Gestão do Cuidado: Escola que Protege [Módulo 2] Violências, Rede de Proteção e Sistema de Garantia de Direitos ∞∞ Cristiane Antunes Espindola Zapelini (Org.), Daniela Motink Agostini, Maria Francisca Rodrigues Giron, Neylen Bruggemann Bunn Junckes GOVERNO FEDERAL Coodenação Pedagógica Presidência da República Laboratório de Novas Tecnologias – LANTEC/CED Ministério da Educação Coordenação Geral: Andrea Brandão Lapa Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - SECAD Coordenação Pedagógica: Roseli Zen Cerny Equipe de Desenvolvimento de Materiais UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Supervisão: Isabella Benfica Barbosa Centro de Ciências da Educação - CED Design Instrucional: Fabíola Sucupira Ferreira Sell Revisão Gramatical: Daniela Piantola, Evillyn Kjellin Coodenação de Curso Núcleo Vida e Cuidado Estudos e Pesquisas Sobre Violências – NUVIC/CED Supervisão do Design Gráfico: Laura Martins Rodrigues Coordenação do Projeto: Ana Maria Borges de Sousa Identidade Visual: Alexandre dos Santos Oliveira, Rafael Naravan Kienen, Laura Martins Rodrigues Vice-Coordenação: Patrícia de Moraes Lima Projeto Gráfico: Laura Martins Rodrigues Coordenação de Sistema de Acompanhamento ao Cursista: Marta Corrêa de Moraes Diagramação: Laura Martins Rodrigues Ilustrações: Rafael Naravan Kienen Coordenação das Comissões Gestoras Estaduais: Cristiane Antunes Espindola Zapelini Secretaria do Curso: Maria Madalena Gonçalves, Mariani Santos Baasch Copyright © 2010 Universidade Federal de Santa M689 Módulo 2 : violências, Rede de Proteção e Sistema de Garantia de Direitos / Cristiane Antunes Espindola Zapelini, org. - Florianópolis : NUVIC-CED-UFSC, 2010. 280p. : il, grafs. Curso de Especialização Gestão do Cuidado para uma Escola que Protege Inclui referências ISBN 978-85-63659-02-6 1 . Violência e infância. 2. Educação – Gestão do Cuidado. 3. Sistema de Garantia de Direitos. 4. Rede de Proteção. I. Zapelini, Cristiane Antunes Espindola. CDU: 37:172.1 Catarina, NUVIC/CED/UFSC. Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada sem a prévia autorização da coordenação do Curso de Especialização A Gestão do Cuidado para uma Escola que Protege. Catalogação na fonte elaborada pela DECTI da Biblioteca Central da Universidade Federal de Santa Catarina Sumário Apresentação .............................................................................. 5 [1] Violências e cuidado: outros diálogos possíveis .................................................. 9 1.1 Violências e cuidado: retornando à reflexão .................................10 1.2 Breve história da infância: transversalidades e violências..............................................................15 1.3 A escola arquitetada para a infância................................................. 35 Em síntese... ......................................................................................................... 38 Referências .......................................................................................................... 38 [2] As violências e seus contextos ...................................... 43 2.1 Violências em formas que con-formam e de-formam ........... 44 2.2 Diferentes olhares para as violências............................................... 49 2.3 Atores das violências contra crianças e adolescentes ............ 83 2.4 Grupos mais vulneráveis às violências ............................................91 2.5 Como questões de gênero explicam certas violências? .........93 2.6 Diferentes contextos das violências ................................................. 96 2.7 Como nos perdemos no caminho? ............................................... 101 2.8 Entre o privado, o familiar e o geracional ................................... 103 Em síntese... ....................................................................................................... 108 Referências ........................................................................................................ 109 [3] Rede de Proteção: a gestão do cuidado na atenção infantojuvenil ............................................. 115 3.1 Recortes de indicadores sociais: cenários de inspiração ............................................................................116 3.2 Breve mapeamento da região Sul do Brasil.................................121 3.3 Sistema de Garantia de Direitos ....................................................... 127 3.4 A gestão da Rede e a gestão do cuidado .................................... 134 Em síntese... ....................................................................................................... 