita convivência com a vítima;
•
Conhecida, que reside na mesma casa ou no mesmo terreno; se é vizinha; educador/a ou outro profissional; religiosa, amiga da família; patrão/patroa, comerciante do bairro;
•
Desconhecida da vítima.
Nas violências pública, mercantilizada, extrafamiliar, como a exploração sexual comercial, por exemplo, os atores e autores/as
nelas enredados/as podem ser desconhecidos/as (clientes, internautas pedófilos) ou conhecidos/as (empregadores, gigolôs). Os
demais atores que testemunham ou até estimulam as violências
são conhecidos: amigos/as, aliciadores/as, taxistas, donos/as de
hotéis e de casas de show, fotógrafos/as e outros/as.
2.3.1 Quando a família é lugar
de violências
A estrutura familiar não é uma ilha isolada do contexto histórico,
econômico, cultural e social, mas um dos subsistemas em que
se encontra presente e que compõe os poderes estruturados
e estruturantes da sociedade. Autoritarismos, machismos, preconceitos e conflitos, em geral, articulam-se com as condições
de vida das famílias e as questões de poder que se manifestam
nas relações afetivas e na sexualidade. É nesse contexto de poder que devem ser analisadas e compreendidas as violências
de adultos contra crianças e adolescentes. A violência familiar
é tão somente uma forma de relacionamento ancorada na história e na cultura brasileira. Vale ressaltar que a grande maioria
das famílias, no Brasil, é identificada como protetora, ainda que
suas atitudes se sustentem em enormes sacrifícios. No entanto,
84
também nessas famílias protetoras encontram-se traços culturais, em diferentes graus, de relações familiares adultocêntricas,
machistas, arrogantes, que as tornam mais ou menos violentas.
É salutar que se distinga a violência doméstica da violência
familiar. A primeira refere-se ao lugar onde ela ocorre: em casa;
a segunda remete à natureza dos laços parentais que unem
as vítimas: os atores e os autores das violências. A violência
doméstica pode ser cometida inclusive contra pessoas que não
são da família, tais como empregados domésticos e agregados.
Já a violência familiar pode ocorrer entre cônjuges, entre pais e
filhos/as, mães e filhos/as, entre irmãos, com parentes idosos,
habitantes ou não da mesma casa. Familiares podem manter
referências mútuas de ódio, podem ser violentos mesmo quando habitam a muitos quilômetros de distância ou vivendo sob o
mesmo teto. Exemplos disso: o pai que nunca reconheceu o/a
filho/a, o/a filho/a que sequer conhece o pai ou a mãe; a mãe
separada do marido que não deixa os/as filhos/as ver o pai, ou
o inverso; filhos/as e pais/mães que se agridem verbal ou fisicamente. Muitas das agressões e violências praticadas por pais,
mães ou responsáveis contra seus/suas filhos/as, crianças e
adolescentes são, em geral, justificadas como “medidas educativas” pelos autores e pelos demais atores coniventes com elas.
Pesquisas nacionais e internacionais indicam que os familiares
são os maiores autores de violências contra crianças e adolescentes. De modo frequente, a violência física e psicológica é praticada pelas mães e a violência sexual é praticada por pais e
padrastos. Em seguida, nas estatísticas, aparecem as violências
praticadas por pessoas que são conhecidas das vítimas. Desconhecidos raramente são os/as autores/as de violências. Os pactos de conivência e de silêncio que envolve o abuso sexual e as
85
redes do mercado do sexo indicam a presença e a ação de pessoas com poderes para gerenciar essas violências contra crianças
e adolescentes. Centrar a análise no binômio vitimizador/vitimizado implica desconsiderar a importância das redes familiares,
comunitárias e institucionais, responsáveis pela ocultação e manutenção dessas formas de violências.
Crianças e adolescentes são violentados e dominados tanto pelo
agressor quanto pela existência de redes e pactos de segredos
que cultuam a tolerância, garantem a conivência pautada no
medo e a impunidade. Membros da família, vizinhos, colegas,
profissionais da educação, da saúde, da assistência social, que
atuam na área da segurança, ao silenciarem sobre as situações
de violências que presenciam, conhecem ou suspeitam, agem no
sentido de proteger o/a violentador/a. Não é raro o/a agressor/a
manter outras pessoas, além da vítima, sob sua dominação.
Observamos que a indústria do sexo se entrelaça com outras
tramas de corrupção, ligadas ao tráfico de pessoas e de drogas,
e as de pedofilia e de pornografia via internet. As redes de prostituição organizam o tráfico de pessoas para o comércio sexual
e estabelecem as “rotas” que vão assegurar o abastecimento de
“peças” humanas em prostíbulos, boates, casas de show, além
de alimentar a indústria pornográfica com a produção de revistas, fotos, filmes, vídeos, objetos. O tráfico nacional e internacional de pessoas está associado ao turismo sexual, facilitado pela
globalização dos mercados de contravenção que atuam por meio
de redes clandestinas, mas muito poderosas, com interlocuções
mafiosas e violentas, vigiadas por fortes esquemas de segurança.
Sem essas redes privadas e societárias de silêncio e de conivência, dificilmente haveria espaço para a grande incidência das violências que afetam crianças e adolescentes. Por isso, os artigos
13, 56 e 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecem
86
que profissionais e dirigentes das áreas de educação e de saúde
são obrigados a notificar oficialmente, aos órgãos competentes,
todos os casos suspeitos ou confirmados de maus-tratos e outras
violências contra crianças e adolescentes (BRASIL, 1999).
2.3.2 Interlocução das violências
com a adicção a drogas
Vivemos numa sociedade apta a criar necessidades e essas, muitas vezes, destinam-se a introduzir “amortecedores” entre nós
e o mundo. Portanto, estamos numa sociedade intoxicada por
excessos, adicta de substâncias e de imediatismos que traduzem
a vulnerabilidade do laço social, expondo adolescentes e jovens
ao uso indiscriminado de drogas. A situação é tão grave que vem
sendo denominada pela área da saúde como epidemia, circunstância que se agrava aliada às diferentes formas de violências.
De acordo com Knapp (1998, p. 205),
as drogas são substâncias psicoativas naturais ou sintéticas
que, ao serem ingeridas, produzem alterações no sistema
nervoso central do indivíduo e, conseqüentemente, podem
produzir diferentes tipos de mudanças no comportamento,
percepção, cognição e humor.
Os processos de inclusão social, em cenários críticos e difíceis de
serem enfrentados pelos dependentes químicos tecem um ciclo
de fragilidade que os tornam passivos à adicção, com pouca probabilidade de levar adiante um projeto de vida próprio, em condições saudáveis e integradas ao cotidiano. Tais circunstâncias podem ser explicadas como “abandono de si”, em relação ao outro.
O entendimento do adicto, em sua forma histórica, como um sujeito que se distingue dos demais, leva em conta os antecedentes
87
situacionais e ambientais, as crenças e expectativas, a história
familiar individual e as experiências de aprendizado anteriores
com drogas ou com outras atividades prejudiciais. Considera-se a
compulsão como comportamento adictivo, habitualmente caracterizado pela gratificação imediata, o que não está relacionado
apenas ao uso de drogas, uma vez que inclui outras atitudes
compulsivas, como jogos, relações sexuais forçosas e, inclusive,
algumas formas de relacionamentos familiares e sociais.
Kalina e Kovadloff (1980, p. 24) chamam a atenção para o fato de
que o substantivo “adicção” designa inclinação ou apego compulsivo de alguém por alguma coisa. Já o adjetivo “adicto” define
a pessoa francamente propensa à prática excessiva de alguma
coisa: crenças exacerbadas e intolerantes; atividades repetitivas,
trabalho sem lazer e repouso, consumo desenfreado, hipocondria etc. A forma adicto origina-se no particípio passado addictum, que significa adjudicar ou designar. Esse particípio quer
dizer adjudicado ou designado – oferecido ou oferendado. Kalina
e Kovadloff (1980) ressaltam que, nos tempos da República Romana, o particípio passado addictum, empregado como adjetivo,
designava o homem que, para pagar uma dívida, convertia-se em
escravo, já que não dispunha de outros recursos para cumprir o
compromisso contraído. Em suas palavras,
Addictum era aquele que se assumia como marginal; aquele
que, fatal ou voluntariamente, fora jogado numa condição
inferior a que tivera até então. Em síntese: tratava-se de uma
pessoa que não soube ou não pode preservar aquilo que lhe
conferia identidade. O adicto aparece, assim, como um despojado: é aquele que perdeu sua identidade, e simultaneamente adotou uma identidade imprópria como única possível de saldar sua dívida. Através da renúncia à sua identidade
verdadeira, mas insustentável, o adicto restabelece o equilíbrio social perdido em virtude de sua inadimplência. Adicto
88
era aquele que eludia a dissolução total de sua existência,
apelando para a aceitação em público de sua falta de direito a
uma identidade pessoal. Para ser alguma coisa, devia aceitar
que não era ninguém. (KALINA; KOVADLOFF, 1980, p. 24).
Há uma proposição para o protagonismo da droga entre adolescentes e jovens, inclusive no cenário mundial, onde essas são
úteis para “anestesiar” essa população e aliená-la das lutas políticas, do envolvimento com causas sociais, de escolhas criativas
para um viver com dignidade. Além disso, trata-se de um produto que gera mercado, que amplia relações, que envolve muitas
pessoas e desperta o consumo para fortalecer a mercantilização
ligada ao narcotráfico. Nos adolescentes e jovens em contexto
de uso de drogas, há uma submissão de seu corpo às substâncias psicoativas, às relações familiares conflituosas, às diferentes situações de vulnerabilidade que geram grande tensão, entre
elas, as condições socioeconômicas que dificultam seu acesso às
oportunidades nos campos da saúde, da educação, do trabalho,
do lazer e da cultura.
Nesse cenário, os adolescentes e jovens em contexto de uso de
drogas ocupam o lugar de “pessoas doentes”, problemáticas,
que passam a ser tratadas de forma estigmatizada, sem reflexões mais cuidadosas sobre as situações que os enredam para o
uso dessas substâncias e as condições que produzem a necessidade. Isso gera um processo autodestrutivo, que se materializa no cotidiano e afeta a rede de relações desses sujeitos, tais
como a escola, os laços familiares, a inserção no grupo cultural.
O mundo das drogas tem seus códigos conhecidos por aqueles
que, de uma forma ou de outra, interagem com ele. Mostra-se
na contraposição entre o mundo da miséria e o do prazer, um
prazer que se revela na miséria, no imperativo de anestesia, no
abandono, no prognóstico de morte anunciada.
89
Eis porque a caracterização dos espaços sociais que revelam
maior incidência de violências, em suas diferentes manifestações, afirma que permanece em vigência culturas de incentivo
a certas condutas violentas, que estão disseminadas pelo tecido
social. Fazemos parte da criação e reprodução dessas culturas,
estamos mais próximos delas do que percebemos e seus efeitos
são abundantemente extensivos.
Em função dessas características, a superação das violências
na escola, para que ela se torne uma instituição que protege
crianças e adolescentes, educadores e educadoras, a sua comunidade, supõe projetos de intervenção, como é o desejo dessa
formação. Esses projetos precisam de eficácia para:
a.Desarticular as atitudes agressivas, das mais sutis às mais
evidentes;
b.Instalar espaços dialógicos de reflexão sobre as relações
interpessoais e com a natureza;
c.Construir, no cotidiano, um “código de convivência”, como
compromisso coletivo;
d.Assumir a participação ativa da escola na Rede de Proteção Integral;
e.Ensinar a importância do Sistema de Garantia de Direitos
para evitar qualquer manifestação de violência;
f. Manter viva uma afetividade qualificada de acolhida e
cuidado com os sujeitos da educação;
g.Transformar instituições áridas de cuidado em lugares de
amor e proteção.
90
Para além desses enunciados, não podemos esquecer que existem grupos mais vulneráveis a esse fenômeno e que merecem
atenção, principalmente quando, entre eles, estão crianças e
adolescentes, mulheres, idosos/as, negros/as, lésbicas, gays,
transexuais, indígenas, pessoas com deficiências, população em
situação de moradia nas ruas e outros mais.
2.4 Grupos mais vulneráveis às
violências
VULNERABILIDADE: um ser vulnerável rasga o ventre materno, num gesto inapto de nascimento. Suga o afetuoso e
quente seio, numa ânsia insciente de sobrevivência. Caminha
trôpego, mas decididamente ao lado do sonho de conhecer o
mundo, porque acredita que o conhecimento o torna menos
vulnerável do que quando do princípio do todo. Cada dia,
cada hora, cada instante é tempo ganho na estrada imperfeita da física da vida. Ser-se, é adaptar-se: ao vento que ruge,
ao mar que fustiga ao fogo que queima ou à bala perdida que
passa, consciente da vulnerabilidade guardada, num saco
elástico de cútis, que pode em qualquer instante romper-se,
por ser, também ela marcada, com o selo da susceptibilidade
natural de tudo o que é vivente. (RODRIGUES, 2009).
A história da humanidade é atravessada por violências que marcam lugares e experiências enfrentadas por diferentes sujeitos e,
de modo emblemático, por grupos imbricados na vulnerabilidade
de sua condição de estar no mundo, como crianças e adolescentes. As violências destinadas a esse público indicam o peso
da marca social, reforçam compreensões excludentes de pertencimentos, ao mesmo tempo em que escancaram o aspecto das
vulnerabilidades a que estão expostos.
91
Vulnerabilidade e situação de risco, muitas vezes, são conceitos
utilizados nas falas dos atores que atuam em diversos contextos
sociais de atendimentos, de maneira a se confundirem. Com relação ao primeiro conceito, Libório (2004, p. 35-36) ressalta que
ele resulta da violação dos mais elementares direitos dos seres
humanos; quanto ao segundo, ele remete a diversos tipos de
eventos negativos de vida e que, quando presentes, principalmente de forma associada, aumentam a probabilidade dos sujeitos apresentarem problemas físicos, sociais e emocionais.
A vulnerabilidade opera apenas quando o risco está presente; sem risco a vulnerabilidade não tem efeito [...], ou seja, a
exposição às diversas situações de risco promove o processo
de vulnerabilização de crianças e adolescentes, que interfere
em seu desenvolvimento físico, psicológico e social. (LIBÓRIO, 2004, p. 35-36).
Como é possível reconhecer, no seu espaço de trabalho, as crianças e os/as adolescentes que se encontram em contextos de
vulnerabilidades e riscos sociais? Que aspectos estão enredados
nas teias das relações violentas que os afetam? O que se esconde atrás dos detalhes? Como podemos transformar nossos julgamentos apressados em curiosidade de pesquisa e intervenção?
Crianças e adolescentes estão sempre vulneráveis às violências,
o que nos permite refletir sobre a importância de outras formas de atenção que auxiliem as políticas de proteção existentes,
principalmente em relação à prevenção, que pode ser promovida
também no ambiente escolar. No entanto, vimos que as diversas
formas de violências acima explicitadas assumem outros contornos nessa vulnerabilidade, que dizem respeito às questões
familiares e de gênero e pautam as violências sofridas por essa
população.
92
2.5 Como questões de gênero
explicam certas violências?
O movimento feminista teve um papel social importante no reconhecimento e na compreensão das diferenças, das desigualdades e das crueldades que assinalam a vida das mulheres, do
mesmo modo, nas inúmeras conquistas alcançadas. Assumiu o
desafio de
demonstrar que não são as características anatômicas e fisiológicas, em sentido estrito, ou tampouco desvantagens socioeconômicas tomadas de forma isolada, que definem diferenças apresentadas como justificativas para desigualdades
de gênero. (MEYER apud LOURO, 2003, p. 14).
Dessa forma, ressaltou que outras questões permeiam a problemática de gênero e elas começam a fazer parte das discussões
em torno do tema, como é o caso das violências. A questão de
gênero aparece como constituinte da identidade dos sujeitos, da
mulher, do homem, da criança, do adolescente, envolvidos na
teia do fenômeno da violência sexual, e abrange relações que
emergem como parte deles. É nesse sentido que a questão de
gênero se situa e, como diz Saffioti (2004, p. 45), esta pode ser
concebida em várias instâncias, enquanto categoria histórica:
uma gramática sexual, regulando não apenas relações homem-mulher, mas também relações homem-homem e relações mulher-mulher. O gênero é a construção social do
masculino e do feminino.
Quando faz referências às violências e ao gênero, Couto (2005,
p. 25) ressalta que estes não são aspectos relacionados apenas
à figura masculina, aos homens, mas remete a uma constituição
societária em que as bases são formadas por relações desiguais,
93
numa perspectiva centrada na estrutura patriarcal, sendo violências e poder sempre masculinos, mesmo que sejam exercidos por
um homem ou por uma mulher. A autora acena que não importa
o sexo de quem agride, mas se faz necessário o entendimento
de que as violências são sempre masculinas quando exercida
nos limites domésticos, porque correspondem ao estereótipo do
macho/dominador.
Maturana (2004, p. 37), ao fazer referências ao patriarcado, chama atenção para nossa maneira de agir e de viver. Diz que
a cultura patriarcal se caracteriza pelas coordenações de
ações e emoções que fazem nossa vida cotidiana um modo
de coexistência que valoriza a guerra, a competição, a luta,
as hierarquias, a autoridade, o poder, a procriação, o crescimento, a apropriação de recursos e a justificação racional do
controle e da dominação dos outros por meio da apropriação
da verdade.
Essa maneira de viver e de conviver dos seres humanos, em geral, rejeita os desacordos como possibilidades legítimas da convivência.
Então, o agir se afirma na busca contínua de convencimento
um do outro, das certezas como verdadeiras e da diferença que
surge como um desafio, na medida em que ela é um ponto de
partida para a procura da mudança sobre o que pensamos, ou
para eliminá-la, caso isso não ocorra. Nessa cultura, Maturana
(2004, p. 38)
entende que vivemos na hierarquia, o que exige obediência.
Afirmamos que uma coexistência ordenada requer autoridade e subordinação, superioridade e inferioridade, poder e debilidade ou submissão.
94
As violências que ocorrem nos espaços intrafamiliares, que sujeitam mulheres de diferentes idades e classes sociais, ainda incidem habitualmente e de forma impune para quem as comete.
O Relatório da Anistia Internacional de 2004, conforme Cantera
(2007) aponta que as mulheres, independentemente de nacionalidade, têm maior probabilidade de serem machucadas, estupradas
ou assassinadas por seus companheiros, sejam eles o atual ou o
anterior, ou por outra pessoa. Essa calamidade desmistifica o lar
como “domicílio privado, considerado miticamente ‘santuário’ de
tranqüilidade e referente de segurança, pois ele é, para milhões
de mulheres, um lugar de sofrimento, no qual recebem maustratos, tortura e inclusive são mortas.” (CANTERA, 2007, p. 42).
O modelo patriarcal de família é
uma construção ideológica que serve como referência para a prática
no que tange a padrões de relações
afetivas, sexuais, de solidariedade
e de hostilidade. Oferece recursos
para pensar a modernidade na sociedade brasileira.
As violências provocam metamorfoses que atravessam toda a
corporeidade do sujeito, porque é sentida desde a sua pele, sem
respeitar qualquer dimensão da sua existência. Quando praticadas contra mulheres e meninas, essas violências supõem um
percurso entre a sua biologia e a cultura, entre o sensível e o
imaginário, entre a impotência e a humilhação, mas com configurações próprias. As violências sexuais, por exemplo, violam a
integridade feminina e invadem o que de mais sagrado reveste
essa condição: o consentimento.
No limite do corpo, a pele ratifica a agressão a essa integridade e
as violências se instalam como sítios de desfiguração e metamorfoses, à medida que subtraem a inteireza de quem é violentada e
a devolve à condição de coisa, de objeto que se pode manipular
ao bel prazer do agressor. Como envoltório, a pele menciona uma
dinâmica entre as violências que se iniciam na superfície e avançam ao mais íntimo de cada mulher-menina, mesmo sem aceitar
que os atos tenham a sua participação. O outro é tomado como
artefato de gozo e submetido a situações desiguais de violação
de sua humanidade, assumindo ainda, e em muitos casos, as
responsabilidades pelos danos a ele impetrados.
95
Embora as violências marquem desde a alma dos seres humanos, elas estão presentes nas relações familiares em que crianças e adolescentes têm sua infância maltratada e abusada. Nesse
encontro de convivências multifacetadas, a brutalidade demarca
espaços entre homens e mulheres, adultos e crianças/adolescentes, o que nos leva a acreditar que “isto não reduz o ser humano
à mais completa impotência” (MORAIS, 1995, p. 24), ao contrário, o situa no espaço das possibilidades, capaz de lutar contra
um destino terrível, como aquele que sobrepujava as antigas
tragédias gregas. “Lembremo-nos de que, do mesmo modo que
existem aqueles que se comprazem em práticas violentas, há os
que lutam a vida inteira no esforço de evitar estas violências.”
(MORAIS, 1995, p. 24). Como educadores, queremos continuar ou
ingressar nessa coletividade em defesa da vida.
Eis por que afirmo o quão complexas são as violências, com suas
características multifacetadas, o que sempre desafia a buscar
conhecimentos que transversalizem os acontecimentos, mesmo
sendo provisórios e insuficientes. Nessa busca, crianças, violências e relações familiares permeiam o entendimento de que
as violências às quais as crianças são submetidas na forma de
ações humanas, não se dirigem contra seus corpos apenas, mas
contra seu existir social; sofrem um processo de assujeitamento
e coisificação efetuados por outros que estabelecem suas relações sociais anulando o próximo (LIMA; MAY, 2006, p. 234).
2.6 Diferentes contextos
das violências
Ao descrevermos as diversas formas de violências, precisamos
refletir em quais contextos elas estão inseridas. Que elementos
as constituem e de que maneira determinam e são determina-
96
dos por elas? Para isso, é preciso pensar no significado da palavra “contexto”, no que constitui o berço das nossas ações e na
teia que retroalimenta nossas experiências. No dicionário Aurélio
(2004), a palavra “contexto” diz respeito “a um conjunto do texto
que precede ou sucede uma frase, um grupo de palavras, uma
palavra”, podendo também expressar “um conjunto de circunstâncias que acompanham um acontecimento: julgar um fato em
seu contexto histórico”.
No entanto, para pensarmos nos contextos, é preciso entendêlos como um cenário específico, como tempo, local e pessoas
presentes, que dá significado a um evento; como moldura que
envolve um determinado evento, onde essa moldura normalmente determinará a maneira de se interpretar uma determinada
experiência ou evento.
Você já pensou em que contexto você vive? Em qual contexto
está inserida a escola em que você trabalha? Como poderíamos
caracterizar o contexto brasileiro ou o contexto mundial na atualidade? Esses questionamentos podem nos ajudar a entender
que cada contexto tem seu próprio cenário e que ele se mescla
com todos os demais através de sua história, de sua cultura, do
seu povo, de suas leis e normas, de suas crenças, de sua política, entre outros, que vão gestar as relações entre os sujeitos.
Dessa maneira, também se constituem as violências, sejam elas
física, sexual, psicológica, institucional, doméstica, familiar, pois
são sínteses dos meios que as alimentam.
Prestem atenção na letra da música do grupo Engenheiros do Hawai. Ela trata de uma violência travestida, ou seja, de nossas atitudes cotidianas que desvelam a maneira como expressamos as
violências que estão em nós, materializadas por meio das nossas
práticas, das condutas e crenças que assumimos nas relações.
97
Violência Travestida Faz Seu Trottoir
No ar que se respira, nos gestos mais banais
Trottoir é uma palavra francesa
que quer dizer “calçada”. Lugar por
onde as pessoas passeiam e aproveitam pra se conhecerem, ou por
onde passam indiferentes umas as
outras. O autor dessa música se
baseou em uma parte da obra “À
sombra das maiorias silenciosas”,
de Jean Baudrillard. Essa música
denuncia diferentes maneiras de
opressão simbólica, econômica, do
marketing, da moral e da falta de
moral ou parâmetros. Descreve um
panorama de um mundo em que as
violências travestidas de outras formas, preparam o flerte, à moda do
comércio do sexo (Baudrillard teria
dito, do desejo) em que, por estar
travestida, pode não ser percebida.
(Ferreira Júnior, 2009).
Em regras, mandamentos, julgamentos, tribunais
Na vitória do mais forte, na derrota dos iguais
A violência travestida faz seu trottoir
Na procura doentia de qualquer prazer
Na arquitetura metafísica das catedrais
Nas arquibancadas, nas cadeiras, nas gerais
A violência travestida faz seu trottoir
Na maioria silenciosa, orgulhosa de não ter
Vontade de gritar, nada pra dizer
A violência travestida faz seu trottoir
Nos anúncios de cigarros que avisam que fumar faz mal
A violência travestida faz seu trottoir
Em anúncios luminosos, lâminas de barbear
Armas de brinquedo, medo de brincar
A violência travestida faz seu trottoir
No vídeo, idiotice intergaláctica
Na mídia, na moda, nas farmácias
No quarto de dormir, na sala de jantar
A morte anda tão viva, a vida anda pra trás
É a livre iniciativa, igualdade aos desiguais
Na hora de dormir, na sala de estar
A violência travestida faz seu trottoir
Uma bala perdida encontra alguém perdido
Encontra abrigo num corpo que passa por ali
E estraga tudo, enterra tudo, pá de cal
Enterra todos na vala comum de um discurso liberal
A violência travestida faz seu trottoir
Em anúncios luminosos, lâminas de barbear
Armas de brinquedo, medo de brincar
A violência travestida faz seu trottoir
98
A violência travestida faz seu trottoir
Em anúncios luminosos, lâminas de barbear
Armas de brinquedo, medo de brincar
A violência travestida faz seu trottoir
Tudo que ele deixou foi uma carta de amor
Para uma apresentadora de programa infantil
Nela, ele dizia que já não era criança
E que a esperança também dança como monstros de um filme japonês
Tudo que ele tinha era uma foto desbotada
Recortada de revista especializada em vida de artista
Tudo que ele queria era encontrá-la um dia
Todo suicida acredita na vida depois da morte
Tudo que ele tinha cabia no bolso da jaqueta
A vida, quando acaba, cabe em qualquer lugar
E a violência travestida faz seu trottoir
Não se renda
Às evidências
Não se prenda
À primeira impressão
Eles dizem com ternura
O que vale é a intenção
E te dão um cheque sem fundos
Do fundo do coração (do fundo do coração)
No ar que se respira
Nessa total falta de ar
A violência travestida
Faz seu trottoir
Em armas de brinquedo, medo de brincar
Em anúncios luminosos, lâminas de barbear
Nos anúncios de cigarros que avisam que fumar faz mal
A violência travestida faz seu trottoir
(Gessinger, 200-).
99
[Habitus]
Aqui a autora utiliza a definição de
habitus criada por Bourdieu (1996),
como práticas empreendidas no
grupo primário, que funcionam
como esquemas classificatórios,
que estabelecem as diferenças
entre o bem e o mal, o bom e o
mau, entre o que é distinto e o que
é vulgar, e que asseguram a reprodução das relações sociais.
Essa música ilustra, parcialmente, contextos de violências e acena para a constituição imbricada entre os sujeitos, o momento
histórico, o social, o econômico e a cultura, circunstâncias que
modelam relações violentas e que imprimem normas de comportamentos cada vez mais violentas. Isso porque, de acordo com
Silva (1999, p. 184, grifo nosso),
é possível afirmar que uma vez que as práticas violentas nos
centros urbanos e rurais, incorporam-se a vida cotidiana de
homens e mulheres, conformam mais uma modalidade da
cultura brasileira, inscrevendo-se historicamente no habitus
desses grupos que tenderá a reproduzi-las, sobretudo quando não houver nenhum tipo de resistência.
Já para Sousa (2006, p. 35), quando traz o conceito de Balandier,
as violências podem ser concebidas,
tanto como “figuras de desordens” que compõem o social e
se legitimam como fenômenos emblemáticos na contemporaneidade, quanto são matizadas por um enredamento difuso, embrenhado pelas subjetividades que não possibilitam
suscitar explicações redondas em torno delas mesmas. [...]
Nos contextos onde elas ganham efetividade permitem gerar
argumentos que dão conta de uma aproximação explicativa
desses episódios, na forma de um contorno antropológico.
A partir dessa ideia, podemos localizar os contextos nos quais
as violências são gestadas, com suas dimensões histórica, social, cultural, institucional, pública, privada, econômica, étnicoracial, sexual, geracional, política, nacional, territorial e global.
Elas fazem interconexões e ampliam o olhar sobre a gênese das
violências, mas, ao mesmo tempo, não as definem porque as
violências jamais estão numa relação linear de causa e efeito. É
na complexidade do mundo moderno que as certezas se desvelam frente aos movimentos de vida com expressões de morte.
100
Isso porque, para Maturana (apud SOUSA, 2006, p. 25),
[...] guardamos como legado dessa disposição históricosocial aspectos requintados da cultura patriarcal em nossa
maneira de viver, os quais valorizam práticas como a guerra,
primam por conservar as relações verticais e hierárquicas,
justificam a sanidade dos artifícios competitivos, reduzem a
convivência a um anfiteatro de lutas diárias, almejam, desesperadamente, o controle e o progresso a qualquer custo e
assim aprendem a buscar a dominação do outro, o seu semelhante, especialmente quando se apropriam de uma suposta
verdade, aquela que é sua [...].
2.7 Como nos perdemos
no caminho?
Para localizarmos as implicações sociais, históricas, políticas,
territoriais e nacionais que nos tornam indivíduos mais ou menos violentos, é preciso recorrer às extraordinárias mudanças
ocorridas, desde as sociedades arcaicas, até as contemporâneas.
Anteriores à sociedade contemporânea, os grupos arcaicos cultivavam a paz e a ordem, ensinamentos que eram garantidos pela
introjeção do sentimento de comunidade. A vida comunitária era
gerida pelo coletivo sob o princípio da harmonia. Com a evolução
das sociedades, dos impérios antigos até as nações modernas,
o Estado passa a constituir o aparelho central de comando e de
controle social (MORIN, 2002, p. 178-179).
Seu poder é de conhecimento, de decisão, de dominação, de
repressão. Memoriza (arquivos), calcula, computa, rege, decide, ordena. Dispõe de uma administração que centraliza a
informação e o saber, fixa as normas escritas, os arquivos, as
instruções, estabelece previsões e propõe programas. (MORIN, 2002, p. 178).
101
Para Morin (2002, p. 178), quando o Estado estabelece a ordem,
apropria-se do monopólio das violências, dispondo de poderes
“temporais através de aparelhos auxiliares: aparelho policial,
aparelho militar; estes aplicam as ordens e impõem o poder coercitivo (repressão, prisão, pena de morte) do Estado”.
Conjugando a coerção material e a possessão psíquica, a intimidação armada e a intimidação social, a dominação do
Estado toma as suas formas tentaculares, da pressão externa sobre o corpo até a sujeição interna do espírito. (MORIN,
2002, p. 179).
Diferentemente dos grupos arcaicos, o Estado moderno é “naturalmente paranóico, tendendo sempre a mais poder, ávido de
aumentar seu território e as suas riquezas.” (MORIN, 2002, p.
179-180). E esse movimento pelo poder, pela conquista de novos
territórios e por riquezas é vivido pelos Estados vizinhos levando-os às guerras incessantes. “O que justifica o caráter predador
e guerreiro dos estados da antiguidade e dos tempos modernos,
inclusive do século XX.” (MORIN, 2002, p. 179-180). Esse movimento que constituiu e se expressa ainda no século XX, demonstra em que contextos nós vivemos o fenômeno das violências e
o quanto esse modo de organização constrói formas de vida cada
vez mais violentas. Uma violência que é vivida pela miséria de
uns e pela riqueza de outros; pelas guerras, pela exclusão sóciocultural, pela falta de oportunidades; também pelos subjugos,
pelas doenças, pelos maus tratos e pela morte.
Entorpecidos pela mecanização das relações, apressados
e confusos na luta pela sobrevivência e encurralados pelas
premissas individualistas que tomam conta de nosso viver,
todos os dias, mediante diferentes mecanismos, com maior
ou menor intensidade, cada um de nós produz a banalização
da vida. (SOUSA, 2006, p. 29).
102
2.8 Entre o privado, o familiar
e o geracional
Entre o privado, o familiar e o geracional, vamos encontrar diversas maneiras dos sujeitos organizarem a vida, para entendermos como eles são afetados por diferentes sistemas, enquanto
afetam tantos outros. É nesse entrelaçamento que são constituídas as regras da convivência entre eles, com permissões e
repressões, as quais forjam as violências. Bronferbrener (apud
ALVES, 1997), com uma visão ecológica, ressalta que o sujeito
em desenvolvimento jamais está inserido em um único contexto,
dado que são múltiplos e muito mais do que simples ambientes
(no sentido da situação imediata que circunda o indivíduo). Devido à sua complexidade e abrangência, são chamados sistemas,
multidimensionais e organizados em diferentes níveis. São eles:
1.Microssistema – é o ambiente em que a pessoa em desenvolvimento peculiar vive experiências pessoais diretas: família, escola, igreja. Aquele mais próximo, constituído por
situações de aprendizagens que interagem com a pessoa
mais imediatamente.
2.Mesossistema – inclui as inter-relações e influências recíprocas entre dois ou mais ambientes dos quais a pessoa
em desenvolvimento peculiar participa ativamente É ampliado sempre que essa pessoa entra num novo microssistema.
3.Exossistema – inclui elementos do sistema que não envolve a pessoa em desenvolvimento peculiar como um participante ativo, mas é onde ocorrem eventos que afetam
aquilo que acontece em um dos microssistemas, como movimentos de outros sujeitos e processos. Ou seja, intercorrências de outros microssistemas.
103
4.Macrossistema – composto pelo padrão global de ideologias, crenças, valores, religiões, formas de governo, costumes e estruturas institucionais, culturas e subculturas
presentes no cotidiano das pessoas. O que se refere ao
sistema sócio-cultural mais amplo.
Com essas noções de sistemas que se alimentam e se retroalimentam, poderíamos nos indagar: pode haver um único entendimento sobre como nos tornamos tão violentos no século XX?
Essa visão vem demonstrar que as violências domésticas, entre
membros de uma mesma família, ou de gerações diferentes (violências contra crianças e adolescentes, violências contra idosos,
violências contra mulheres, mães, esposas etc.), afetam e são
afetadas por contextos. Então, não é possível pensá-las como relações diretas entre aquele/aquela que violenta e aquele/aquela
que é violentado, e sim, pensarmos em diferentes sistemas de
relações que produzem situações de violências.
Para Sousa (2006, p. 33), “adultos violentam crianças por muitas
razões concebidas e entranhadas num estilo de conviviabilidade
histórico-cultural que atribui menoridade a elas”. Mas a autora
argumenta que essas condutas não são inatas, elas expressam
experiências e iniciações culturais em que somos ensinadores e
aprendizes.
Portanto, entendemos que o contexto das microrrelações entre
os sujeitos se constitui do complexo mais amplo, que falamos
anteriormente, ou seja, dos cenários social, histórico, político,
territorial e nacional. Que as microrrelações acontecem também
na conjuntura pública e institucional, por considerarmos que esses espaços só podem ser reconhecidos por meio de relações
entre as pessoas.
Quando falamos dos contextos públicos e institucionais, inspiramo-nos nos conceitos de Guirado (1997 apud AQUINO, 1998, p. 9),
104
para quem as instituições “são relações ou práticas sociais que
tendem a se repetir e enquanto se repetem, legitimam-se”. Ou
seja, fazem-se pela ação de seus agentes e de sua clientela, de
maneira que não há vida social fora das instituições e sequer há
instituição fora do fazer de seus atores. No entanto, podemos
sugerir que as práticas institucionais, com seus objetos, atores e
ações singulares, refletem, de maneira significativa, o meio social
mais amplo. A compreensão de Guirado nos ajuda a apreender
que as instituições, entre elas a escola, também produzem suas
próprias práticas sociais, ou seja, elas não são um reflexo direto
do contexto histórico, da conjuntura política, econômica e cultural.
[Prática social]
Todo o saber acumulado pelo ser
humano através da história. Por
um lado, é a ação prática e, por
outro, conceito dessa prática que
se realizou no mundo dos fenômenos materiais e que foi elaborado pela consciência que tem capacidade de refletir essa realidade
material (TRIVINOS, 2006).
Podemos assim identificar que toda ação humana diz respeito
a um determinado lugar, com suas características e disposição
para agir. Esse lugar é tecido pelo jeito como os seres humanos
se agregam em convivências, tendo como referência as interconexões entre eles e tudo o que compreende o universo social. É
esse universo social que corresponde à “realidade cotidiana com
as concepções, os valores e os desejos, as necessidades e os
conflitos vividos em seu meio próximo e a realidade social mais
ampla, com os outros conceitos, valores e visões de mundo.”
(OLIVEIRA, 2002, p. 169). E essa tessitura forja práticas sociais
próprias, ou seja, “algo de novo se produz nos interstícios do
cotidiano escolar, por meio da (re)apropriação de tais vetores de
força por parte de seus atores constitutivos e seus procedimentos instituídos/instituintes.” (AQUINO, 1998, p. 10).
As instituições lançam ideias e efetivam práticas que também
são promotoras de violências, gerando, nesse contexto, exclusões, sofrimentos, fracassos, conflitos, entre outros, o que nos
faz perguntar: tem se pensado a escola como espaço que também
produz violências? Quais as implicações das políticas educacionais, dos processos educativos e das atitudes dos educadores e
demais profissionais na promoção de violências? Para Guimarães
105
(1996b apud AQUINO, 1998, p. 77), a instituição escolar não pode
ser vista apenas como reprodutora das experiências de opressão,
de violências, de conflitos, advindas do plano macroestrutural. É
importante argumentar que, apesar dos mecanismos de reprodução social e cultural, as escolas também criam suas próprias
violências e indisciplinas.
Outrossim, o sujeito só pode ser pensado na medida em que
pode ser situado num complexo de lugares e relações pontuais – sempre institucionalizadas, portanto. A noção de sujeito
passa a implicar, dessa forma, a premissa de lugar institucional, a partir do qual ele pode ser regionalizado no mundo;
sujeito (sempre) institucional, portanto. Ele é estudante de
determinada escola, aluno de certo(s) professor(es), filho de
uma família específica, integrante de uma classe social, cidadão de um país, e assim por diante. (AQUINO, 1998, p. 11).
E é refletindo sobre esse lugar chamado escola que podemos dialogar sobre as práticas que fazem brotar os contextos de violências,
tais como: as avaliações classificatórias; a homogeneização das
diferenças, pelas ações disciplinares e normativas; a coação pelo
exagero da autoridade; a desvalorização e as péssimas condições
do trabalho dos/as professores/as; a exclusão de educandos/as
pela seleção meritocrática, entre outros, como zonas de manutenção do poder. Tudo isso fortalece os contextos institucionais e públicos, que são geradores de violências. Para Aquino (1998, p. 15),
[...] do ponto de vista institucional, não há exercício de autoridade sem o emprego de violência, e, em certa medida,
não há o emprego de violência sem exercício de autoridade.
Portanto,...a violência como vetor constituinte das práticas
institucionais teria como um de seus dispositivos nucleares
a própria noção de autoridade, outorgada aos agentes pela
clientela/público, e avalizada pelos supostos “saberes” da-
106
queles. Por essa razão, reafirmamos a convicção de que há,
no contexto escolar, um quantum de violência “produtiva”
embutido na relação professor-aluno, condição sine qua non
para o funcionamento e a efetivação da instituição escolar.
No entanto, Zapelini e Moraes (2006, p. 215-216) enfatizam que
a escola, ao se constituir como um espaço autodestrutivo, “faz
da autodestruição a possibilidade de se fazer uma escola diferente”, isso porque se entende “a escola dialogicamente, que
‘se autodestrói contruindo-se’, ou seja, produto e produtora de
violências, mas, paradoxalmente, espaço de manutenção da
existência humana”. Os diversos contextos aos quais nos referimos anteriormente, como produtos e produtores de violências,
são aparecimentos, ao mesmo tempo, da paz e do consenso
comunitário ativo, de relações afetivas que promovem a vida, de
conhecimentos e práticas que qualificam os processos sociais e
técnicos e que, de alguma maneira, humanizam-nos.