144 Referências ........................................................................................................ 145 [4] Sistema de Garantia de Direitos na formulação de políticas públicas ....................................................... 151 4.1 Legislação e políticas públicas: encontros e desencontros.................................................................. 152 4.2 Sistema de garantia de direitos e intersetorialidade das políticas públicas ............................................................................ 165 4.3 Justiça e legislação: o cuidado por meio da lei ........................171 4.4 O lugar da assistência social na consolidação da Rede de Atenção ..................................................174 4.5 A violência como questão de saúde pública ..............................181 4.6 Educação em direitos humanos: a escola que protege ....... 185 Em síntese... ....................................................................................................... 188 Referências .........................................................................................................191 » Queridas Pessoas É com alegria que apresentamos a vocês, educadores e educadoras desta formação, o texto que compõe nossos estudos no Módulo II, intitulado Violências, Rede de Proteção e Sistema de Garantia de Direitos. Nossa intenção é seguir o percurso das reflexões sobre a gestão do cuidado, a partir do entrelaçamento com a educação biocêntrica, atentas a centralidade da vida na arquitetura de nossos afazeres. Na mesma direção, situar a pedagogia do afeto como contraponto no diálogo crítico sobre as violências, suas implicações para crianças e adolescentes em contextos de vulnerabilidade e em peculiar desenvolvimento. Com isso, tecer olhares sobre a Rede de Proteção para ampliar a nossa abrangência na percepção das necessidades orgânicas que esta população demanda para que possa, como meninos e meninas, constituírem-se em adultos socialmente responsáveis e comprometidos com uma convivência comunitária que acolha a todos em sua singularidade. Arroyo, em seu livro Ofício de Mestre (2000, p. 47), aponta que a nossa disposição de escuta sensível é reconstruída cada vez que nos dispomos a ler e a escutar a história real, brutal da infância popular. De tantos garotos e garotas, em suas faixas etárias diferentes, que jamais terão a oportunidade de retroceder à estação primeira da infância não vivida. Abarcar e empreender o cuidado com o desenvolvimento humano requer interesse para acompanhar, com atenção, a própria infância e adolescência, juventude ou vida adulta com que convivemos. São estes sujeitos que dão o conteúdo da nossa leitura inicial, que sugerem o tema guia de nosso percurso educador, uma leitura nunca aprendida, nunca aprovada porque sempre surpreendente. Com a mesma acuidade com que refletimos a nossa prática, com que selecionamos os fundamentos dos projetos pedagógicos, somos provocados a não abandonar, por esquecimento, os sujeitos de nossa atuação educadora, suas histórias de sofrimento que não se enquadram em um tema. O transbordam. A volta à infância [e à adolescência] nos reeduca como educadores, torna-se nossa cúmplice. Violências, qualquer que seja o matiz que lhes dá visibilidade ou encobre seu agir, não podem ter prevalência no cotidiano das instituições, especialmente da escola, onde crianças e adolescentes experimentam processos de aprendizagens que significam seu modo de ser em sociedade. Cada uma destas violências produz marcas indeléveis que vão exigir políticas públicas cada vez mais empenhadas no atendimento do que na prevenção, retardando a garantia de direitos e obstruindo práticas solidárias de cuidado e proteção. Violências não combinam com educação e esta, demanda um conhecimento articulado dos instrumentos que dispõe a sociedade para sustentar uma escola que protege crianças, adolescentes e adultos: como se configura a Rede de Proteção; legislação em vigor; organização das unidades que integram esta Rede... As violências operam não somente como fenômenos que atravessam a vida de diferentes formas, mas, como subsídios culturais que passam a constituir essa vida na coletividade. Nosso convite a vocês é para que mantenham a motivação expressa até aqui e com ela redescubram outros conceitos e referenciais que possam alargar os olhares e sedimentar as ações de intervenção. Quando Heidegger (apud FERRY e RENAUT, 1989, p. 78) escreveu um belo texto sobre a “Serenidade”, procurou refletir sobre nossas crenças nas técnicas modernas como arcabouços que tudo pode solucionar. Convidava-nos a recuperar o pensamento meditativo, ressaltando que não é preciso neg- ligenciar a técnica para que essa meditação se efetive, ao contrário, apenas repensar nossa relação com ela, enxergar nossa “cegueira” diante de procedimentos instituídos. Desafiava-nos a conservar o pensamento acordado, considerando que o que há de mais humano em nós é a condição de seres pensantes. E dizia: assim, quando despertar em nós a identidade da alma perante as coisas, e o espírito se abrir ao outro, podemos esperar alcançar um novo caminho, uma nova terra, um novo solo. Nesse solo, a criação de obras perduráveis pode enraizar-se de novo. Um abraço carinhoso Florianópolis, inverno de 2010. .Cristiane, Daniela, Francisca, e Neylen. 