Ao descrevermos alguns contextos que têm promovido situações
de violências, desejamos instigar um olhar mais complexo desse
fenômeno, já que, cada vez mais, é preciso uma visão interdisciplinar para entendê-lo e para buscar alternativas de intervenção.
A interdisciplinaridade vem ‘associada ao desenvolvimento
de certos traços de personalidade, tais como a flexibilidade,
confiança, paciência, intuição, o pensamento divergente, a
capacidade de adaptação, sensibilidade com relação as demais pessoas, aceitação de riscos, aprender a agir na diversidade, aceitar novos papeis, etc.’ Viver cada instante da vida
sob questionamento e reflexão, cuidando para não precipitar
conclusões sobre realidades (AZAMBUJA, 2004, p. 143).
As políticas existentes não têm conseguido dar conta da crescente demanda por cuidado às crianças e aos adolescentes violentados e a Rede de Proteção tem se esforçado para garantir a
107
intersetorialidade e para integrar as áreas da saúde, educação,
assistência social, entre outras, buscando a ação em conjunto.
Isso desafia novos olhares e a coragem de gestar outras possibilidades. Nesse sentido, cabem os seguintes questionamentos:
como a escola tem contribuído, enquanto instituição participante
da Rede de Proteção, no combate às violências? É possível pensar
formas de atuação contra as violências no âmbito escolar? Como
estamos abertos ao pertencimento daqueles e daquelas que querem construir a gestão do cuidado para uma escola que protege?
Sobre essas questões, iremos discutir no próximo capítulo.
»»Em síntese...
Entendemos neste capítulo que as violências são multiformes,
tecidas tanto na sutileza das relações interpessoais, quanto nos
gestos explícitos que con-formam a convivência social e que também de-formam a qualidade da nossa humanização. A partir das
classificações, buscamos ampliar nosso olhar sobre as violências,
apresentando a complexa rede de espaços sociais que também
promovem gestos culturalmente agressivos e que não se guiam
na perspectiva do cuidado de si e do outro. Neste sentido, as
classificações padronizadas nem sempre oferecem perspectivas
atualizadas das dimensões do problema a ser enfrentado na defesa dos direitos de crianças e adolescentes.
Quanto aos atores destas violências, vimos que é comum focar-se exclusivamente nos autores, adotando uma visão binária
violentador-violentado. No entanto, as violências ocorrem em situações nas quais outros atores estão envolvidos e que muitas
vezes não se vendo implicados no processo contribuem para
sua permanência ou até colaboram para que elas ocorram. Desta maneira, compreendemos que as violências são gestadas em
108
contextos multidimensionais a partir de construções históricas,
sociais, culturais, institucionais, públicas, privadas, econômicas,
étnico-raciais, sexuais, geracionais, políticas, nacionais, territoriais e globais.
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contextos de violências. Florianópolis: CED/UFSC/ Núcleo Vida e
Cuidado, 2006.
TRIVINOS, Augusto Silva. Revista Movimento, UFRGS, v. 12, n. 2,
2006.
ZAPELINI, Cristiane Antunes; MORAES, Marta Corrêa. A gestão
do cuidado sob a ótica da formação dos educadores. In: SOUSA,
Ana Maria Borges de; VIEIRA, Alexandre; LIMA, Patrícia de Moraes
(Org.). Ética e gestão no cuidado: a infância em contextos de
violências. Florianópolis: CED/UFSC/ Núcleo Vida e Cuidado, 2006.
113
114
[3]
Rede de Proteção: a gestão do cuidado na
atenção infantojuvenil
Cristiane Antunes Espindola Zapelini
ZAPELINI, Cristiane Antunes Espindola. Rede de Proteção:
a gestão do cuidado na atenção infantojuvenil. In: ______ (Org.).
Módulo 2: violências, Rede de Proteção e Sistema de Garantia de Direitos.
Florianópolis: NUVIC-CED-UFSC, 2010. cap. 3.
[Objetivo desse Capítulo]
Trabalhar com cenários latinoamericanos que envolvem crianças e
adolescentes em contextos de violências, destacar especialmente o
Sul do Brasil, e ainda dialogar acerca das Rede de Proteção e do Sistema de Garantia de Direitos. Nossa intenção é apresentar fundamentos
teóricos que tornem possível aprofundar a reflexão sobre práticas de
uma gestão do cuidado e o lugar da Escola na proteção dos estudantes e na prevenção das violências.
115
3.1 Recortes de indicadores
sociais: cenários de inspiração
Somos o que fazemos, principalmente o que fazemos para
mudar o que somos. (Eduardo Galeano)
Desde muito tempo aprendemos a transferir para o outro a responsabilidade pelos acontecimentos dos quais somos cocriadores, na medida em que não é simples assumir que somos também o que fazemos. Mais difícil ainda é assumir a coragem de
transformar o que nos tornamos socialmente, já que essa é uma
experiência humanizadora que exige rupturas e questionamentos,
que nos desafia a pensarmo-nos como sujeitos culturais capazes
de saber de si e tomar consciência de seus atos. O continente
latino-americano tem a herança cultural e a memória daquilo que
somos, do que conseguimos mudar ou favorecer a permanência,
traz em suas lutas a história construída arduamente por muitos,
a despeito das contradições que enfrentaram e ainda enfrentam
para torná-lo avesso ao “espelho do próspero” (Morse, 1988).
Pelos princípios do Estado de bemestar social, todo o indivíduo teria o
direito, desde seu nascimento até sua
morte, a um conjunto de bens e serviços que deveriam ter seu fornecimento garantido, seja diretamente, através
do Estado, ou indiretamente, mediante seu poder de regulamentação
sobre a sociedade civil. Esses direitos
incluiriam a educação em todos os
níveis, a assistência médica gratuita, o
auxílio ao desempregado, a garantia
de uma renda mínima, recursos adicionais para a criação dos filhos, etc.
116
A situação atual que envolve crianças e adolescentes, especialmente na América Latina, vem tomando proporções significativamente preocupantes. Inúmeros indicadores socioeconômicos
e referentes à conjuntura apontam, nos últimos anos, grandes
dificuldades para a superação da pobreza e das consequências
decorrentes deste estado em que milhões de pessoas vivem em
condições de miserabilidade. Esses indicadores, entre outros,
apontam para o imperativo de políticas sociais que assegurem
os direitos comuns à cidadania dos setores menos atendidos.
Conforme Pilotti e Rizzini (1995, p. 45), é preciso incorporar políticas que impeçam o desmantelamento do estado de bem-estar
latino-americano, cuja missão declarada é a de oferecer serviços
sociais com um sentido universalista, o que traria efeitos redistributivos, já que abriria canais de mobilidade social.
Na década de 80 do século XX, partilhamos o papel de protagonistas dos movimentos sociais, o fortalecimento da sociedade
civil, a intervenção e o controle das políticas através dos espaços
de representação social. Neste contexto, um dos desafios que se
colocava consistia em formular políticas sociais autenticamente
participativas e passíveis de serem aplicadas num cenário socioeconômico diversificado, onde Estado e Sociedade Civil disputassem o mesmo espaço na formulação e no controle dessas
políticas públicas. Ainda hoje, na área da infância e da adolescência, o impacto desse quadro recai sobre a população mais
pobre. De cada mil nascidos vivos, setenta e oito morrem antes
de completar cinco anos. As principais causas de mortalidade
A Comissão Econômica para a América Latina e o
Caribe (CEPAL) produz alguns dos principais indicadores socioeconômicos sobre essas regiões.
Suas referências baseiam-se principalmente
em dados econômicos, nos níveis de escolaridade, no Produto Interno Bruto (PIB), e ainda
em índices de natalidade e mortalidade infantil. Obtenha mais informações sobre o trabalho
da CEPAL no endereço eletrônico desta instituição, que acessamos em 24 de julho de 2010:
http://www.eclac.cl/estadisticas
No Brasil, os principais indicadores socioeconômicos são: taxa de analfabetismo, níveis de
escolaridade, PIB per capita, razão de renda,
proporção de pobres, taxa de desemprego e ín-
dices quantitativos de trabalho infantil. Muitas
instituições brasileiras elaboram indicadores,
e caso você tenha interesse em pesquisar essas informações, sugerimos, primeiramente, o
endereço eletrônico da Rede Interagencial de
Informações para a Saúde (RIPSA), que acessamos em 24 de julho de 2010:
http://www.ripsa.org.br
Outra importante fonte de informação sobre
indicadores socioeconômicos brasileiros são
os trabalhos do Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE),
cujo endereço eletrônico acessamos em 24 de
julho de 2010:
www.dieese.org.br
117
infantil na América Latina estão associadas as doenças de fácil
prevenção, tais como: diarreia, infecção respiratória, quase sempre combinada com a desnutrição (PILOTTI, 1995, p. 47). Também
nas últimas décadas continuamos a conviver com a cólera, uma
epidemia que se pensava ter sido erradicada, evidenciando as
precárias condições de saúde em que se encontra grande parte
da população latino-americana.
Neste continente cerca de 45% da população total é formada
por crianças e adolescentes, com até dezoito anos de idade. A
metade dessa população está imersa em bolsões de miséria,
sem acesso às condições básicas para o seu desenvolvimento, o
que ressalta a falta de equidade demográfica. Isso reforça como
a pobreza está relacionada ao excludente modelo de desenvolvimento econômico, o qual converte a miséria em palco permanente dos países latino-americanos. A pobreza na América Latina
é uma questão histórica e estrutural, de caráter mais amplo, que
ordena, para seu melhor equacionamento, um novo estilo de
desenvolvimento econômico e político, com pilares básicos de
equidade social (TAPIA; HENRIQUE, 199-, p. 14).
Para Pilotti (1995), na realidade heterogênea da pobreza encontram-se os chamados núcleos duros, onde o infortúnio material
está mais arraigado e as situações de risco para a população infantojuvenil são maiores, considerando que na maioria dos lares
a mulher é a chefe da família, dada a ausência do cônjuge. Esses
núcleos constituíam, até 1992, entre 10% e 25% do total de lares
pobres e indigentes na América Latina, e as crianças menores de
quinze anos residentes nesses lares correspondiam a de 11% a
27% do total dessa população.
No Brasil, os indicadores sobre a pobreza não são menos drásticos. De acordo com a Rede Interagencial de Informações para a
Saúde – RIPSA - (2009), no Brasil, em 2007, de uma população de
118
184.517.553 pessoas, 59.493.090 tem renda entre 1 e 2 salários
mínimos e 32,24 % da população são considerados pobres ou
sem nenhuma renda. Conforme dados do UNICEF (2008), nosso
país possui a maior população infantil das Américas, com até
seis anos de idade. Crianças na primeira infância representam
11% de toda a população brasileira e os dados socioeconômicos
apontam que a grande maioria destas se encontra em situação
de pobreza.
Aproximadamente 11,5 milhões, ou seja, 56% de crianças brasileiras de até seis anos, vivem em famílias cuja renda mensal
está abaixo de meio salário mínimo per capta, o que as coloca
abaixo da linha da pobreza (IBGE, 2006). Do total de crianças
em situação de pobreza, 66% são negras, o que representa 7,5
milhões com até seis anos vivendo em famílias com renda de
menos de meio salário mínimo per capta. A população de adolescentes e jovens do País, de acordo com as informações do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2006), em
2005, era composta de cerca de 35 milhões de pessoas entre 15 e
24 anos, representando 19% da população brasileira; computada
a faixa entre 15 e 29 anos, os números sobem para mais de 50
milhões de adolescentes e jovens, representando mais de um
quarto (27%) do total dos brasileiros.
[Primeira infância]
Expressão utilizada pela UNICEF
que aponta para um período de
tempo compreendido entre zero
e seis anos de idade, não se referindo à perspectiva desenvolvimentista utilizada por algumas
teorias psicológicas do desenvolvimento humano.
Crianças até 6 anos
abaixo da linha
da pobreza no Brasil
56%
ou
11,5
milhões
(IBGE, 2006)
No Nordeste, Sul e no Sudeste do Brasil, as pessoas que vivem
nas ruas, especialmente crianças e adolescentes, são vítimas de
perversos modos de ocupação do espaço urbano, concentrado
nas mãos de poucos privilegiados. Há também a escassez de
moradias nas regiões metropolitanas, o que agrava a exclusão
de muitos que permanecem sem direito a habitação. Nas regiões
Norte e Centro-Oeste, as crianças e os adolescentes que vivem
nas ruas são oriundos, principalmente, do êxodo rural, filhos e
filhas de famílias que emigraram do Nordeste e do Sul. Os que
pertencem às camadas mais empobrecidas, tendo em vista a alta
119
taxa de desemprego, a crescente favelização das comunidades, a
falta de oportunidades para se constituírem dignamente no mundo, passam a se inserir no mercado de trabalho informal, indo
para as ruas em busca da sobrevivência pessoal e da geração de
renda para o sustento familiar.
Os riscos inerentes às precárias condições familiares, ao fracasso
escolar, à vivência na rua, entre outros fatores, passam a proporcionar o contato dessas crianças e adolescentes com o mundo
das drogas, da exploração sexual, do roubo, entre outros. Em
nosso país ainda há uma carência de estatísticas oficias acerca
das violências a que são submetidas crianças e adolescentes,
assim como, de estudos sistemáticos sobre essa temática.
No Brasil, em 2006, 1,7 milhão (15,5%) das crianças até três anos
freqüentavam creches. Os números de freqüência à pré-escola
são relativamente melhores, mas ainda demandam avanços. Em
todo o Brasil cerca de 7 milhões, ou seja, 76% de crianças entre
quatro e seis anos estão matriculadas na Educação Infantil (UNICEF, 2008). Contudo, ainda há muito que se avançar
para incluir os 9,5 milhões de crianças de até três
Crianças que freqüentavam
anos que não freqüentam unidades educacionais, e
creche ou pré-escola em 2006
os 2,2 milhões entre quatro e seis anos que não estão na pré-escola, pelo menos nos percentuais estaRegião
Brasil
belecidos pelo Plano Nacional de Educação. Soma-se
Sul
76%
ainda à questão, uma perspectiva racial que expõe
66%
a face discriminatória à qual as crianças estão expostas. Do total de crianças entre quatro e seis anos
fora da escola, 58% são negras, o que corresponde
15,5%
a mais de 1,3 milhões de crianças. Na Região Sul,
40,3%
em 2006 (UNICEF, 2008), 40,3% de crianças de zero a
três anos e 66,4% de quatro a seis anos freqüentaO-3 anos 4-6 anos
O-3 anos 4-6 anos
vam creche ou pré-escola. Com relação aos adoles(UNICEF, 2008)
centes é possível constatar um avanço na cobertura
120
educacional e nos anos de escolaridade em relação às gerações
passadas (o número de estudantes passa de 11,7 milhões em
1995 para 16,2 milhões em 2001). Entre 1995 e 2001, o número
de pessoas de quinze a vinte e quatro anos que freqüentavam
a escola cresceu 38,5%, o que corresponde ao acréscimo de 4,5
milhões de jovens à condição de estudantes.
Mas, mesmo assim, o país ainda não oferece aos adolescentes
oportunidades adequadas para a educação. Há problemas de oferta de educação pública nos graus Médio e Superior, persistindo
dificuldades para que amplas parcelas de adolescentes e jovens
perseverem na trajetória escolar, assim como graves problemas
de qualidade do ensino. Apesar do crescimento de freqüência,
mais da metade dos jovens (em torno de 60%) já não está na escola. No ano de 2005, 18,4 milhões de jovens entre quinze e vinte
e nove anos não haviam concluído o ensino básico e não estavam
freqüentando nenhuma escola. Desses, 12,5 milhões não tinham
sequer concluído o Ensino Fundamental. Apenas a metade, aproximadamente, chega ao Ensino Médio. Além disso, a defasagem
idade/série permanecia como grave problema, atingindo cerca de
60% dos jovens estudantes. (SOUTO; PONTUAL, 2007).
3.2 Breve mapeamento da
região Sul do Brasil
Conforme dados pesquisados no Laboratório de Estudos da Criança (LACRI) (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 2007a), no documento
Pesquisando a infância e a violência doméstica no Brasil: incidência e prevalência, 25.534 crianças e adolescentes sofreram,
no ano de 2007, algum tipo de violência doméstica. Na região Sul
houve 2.360 notificações, com maiores incidências nos municípios pesquisados em Santa Catarina, onde o destaque é a negli-
121
gência. No Rio Grande do Sul, boa parte das incidências registram
violências físicas. A Procuradoria Geral da República revela que
o número de notificações de violências contra crianças e adolescentes, em Curitiba, aumenta ano a ano. Segundo números da
Secretaria Municipal de Saúde, divulgados pela Rede de Proteção
à Criança e ao Adolescente, em 2006 foram registrados na capital
paranaense 3.390 casos de violências contra pessoas com idade
até 17 anos. Em 2005, houve registro de 2.437 casos, enquanto
em 2004 eram 1.974 ocorrências.
As entidades que integram a Rede de Proteção salientam que o
aumento do número de notificações não representa, necessariamente, que as violências contra crianças e adolescentes estão
se alastrando, mas que os mecanismos para denúncias e encaminhamentos estão ficando mais eficientes. No ano de 2006,
90% dos casos de violência contra crianças e adolescentes em
Curitiba ocorreram dentro de casa.
A negligência tem sido notificada em primeiro lugar, sendo
um avanço o reconhecimento de que a falta do cuidar é uma
forma grave de violência. Segue-se a ela a violência física,
depois a sexual e a psicológica, cuja identificação na forma
isolada também representa um conhecimento maior das características do desenvolvimento da criança e das marcas
que este tipo de agressão pode deixar. (PFEIFFER, 2007, p. 04).
Ainda segundo a pesquisa do LACRI (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 2007a), o Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (SIPIA), da Secretaria de Estado da Criança e da Juventude
(SECJ), registrou em 2007, 55.797 casos de violências infantis no
Paraná. Em Curitiba, no mesmo período, foram 3.569 registros de
maus-tratos dos pais sobre seus filhos. Até o final do primeiro
semestre de 2008, esse número já era de 1.336 na capital, conforme dados do Centro de Epidemiologia da Secretaria Municipal
122
da Saúde de Curitiba. Ainda segundo o SIPIA, que recebe dados
das infrações vindos de todos os Conselhos Tutelares, as denúncias de violação da convivência familiar e comunitária lideram as
ocorrências no Paraná, cujos casos ultrapassou vinte e três mil
durante o ano passado.
Pesquisa realizada nas Varas Criminais de Curitiba (ORDEM DOS
ADVOGADOS DO BRASIL – SEÇÃO DO PARANÁ, 2006) revelou que,
dos principais crimes praticados contra crianças e adolescentes,
92% dos agressores são homens, cerca de 50% das vítimas são
meninas de 6 a 10 anos e 33% das ocorrências correspondem
a casos de estupro. A pesquisa foi realizada pela Comissão da
Criança e do Adolescente da Seccional da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB) do Paraná, em onze varas criminais da capital,
com o auxílio de estudantes de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, que analisaram 99 processos de julho a
novembro de 2005.
O 3° Relatório Nacional sobre Direitos Humanos no Brasil, elaborado pela Universidade de São Paulo (2007b), chama a atenção
para o alto índice de denúncias de exploração e abuso sexual de
crianças e adolescentes na Região Sul. Apesar de abrigarem algumas das cidades com os melhores índices de desenvolvimento
humano do País, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná
“enfrentam sérios problemas” nessa área, “particularmente em
polos industriais e de turismo”. Como agravante, o Relatório da
USP acusa autoridades e agentes públicos de serem tolerantes
com os envolvidos em redes de exploração sexual de jovens.
De acordo com o relatório, o Disque-Denúncia de Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes recebeu, de maio de 2003
a janeiro de 2005, o seguinte número de denúncias nos três estados: 1.362 no Rio Grande do Sul, o que representa 14,4 denúncias
123
Disque-Denúncia – Disque 100
Criado para receber denúncias de
exploração sexual contra crianças
e adolescentes. Para mais informações, visite o endereço eletrônico
do Disque-Denúncia, que acessamos em dois de agosto de 2010:
<http://disque100.gov.br>.
por 100 mil habitantes; 286 em Santa Catarina (5,87 por 100 mil);
e 497 no Paraná (5,52 por 100 mil habitantes). O Relatório chama a
atenção para o fato de que a taxa de denúncias no Rio Grande do
Sul é superada apenas pelos estados do Amazonas (19,8 por 100
mil), Maranhão (15,3) e Distrito Federal (17,2). Entre 2000 e 2004,
de acordo com o Relatório, foram assassinadas em média cinco
pessoas por dia em solo gaúcho. Isso significa que 9.315 cidadãos
perderam suas vidas por ação de outra pessoa nesse período.