8 [1] Violências e cuidado: outros diálogos possíveis Neylen Bruggemann Bunn Junckes JUNCKES, Neylen Bruggemann Bunn. Violências e cuidado: outros diálogos possíveis. In: ZAPELINI, Cristiane Antunes Espindola (Org.). Módulo 2: violências, Rede de Proteção e Sistema de Garantia de Direitos. Florianópolis: NUVIC-CED-UFSC, 2010. cap. 1. [Objetivo desse Capítulo] Lançar outras reflexões sobre as violências e apresentar o paradoxo que identificamos entre “violências e cuidado” a partir dos aspectos que compõem a história da infância e uma escola arquitetada para essa infância. 9 1.1 Violências e cuidado: retornando à reflexão Certa vez, atravessando um rio, Cuidado viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe dar forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio JúA fábula-mito sobre o cuidado essencial é de origem latina com base grega. Ela ganhou sua expressão literária definitiva pouco antes de Cristo, em Roma. O texto latino é acessível em Ser e Tempo, de Martin Heidegger, Vol. I da edição da Vozes, Petrópolis, 1989 (BOFF, 2000, p. 263). piter. Cuidado pediu-lhe que desse espírito à forma de argila, o que ele fez de bom grado. Como Cuidado quis então dar seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter proibiu e exigiu que fosse dado seu nome. Enquanto Cuidado e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a Terra (tellus) querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço do seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno como árbitro. Saturno pronunciou a seguinte decisão, aparentemente equitativa: Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, porém foi o Cuidado quem primeiro o formou, ele deve pertencer ao Cuidado enquanto viver (HEIDEGGER, 1989 apud BOFF, 2000, p. 263). O convite que fazemos agora é para que possamos nos deixar envolver pela teia complexa do fenômeno das violências. Nossa intenção é que os educadores e as educadoras em formação se permitam pensar sobre e como este fenômeno nos abraça, desde os pequenos afazeres diários, até as grandes catástrofes em que a humanidade esteve e está envolvida. Como nós refletimos e sentimos as violências no cotidiano? E, na escola, o que observamos nas relações, na organização das rotinas, nos tempos e espaços? Como as diferentes manifestações de violências atravessam e afetam a nossa corporeidade e a convivência interpessoal? Violências, para Sousa (2002), são toda e qualquer circunstância que ameace a organização dos sistemas vivos, mesmo correndo os riscos inerentes a toda tentativa de apreensão conceitual. 10 Vírus-violência Um ponto final nesse incêndio. Tantos sentimentos queimados. Quantos sonhos destruídos. Banalizou-se a morte. Sobreviver é questão de sorte. Avança a epidemia. Doença social. Sociedade doente, amedrontada. Infestada, pelo vírus-violência... Ciência urbana mal planejada. Tudo se resolve com “tiros na cara”. Realidade muita cara. É o preço da vida. Valor paralelo, poder paralelo. A lei da inconstituição. Nem pensar em dizer não. Assim que funciona. Mundo podre do vírus-violência. Que ainda não tem cura. E mata por conta própria. Mata à queima-roupa. São vidas levadas ao acaso. Banalizou-se a morte. Sobreviver é questão de sorte. Desenha-se uma guerra não-declarada. O medo é declarado. Insegurança. Ser humano perverso. Medo. E um vírus chamado violência... Fonte: Carvalho (2005). 