O aumento de 19% no número de mortes violentas, no Rio Grande
do Sul, é quase três vezes superior à média nacional, que ficou
em 6,6%. Tomando-se como base a taxa de homicídios por grupo
124
de 100 mil habitantes, o crescimento gaúcho foi de 14,2%, contra
uma média nacional de 1,1% no mesmo período. Os jovens estão
entre as principais vítimas do avanço da violência. Na população
gaúcha de 15 a 24 anos, o número de assassinatos cresceu um
terço, passando de 532 mortos em 2000 para 722 em 2004. O retrato das violências no Brasil registra uma média de 5,5 mortes
por hora. “A ineficácia do Estado alimenta o crime, a violência e a
insegurança da população”, diz trecho do Terceiro Relatório Nacional sobre Direitos Humanos (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 2007b).
O trabalho elaborado pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP
e pela Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos mostra que
a juventude vem sendo afligida por outro problema: o recrudescimento do trabalho infantil. A proporção de jovens entre 10 e 14
anos trabalhando, que havia caído de 21,6% para 7,4% entre 1995
e 2000 no Estado, em 2004 disparou para 13,4%. Em todo o país,
151.227 novos casos de trabalho infantil foram detectados de
2004 para 2005. Segundo o estudo, o Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil (PETI) e o Programa Bolsa-Escola (incorporado
ao Bolsa-Família) não foram suficientes para resolver o problema.
A violação da juventude inclui ainda o abuso sexual. O Relatório
aponta que as denúncias de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes no estado somaram 1.362 casos, entre 2003
e 2006. A taxa de 14,1 ocorrências por 100 mil habitantes coloca
o Rio Grande do Sul no quarto lugar do ranking brasileiro da exploração sexual. A pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças
e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil
(LEAL; LEAL, 2002), realizada pelo Centro de Referência, Estudos
e Ações Sobre Crianças e Adolescentes (CECRIA), com apoio da
Organização dos Estados Americanos (OEA), localizou 241 rotas
terrestres, marítimas e aéreas de tráfico para a exploração sexual, 131 internacionais, 78 interestaduais e 32 intermunicipais. No
Rio Grande do Sul, segundo Mariza Alberton (SCOTTI, 2008) coor-
125
denadora do Movimento Contra a Violência e Exploração Sexual
de Crianças e Adolescentes/RS, “o retrato também é alarmante:
a cada quatro horas uma criança é vítima de violência sexual”.
As meninas são as mais afetadas pelo crime. Conforme Alberton
(SCOTTI, 2008) “as estatísticas mostram que uma em cada quatro
garotas adolescentes sofrerá algum tipo de abuso”, destacando
que os principais casos são registrados em ambientes familiares.
A partir destes indicadores reafirmamos a importância deste Curso de Especialização – A GESTÃO DO CUIDADO PARA UMA ESCOLA
QUE PROTEGE – nos estados de SC, PR e RS, onde perdura o mito
genérico da “qualidade de vida”, sem problematizar as situações
de violências. Acreditamos no papel da escola como mais um
agente cuidador, capaz de participar da efetivação de políticas
de proteção a crianças e adolescentes e também de identificar e
denunciar outras situações à Rede de Proteção nos municípios.
Em Santa Catarina no ano de 1995 o Ministério Público Catarinense instaurou um Inquérito
Civil Público para apuração dos fatos e responsabilidades referentes às políticas estaduais e
municipais de atendimento às crianças e adolescentes no estado, autuando-se, para efeito
de celeridade, um procedimento para cada município. Diante dessa grande pesquisa-diagnóstica apurou-se que o Estado de Santa Catarina
vivenciava um quadro bastante dramático no
que dizia respeito a implantação das Políticas
Públicas na área da infância e adolescência. Ficou constatado que vários municípios no Estado não haviam concretizado, através da Lei Mu-
126
nicipal, a política de atenção que previa não só
a instalação dos Conselhos de Direitos e Conselhos Tutelares, como também os Programas
Socioeducativos. O Inquérito Civil Público, como
um instrumento jurídico contribuiu, na ocasião,
para que muitos municípios se mobilizassem
em torno das questões concernentes a nova
política prevista pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente. No entanto, com a mudança da
gestão política do Ministério Público, as ações
até então conduzidas através do Inquérito Civil
foram sendo abandonadas e, aos poucos, este
processo de mobilização foi perdendo força no
contexto estadual.
3.3 Sistema de Garantia de
Direitos
Nesse tópico vamos conhecer mais sobre a Rede de Proteção,
dando ênfase a história de sua constituição no âmbito do Sistema de Garantia de Direitos da infância e adolescência. E ainda
como se faz o controle das demandas e a participação das unidades na proposição de políticas públicas para essa população.
Para começar convidamos você a se perguntar:
•
Como contribuo para que o Estatuto da Criança e do Adolescente seja cumprido?
•
E de que maneira o Estatuto tem orientado minha prática
pedagógica?
Você sabia que o antigo Código de
Menores, Lei aprovada em 12 de outubro 1979, regia as situações previstas para o “menor em situação
irregular”? Que essa era a condição
atribuída àqueles de zero a 18 anos
de idade em situação de abandono,
maus-tratos, infração, dentre outras?
O Código de Menores (BRASIL, 2010), quando falava das medidas
de caráter preventivo, abrangia medidas de vigilância a todos os
indivíduos menores de 18 anos de idade, mesmo aqueles que
viviam na ocasião sob o pátrio poder, e ainda, não se encontravam em situação irregular. No entanto, as lutas da sociedade
civil culminaram com algumas conquistas, entre elas uma legislação sobre a proteção integral de crianças e adolescentes, para
respeitar sua condição peculiar de pessoa em estágio de desenvolvimento: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei n°
8.069, de 13 de julho de 1990). A partir do ECA, as crianças e os
adolescentes alcançam status de sujeitos de direitos, passam a
ser vistos como responsabilidade da família, da sociedade e do
Estado. Com ele, cabe ao Estado dispor de políticas públicas de
promoção e defesa dos direitos da infância e juventude.
Fortalece-se a noção de uma Doutrina de Proteção Integral que
deve assegurar à criança e ao adolescente acesso às condições
materiais e afetivas de cuidado. Uma doutrina que se insere em
127
[Vulnerabilidade]
Pode ser compreendida como a
chance de exposição das pessoas a fatores individuais, coletivos
e contextuais, que estão relacionados com a maior suscetibilidade ao adoecimento e, ao mesmo
tempo, com a maior ou menor
disponibilidade de recursos de
proteção. Fonte: Brasil (2006b).
[Risco social]
Fenômeno que compromete a
capacidade dos indivíduos de assegurar a si mesmos sua independência social (CASTEL, 2003 apud
JARDIM, 2007).
128
um Sistema de Garantia de Direitos (SGD) regido por princípios
e normas a respeito da política de atenção a essa população,
segundo os quais as ações serão promovidas pelo Poder Público, nas esferas Federal, Estadual, Distrito Federal e Municipal, e
também pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e pela
sociedade civil. Os três eixos do Sistema de Garantia de Direitos
são: Promoção, Defesa e Controle Social.
A multisetorialidade é uma característica das políticas e programas de atenção à criança e ao adolescente, e visa operar numa
perspectiva emancipatória, e não apenas voltada para as vulnerabilidades e riscos sociais.
Sob o marco da Doutrina da Proteção Integral, a criança e o adolescente passam a ter prioridade absoluta, e as ações da rede do
Sistema de Garantia de Direitos devem assegurar-lhes os meios de
se fazer valer todas as oportunidades que garantam o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social destes. Os direitos
fundamentais da doutrina compreendem: direito à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. É dever de todos os cidadãos prevenir
a ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente.
A garantia da prioridade inclui a primazia em receber proteção e
socorro em quaisquer circunstâncias; precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; preferência na
formulação e execução das políticas públicas sociais; prioridade
na destinação de recursos públicos para as áreas relacionadas
à proteção da infância e juventude (ECA); serviços especiais de
prevenção, atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão.
Devem também oferecer serviço de identificação de pais ou responsável, crianças ou adolescentes desaparecidos, e também,
proteção jurídica e social por entidades de defesa de seus direitos.
As diretrizes das políticas de atendimento compreendem: a municipalização do atendimento; e a criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente. Tais órgãos devem ter um caráter deliberativo, de controle das
ações em todos os níveis, garantindo a paridade na participação
popular através de organizações representativas, segundo leis
federal, estaduais e municipais. Do mesmo modo, as políticas de
atendimento darão prioridade à criação e à manutenção de programas específicos, seguindo os parâmetros de descentralização
político-administrativa, com a incumbência de prever a manutenção de fundos nacional (FIA), estaduais e municipais que estejam
ligados aos respectivos conselhos de direitos. As políticas referentes ao Sistema de Garantia de Direitos preconizam a integração operacional dos órgãos do Judiciário, tais como Ministério Público, Defensoria Pública, Segurança Pública e Assistência Social,
preferencialmente no mesmo local, com o objetivo de prestar
atendimento inicial ao adolescente a quem se atribui autoria de
ato infracional. A avaliação das políticas de atendimento à criança e ao adolescente precisa mobilizar a opinião pública, objetivando a participação ativa dos diversos segmentos da sociedade.
A condição legal de sujeitos de direitos que nasce com os parâmetros da Doutrina da Proteção Integral assegura que as crianças
e os adolescentes sejam reconhecidos como pessoas em peculiar
desenvolvimento, para que tenham a sua integridade preservada. A palavra “sujeito” refere-se à condição de autonomia e protagonismo que passam a ser considerados como fundamentais
para crianças e adolescentes. Com isso, a Rede de Proteção representa a instância principal que vai acolher meninos e meninas para garantir seus direitos.
Conforme descreve Carvalho (1997), a Rede sugere uma teia de
vínculos, relações e ações entre indivíduos e organizações. Elas
se tecem ou se dissolvem continuamente em todos os campos
129
E afinal, o que são Redes?
As redes são tecidos sociais que se articulam em torno de objetivos e focos de ação comuns, cuja teia é construída num
processo de participação coletiva e de responsabilidades compartilhadas, assumidas por cada um e por todos os partícipes.
As decisões são tomadas e os conflitos resolvidos democraticamente, buscando-se consensos mínimos que garantam ações
conjuntas (FALEIROS; FALEIROS, 2007, p. 79).
Como se caracteriza a gestão da Rede de Proteção à Criança e
ao Adolescente?
A Rede de Proteção de crianças e adolescentes é o conjunto
social constituído por atores e organismos governamentais e
não governamentais, articulado e construído com o objetivo de
garantir os direitos gerais ou específicos de uma parcela da população infantojuvenil. Como exemplos, podem-se citar a Rede
de Proteção de Adolescentes em Conflito com a Lei, a Rede de
Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes e a Rede de Proteção dos Meninos e Meninas de Rua, entre
outras. Essas redes podem ter abrangência municipal, estadual,
nacional ou internacional (FALEIROS; FALEIROS, 2007, p. 79).
da vida societária; estão presentes na vida cotidiana (nas relações de parentesco, nas relações de vizinhança, nas relações
comunitárias), no mundo dos negócios, na vida pública e entre
elas. A existência de múltiplas redes supre necessidades humano-sociais. Uma rede envolve processos de circulação de informações e conhecimentos, articulação, participação e cooperação.
A autora descreve ainda que as redes podem assumir características mais duradouras ou efêmeras, vínculos mais densos ou
mais tênues, simples ou complexos.
130
No período anterior a concepção da Doutrina de Proteção Integral,
do Sistema de Garantia de Direitos, o conceito de rede já era utilizado na gestão dos serviços sociais públicos. No entanto, o modelo
de gestão era centralizado e caracterizado pela hierarquização e
padronização na oferta de serviços. As terminologias utilizadas na
época tratavam de rede escolar, rede de unidades básicas de saúde,
rede hospitalar. Em sua grande maioria, elas eram subordinadas a
uma organização gestora centralizada. As redes não se configuravam como uma cadeia de serviços, como se propõe atualmente.
O atual conceito de redes engloba características como a gestão
e condução de políticas e programas sociais e incorpora novos
padrões de desempenho, nos quais as relações descentralizadas
e horizontais substituíram as tradicionais relações centralizadoras e hierárquicas; prioriza a negociação e a participação de todos os sujeitos envolvidos na ação pública; e o reconhecimento
da incompletude, assim como a necessária complementaridade
entre serviços e atores sociais. As políticas e os programas agora
são desenhados pelo prisma da multissetorialidade e interdisciplinaridade, substituindo os tradicionais recortes setoriais e
especializações estanques; as ações públicas estão fortemente
conectadas com o conjunto de sujeitos, organizações e serviços
da cidade. Não existem mais ações isoladas. Os beneficiários das
políticas públicas denominam-se cidadãos. No reconhecimento
mais denso da cidadania compreende-se uma relação consciente
entre direitos e deveres, assim como a garantia de interlocução
política e de exercício do controle social. Todos estes atores sociais na ação pública assumem um padrão de relação marcado
pela máxima interatividade, sendo a multissetorialidade característica marcante das políticas das redes.
Refere-se aos diversos setores que
compõe as políticas e programas sociais, visando uma atuação em Rede,
ou seja, setores de saúde, educação,
trabalho, renda, etc.
Visualizaremos no quadro 1, a seguir, a dinâmica da Rede de Proteção, dentro do Sistema de Garantia de Direitos estabelecidos
pelo ECA.
131
Funções
Objetivos
Instrumentos
Organismos
• Planejamento.
• Formular
políticas sociais
Promoção
orçamentária.
• Plano
públicas.
• Propor
e destinar recursos
orçamentários.
• Gerir
Fundos da Criança e
do Adolescente.
• Planejar
• Dotação
ações integradas.
de aplicação de
recursos dos Fundos da
Criança e do Adolescente.
• Elaborar
plano de garantia
de direitos (Conselhos
Estaduais e Municipais).
• Propor
e realizar
conferências estaduais e
municipais.*
• Secretarias
de governo
estaduais e municipais.
• Conselhos
de Direitos da
Criança e do Adolescente
(nacional, estaduais e
municipais).
• Fundo
da Criança e do
Adolescente (nacional,
estaduais e municipais).
• Secretarias
Atendimento
• Manter
programas e
serviços de saúde,
educação, assistência,
cultura, profissionalização,
proteção especial.
Controle/vigilância/
fiscalização
• Prestar
atendimento.
• Acompanhar,
fiscalizar
e avaliar programas e
serviços governamentais
e não-governamentais
da área da criança e do
adolescente.
• Execução
de programas
e serviços de saúde,
educação, assistência,
cultura, profissionalização,
proteção especial.
• Assistência
jurídica.
• Acompanhamento,
fiscalização e avaliação.
• Registro
de entidades de
atendimento (Conselhos de
Direitos Municipais).
de governo
estaduais e municipais
executoras de políticas
de saúde, educação,
assistência, cultura,
profissionalização e
proteção especial.
• ONGs
que mantêm
programas de atendimento.
• Ministério
Público.
• Conselhos
da Infância e da
Juventude.
• Fóruns
DCA.
* Essas conferências são fóruns de recomendações e avaliação das políticas para a infância e a
adolescência que devem ser realizadas articuladamente nos níveis nacional, estadual e municipal.
132
Funções
Objetivos
Instrumentos
Exibilidade/defesa
• Aplicação
de medidas
protetivas e sócioeducativas.
• Exigir
e defender direitos
assegurados em lei.
• Aplicação
de medidas
jurídicas e extrajudiciais
previstas em lei.
• Requisição
de serviços
(Conselhos Tutelares).
Organismos
• Ministério
Público.
• Conselhos
de Direitos.
• Conselhos
Tutelares.
• Defensorias
Públicas.
• Varas
da Infância e da
Juventude.
• ONGs
de defesa de direitos.
• Centros
de Defesa.
• Delegacias
de Polícia e
Delegacias Especializadas
(da Mulher e DPCA).
Responsabilização
• Justiça
• Investigação
• Responsabilizar
legalmente
os responsáveis pela
violação de direitos.
• Processo
• Aplicação
policial.
judicial.
de penalidades e
sanções de natureza civil,
criminal e administrativa.
(Varas da Infância
e da Juventude, Varas
Especializadas em
Crimes contra Crianças
e Adolescentes e Varas
Criminais).
• Centros
de Defesa.
• Ministério
Público.
• Defensorias
Públicas.
• ONGs
e Universidades
que oferecem assistência
Jurídica.
Quadro 1: ECA - Sistema de Garantia de Direitos.
Fonte: Faleiros e Faleiros (2007, p. 81).
133
Este quadro demonstra como a Rede de Proteção pode garantir
os Direitos previstos no ECA e responsabilizar os múltiplos organismos, governamentais e não governamentais, com diferentes
funções, objetivos e instrumentos de ação (FALEIROS; FALEIROS,
2007, p. 80). E para que esta Rede possa expressar uma gestão
do cuidado é preciso transpor seus principais desafios e limites
que esta política vem enfrentando.
3.4 A gestão da Rede e a gestão
do cuidado
Para finalizar este capítulo vamos conversar sobre as dinâmicas
instituídas na Rede de Proteção, buscando elencar os principais
desafios e os limites das políticas para uma gestão do cuidado.
Vamos iniciar com as seguintes questões: qual a interface entre
a gestão da Rede de Proteção e a gestão do cuidado? É possível
pensar as políticas e as instituições a partir do cuidado de si e do
cuidado do outro? E, ainda, é admissível uma gestão do cuidado
na Rede, pautada em princípios éticos, estéticos e afetivos?
Como vimos anteriormente, embora a Rede de Proteção deva
atuar de forma articulada aos setores e com diferentes funções,
poderes e recursos para dar conta dos processos complexos que
envolvem as situações de violências, quando nos debruçamos
sobre as pesquisas que refletem acerca da sua gestão, muitas
críticas são dirigidas às ações, dentre elas:
134
•
A falta de aporte teórico que explique tais processos, com
o objetivo de instituir novas práticas interventivas;
•
O número insuficiente de profissionais para atender à crescente demanda;
•
A falta de capacitação permanente destes profissionais;
•
A morosidade do sistema jurídico;
•
A falta de articulação entre os diversos setores envolvidos
com a Rede;
•
Condutas profissionais excludentes e discriminatórias;
•
A insuficiência de alternativas preventivas contra as violências.
Estas críticas vêm demonstrar que as práticas de proteção ainda
são insuficientes e desconectadas entre si, muitas vezes promotoras também de violências. Neste sentido, estão longe de uma
gestão do cuidado em que se pressupõem ações
[...] numa perspectiva transdisciplinar, ecológica, ética e estética que potencializa a vida como sacralidade vivida. A ética dessa gestão do cuidado, por sua vez, se configura como
estética da existência, por isso, rejeita qualquer conduta de
humilhação, qualquer justificativa para a indiferença a dor do
outro, qualquer forma de abandono daqueles e daquelas que
não podem caminhar pela vida sozinhos, qualquer conduta
jocosa no momento da escuta, qualquer prática de homogeneização das diferenças, qualquer adjetivação para anular as singularidades, qualquer mecanismo de silenciamento
das divergências, qualquer movimento que se refira ao outro
como objeto. (SOUSA; LIMA, 2004, p. 6).
De acordo com essa concepção, as instituições ocupam o lugar
social do cuidado, já que existem para garantir a cada criatura
humana a integridade de seu desenvolvimento. Para nós, gestão
do cuidado com a infância, a “[...] sua materialização se dá pelo
reconhecimento teórico-prático, na convivência, da legitimidade
das crianças, especialmente aquelas que são adulteradas pelos
135
Termo utilizado para se referir ao público que aguarda para ser atendido,
pois a demanda de necessidade de
atendimento supera o número de
casos em acompanhamento, uma
vez que as equipes são limitadas em
número de profissionais.
contextos de violências.” (SOUSA; LIMA, 2004. p. 7). Isto porque
as crianças e os adolescentes estão entre as populações mais
vulneráveis às violências, enfrentam demandas reprimidas em
todo País, dada a ausência de uma infraestrutura adequada para
acolher todos os casos denunciados e prevenir a incidência e a
reincidência. Uma situação agravada pela falta de profissionais
ou pela rotatividade, o que inviabiliza a continuidade dos atendimentos e encaminhamentos e deixa as famílias desamparadas até
que o novo profissional assimile as informações dos prontuários
da criança ou adolescente inseridos em contextos de violências.
A formação, por outro lado, tem se mostrado outro agravante, já
que muitos contratados não trazem qualquer experiência nesse
campo ou são recém-saídos da graduação, com precário conhecimento em atividades sociais. Falta-lhes, inclusive, a supervisão
psicológica de seu trabalho, isto é, não há profissionais para cuidar dos cuidadores. Para Azambuja (2004), os profissionais que
lidam com as consequências das violências vêem-se diante de situações complexas e confusas que se confundem com o pessoal
e o profissional, ameaçando papéis tradicionais já incorporados,
gerando inseguranças e negação.
As ações de enfrentamento destas violências exigem a desconstrução das concepções patriarcais, adultocêntricas, machistas e que se revelam nos encaminhamentos destinados
ao atendimento, mais particularmente quando estes são realizados pelas profissionais do sexo feminino. Que há uma
emergência na superação dos discursos jurídico-normativos,
os quais oportunizam a produção de outras violências, tais
como: prontuários não atendidos, filas de espera para julgar
a gravidade das violências sofridas, a intimidação de profissionais, os interesses político-partidários que insuflam a
descontinuidade das ações planejadas, entre outras (SOUSA;
LIMA, 2004, p. 7).
136
As violências, pelo “[...] caráter multidimensional, pela diversidade de suas manifestações, pela sua constituição fluida que
permite o esconder e o mostrar de um mesmo movimento, pelo
simbólico que elas evocam, pelo jogo de cumplicidades ambivalentes [...]” (SOUSA; LIMA, 2004, p. 7), são produzidas também
pela Rede de Proteção à medida que suas ações não conseguem
alcançar a totalidade das vítimas. As condutas excludentes e discriminatórias que transversalizam a Rede nos levam a indagar:
quais são os pressupostos que compõem o olhar sobre o fenômeno das violências, recorrentes e destrutivas?
Embora reconheçamos que há uma incidência significativa dos
casos de violências em populações empobrecidas, entendemos
que seus contornos e seus centros são plurais, pois são inúmeras nuances que lhes dão visibilidade. Por exemplo:
No estupro de uma criança, além da dor e da violação de sua
integridade, outros adereços adornam as cenas que, embora
repetitivas, são sempre singulares pelos sofrimentos que desencadeiam. Há o/a agressor(a), a vítima, a história de ambos,
a vulnerabilidade da criança, a permissividade do ambiente,
o desejo e o poder de um, a recusa possível do outro, as imagens, os gestos, as práticas. (SOUSA; LIMA, 2004, p. 7).
Para Sousa (2006, p. 44), as alternativas existentes não tem congregado atitudes de cuidado com as crianças e adolescentes,
pois
ainda são insuficientes os procedimentos pós-denúncia, porque faltam as condições necessárias para assegurar a todos
outros cuidados que contemplem: atenção a sua corporeidade, acompanhamento nutricional, intervenções afetiva, clínica, pedagógica, lúdica, entre outras para que atravessem o
trauma com menores danos emocionais e redescubram sua
identidade.
137
De acordo com as pesquisas de Sousa e Lima (2004, p. 8-9) evidenciou-se que o funcionamento das instituições criadas para
proteger as crianças e os adolescentes dos processos de violências tem-se pautado em discursos como o jurídico-normativo, o
médico-patológico e o pedagógico-assistencialista, como já apresentados no Módulo I.
Nossa reflexão quer provocar outras que assumam a defesa incondicional de crianças e adolescentes, refutando os discursos e
as práticas que têm se perpetuado como explicações das violências. São poucas as estratégias eficazes que têm surgido como
alternativas de intervenção e cuidado. Além disso, encontramos
vários locais onde coexistem práticas de heranças arraigadas,
que remetem a um passado assistencialista e repressivo, a uma
cultura racista e machista, no que diz respeito ao atendimento
clientelista e pouco transparente nas relações entre o Estado e a
Sociedade. Por sua vez, as Redes de Proteção mantêm a luta para
fortalecer a capacidade de intervenção e a avaliação dos serviços
públicos, ao mesmo tempo em que procura indicar outros serviços coerentes com sua proposta (BRASIL, 2004).
As Redes de Proteção, como vimos anteriormente, são compostas pelos/as:
•
138
Conselhos dos Diretos da Criança e do
Adolescente;
•
Conselhos Tutelares;
•
Varas da Infância e da Juventude;
•
Promotorias da Infância e Juventude;
•
Delegacias de Proteção à Criança e ao
Adolescente;
•
Fóruns dos Direitos da Criança e do
Adolescente;
•
Centros de Defesa;
•
Defensoria Pública;
•
Secretarias de governo estaduais e municipais executoras de políticas públicas;
•
Organizações não Governamentais (ONG).
Existem pelo menos quatro setores importantes que congregam
todas essas instituições, são eles: Justiça, Assistência Social, Saúde e Educação. Neste sentido, na gestão das Redes há uma maior
integração entre a Justiça e a Assistência Social no que diz respeito à proteção de crianças e adolescentes, enquanto a Saúde e
a Educação parecem atuar à margem do que as políticas públicas
têm determinado. Algumas questões dizem respeito às dificuldades dos profissionais da saúde e da educação responsabilizaremse pelas denúncias dos casos de suspeita de violências, conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente. Profissionais
da saúde, por exemplo, justificam que não há formação sobre
este tema para auxiliar na identificação de situações de violências, por outro lado há também o argumento de que a relação
médico-paciente requer sigilo de informações, o que contribui
para desresponsabilizá-los pela atuação em Rede.
Já na educação argumenta-se que a falta de formação adequada dificulta tanto a identificação, quanto a abordagem com a
criança e os familiares quando as situações de violências vêm à
tona, deixando os profissionais vulneráveis. Entendemos que essas situações ilustram a desarticulação das Redes e a importância de escolhas que possam além de capacitar os profissionais,
mobilizar todos os setores para atuarem em sintonia efetiva na
proteção de crianças e adolescentes em situações de violências.
Com relação à prevenção, voltar-se-ia para uma gestão do cuidado, a fim de atuar de forma educativa e informativa com crianças, adolescentes e seus familiares, na consolidação de condutas
relacionais mais humanas. Para Maturana (2004), nos espaços
de relações, as emoções são classes de condutas relacionais. Ou
seja, em nosso viver no espaço emocional, onde um e outro se
encontram, está o núcleo de onde surge um e outro. As emoções
estão no curso dos modos de fazer e nos convidam à seguinte
reflexão: como os educadores podem ser animados a atuar na
139
proteção e prevenção das violências contra seus alunos? Por que,
nos dias atuais, o papel da Escola na Rede de Proteção a crianças
e adolescentes ainda não alcançou a importância devida? Quais
as dificuldades que os educadores encontram para participar das
ações de proteção, prevenção e dos encaminhamentos aos serviços especializados? No relato a seguir temos um exemplo de
como a escola lida com as violências. É um depoimento que
retrata como não tem sido fácil para a Escola permanecer ausente das demandas sociais, ou eximir-se das responsabilidades
institucionais e jurídicas na proteção dos sujeitos violentados ou
imersos em circunstâncias vulneráveis.
140
Depoimento
Atuo como Especialista em Educação Especial em uma rede
municipal de ensino da Grande Florianópolis/SC, na qual realizo
um trabalho de orientação, supervisão e formação na área da
educação especial, acompanhando tudo referente à inclusão no
município, não somente de deficientes, mas de toda e qualquer
criança que esteja nas escolas e centros de educação infantil. O
que mais me impressiona é estar vivenciando uma realidade de
crianças e adolescentes em escolas do município que sofrem
os mais diversos tipos de violência. Cito um caso vivenciado
ano passado, no qual nós, as especialistas, depois de procuradas
para discutir alguns casos de violência com crianças de uma escola oriunda de comunidade carente, procuramos auxílio junto
ao Conselho Tutelar do município, no primeiro momento, e fizemos uma denúncia após o relato constante de abuso sexual de uma aluna com deficiência à professora do Atendimento
Educacional Especializado. O Conselho Tutelar, ao intervir no
caso, disse de onde partia a denuncia e colocou a escola em situação delicada, já que principalmente a mãe, culpou a professora pelas “mentiras” do abuso. Uma das exigências por parte da
família foi a troca de professor o que foi concedido pela coordenação da época. Enquanto profissional da educação especial,
envolvida no processo de inclusão da rede municipal, me senti
“podada”, por tentar auxiliar essa aluna que convive com uma
realidade dura e cheia de percalços. Diante do acontecimento,
a família reestruturou o processo, a mãe parou de trabalhar e
cuida hoje da menina e esta está em acompanhamento pelo
Programa Sentinela. Vale salientar, que neste caso, a escola teve
o papel de “acusador” e fica a dúvida, qual o papel da escola
neste contexto? Que responsabilidades nós, como educadores,
temos em relação a esses casos de violência?
∞∞
141
São violências muitas vezes dissimuladas pela “síndrome do segredo”, uma espécie de “acordo de silêncio” entre abusador e
vítima, que muitas vezes impede a quebra deste pacto por tempo ilimitado e causa muito sofrimento às vítimas. Esse “segredo”
pode ser desvelado na escola, seja pelos sinais emitidos pelo
estudante ou pela confiança em alguns professores. O ambiente
escolar é um dos lugares possíveis para a constatação e intervenção em casos de violências e o profissional da educação é
aquele que pode auxiliar no cuidado das cicatrizes, inevitavelmente deixadas pelas várias formas de abuso na vida de crianças
e adolescentes.
O desafio é rever nossos conceitos e preconceitos, bem como
ativarmos nossas responsabilidades sociais para protegermos
crianças e adolescentes, apesar dos inúmeros encargos que recaem sobre os educadores no cotidiano das escolas. Decifrar e
traduzir os pedidos de socorro de quem vive tais situações antecede a decisão de denunciar. Nestes casos, denunciar não significa passar o caso adiante, mas obter e apresentar informações
relevantes para tornar eficientes as medidas de atenção pelos
órgãos competentes. Como um dever de todos, a atitude de cada
educador pode fazer a diferença para garantir a integridade, a
saúde física e psíquica de muitas crianças e adolescentes. Estamos convencidas que uma das funções da escola é somar na
Rede e proporcionar aos estudantes práticas educativas que “[...]
utilizem a ética da qualificação afetiva como substrato para suas
ações [...]” (SOUSA, 2006, p. 45), ou seja, que construam informações dialógicas para que eles se sintam encorajados a falar
das violências.
Se a história inteira está em cada ser humano, tudo está em
nós como potência e os processos educativos vão culturalmente modulando cada algoritmo de nossa trajetória, criando espaços distintos que podem fundar os postulados de
142
uma conviviabilidade ético-estética entre as pessoas e arregimentar nossa dimensão demens para criativamente, qualificar a sapiência que também nos conforma (SOUSA, 2006,
p. 42, grifo nosso).
Com base neste cenário recortado para ilustrar a problemática
das violências que afetam a população infantojuvenil, e enfocando a dificuldade das políticas públicas em assegurar uma gestão
do cuidado eficiente, queremos criar mais espaços de reflexão
sobre o significado da qualificação entre educadores e outros
profissionais, com o objetivo de alargar as condições de intervenção.
Para Morin (2002, p. 59-60), “o ser
humano é um ser racional e irracional,
capaz de medida e desmedida; sujeito
de afetividade intensa e instável. [...]
E quando, na ruptura de controles
racionais, culturais, materiais, há confusão entre o objetivo e o subjetivo,
entre o real e o imaginário, quando
há hegemonia de ilusões, excesso desencadeado, então o Homo demens
submete o Homo sapiens e subordina
a inteligência racional a serviço de
seus monstros.
E como podemos pensar nestas ações preventivas? De que maneira a interlocução da Escola com Rede pode auxiliar na criação
de um projeto de intervenção com parcerias?
Você pode entrar em contato com as instituições de sua cidade
que acompanham diretamente crianças e adolescentes envolvidos em contextos de violência e pensar alternativas preventivas
como:
•
Mobilizar toda a sua comunidade para o tema das violências e construir um projeto de orientação aos familiares;
•
Junto a comunidade escolar, você pode propor: discussões
sobre o tema das violências para construir o Projeto Político Pedagógico da escola; organizar filmes, palestras, oficinas com os professores; e organizar atividades com as
crianças e adolescentes.
Estas são algumas sugestões, mas você pode construir outras
junto com seus colegas na instituição.
Compreendemos que é possível pensar na Rede de Proteção a
partir de uma gestão do cuidado, onde possamos priorizar as re-
143
lações entre os sujeitos; promover condutas de convivência que
tenham como centralidade a vida; articular a co-responsabilidade social das instituições a partir de práticas inclusivas; enfim,
gestar outras possibilidades de acolher, cuidar e desenvolver a
vida de crianças, adolescentes e seus familiares envolvidos em
contextos de violências. E visualizamos que a Escola tem uma
importante contribuição neste processo.
»»Em síntese...
Neste capítulo foi possível continuar a trilhar os caminhos explicativos de nossas reflexões conjuntas, estabelecendo agora, um
diálogo com os cenários da América Latina que envolve crianças e adolescentes em contextos de violências. Nesses cenários
os indicadores socioeconômicos apontam grandes dificuldades
para a superação da pobreza e das conseqüências decorrentes
deste estado onde milhões de pessoas vivem em condições de
miserabilidade. Destacamos que no Sul do Brasil os indicadores
apontam para altos índices de denúncias de violências, principalmente relacionadas à crianças e adolescentes. Mas contraditoriamente, os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e
Paraná agregam algumas das cidades com os melhores índices
de desenvolvimento humano do país.
Conhecemos um pouco sobre a Rede de Proteção, sua conceituação e caracterização, dando ênfase a sua constituição no âmbito
do Sistema de Garantia de Direitos da infância e adolescência.
Refletimos sobre as dinâmicas instituídas na Rede de Proteção,
buscando os fundamentos teóricos que tornem possível construir práticas de uma gestão do cuidado que enfatize o lugar da
escola na proteção e na prevenção das violências contra crianças
e adolescentes.
144
Essa é a base para avançarmos ao capítulo IV onde o objetivo é
destacar a legislação e políticas públicas que regem o Sistema de
Garantia de Direitos, seus encontros e desencontros, a fim de realçar sua importância histórica e social na proteção de crianças,
adolescentes e seus familiares.
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148
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Instituto de Psicologia.
Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do
Desenvolvimento e da Personalidade. Laboratório de Estudos
da Criança. Pesquisando a infância e a violência doméstica no
Brasil: incidência e prevalência. São Paulo, 2007a.
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Núcleo de Estudos da Violência. 3°
Relatório Nacional sobre Direitos Humanos no Brasil. São Paulo,
[2007]b. Disponível em <http://www.nevusp.org/downloads/
down099.pdf> Acesso em: 11 set. 2009.
149
150
[4]
Sistema de Garantia de Direitos na
formulação de políticas públicas
Daniela Motink Agostini
AGOSTINI, Daniela Motink. Sistema de Garantia de Direitos na formulação
de políticas públicas. In: ZAPELINI, Cristiane Antunes Espindola (Org.).
Módulo 2: violências, Rede de Proteção e Sistema de Garantia de Direitos.
Florianópolis: NUVIC-CED-UFSC, 2010. cap. 4.
[Objetivo desse Capítulo]
Destacar as principais leis que regem o Sistema de Garantia de Direitos para a formulação e controle de políticas públicas, a fim de realçar
sua importância histórica e social na proteção de crianças, adolescentes e familiares. Situar limites e possibilidades na articulação entre
as áreas do direito, da assistência social, da saúde e da educação, na
atenção dos sujeitos em situações de violências.
151
4.1 Legislação e políticas
públicas: encontros e
desencontros
Para E. Lévinas, ser é ter cuidado, ter cuidado consigo, com
os outros, com o mundo: ‘Cuidado do ser humano que se
estende ao outro ser humano e expressa a solicitude de um
para o outro’. Este cuidado com os outros se traduz por uma
solicitude pelo seu comer, seu vestir, seu beber, seu abrigo.
(LACOMBE, 2005)
Nossa condição biológica nos torna dependentes de proteção e
de cuidados essenciais para que possamos acoplar a ela a nossa humanidade em processo, para que possamos ser humanos.
Sem guarida e carentes de afetos, de alimentação, da socialização primária que a vida coletiva nos proporciona, entre outras
necessidades, não podemos viver, por vezes, sobreviver. Não suportamos o sofrimento de forma duradoura, a amargura nascida
de padrões destrutivos de convivência nos dilacera. Quanto às
crianças e aos adolescentes, a presença do adulto é indispensável para que eles se sintam protegidos, nutridos, a fim de que
percebam que sua presença desperta interesse em seus educadores. Não existimos na solidão do abandono, não nos tornamos
seres humanos felizes se criados envoltos em violências. Nesse
sentido, a legislação tem um papel político de afirmar para todas
as pessoas a segurança, as condições materiais elementares para
a conservação da vida com dignidade, os direitos comunitários.
Legislação e políticas públicas só têm sentido quando coincidem;
para tanto, dependem de nossas ações como educadores para
superarem seus desencontros na acolhida de crianças e adolescentes em situações de violência.
152
Políticas públicas
Por políticas públicas entendemos o conjunto
articulado de decisões orientadas para a resolução de problemas sociais ou para a realização de um objetivo considerado de interesse
público. As decisões constituem um padrão de
atividade governamental a respeito do assunto
e representam aquilo que é de fato realizado,
não um conjunto de intenções. As políticas públicas são desenvolvidas por instituições governamentais e seus responsáveis, por meio de
processos políticos. Sua implementação pode
ou não envolver organizações da sociedade civil (empresas e terceiro setor) para a decisão
de elaboração legal e os atos subsequentes relacionados à implementação, à interpretação e
ao cumprimento da lei. Um problema é considerado público quando um grupo considerável
de pessoas precisa receber atenção por parte
do governo, e este, por sua vez, passa a prestar
atenção no referido problema. Para se entender o ciclo de formação da política pública, é
preciso considerar alguns procedimentos, que
não necessariamente devem estar em ordem,
sendo eles: identificação do problema, inclusão
na agenda, formulação de políticas, além da
decisão, implementação e a sua avaliação. Para
cada uma dessas situações, podemos abordar
diversas questões sobre a relevância, legitimidade, representação social e todos os temas
ligados a nossa qualidade de vida.
Fonte: Rede de Cooperação da Cantareira (2010).
Você já havia pensado como os movimentos sociais são importantes para a exigência de políticas públicas de direitos? Então
reflita como a legislação pode garantir o cumprimento de direitos
e deveres, os quais têm como princípio a melhoria da qualidade
de vida de todos os cidadãos. Essas reflexões nos convidam ao
compromisso com a vida pública para que possamos encarar os
contextos de exclusões e as contradições que operam entre a lei
e a política, para articular, cada vez mais, os diversos setores da
sociedade em prol do bem comum. Para nos auxiliar no processo
de compreensão, vamos apresentar um breve histórico do marco
legal de enfrentamento das violências contra crianças e adolescentes; problematizar como a intersetorialidade tem se articulado no Sistema de Garantia de Direitos, os principais limites da
legislação em vigor e das políticas públicas.
153
De acordo com Mariana Lacombe (2005, p. 2),
apenas um passo incomum, um salto, apesar do medo, da
dor, do risco e do peso da responsabilidade, (que é literalmente resposta a um chamado) pode nos permitir modificar uma representação, ampliando, revendo, aprofundando,
conversando com nossas representações anteriores, sobre o
mundo, sobre os outros, sobre nós mesmos. Apenas um salto
pode nos levar a perceber que a realidade possui vários níveis. A física contemporânea demonstrou a descontinuidade
entre os níveis quântico e macrofísico. [...]. Para começar, dizia W. Yankelecitch, é preciso coragem. Não se ensina a começar. Aprender a ser sempre remete em última instância
a uma decisão pessoal daquele que aprende e se podemos
torcer pela decisão, distribuir metodologias, conselhos, afeto
ou por vezes até aumentar a crise para ver se o outro acorda,
nunca podemos decidir aprender a ser no lugar de ninguém.