11 [Condição humana] Para Hannah Arendt (1987), a condição humana não é a mesma coisa que natureza humana. A condição humana diz respeito às formas de vida que o homem impõe a si mesmo para sobreviver. São condições que tendem a suprir a existência do homem, as quais variam de acordo com o lugar e o momento histórico do qual o homem é parte. Nesse sentido, todos os homens são condicionados. Até mesmo aqueles que condicionam o comportamento de outros se tornam condicionados pelo próprio movimento de condicionar. As violências atuam não apenas como fenômenos que atravessam a vida de variadas formas, mas como dados culturais que passam a constituir essa vida na coletividade. Dadoun (1998), após explorar a visão do ser humano em diversas denominações, considera o homo sapiens como sujeito capaz de pensar e pensar-se, a partir da inteligência. Do mesmo modo, como homo violens, capaz de destruir e destruir-se, a partir também dessa inteligência. Ou seja, um ser que pode utilizar a sabedoria para criar a vida e/ou a perversão (ROUDINESCO, 2008) para violentá-la, uma característica intrínseca à condição humana. Nesse sentido, as violências são pensadas principalmente pelo prisma das suas formas de manifestações, sobre a ótica do externo como acontecimento alheio ao desejo humano. No entanto, essas violências estão presentes na condição do humano, nos marcos culturais que lhe humanizam e que se definem em relação com outrem, ainda que orientado pelas referências da relação consigo. O conceito de perversão foi problematizado por Elizabeth Roudinesco, em seu livro “A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos”. A autora problematiza as noções de perversão ao afirmar que esta é uma circunstância da espécie humana: o mundo animal está excluído dela, assim como do crime. Não somente é uma circunstância humana, presente em todas as culturas, como supõe a pré-existência da fala, da linguagem. [Diz ainda que] embora vivamos num mundo em que a ciência ocupou o lugar de autoridade divina, o corpo o da alma, e o desvio o do mal, a perversão é sempre, queiramos ou não, sinônimo de perversidade. E, sejam quais forem seus aspectos, ela aponta sempre, para uma espécie de negativo da liberdade: aniquilamento, desumanização, ódio, destruição, domínio, crueldade, superação de si. Mas perversão é também criatividade, superação de si, grandeza (ROUDINESCO, 2008, p. 11). 12 Com essa compreensão, retomamos a reflexão proposta por Sousa (2002), no Módulo I, sobre a pluralização do termo para inscrever as violências como “figuras de desordens” (BALANDIER, 1997), as quais compõem o social e cruzam as trajetórias dos sujeitos, tecendo, na contemporaneidade, suas redes, seus estilos de convivência com referenciais agressivos, adquiridos na experiência cultural que modula o encontro com o outro. Pensando nas violências como artefatos vivos da condição humana e social e, ainda, como rituais costurados nas relações, as diferentes situações de vulnerabilidade da infância podem ser vistas em foco. Em diferentes intensidades, as violências deixam marcas indeléveis nas trajetórias humanas e sociais e constituem sentidos e significados conforme o contexto em que se fazem realidades, bem como o grau e a intensidade com que acontecem. Restrepo (1998) assinala que as violências se manifestam de forma física, por exemplo, quando a dificuldade é reconhecer o outro na sua legitimidade, a qual é constituída pela diversidade de atributos que coletivamente vão sendo incorporados na experiência social. Certas violências se manifestam de formas mais silenciosas, especialmente quando aquele que violenta não explicita, por atitudes, seus desejos, mas simboliza que suas intenções não querem maltratar o outro, então, insiste para que ele acredite que está agindo para o seu bem, como agem alguns adultos quando violentam crianças e adolescentes. Quando as atitudes anseiam por relações homogêneas, perdem de vista a singularidade tão essencial a cada um e contribuem para gerar outras violências. Há elos afetivos que estão relacionados com as violências e geram sentimentos confusamente amorosos, como é o caso do abuso sexual entre pai e filha, em que a criança não consegue diferenciar amor e violências. Nesses elos, encontram-se tendências agressivas que submetem o outro a situações impositivas, 13 as quais criam circunstâncias violentas em que este é tratado como objeto. As violências causam também desordens nos campos sociais, inter-relacionais e intrarredacionais. Nas configurações familiares, observamos que as violências se realizam quando é esperado que um dos integrantes ocupe um determinado papel e cumpra-o no mesmo ritmo de outro membro do grupo, de forma a corresponder às expectativas anunciadas nesta relação. Violenta-se diariamente aquele/a que desempenha funções reais ou imaginárias, que nem sempre correspondem aos desdobramentos da ordem instituída, e mais, não aparecem como exigências condicionadas à competência individual. Violências podem ser concebidas de maneira ampla e com variados sentidos, conforme já problematizadas no texto do Módulo I, de acordo com a intensidade com que se manifestam. A Organização Mundial de Saúde (OMS) diz que: a violência é o uso intencional de força ou de poder físico, na forma real ou de ameaça contra si