É dessa compreensão que necessitamos, pois apesar dos entraves estruturais e subjetivos da sociedade em que vivemos, com
seus aparatos econômicos, políticos e culturais, está em cada
um de nós a possibilidade de fazer escolhas em defesa do outro,
de proteger a vida em sua diversidade. Cada um de nós guarda
consigo a potência de ser de outros jeitos, de autodesafiar-se a
mudar e a recriar as realidades das quais somos partícipes.
4.1.1 Lógicas dos serviços de enfrentamento das violências no Brasil
Quais os marcos lógicos e legais dos serviços de enfrentamento
das violências e as principais normativas internacionais que embasaram este movimento no Brasil? O que se denomina marco lógico tem como normativas internacionais uma ordem cronológica:
154
a.Declaração de Genebra – 1924: reconhecida pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (nomeadamente
nos artigos 23° e 24°), pelo Pacto Internacional sobre os
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (nomeadamente o
artigo 10°);
b.Declaração Universal dos Direitos Humanos – 1948: que arrola os direitos e deveres fundamentais de todo ser humano;
c.Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem –
1948: resolução XXX, Ata Final, aprovada na IX Conferência
Internacional Americana, em Bogotá, em abril de 1948. Cita
os direitos essenciais do homem que os Estados americanos devem reconhecer;
d.Declaração Universal dos Direitos da Criança – 1959: estabelece os direitos universais das crianças;
e.Convenção Internacional dos Direitos da Criança – 1989:
adotada pela Resolução n° L. 44 (XLIV) da Assembleia Geral
das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989 e ratificada pelo Brasil em 20 de setembro e 1990. Enuncia um
amplo conjunto de direitos fundamentais, civis e políticos,
e também os direitos econômicos, sociais e culturais de
todas as crianças, bem como as respectivas disposições
para que sejam aplicados;
f. Declaração Mundial sobre a Sobrevivência, a Proteção e o
Desenvolvimento das crianças nos anos 90 – 1990: onde o
bem-estar de todas as crianças torna-se um compromisso e
é assumido por 71 presidentes e chefes de Estado, além de
representantes de 80 países, durante o Encontro Mundial de
Cúpula pela Criança, realizado nos dias 28 e 29 de setembro
de 1990, na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque;
155
g. Plano de ação para implementação da Declaração Mundial
sobre a sobrevivência, a proteção e o desenvolvimento da
criança nos anos 90 – 1990: cujo objetivo é orientar os governos nacionais, as organizações internacionais, as agências bilaterais de assistência, as organizações não governamentais (ONGs), e a todos os outros setores da sociedade,
na formulação dos seus programas de ação para garantir
a efetivação da Declaração do Encontro Mundial de Cúpula
pela Criança;
h. Declaração de Viena e Programa de Ação – 1993: reafirma
o empenho de todos os Estados em cumprirem as suas
obrigações no que se refere à promoção do respeito universal, da observância e da proteção de todos os direitos
do homem e liberdades fundamentais para todos, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, com outros instrumentos relacionados com os Direitos do homem e com
o direito internacional;
i. Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de
Menores – 1998: o objetivo dessa Convenção é a proteção
dos direitos fundamentais e dos interesses superiores “do
menor”; é a prevenção e sanção para o tráfico internacional de menores de idade, bem como a regulamentação de
seus aspectos civis e penais;
j. Protocolo de San Salvador – 1998: é um protocolo adicional
à Convenção Interamericana Sobre Direitos Humanos em
Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais;
k. Declaração de Estocolmo – 1998: que apresenta uma Agenda de Ação para prevenção e proteção da exploração sexual
de crianças e adolescentes, bem como medidas para recuperação e reintegração de vítimas de abuso;
156
l. Relatório da Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre a Criança – 2002: documento resultante
da Sessão Especial sobre a Criança que propõe um acordo
unânime em torno de uma nova agenda para as crianças
do mundo, incluindo 21 metas e objetivos específicos para
saúde infantil, educação e proteção;
m. Protocolos Facultativos à Convenção sobre os Direitos da
Criança – 2003: relativos ao envolvimento de Crianças em
Conflitos Armados e à Venda de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia Infantil (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2009).
No Brasil destacamos como marcos lógicos:
a.Programa Nacional de Direitos Humanos I (PNDH I) – 1996:
que traz as propostas de ações governamentais, a fim de
fortalecer a democracia, promover e aprimorar o sistema
de proteção aos direitos humanos;
b.Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil – 2000: instrumento de garantia e defesa de
direitos de crianças e adolescentes, a fim de criar, fortalecer e implantar um conjunto articulado de ações e metas
fundamentais para assegurar a proteção integral dessa população em situação ou risco de violência sexual;
c.Guia de Atuação frente a maus-tratos na infância e na adolescência/SBP – 2001: apresenta orientações para pediatras
e demais profissionais que trabalham com crianças e adolescentes;
d.Programa Nacional de Direitos Humanos II (PNDH II) – 2002:
uma atualização do PNDH I, esse programa deixa de circunscrever as ações propostas a objetivos de curto, médio
157
e longo prazo, e passa a ser concretizado por meio de planos de ação anuais, os quais definirão as medidas a serem
adotadas, os recursos orçamentários destinados a financiálas e os órgãos responsáveis por sua execução;
e.Política Nacional de Assistência Social – 2004: consolida as
disposições da Norma Operacional Básica/SUAS e estabelece a gestão da Assistência Social no país;
f. Guia Escolar: métodos para identificação de sinais de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes – MEC/
SEDH – 2004: dá orientações e informações aos profissionais da educação, sobre o abuso e a exploração sexual de
crianças e adolescentes;
g.Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
(CPMI) - 2004: para investigar as situações de violência e redes de exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil;
h.Matriz Intersetorial de Enfrentamento da Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes – SEDH/UNICEF/
SER/Comissão Intersetorial de Enfrentamento da Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes/Grupo de
Pesquisa sobre Violência e Exploração Sexual Comercial
de Mulheres, Crianças e Adolescentes – UNB – 2004: levantamento de dados sobre a Exploração Sexual Comercial de
Crianças e Adolescentes;
i. Norma Operacional Básica – NOB/SUAS – 2005: disciplina a
operacionalização da gestão da Política Nacional de Assistência Social;
j. Relatório do Monitoramento 2003-2004 – Plano Nacional de
Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil – 2006:
elaborado pelo Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, sobre o mo-
158
nitoramento de todas as regiões brasileiras para aplicar o
Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil;
k.Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos – 2006:
Versão atual do PNEDH. A estrutura do documento estabelece concepções, princípios, objetivos, diretrizes e linhas
de ação, contemplando cinco grandes eixos de atuação:
Educação Básica; Educação Superior; Educação Não Formal;
Educação dos Profissionais dos Sistemas de Justiça e Segurança Pública e Educação e Mídia;
l. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito
de Crianças e Adolescentes à convivência Familiar e Comunitária – 2006: destinado à promoção, proteção e defesa do
direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e
comunitária e reflete a decisão de dar prioridade a essa
temática, com vistas à formulação e implementação de políticas públicas que assegurem a garantia dos direitos das
crianças e adolescentes, de forma integrada e articulada
com os demais programas de governo;
m. Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – 2006: publicada no decreto presidencial no 5.948 de
26/10/2006. Estabelece princípios, diretrizes e ações de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas e de atendimento
às vítimas, conforme o Protocolo Adicional à Convenção
das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de
Pessoas, em especial Mulheres e Crianças;
n.Caderno Temático: Direitos Sexuais são Direitos Humanos
– 2006: organizado pelo Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, para
trazer esclarecimento acerca da violência sexual contra
159
crianças e adolescentes no cenário brasileiro e promover a
reflexão de todos;
o.Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
(PNETP) 2008: publicado no decreto presidencial n° 6.347
de 08/01/2008. Este decreto aprova o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - PNETP e institui Grupo
Assessor de Avaliação e Disseminação do referido Plano;
p.Centro de Referência Especializada em Assistência Social
– CREAS: guia de orientação n° 1: para subsidiar estados
e municípios na implantação dos CREAS. Tem como conteúdo: organização e gestão dos CREAS; cofinanciamento
do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS); serviços
oferecidos; instalações físicas; composição, formação e
capacitação da equipe que atua nos serviços elencados;
monitoramento e avaliação dos processos de trabalhos em
execução (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2009).
Além dessas instâncias temos um conjunto de leis que compõem
os marcos legais que regulam todas as políticas existentes no
enfrentamento às violências contra crianças e adolescentes no
país (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2009).
a.Decreto-Lei (Código Penal) 2.848 – 07/12/40 – Presidência da
República (PR): Institui o Código Penal;
b.Constituição Federal do Brasil – 05/10/88 – Assembleia Nacional Constituinte – (ANS): conjunto de normas, regras e
princípios supremos do ordenamento jurídico do país;
c.Lei 8.069 – 13/07/90 – (PR): dispõe sobre o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) e outras providências;
d.Decreto 99.710 – 21/11/90 – (PR): promulga a Convenção
sobre os direitos da criança;
160
e.Lei 8.242 – 12/10/91 – (PR): cria o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e dá outras
providências;
f. Lei 8.642 – 31/03/93 – (PR): dispõe sobre a instituição do
Programa Nacional de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente (PRONAICA) e dá outras providências;
g.Lei 8.742 – 07/12/93 – (PR): Lei Orgânica da Assistência Social: dispõe sobre a Organização da Assistência Social e dá
outras providências.
h.Resolução 16 – 09/11/93 – (CONANDA): cria a Comissão de
Combate à Violência contra Crianças e Adolescentes;
161
i. Resolução 43 – 29/10/96 – (CONANDA): recompõe o Grupo
de Trabalho para analisar a compatibilização das ações dos
Ministérios, com objetivo de identificar os serviços, os programas e os projetos relacionados, especialmente, aos três
eixos temáticos do CONANDA: Trabalho Infantojuvenil; Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes e Adolescente
Autor de Infração e Aplicação das Medidas Socioeducativas;
j. Lei 9.455 – 07/04/97 – (PR): define os crimes de tortura e dá
outras providências;
k.Lei 9.970 – 17/05/00 – (PR): institui o dia 18 de maio como
o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual
de Crianças e Adolescentes;
l. Portaria 1.968 – 25/10/01 – (Ministério da Saúde - Gabinete
do Ministro): dispõe sobre a comunicação, às autoridades
competentes, de casos de suspeita ou de confirmação de
maus-tratos contra crianças e adolescentes atendidos nas
entidades do Sistema Único de Saúde;
m. Lei (Código Civil) 10.406 – 10/01/02 – (PR): institui o Código Civil;
n.Decreto Legislativo 230 – 29/05/03 – (Senado Federal): aprova os textos dos Protocolos Facultativos à Convenção sobre
os Direitos da Criança, relativos ao envolvimento de crianças em conflitos armados e à venda de crianças, à prostituição infantil e à pornografia infantil, assinados em Nova
Iorque, em 6 de setembro de 2000;
o.Decreto 5.007 – 08/03/04 – (PR): promulga o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança referente
à venda de crianças, à prostituição infantil e à pornografia
infantil;
162
p. Decreto 5.017 – 12/03/04 – (PR): promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças;
q. Decreto 5.085 – 19/05/04 – (PR): define as ações continuadas de assistência social;
r. Portaria 936 – 19/05/04 – (Ministério da Saúde - Gabinete do
Ministro): dispõe sobre a estruturação da Rede Nacional de
Prevenção da Violência e Promoção da Saúde e a Implantação e Implementação de Núcleos de Prevenção à Violência
em Estados e Municípios;
s. Resolução 145 – 15/10/04 – (Ministério do Desenvolvimento
Social – MDS/CNAS): Conselho Nacional de Assistência Social aprova a Política Nacional de Assistência Social;
t. Decreto s/n – 19/10/04 – (PR): cria Comissão Intersetorial
para Promoção, Defesa e Garantia do Direito de Crianças
e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, e dá
outras providências;
u. Resolução 130 – 15/07/05 – (Conselho Nacional de Assistência Social): aprova a Norma Operacional Básica da Assistência Social – NOB/SUAS;
v. Resolução 03 – 29/08/05 – (MDS/CIT – COMISSÃO INTERGESTORES TRIPARTITE): considera a Matriz Intersetorial de Enfrentamento da Exploração Sexual Comercial de Crianças e
Adolescentes como referência;
w. Decreto 5.948 – 26/10/06 – (PR): aprova a Política Nacional
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e institui Grupo de
Trabalho Interministerial com o objetivo de elaborar proposta do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas – PNETP.
163
Os documentos aqui elencados têm como intencionalidade, além
de proporcionar a divulgação aos educadores em formação, evidenciar que as violências não resultam da falta de legislações,
protocolos e normativas. Estas estão embrenhadas em uma dinâmica relacional muito complexa e afetam o tecido social e as
relações interpessoais; assim, a possível superação de suas práticas exige de todos nós uma luta sem tréguas, ações cotidianas,
compromisso público, disposição afetiva de cuidado. A lei pode
ser considerada indispensável para regular a vida coletiva, mas
se não educarmos os sujeitos para uma cultura de paz, ela permanecerá anacrônica em seus objetivos e princípios.
[!]
Relembre as características
do "discurso da indignação
inútil" com a leitura do primeiro
capítulo do livro Módulo 1: Gestão do
cuidado e educação biocêntrica.
Eis porque permanece urgente criar movimentos em prol da
atenção às crianças e aos adolescentes imersos em contextos
de violências. Contudo, sem o conhecimento dos documentos
legais, sem a reflexão coletiva e a inserção deste conteúdo nas
atividades pedagógicas da escola, as atitudes ficam limitadas, na
maioria das vezes, aos discursos da indignação inútil. Além de
não contribuir para uma compreensão crítica, dificulta entender
como as políticas públicas estão oficialmente organizadas. Portanto, os marcos nacionais e internacionais são relevantes para
subsidiar estados e municípios na promoção das políticas, no
fortalecimento das lutas para constituir uma Rede Nacional de
atenção a toda forma de violência praticada contra crianças e
adolescentes, contra todos os organismos vivos.
Esses documentos ratificam a necessidade de que as ações entre
os diversos setores sejam articuladas, a fim de dinamizar e qualificar as práticas de atenção e proteção. Entretanto, no Brasil, a
Rede de Proteção tem se constituído de maneira bem diferenciada por causa de suas dimensões e condições regionais. Nas
regiões Sul e Sudeste há uma maior efetivação e articulação das
políticas, enquanto nas regiões Norte e Nordeste a precariedade
das instituições e a falta de condições básicas configuram outro
164
cenário. Razão que nos faz insistir na indispensabilidade de nosso compromisso para consolidarmos o Sistema de Garantia de
Direitos, articulado com as áreas da Assistência Social, da Saúde,
da Educação e dos Órgãos de Justiça e Promotorias Públicas, para
o enfrentamento das violências.
4.2 Sistema de Garantia de
Direitos e intersetorialidade
das políticas públicas
O Sistema de Garantia de Direitos se constitui a partir do ECA e
da criação dos Conselhos de Direitos, os quais são responsáveis
por zelar pelo cumprimento e pela fiscalização dos direitos e das
políticas públicas que envolvem a população infantojuvenil. O Estatuto, Lei n° 8.069/90 regulamentou o artigo 227 da Constituição
Federal, que atribui à criança e ao adolescente prioridade absoluta no atendimento aos seus direitos como cidadãos brasileiros. A
aprovação dessa lei ressalta o esforço coletivo de variados setores
da sociedade organizada e concretiza o desejo de muitos por um
projeto de sociedade que seja marcado pela igualdade de direitos
e de condições. É, portanto, um instrumento importante nas mãos
da sociedade e do poder público para transformar a realidade da
infância e da juventude, historicamente vítimas das violências.
Como já assinalado anteriormente, o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente nasceu com atribuição específica: articular pessoas e instituições que atuam na defesa dos
direitos infantojuvenis, buscando a sintonia entre a família, as
instituições sociais, associações comunitárias, sindicatos, escolas, empresas, os Conselhos de Direitos, Conselhos Tutelares e as
diferentes instâncias do poder público.
165
Eixos do Sistema de Garantia de Direitos
PORTAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA
E DO ADOLESCENTE. [2010?].
Disponível em: <http://www.direitos
dacrianca.org.br/temas-prioritarios/
8a-conferencia-dos-direitos-dacrianca-e-do-adolescente/eixo-3fortalecimento-do-sistema-degarantia-de-direitos>. Acesso em:
29 jul. 2010.
•Promoção: formulação de políticas públicas.
• Defesa: responsabilização do Estado, da sociedade e da família.
• Controle social: espaço da sociedade civil articulada em fóruns, frentes, pactos, etc. Vigilância dos preceitos legais.
Hoje existe um entendimento corrente de que os órgãos que
compõem esse sistema podem ser agrupados em três áreas
(Resolução 113 de 19/04/2006 do CONANDA):
1. Promoção dos Direitos Humanos: A política de atendimento aos direitos humanos de crianças e adolescentes operacionaliza-se por meio de três tipos de programas, serviços e
ações públicas: i) políticas públicas, especialmente das políticas sociais, afetos aos fins da política de atendimento dos
direitos humanos de crianças e adolescentes; ii) execução de
medidas de proteção de direitos humanos; iii) execução de
medidas socioeducativas e assemelhadas.
2.Efetivação dos direitos e controle social: Realizado por meio
de instâncias públicas colegiadas próprias, tais como: i) Conselhos dos Direitos de Crianças e Adolescentes; ii) conselhos
setoriais de formulação e controle de políticas públicas; iii) os
órgãos e os poderes de controle interno e externo definidos
na Constituição Federal. Além disso, de forma geral, o controle social é exercido soberanamente pela sociedade civil, por
meio de suas organizações e articulações representativas.
3. Defesa dos direitos humanos: Os órgãos públicos judiciais;
Ministério Público, especialmente as promotorias de justiça, as procuradorias gerais de justiça; a Advocacia Geral da
União e as procuradorias gerais dos estados; o Sistema de
Segurança Pública, principalmente as polícias; Conselhos
166
Tutelares; ouvidorias e entidades de defesa de direitos humanos, incumbidas de prestar proteção jurídico-social.
O diagnóstico geral da atuação dos principais atores de garantia de direitos aponta, ao mesmo tempo, motivos para celebração e preocupação. Como motivo de celebração, o balanço
dos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
indicou um avanço extraordinário na institucionalização e no
aprimoramento dos mecanismos de exigibilidade de direitos
das crianças e dos adolescentes compondo um amplo e complexo sistema.
∞∞
Segundo dados do Portal dos Direitos da Criança e do Adolescente (2010), há hoje uma rede de 5104 Conselhos Municipais
dos Direitos da Criança e do Adolescente para cobrir 92% dos
municípios; 5004 Conselhos Tutelares para atender 88% das cidades brasileiras; dezenas de núcleos especializados em infância
e juventude, junto às Defensorias Públicas, que estão presentes
em 21 estados da federação; centenas de Centros Operacionais
das Promotorias de Justiça da Infância e da Juventude; Varas Especializadas da Infância e Juventude. Os Conselhos de Direitos e
Tutelares foram os dois mecanismos de exigibilidade dos direitos
da criança e do adolescente, incorporados aos estados brasileiros pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Juntos, eles compõem uma rede de mais 70 mil pessoas que cotidianamente trabalham na construção da cidadania desta população. Essa rede
atua como um dinamizador do Sistema de Garantia de Direitos
(PORTAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, 2010).
No portal consta ainda a pesquisa nacional intitulada “Os Bons
Conselhos: Conhecendo a Realidade”, realizada em 2006, que reflete sobre a necessidade de se concentrar esforços na criação de
Conselhos de Direitos e Tutelares naqueles municípios onde não
167
Sociedade civil organizada:
Assume um duplo papel – atuar na linha de frente,
Conselhos:
colocando em prática ações de defesa e garantia dos
Família:
direitos das crianças e adolescentes; encaminhar
São órgãos públicos de controle
reivindicações e fiscalizar a atuação dos governos para
social, fundamentados no prin-
assegurar que seus pontos de vistas e suas necessida-
cípio de democracia participati-
des sejam atendidas/CONTROLE SOCIAL.
va. Existem para garantir a participação da sociedade na formu-
Esfera primeira, natural e básica
lação de políticas públicas e são
de atenção. Cabe ao Estado
voltados para a defesa e promo-
oferecer condições mínimas
para que a família cumpra a sua
função.