mesmo, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou comunidade que resulta, ou tem grandes chances de resultar em ferimentos, morte, danos psicológicos, subdesenvolvimento ou privação. (KRUG et al., 2002, p. 27). Mas podemos pensar nas violências como fenômenos paradoxais e contrários às diferentes práticas de cuidado. E, como destaca Heidegger (1989), há um entrelaçamento entre cuidado, ser e tempo, entendendo que o ser humano é capaz de pensar nos processos que constituirão seu futuro e suas possibilidades. Nesse sentido, é possível pensar práticas de cuidado em que os sujeitos passam a ser figura e deixam de ser fundo na grande tela das relações humanas. Com isso, atuam em prol da vida, da convivência pacífica e da liberdade de expressão. Podemos afirmar que é possível nascer um cuidado sem condutas vio- 14 lentas, uma gestão que tenha por intencionalidade antecipar-se ao bem-estar daqueles com quem convivemos. A compreensão do paradoxo “violências e cuidados” nos ajuda a pensar no que tem constituído os diversos significados sobre as violências, nos diferentes campos de conhecimento que englobam a cultura, a história, a ciência, a educação, as crenças, os lugares, as experiências, os contextos nos quais se situam os seres humanos. 1.2 Breve história da infância: transversalidades e violências Para que seja possível aprofundar o entendimento sobre as violências, vamos apresentar uma breve localização, na história, das crianças, dos adolescentes e de suas infâncias, guiadas por um olhar de transversalidades com as situações de violências. Numa abordagem histórica, a infância foi concebida tanto em ambientes atravessados por práticas de violências quanto em circunstâncias banhadas por justificativas de uma dada época para localizar o lugar dessa população entre os adultos. Dizer a infância ainda requer um olhar complexo que possibilite outra leitura acerca das nossas interpretações, particularmente quando infância e violências se encontram. A história evidencia que a criança não ocupa um lugar de reconhecimento legítimo na convivência com os adultos, a quem sempre coube a decisão absoluta sobre o seu destino. Práticas comuns ilustram essa informação: deixá-la na roda dos expostos; jogá-la viva em rios e matagais; provocar sua morte por asfixia colocando-a para dormir entre os pais, o que era permitido na legalidade da época, desde que se configurasse com caráter aci- 15 [Criança] No pequeno Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (FERREIRA, 2004), a palavra “criança” é designada como ser humano que se começa a criar, menino ou menina; e “infância” como o período do crescimento, no ser humano, que se estende do nascimento até a puberdade. dental; ser tratada como objeto descartável, na antiguidade clássica; ser considerada defeituosa quando nascia malformada; se menina e negra, as justificativas para o abandono e o infanticídio eram cabíveis; se pobres, as que sobreviviam eram exploradas no trabalho infantil doméstico, rural e fabril, como em nossos dias. O desafio de estudar certos contextos relacionados à infância nos remete à percepção que temos do lugar que ocupamos como adultos e educadores/as para falar da criança e do adolescente. Lajolo (1997, p. 225) realça essa imagem ao esclarecer que as palavras “infante”, “infância” e os demais cognatos reportam à ideia de ausência de fala. Ou seja, Essa noção de infância, como qualidade ou estado do infante, daquele que não fala, constrói-se a partir dos prefixos e radicais lingüísticos que compõem a palavra: in = prefixo, que indica negação; fante = particípio presente do verbo latino fari, que significa falar, dizer. (LAJOLO, 1997, p. 225). Kuhlmann Jr. e Fernandes (2004, p. 15-16) compreendem a infância “como a concepção ou a representação que os adultos fazem sobre o período inicial da vida, ou como o próprio período vivido pela criança, o sujeito real que vive essa fase da vida”, em que a infância é uma condição das crianças. Esses autores apontam que a palavra infância lembra um período da vida e, no limite da significação, o período da palavra inarticulada, o período que poderíamos chamar da construção/apropriação de um sistema pessoal de comunicação, de signos e de sinais destinados a fazer-se ouvir; por sua vez, o vocábulo infância indica uma realidade psicobiológica referenciada ao indivíduo. (KUHLMANN JR.; FERNANDES, 2004, p. 15-16). Essa lógica linguística empregada na designação do ser humano, em seus primeiros anos de vida, contribui para marcar o silên- 16 cio devastador que é impingido às crianças e aos adolescentes, sublimando seus desejos, amordaçando seus pedidos de socorro quando são violentados, adestrando seus pensamentos e reduzindo os espaços em que vivem para dificultar a aprendizagem essencial de ser sujeito da própria história. “Por não se falar, a infância não se fala e, não se falando não ocupa a primeira pessoa nos discursos que dela se ocupam” (LAJOLO, 1997, p. 226). De acordo com essa compreensão, Kuhlmann Jr. e Fernandes (2004, p. 16) destacam porque existem dificuldades para que os protagonistas que vivenciam a infância formulem uma abrangência a respeito da sua história. Para eles, pelo fato de a criança não se apresentar como sujeito de suas experiências, talvez a forma mais direta de percepcioná-la, individualmente ou em grupo, seja precisamente captá-la com base nas significações atribuídas aos diversos discursos que tentam definir historicamente o que é ser criança. (KUHLMANN JR.; FERNANDES, 2004, p. 16). A noção histórica de infância e os significados do estado de ser criança, bem como seus lugares nas vivências das sociedades, foram concebidos com diversos e controversos contornos. Os registros existentes foram constituídos, muitas vezes, pelos olhares adultocêntricos, os quais partiam da premissa que as crianças não tinham capacidade para construir seus apontamentos, para expressar sua forma de sentir e compreender o mundo onde estavam imersas. Heywood (2004, p. 21) desvela algumas transformações nas concepções de infância ao longo da história da humanidade e traz, em seus estudos, aspectos que explicam a criança como um construto social, que se modifica com o passar do tempo. Para o autor, há variações entre os grupos sociais e étnicos dentro de qualquer sociedade. Por essa razão, “a infância é, pois, em grande medida, 17 resultado das expectativas dos adultos.” (HEYWOOD, 2004, p. 21). Em certos contextos, ela representa o mundo angelical da inocência e da desterritorialização; em outros, atende à pornografia adulta e pode ser colocada em bordéis ou obrigada a sevícias físicas e sexuais, conforme perspectiva postulada; de sagrada à profana, a infância controversa os papéis a ela destinados. Ao informar que foi a partir dos séculos XV, XVI e XVII que as crianças passaram a ser vistas pelos adultos como seres que precisavam de algum tratamento especial, Heywood (2004, p. 2830) enfatiza que só então eles as preparavam para pertencer ao seu mundo, embora esse pertencimento fosse condizente com a percepção destes. Na Alta Idade Média, o autor assinala que a criança recebia as primeiras e raras noções de um “ser em processo”, sugerida então a partir de sua dinâmica corporal, de seu crescimento, no entanto, suas definições eram imprecisas e algumas vezes desdenhadas. Para Heywood, a medievalista Doris Desclais Berkvam resume a peculiaridade da infância medieval em seu caráter ‘desestruturado e indefinido’, embarcando ‘o tempo e o espaço da juventude, independentemente de onde acontecesse, ou quanto tempo durasse’. [Faz referência também a contribuição do historiador Jacques Lê Gof, com a importante constatação de que neste período histórico, a sociedade] não tinha tempo para compaixão ou admiração pelas crianças, de forma que mal as notava. (HEYWOOD, 2004, p. 34). Nessa época, as crianças tinham responsabilidades diferentes para cada faixa etária e havia um nivelamento das tarefas a serem executadas, conforme a idade. Para a infância e a adolescência, reconheciam-se períodos distintos de crescimento, mas o espaço para falar sobre o que sentiam e a existência de quem os considerasse capazes era uma possibilidade rara. Naquele 18 cenário, estava intrínseca a necessidade de que seguissem os passos de seus pais, “com ocupação de sua posição na vida, claramente mapeados com antecedência” (HEYWOOD, 2004, p. 30). As diferenças entre as expectativas traçadas para meninos e meninas já apareciam como uma questão de gênero na era medieval, apresentando aspectos importantes para a compreensão da construção social que se reflete até a modernidade. Para as meninas, entre os quatro e os sete anos, eram ensinados preceitos em conformidade com o que a sociedade esperava delas: estar preparadas para o casamento e a maternidade (HEYWOOD, 2004, p. 28). A condição feminina nessa construção sócio-histórica se revela em perspectiva relacional e é enfocada por Veiga (2004, p. 48), ao distinguir a formação entre os sexos e a necessidade de que a mulher aprendesse de forma racionalizada a ser boa mãe, boa esposa e boa dona de casa. A ênfase predominante era a de que desse aprendizado derivaria a formação da criança civilizada e a constituição de uma família harmoniosa. É importante salientar que essa visão difundida sobre o papel da mulher, historicamente relembrada, traz em suas bases uma compreensão nuclear da família, comumente considerada estruturada, com condições econômicas adequadas para a manutenção dos seus, ou seja, “um sólido ambiente familiar, o lar acolhedor, filhos educados e a esposa dedicada ao marido, às crianças e desobrigada de qualquer trabalho produtivo” (ABREU, 2007, p. 291). As mulheres continuam enraizadas no lugar de mães amorosas, aprisionadas pela produção e reprodução dos padrões de honestidade e moralidade monogâmicas, com encargos diretos vinculados à saúde e civilidade de seus filhos e filhas. 