Delegacias especializadas:
Repartição policial especializada para atendimento ao
ção dos direitos das crianças e
Atribuições e
competências das
diversas instâncias que
compõem o Sistema de
Garantia de Direitos da
criança e do adolescente
adolescentes.
Conselhos Tutelares:
É um órgão permanente e
autônomo,
encarregado
de zelar pelo cumprimen-
adolescente.
to dos direitos da criança e
do adolescente.
Juizado da Infância e da Juventude:
As Varas da Infância e Juventude contam com
Ministério Público:
Defensoria Pública:
juízes especializados na área da infância e adoles-
É um órgão público que
O Ministério Público
cência que, em conjunto com uma equipe técnica,
garante
o
define-se como órgão
realizam estudos e pesquisas, acompanham o
constitucional autôno-
cumprimento das leis e das medidas de proteção,
acesso à Justiça, ou seja,
que permite às pessoas
promovem o entrosamento dos serviços do juiza-
que não podem pagar ter
pela defesa da ordem
do com os Conselhos Tutelares e acompanham a
um advogado especiali-
jurídica, dos interesses
execução das medidas socioeducativas. Assim
sociais
como as Varas, as Promotorias da Infância costu-
zado para orientá-las e
defender seus direitos na
mam denominar-se promotorias cíveis e de defesa
Justiça.
próprio regime demo-
dos direitos difusos e coletivos da infância e da
às
pessoas
mo, incumbido de zelar
e
individuais
indisponíveis
e
do
crático.
juventude, promotorias inflacionais da infância e
da juventude e promotorias de execução de
medida socioeducativa.
Fonte: Conselho Estadual dos Direitos da
Criança e do Adolescente da Bahia (2010)
168
existem, e no aprimoramento da estrutura e funcionamento desses conselhos. A média nacional de implantação dos conselhos
é considerada “boa”, mas existe grande desproporção regional,
com prejuízo para as regiões Norte e Nordeste. Outro fator demonstrado na pesquisa é o de que hoje a maioria dos Conselhos
dos Direitos e Tutelares existentes no Brasil atuam com uma
enorme complexidade de problemas, indicando a necessidade
de melhoria geral no seu padrão de funcionamento (PORTAL DOS
DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, 2010).
Outro estudo da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores e Defensores Públicos da Infância e Juventude (ABMP) confirma a necessidade de se avançar na prática de criação das Varas
Especializadas, como dispõe o ECA. Depois de 18 anos, elas são
uma realidade em apenas 3% das comarcas brasileiras. Além de
escassas, essas Varas têm funcionamento deficitário, sobretudo pela falta ou limitação de pessoal técnico qualificado. Nesse
mesmo sentido, outro desafio do fortalecimento do Sistema de
Garantia de Direitos é a expansão dos Núcleos Especializados em
Infância e Adolescência das defensorias públicas – em especial
naqueles estados onde estes ainda não foram criados – bem
como a qualificação dos núcleos já existentes. (PORTAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, 2010).
Para superar essas dificuldades, o CONANDA e a Secretaria Especial dos Direitos Humanos vêm apoiando técnica, política e
financeiramente, por meio do Fundo Nacional para a Criança e
o Adolescente (FNCA), um conjunto de ações para criar os Conselhos nos municípios onde eles não existem; providenciar políticas de capacitação continuada para operadores deste Sistema;
reformular e consolidar nacionalmente o Sistema de Informação
para Infância e Adolescência (SIPIA); fortalecer Redes e Fóruns
dos atores do Sistema de Garantia de Direitos. (PORTAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, 2010).
169
CONANDA
O Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e
dos Adolescentes (CONANDA) é a entidade nacional formada por representantes do governo,
empregadores e trabalhadores responsáveis
por deliberar e fiscalizar as políticas de atenção
a crianças e adolescentes.
O CONANDA vem desempenhando um papel
importante na articulação e no fortalecimento
dessa Rede de Conselhos de Direitos e Tutelares. Tudo isso por intermédio de assembleias
descentralizadas, encontros de articulação com
os Conselhos Estaduais, Distrital e Municipal
das capitais, das Conferências dos Direitos da
Criança e do Adolescente, e do recém-criado
Portal dos Direitos da Criança e do Adolescente. O CONANDA busca potencializar o papel político dessa Rede na promoção e defesa dos
direitos de crianças e adolescentes. Esse amplo
Sistema de Garantia de Direitos tem sido considerado por especialistas das Nações Unidas
e do mundo acadêmico internacional como a
maior intervenção sistêmica baseada nos direitos da criança e do adolescente no mundo.
Se esse fato é motivo de celebração, também é
motivo de preocupação pela responsabilidade
do Brasil perante a comunidade internacional
(PORTAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, 2010).
Podemos observar que o avanço nas políticas nacionais em prol
da garantia dos direitos das crianças e adolescentes tem buscado não só a criação de alternativas, como também a melhoria
das práticas decorrentes de seu funcionamento. Entretanto, é
preciso refletir que a gestão do cuidado está muito além dessas
ações, o que pressupõe assumir escolhas educativas e não policialescas. Lutamos para que o Estado brasileiro continue a promover políticas preventivas, as quais possam ir além das ações
de garantia dos direitos de crianças e adolescentes que sofrem
violências; que avance nas ações para qualificar intensamente
a vida desta população, sem reduzir as intervenções à garantia
dos diretos básicos. Compreendemos que o Sistema de Garantia de Direitos faz parte de uma luta histórica, mas é preciso
melhorar o atendimento para construir no país uma infância e
adolescência dignas.
170
4.3 Justiça e legislação:
o cuidado por meio da lei
A área da Justiça tem se debruçado na formulação e prática das
leis que regulamentam e garantem os direitos de crianças e adolescentes. Suas ações baseiam-se nas principais normativas nacionais e internacionais sobre os Direitos Humanos, dentre elas:
•
Declaração Universal dos Direitos Humanos.
•
Declaração dos Direitos da Criança.
•
Constituição Federal.
A partir das leis internacionais, alguns documentos importantes
foram criados no país e fundamentam o Sistema de Garantia de
Direitos para mobilizar as políticas sociais na atenção e proteção de
crianças e adolescentes em situações de violências (BRASIL, 2009b):
•
Convenção sobre os Direitos da Criança.
•
Estatuto da Criança e do Adolescente.
•
Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho
sobre a idade mínima para a admissão em emprego.
•
Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho
sobre a Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e
a ação Imediata para a sua Eliminação.
•
Protocolo Facultativo para Convenção sobre os Direitos da
Criança relativo à venda de crianças, prostituição e pornografia infantis.
•
Protocolo Facultativo para a Convenção sobre os Direitos
da Criança sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos
Armados.
171
Esta gama de legislações poderia ser de conhecimento profundo na Rede Social da qual fazemos parte, mas por vezes não
temos acesso à internet ou aos documentos impressos, ou não
notamos a sua importância como instrumento de luta que pode
contribuir para fazer valer os direitos.
A Rede Social é um sistema composto de pessoas, funções e
situações dentro de um contexto, que oferece apoio estrutural
e emocional (com ajuda financeira), divisão de responsabilidades, atendimento psicossocial e diversas ações que promovem
o sentimento de pertencer a um grupo (DESSEN, 2000).
Muitas ações das redes que atuam nas políticas públicas brasileiras buscam romper com a cultura histórica do abandono e a
institucionalização de crianças e adolescentes, fortalecendo assim o paradigma da proteção integral, que almeja a preservação
dos vínculos familiares e comunitários. A manutenção desses
vínculos precisa ser percebida associada ao contexto dinâmico
e complexo em que estes cidadãos de direitos estão inseridos.
De acordo com Zuma (2004, p. 4), “[...] a rede de justiça envolve
todas as instâncias que, mesmo que formalmente distintas, podem ser identificadas como fazendo parte do elenco de atores
necessários à condução do processo jurídico, indo do policial
ao juiz, incluindo o legislador.” No entanto, o autor argumenta
que ao olharmos para essa rede vemos instâncias já definidas,
prontas, o que não resolve os problemas crônicos de seu funcionamento. E ainda, demonstram frágil capacidade de se transformar, de aprimorar suas intervenções e de indicar como podemos
contribuir para isso. Este é um desafio na área da Justiça. Na
medida em que avança na legislação, lança novos desafios para
o cumprimento destas, já que ainda existem setores sociais que
desconhecem o Estatuto da Criança e do Adolescente ou que não
172
se aproximaram da Constituição Federal, mesmo trabalhando diretamente com o Sistema de Garantia de Direitos.
4.3.1 O papel da escola...
Agora vamos pensar juntos: a quem cabe a proteção e a garantia
de direitos de nossas crianças e adolescentes? Você sabe o que
preconiza o ECA sobre essa questão? Como lidar com as marcas
das violências que chegam à escola?
Na Escola, muitas vezes sabemos da existência da legislação, mas
pela complexidade de nossas rotinas tal aspecto formativo não
entra na pauta de estudos. Isso se agrava porque a educação tem
sua própria legislação e parâmetros educacionais que mobilizam
as ações docentes. No entanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – tem se constituído em um importante documento
que precisa ser conhecido pelos educadores, e outros interessados, como ferramenta de proteção de crianças e adolescentes.
No título II do ECA, que trata Dos Direitos Fundamentais – Capítulo I – Do Direito à Vida e à Saúde –, no Art. 13, diz que: os
casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança
ou adolescentes serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras
providências legais.
Compete também a todos os educadores a responsabilidade de
denunciar ao Conselho Tutelar qualquer situação de violências
contra crianças e adolescentes, mesmo em caso de suspeita. Isso
significa que, além de conhecer a legislação, a escola participa
do cuidado deles, por meio de um envolvimento visceral diante
das consequências das violências para a vida desses sujeitos,
173
mesmo fora do ambiente escolar. Nosso convite é para aproximar-se, sentir-se pertencente, buscar conhecer a legislação, o
Conselho Tutelar e a Rede de Proteção de sua localidade para
interagir e formar a rede com os diversos profissionais nos diferentes setores públicos.
Uma das grandes inovações desse Estatuto está na premissa de
que todos os atores sociais são responsáveis em proteger integralmente crianças e adolescentes, enquanto uma atitude de cuidado com o outro, o que implica também disposição pessoal. O
Estatuto nasceu da necessidade efetiva de políticas públicas, capazes de assegurar a esses sujeitos o direito de conviver e crescer em um ambiente familiar e social que não os colocassem em
qualquer situação de violência. “Convidar esses atores sociais
ao debate e a promover reavaliações sobre a articulação de suas
áreas, explicitar e delimitar o papel de cada um, mas também
aperfeiçoar o fluxo informacional necessário entre eles é o papel
que a sociedade civil organizada pode assumir.” (ZUMA, 2004, p.
4). Cuidar do outro é cuidar de si, e para isso a generosidade é
uma virtude imprescindível, desde que possa se traduzir em atitudes sinceras de prévia ocupação interessada, pelo menos com
aqueles que estão sob a nossa responsabilidade.
4.4 O lugar da Assistência
Social na consolidação da
Rede de Proteção
É notável o movimento da área da Assistência Social nesta última
década, determinada a contribuir na efetividade de programas e
serviços de atenção a crianças e adolescentes, incluindo os familiares de pessoas em situações de violências. No Brasil, a política
174
de Assistência Social é um direito garantido pela Constituição
Federal de 1988, regulamentada pela Lei Orgânica da Assistência
Social (LOAS).
Lei 8742, de 07.12.1993 que dispõe
Sobre a Organização da Assistência
Social.
Esse instrumento legal define a família como eixo estratégico. Em
seu artigo 2° diz que a proteção da família é um dos objetivos
da Assistência Social; no artigo 4° garante o direito à convivência
familiar, um dos princípios desta política; os artigos 20° e 22° definem que os benefícios a serem concedidos dependem da renda
familiar; e o artigo 23° afirma que os serviços de assistência,
dentre outros, devem priorizar a infância.
Nesta perspectiva, a política de Assistência Social brasileira incorporou o conceito de cidadania no trabalho com as famílias,
ao levar em conta a realidade econômica e o impacto das mais
recentes transformações capitalistas na dinâmica familiar, tais
como: a tecnologia, que tem sido decisiva para reduzir as vagas
de emprego, já que exige mais qualificação; o trabalho precário
das famílias empobrecidas e com pouca escolaridade; os padrões
de consumo que afetam brutalmente crianças e jovens; há ainda
uma dimensão cultural, que tem provocado a crise de identidade
quanto ao modelo de família, seu papel social, suas representações, as relações de gênero, etc.; o aspecto sociopolítico, que
modificou as relações de poder no interior da família, o acesso
aos direitos e às políticas sociais, a participação de seus membros nas decisões sobre o modo de viver doméstico e comunitário; a dimensão psicossocial que repercute nas relações afetivas,
sejam elas de violências, de solidariedade, de apoio, de proteção,
de comunicação, de intimidade, de abandono, por exemplo; a estrutura jurídica que passa a assegurar com mais ênfase os direitos e deveres em relação à mulher, aos filhos, aos pais, à família.
Compreender esses aspectos nos ajuda a redimensionar a maneira como nos relacionamos (educadores), sobretudo na escola,
175
com crianças e adolescentes, com a comunidade onde realizamos nosso trabalho, para que possamos constatar a complexidade que traça essas relações, especialmente quando mediadas
por circunstâncias de violências. Serve também como referência
para o planejamento político-pedagógico da escola e de outras
instituições, bem como para a definição de políticas públicas de
atenção aos sujeitos. Há um enunciado da sabedoria budista que
diz: se fazemos o que sempre fizemos, não podemos nos surpreender que os resultados sejam os mesmos. A transformação das
realidades em que vivemos requer, necessariamente, mudança
de posturas diante dos desafios que elas cotidianamente nos
apresentam.
O SUAS foi a principal deliberação da
IV Conferência Nacional de Assistência Social, realizada em Brasília (DF),
em 2003, e se inscreve no esforço
de viabilização de um projeto de desenvolvimento nacional, que pleiteia
a universalização dos direitos à Seguridade Social e da proteção social
pública com a composição da política
pública de assistência social em nível
nacional (BRASIL, 2010a).
Como conteúdo dessas políticas, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) criou um modelo de gestão descentralizada e
participativa (com regulação e organização em todo território
nacional) com serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais, de caráter continuado ou eventual, executados e
providos por pessoas jurídicas de direito público, sob critério universal de ação em rede hierarquizada, mas em articulação com
iniciativas da sociedade civil. Além disso, o SUAS define as práticas essenciais para a execução da política pública de assistência
social, o que possibilita normatizar os serviços, a qualidade no
atendimento aos usuários, o registro de indicadores de avaliação
e resultado, a nomenclatura dos serviços e da rede prestadora de
serviços socioassistenciais (BRASIL, 2010a).
Esse novo modelo de gestão supõe um pacto federativo, com a
definição de competências e responsabilidades das três esferas
de governo. Com um novo estilo de organização das ações, o
governo definiu os níveis de complexidade do sistema: Proteção
Social Básica (PSB) e Proteção Social Especial (PSE) de média e
alta complexidade, com referência no território, de acordo com
as especificidades das regiões e o porte dos municípios, mas
176
com centralidade na família. É uma forma de operacionalização
da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que viabiliza o sistema descentralizado e participativo e a sua regulação em todo
o território nacional (BRASIL, 2010a).
A Proteção Social Básica
Tem como objetivo prevenir situações de violências por meio
do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Tem um caráter preventivo e processador de inclusão social, tendo como
BRASIL. Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate
à Fome. Brasília, DF, [2010?b].
Disponível em: <http://www.mds.gov.
br>. Acesso em: 4 ago. 2010.
destinatários: segmentos da população que vive em condições de vulnerabilidade social, decorrentes da pobreza; privação (ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços
públicos...); fragilização dos vínculos afetivos e de pertencimento social (discriminações etárias, étnica, de gênero ou
por deficiência). Alguns exemplos dos serviços oferecidos são:
Programa de Atenção Integral à Família – PAIF; Programa de
Inclusão Produtiva e projetos de enfrentamento à pobreza;
Centros de Convivência para idosos; serviços para crianças de
0 a 6 anos, que visem o fortalecimento dos vínculos familiares, o direito de brincar, ações de socialização, de sensibilidade
e de defesa dos seus direitos; serviços socioeducativos para
crianças, adolescentes e jovens de 6 a 24 anos, visando sua
proteção, socialização e fortalecimento dos vínculos familiares
e comunitários; e Centros de Informação e de Educação para
o Trabalho, destinados a jovens e adultos.
Proteção Social Especial
Em caráter compensatório exige atenção mais personalizada
e processos protetivos de longa duração. Requer acompanhamento individual e mais flexibilidade nas soluções protetivas,
com estreita interface com o Sistema de Garantia de Direitos.
177
Exige, muitas vezes, uma gestão compartilhada com o Poder
Judiciário, o Ministério Público e outros órgãos, que leve em
conta a complexidade do contexto. Destinatários: indivíduos
que se encontram em situações de alta vulnerabilidade pessoal e social, decorrentes de abandono, de maus-tratos físicos
e/ou psíquicos, de abuso e exploração sexual, ou usuários de
drogas; adolescentes em conflito com a lei; pessoas em situação de moradia nas ruas, entre outros. A Proteção Social Especial operacionaliza-se pelos programas de atenção nos CREAS,
abrangendo a Proteção Social Especial de Média e Alta Complexidade.
Proteção Social Especial – PSE de Média Complexidade
Contempla serviços de média complexidade e oferece atendimento às famílias e aos indivíduos com direitos violados, mas
cujos vínculos familiares e comunitários não foram rompidos.
São eles: orientação e apoio sociofamiliar; abordagem de rua;
cuidado no domicílio; serviço de habilitação e reabilitação na
O que é o CREAS?
É um Centro de Referência Especializado em
Assistência Social, que presta serviços de natureza especializada e continuada na Proteção
Especial: Serviço de Enfrentamento à Violência,
ao Abuso e à Exploração Sexual contra Crianças
e Adolescentes – tem como objetivo assegurar
proteção imediata e atendimento psicossocial
às crianças e aos adolescentes em situações de
violências, bem como a seus familiares. Serviço
de Orientação e Apoio Especializado a Indivíduos e Famílias Vítimas de Violências – objetiva
178
o atendimento de situações de violência contra mulheres, idosos, pessoas com deficiência,
bem como situações de preconceito, homofobia, entre outros. Serviço de Orientação e Acompanhamento a Adolescentes em Cumprimento
de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida e de Prestação de Serviços à Comunidade –
tem como objetivo proporcionar o acompanhamento dos adolescentes em cumprimento de
medidas socieducativas, de Liberdade Assistida
e de Prestação de Serviços à Comunidade.
comunidade das pessoas com deficiência; medidas socioeducativas em meio aberto (Prestação de Serviços à Comunidade
– PSE e Liberdade Assistida – LA).
Proteção Social Especial – PSE de Alta Complexidade
São aqueles que garantem proteção integral – moradia, alimentação, higienização e trabalho protegido – para famílias
e indivíduos que se encontram sem referências e/ou em situações de ameaça, necessitando ser retirados de seu núcleo
familiar e/ou comunitário. Tais como: Atendimento Integral
Institucional; Casa Lar; República; Casa de Passagem; Albergue; Família Substituta; Família Acolhedora; Medidas Socioeducativas restritivas e privativas de liberdade (Semiliberdade e
Internação Provisória e Sentenciada).
∞∞
Com relação às medidas socioeducativas restritivas e privativas
de liberdade, após dezesseis anos da publicação do Estatuto da
Criança e do Adolescente, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e o Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente apresentam como normativa o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE).
Ele surge da construção coletiva que envolveu, nos últimos anos,
diversas áreas do governo, representantes de entidades civis e
especialistas na área, além de uma série de debates protagonizados por operadores do Sistema de Garantia de Direitos, em
encontros regionais em todo o País (BRASIL, 2007).
Outro marco brasileiro das políticas públicas dirigidas a criança e
adolescente é o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa
do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e
Comunitária, de 2006. Ele representa uma conquista salutar e favorece a participação ativa de todos os brasileiros interessados no
179
SINASE
Conjunto ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico,
financeiro e administrativo, que envolve desde
o processo de apuração de ato infracional até a
execução de medida socioeducativa. Como um
sistema nacional, inclui a rede estadual, distrital e municipal, bem como todas as políticas,
os planos e programas específicos de atenção
aos adolescentes em conflito com a lei. Interes-
sado em constituir parâmetros mais objetivos e
procedimentos mais justos para evitar a discricionariedade, o SINASE reafirma a diretriz do Estatuto sobre a natureza pedagógica da medida
socioeducativa. Para isso, o SINASE tem como
plataforma inspiradora os acordos internacionais em Direitos Humanos e, em especial, na
área de direitos de crianças e adolescentes, em
que o Brasil é signatário.
Fonte: Brasil (2007)
fortalecimento do paradigma da proteção integral e na salvaguarda dos vínculos familiares e comunitários, preconizados pelo ECA.
Essa normativa está fundamentada em estratégias, objetivos e diretrizes de prevenção ao rompimento dos vínculos familiares, na
qualificação do atendimento pelos serviços de acolhimento e no
investimento para o retorno ao convívio com a família de origem.
[!]
Você educador, em algum
momento, entrou em contato com esses programas sociais no
seu município? Como se organiza
a Rede em sua localidade? Como
os programas estão organizados no
seu município e articulados com a
legislação que promulga a atenção a
crianças e adolescentes em contextos de violências?
180
Com esses programas e serviços, a Assistência Social articula a
atuação da Rede de Proteção e busca efetivar os preceitos do
Sistema de Garantia de Direitos. Sua intervenção permite a convergência de ações integradas nas políticas sociais (Assistência
Social, Saúde, Educação, Trabalho, Cultura, Desporto e outras) e
favorece o fortalecimento da família, em seus diferentes arranjos. Por meio das ações assistenciais preventivas e terapêuticas,
visam à superação da problemática das violências presentes nas
realidades onde está a maioria das famílias brasileiras. Por outro lado, como vimos no capítulo anterior, esses serviços ainda
são insuficientes e suas práticas, em muitas circunstâncias, são
também geradoras de violências àqueles que atende, o que justifica nossa defesa de uma gestão do cuidado para uma escola
e outras instituições que se vejam comprometidas em proteger
crianças e adolescentes. Para nós, as instituições sociais são mediadoras das relações que as crianças e os adolescentes estabelecem, portanto elas formam as referências para a construção
de relações afetivas e de suas identidades individual e coletiva.
Além da articulação em Rede e da efetiva atenção a crianças,
adolescentes e suas famílias em contextos de violências, a área
da Assistência Social busca dar visibilidade ativa ao Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil, uma
ação nacional do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência
Sexual contra Crianças e Adolescentes. Esse plano é fruto da articulação da Rede, como resposta ao alto grau de mobilização da
sociedade. O texto estabelece estratégias diferenciadas para uma
maior eficiência, eficácia e efetividade dos programas sociais de
atenção ao fenômeno (PORTAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE, 2010).
O Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra
Crianças e Adolescentes surgiu de
uma proposta apresentada no Encontro realizado em Natal (RN), em
junho de 2000, onde foi elaborado
o Plano Nacional de Enfrentamento
da Violência Sexual contra Crianças
e Adolescentes. O Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência
Sexual contra Crianças e Adolescentes foi instalado em todos os
estados da federação, “[...] como
uma instância nacional representativa da sociedade, dos poderes
públicos e das cooperações internacionais, para monitoramento da
implementação do Plano Nacional
de Enfrentamento à Violência Sexual Infantojuvenil.” (BRASIL, 2002).
4.5 A violência como questão
de saúde pública
Na área da Saúde encontramos outras articulações com o Sistema
de Garantia de Direitos, por meio de guias e portarias que integram as ações junto à Rede de Proteção. Vejamos: Guia de Atuação frente a maus-tratos na infância e na adolescência/SBP – 2001
– que orienta pediatras e outros profissionais que trabalham com
crianças e adolescentes; a Portaria 1.968 – 25/10/01 – (Ministério
da Saúde) dispõe sobre a comunicação de casos de suspeita ou
de confirmação de maus-tratos, contra crianças e adolescentes
atendidos nas entidades do Sistema Único de Saúde, às autoridades competentes; e a Portaria 936 – 19/05/04 – (Ministério da Saúde) fala sobre a estruturação da Rede Nacional de Prevenção da
181
Violência e Promoção da Saúde e a Implantação e Implementação
de Núcleos de Prevenção à Violência em Estados e Municípios.
Violências contra crianças e adolescentes são consideradas questão de saúde pública porque afetam, de modo decisivo, o desenvolvimento integral e saudável dos sujeitos. Na perspectiva
do Sistema de Garantia de Direitos, a rede de saúde pública e
privada deve adotar procedimentos de prevenção, promoção,
diagnósticos e tratamento de situações de saúde física, psíquica
e mental, quando no atendimento de crianças e adolescentes em
situações de violências. Para isso, o Ministério da Saúde lançou,
em 2008, uma Cartilha que destaca o impacto das violências
na saúde das crianças e adolescentes, e enfatiza a importância
da prevenção e da promoção da cultura da paz. Tal documento
apresenta o slogan da campanha: “você é a peça principal para
enfrentar este problema”.
Na cartilha, o tema das violências é apontado como um grande
desafio para este século, já que essas práticas causam significativo impacto na saúde da população brasileira, além de acionar
182
altos custos econômicos e sociais para o Estado e a sociedade.
Os direitos previstos na Cartilha são aqueles assegurados mundialmente pela Convenção dos Direitos Humanos e pelos protocolos facultativos reafirmados pelo Brasil na Constituição Federal
de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente e, ainda, as
políticas setoriais referentes à saúde (BRASIL, 2009b).
As violências e os acidentes são considerados, segundo dados do
Ministério da Saúde de 2006, as principais causas de mortes de
crianças até um ano de idade e adolescentes. Entre as crianças
de 0 a 9 anos de idade, as agressões e violências aparecem como
a quarta causa de mortalidade. Já entre adolescentes, as violências são as principais causas de óbito na faixa etária entre 10 e
19 anos. Sendo que, entre 10 e 14 anos, as principais causas de
óbitos são acidentes de transporte; entre 15 e 19 anos, as violências e agressões lideram as estatísticas de causas de mortalidade
(BRASIL, 2009b).
No ano de 2006 foi implantado em 27 municípios brasileiros o
Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), a partir
da ficha de notificação das violências junto aos atendimentos
pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Conforme os dados coletados no período de 2006 e 2007 pelo VIVA, a violência sexual foi
a principal causa de atendimento de crianças entre 0 e 9 anos,
nos serviços de referência de violências. Dos 1.939 registros, 845
(44%) foram por violências sexuais. As meninas são as principais
vítimas, com 60% do total dos casos registrados. A residência foi
o local de maior ocorrência (58%). Em relação aos adolescentes
de 10 a 19 anos, a violência sexual foi a principal causa de atendimento nos serviços de referência de violência. Dos 2.370 registros, 1.335 (56%) foram por violências. As adolescentes mulheres
são as principais vítimas, com 78% do total dos casos. A maioria
dos casos ocorreu na própria residência, com 58% dos registros,
seguido pela via pública, com 20% (BRASIL, 2009b).
183
Para a Saúde, as consequências dessas violências contra crianças e adolescentes decorrem de problemas sociais e provocam
outros de ordem emocional, psicológica e cognitiva que deixam
marcas para toda a vida. Esses sujeitos tendem a apresentar
outros comportamentos prejudiciais à saúde, como uso de substâncias psicoativas, álcool e outras drogas, e iniciação precoce
em atividades sexuais, o que os torna ainda mais vulneráveis à
gravidez precoce, à exploração sexual e à prostituição. Os problemas de saúde mental e social relacionados com as violências,
em crianças e adolescentes, podem desencadear sintomas como
ansiedades e outros transtornos; e até mesmo baixo desempenho ou evasão escolar, alterações de memória e aumento no risco de suicídio. Quanto mais precoce for a exposição de crianças
e adolescentes às situações de violências, maiores as chances
de comprometer o desenvolvimento físico e mental, provocar
enfermidades em etapas posteriores da vida, como as doenças
sexualmente transmissíveis, a aids, o aborto espontâneo e outros (SILVA, 2010).
E como a escola e a saúde podem interagir?
Para nós educadores vale nos informarmos no posto de saúde
mais próximo da escola sobre os cuidados que estão sendo
dados às crianças e aos adolescentes, como forma preventiva das situações de violências. Buscar, com essa interlocução,
conhecê-los para conhecer outras ocorrências fora dos muros
da escola. O cuidado neste caso é também exercido quando há
o interesse por verificar as condições físicas e psíquicas dos
educandos.
184
4.6 Educação em direitos humanos: a escola que protege
A proteção é também inerente ao ser humano como mamífero, o
qual guarda uma memória vital de cuidador da cria, portanto com
capacidade para permanecer em atenção às demandas essenciais
de preservação da vida. Culturalmente nos distanciamos dessa
conduta ao longo da história, e ao que parece, ao final do século
XX, de maneira mais visível e progressiva estamos assumindo,
como responsabilidade social e individual, cuidar de crianças e
adolescentes para que cresçam felizes. Esse retorno ao cuidado
é expressão de muitas lutas desencadeadas por distintos setores
e sujeitos, que acreditam numa sociedade fraterna e empenhada
no fortalecimento de uma cultura de paz, na defesa intransigente
dos Direitos Humanos como direitos de vida. Nasce dessa experiência a esperança, cada vez mais ativa, de consolidarmos uma
escola que protege, onde aprender, conviver amorosamente, estar com alegria e oportunidades são direitos inalienáveis.
Nesse sentido, a educação, além de sua legislação específica
como a LDB, o Plano Nacional da Educação, entre outros, tem
se articulado com a Rede de Proteção a crianças e adolescentes
envolvidos em contextos de violências para promover ações protetivas nas escolas e outras instituições educacionais. Dentre as
iniciativas, o MEC em parceria com a Secretaria Especial de Direitos Humanos lançou, em 2003, com segunda edição em 2004,
o Guia Escolar: Métodos para Identificação de Sinais de Abuso
e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, com o objetivo de aprimorar a habilidade de professores e profissionais da
educação, em todo o País, para lidar com problemas de abuso e
exploração sexuais de crianças e adolescentes. Em um relatório
das Nações Unidas (BRASIL, 2004, p. 9), assinado por Juan Miguel
185
Petit, relator especial da Comissão de Direitos Humanos da ONU,
que analisa a dimensão do fenômeno no Brasil, o GUIA ESCOLAR é
citado como instrumento de referência em matéria de prevenção
da violência sexual e sugere o desenvolvimento de metodologias
adequadas à sua implementação nas escolas públicas do País.
São parceiros do Observatório de
Violências nas Escolas – Brasil, mantendo núcleos articulados de ensino,
pesquisa e extensão
no Brasil: Universidade Federal do
Pará/UFPA (Campus Santarém - PA);
Universidade da Amazônia/UNAMA
(Belém - PA); Universidade Luterana
do Brasil/ CEULS/ULBRA (Campus
Santarém - PA); Universidade Federal
do Rio Grande do Sul/UFRGS (Porto
Alegre - RS); Pontifícia Universidade
Católica do Paraná/PUC-PR (Curitiba
- PR); Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul/PUC-RS (Porto
Alegre - RS); Centro Universitário Salesiano de São Paulo/UNISAL (Lorena
- SP); Instituto Científico de Educação
Superior e Pesquisa/UNICESP (Guará
- DF); Universidade Federal de Juiz
de Fora/UFJF (Juiz de Fora - MG);
Universidade de Caxias do Sul/UCS
(Caxias do Sul - RS).
Na Argentina: Pontificia Universidad
Catolica de Argentina – Campus
Mendoza (Mendoza - AR). Na Europa:
Universidad Autónoma de Barcelona
(Barcelona - España); Universidade
Fernando Pessoa (Porto - Portugal).
(OBSERVATÓRIO DE VIOLÊNCIAS NAS
ESCOLAS - BRASIL, 2009).
Outra iniciativa para o campo da educação é o Observatório de
Violências nas Escolas – Brasil, lançado em 2006, originário de
um projeto conjunto desenvolvido pela Universidade Católica de
Brasília e pela UNESCO. O objetivo era reunir especialistas e instituições para promover estudos, pesquisas e debates sobre o
tema da violência nas escolas. Avaliado pela UNESCO, ao projeto
é agregado o incentivo da criação de uma cátedra que amplie o
seu escopo para a temática da juventude, educação e sociedade.
Hoje, a cátedra é hospedeira do Observatório, incluindo a sua
rede de universidades e outras instituições de educação superior
no Brasil e em outros países.
Temos ainda o Projeto Escola que Protege, desenvolvido pelo
MEC através da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização
e Diversidade – SECAD –, desde 2005. Ele visa à promoção e à defesa dos direitos de crianças e adolescentes, ao enfrentamento
e à prevenção das violências no contexto escolar. Sua principal
estratégia de ação é o financiamento de projetos de formação
continuada de educadores da rede pública de educação básica,
além da produção de materiais didáticos e paradidáticos nos temas do projeto, como esse curso de especialização que você está
frequentando. A prioridade é dada aos projetos apresentados por
instituições públicas de ensino superior, e a certificação do curso
está condicionada à apresentação, pelos concluintes, de projetos
de intervenção para o espaço escolar onde atuam.
Pensando na articulação em Rede, o projeto estimula a participação de representantes de várias áreas, como: secretarias es-
186
tadual e municipal de educação, União Nacional dos Dirigentes
Municipais de Educação (Undime), instituição de ensino superior
que desenvolve o projeto, Ministério Público, Conselho Estadual
e Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselho
Tutelar e secretarias de saúde e de assistência social. Com isso,
busca incentivar a discussão e o debate junto aos sistemas de
ensino para que definam um fluxo de notificação e encaminhamento das situações de violências identificadas ou vivenciadas
na escola, junto à Rede de Proteção Social. Defende a integração e a articulação dos sistemas de ensino, dos profissionais
da educação e, em especial, dos Conselhos Escolares à Rede de
Proteção Integral dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Outra
questão que diz respeito à insuficiência de programas de formação apropriados para mobilizar a atuação das pessoas com essa
problemática está presente no cotidiano dos profissionais. Implica “diagnósticos” apressados e confusos que não contribuem,
muitas vezes, para compreender e/ou interromper o ciclo das
violências cometidas às crianças e aos adolescentes. Eis porque
são essenciais as políticas públicas de atenção a crianças e adolescentes inseridos em contextos de violências, para garantir que
as instituições sejam de fato lugares de proteção.
São atendidos os municípios que
incluírem o tema da promoção e
da defesa no contexto escolar, para
fortalecer os direitos de crianças e
adolescentes e o enfrentamento,
com a prevenção, das violências no
seu Programa de Ações Articuladas
(PAR). Municípios que apresentem
baixo Índice de Desenvolvimento
da Educação Básica (Ideb) ou que
fazem parte da Matriz Intersetorial
de Enfrentamento da Exploração
Sexual de Crianças e Adolescentes.
Também são contemplados aqueles
que participam dos seguintes programas: Mais Educação; Programa
de Ações Integradas e Referenciais
de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças no Território Brasileiro (PAIR); e Programa Nacional
de Segurança Pública com Cidadania (BRASIL, 2009a).
O que fazer... Como podemos pensar numa Escola que Protege
para uma gestão do cuidado? A ideia é desenvolver projetos de
intervenção no interior da escola, que tenham como foco principal crianças e adolescentes em contextos de violências. Estes
projetos podem ser de formações continuadas para os profissionais da escola; iniciativas que envolvam os familiares, crianças
e adolescentes da instituição; comunidade na qual a escola pertence; articulações com a Rede de Proteção (Justiça, Saúde, Educação e Assistência Social). Articular o tema violências no PPP da
instituição e promover atividades educativas com os educandos,
por exemplo.
187
»»Em síntese...
Além da articulação que vimos das diversas instâncias que compõem o Sistema de Garantia de Direitos, existem políticas intersetoriais que formam esta Rede de Proteção a crianças e adolescentes submergidos em conjunturas violentas. Os principais setores
são a Justiça, a Assistência Social, a Saúde e a Educação, com suas
principais ações no enfrentamento das violências. Pela articulação
em Rede, vimos que a Saúde tem buscado, por meio da atenção
básica, cuidar de crianças e adolescentes que vivem em contextos de violências, indo além das sequelas e das questões físicas
para participar ativamente da prevenção das inúmeras formas de
violências. Insistimos que é possível pensar em uma gestão do
cuidado nas instituições, desde que se invista na reculturação
afetiva, na valorização das carreiras, nas condições de trabalho,
na formação continuada, para que gestores e profissionais, responsáveis por atender as demandas da sociedade, sintam-se em
condições objetivas de cuidar de si e do outro, capacitados para
acolher as denúncias de violências que chegam aos seus setores
e para avançar na qualidade de suas proposições.
Falamos sobre limites e possibilidades para enfrentar as violências. Para isso resgatamos as principais legislações que orientam
as políticas de proteção destinadas a crianças e adolescentes
envolvidos em contextos de violências. Nossa intenção é dar
visibilidade ao modo como acontece a atuação em Rede, com
a participação das áreas da Justiça, Assistência Social, Saúde e
Educação. Suas iniciativas retratam aspectos relevantes da história de garantia de direitos de crianças e adolescentes no Brasil e
demonstram o avanço da legislação nos últimos 20 anos. Segundo o CONANDA, foi desde a promulgação do Estatuto da Criança e
do Adolescente que o Brasil conquistou importantes progressos
na garantia de direitos.
188
Com a Doutrina da Proteção Integral (DPI), o Estado brasileiro, a
sociedade e a família passam a ser os responsáveis pelo cuidado
e pela proteção de crianças e adolescentes, para garantir-lhes o
bem-estar familiar, social e econômico. No entanto, apesar dessas importantes conquistas, nos últimos 10 anos os índices de
violências contra crianças e adolescentes aumentaram e ganharam mais visibilidade, como demonstram as inúmeras denúncias
todos os dias noticiadas sobre casos de maus-tratos, abusos,
negligências e violências. O cenário dessas violências, portanto, pode ser a residência, as escolas, as comunidades e outros
espaços de convivência. Decorrem quase sempre do estilo sociocultural que perpetra as relações interpessoais, mas também
189
da violência estrutural, como o trabalho infantil, as situações
de alta vulnerabilidade social (população indígena e quilombola,
dentre outras). Os efeitos destas são perversos, prejudicando o
aprendizado, as relações sociais e o seu pleno desenvolvimento,
e ainda podem se manifestar na construção de um círculo de reprodução e retroalimentação de práticas violentas que se caracterizam de forma intergeracional. As violências exigem respostas
contundentes por parte do Estado e da sociedade, com ações de
prevenção e enfrentamento.
Ressaltamos que de alguma maneira a Educação tem procurado
articular-se com a Rede de Proteção e tem buscado apropriarse da legislação que embasa o Sistema de Garantia de Direitos
para organizar seus projetos. Embora essas iniciativas sejam de
âmbito federal e muitas vezes não alcancem todos os estados
e municípios, vimos que há uma mobilização para que a Escola
possa se traduzir numa instituição de cuidado. Vimos ainda que
tais iniciativas podem ser propulsoras de outras formas de atenção ou de políticas mais locais nos estados e municípios. Para
tanto, o “Projeto Escola que Protege” atua na formação continuada de professores, para que possamos consolidar uma Gestão
do Cuidado, em que políticas e legislações tornem-se, de fato,
recursos essenciais para a proteção de crianças e adolescentes
em contextos de violências (BRASIL, 2009a).
Ao chegar ao final deste módulo, o sentimento que nos mobiliza
é de caminho percorrido e atravessado por múltiplos diálogos
entre: O Sistema de Garantia de Direitos na formulação de Políticas Públicas; a legislação que tem impulsionado a Rede de
Proteção no cuidado às crianças e aos adolescentes envolvidos
em contextos de violências; e o desafio da Escola em tornar-se
protetora e protagonista desse processo.
190
»»Referências
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index.php?option=com_content&view=article&id=12361:p
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193
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