19 As mudanças que marcaram os séculos possibilitaram à população jovem, de algum modo, manter ou alterar o olhar sobre as mulheres, as meninas e crianças, conforme a educação recebida em casa, na escola, nas cidades e na zona rural, nos ambientes de convivência. É inegável a luta política e cultural contemporânea para protegê-las das violências, para territorializá-las na comunidade de direitos, para garantir-lhes o acesso às políticas públicas de cuidado. Há um tanto de preocupação com o sofrimento e as discriminações que a elas são imputados, mas a visibilidade das violências a que são submetidas evidencia o quanto ainda se está longe de uma sociedade com oportunidades iguais para homens e mulheres, à medida que ainda vivemos em um espaço social feito também de outras desigualdades. Dessa forma, torna-se cada vez mais presente, nas relações estabelecidas, o investimento social e psicológico nas ações destinadas às mulheres, meninas e crianças, e maiores recursos vêm sendo despendidos para a sua educação e saúde, para segurança e cuidado. No que se refere às crianças e aos adolescentes com deficiências física e mental, de acordo com as explicações de Pessotti (1984), na Antiguidade Clássica, embora haja poucos registros que comprovem os argumentos em pauta, eles eram considerados subumanos. Por isso eram abolidos da convivência pública ou abandonados, uma vez que não correspondiam aos ideais atléticos e intelectuais necessários à organização sociocultural própria daquela época. Com a difusão do Cristianismo na Europa, aos deficientes se atribuiu a alma para que pudessem ser reconhecidos como pessoas e, por conseguinte, “filhos de Deus” (PESSOTTI, 1984). Os sujeitos com deficiências ganharam a condição de humanos, com o direito de sobreviver em contato com os demais. Desse modo, sua humanidade emerge a partir do momento em que é conferido um papel aos “cuidadores” desses: expiar suas culpas e promo- 20 ver a prática da caridade como meio de salvação desses outros disformes. Naquele momento, a preocupação se concentrava na salvação das almas para que elas não fossem para o inferno, e não em qualquer proposta educacional. Os sujeitos com deficiências, ao receber sua humanidade, ganhavam também uma herança adequada: isolamento em instituições familiares ou manicomiais e exclusão das atividades públicas, da escolarização, do casamento, já que eram segregados e encaminhados também para clausuras em conventos e igrejas e, mais tarde, em asilos e hospitais. Para Pessotti (1984, p. 7), a ambivalência caridade-castigo marcava a atitude medieval diante da deficiência mental. A ética cristã, apesar de impedir a eliminação (a morte) do deficiente mental, como era comum na Antiguidade, mantinha viva a rejeição que se expressava nesta ambiguidade proteção-segregação. Com isso os castigos foram atenuados e transformados em práticas de confinamento. O ato de segregar as diferenças se constituía numa atitude caridosa, já que o asilo proporcionava abrigo e alimentação enquanto escondia da publicização conservadora as feiuras das deficiências. Esses rituais garantiam, dessa forma, a assepsia social que perdura até os nossos dias frente às tantas diferenças que constituem a humanidade. Rejeitamos pessoas gordas, negras, pobres; as que se encontram em espaços de mendicância ou aquelas que vivem nas ruas; outras que não aprenderam a falar a norma padrão imposta pela escolarização; as que acreditamos que não aprendem na escola, que dizemos ser indisciplinadas; aquelas que contrariam os padrões de beleza que moldam nossos referenciais. Esforços eram envidados para transformar as faces das deficiências, de maneira a amenizar o impacto que causavam e alimentar as conjurações que inspiravam o imaginário social. Uma possível reflexão está nas características e representações de deficiên- 21 cias, que, por serem tão marcantes, levavam à suposição de que pessoas com deficiência mental, por exemplo, eram endemoniadas, tanto por seu aspecto físico, quanto pela própria condição de respostas cognitivas e intelectuais que delas esperavam. É provável que o peso tenha recaído sobre o corpo, pois a “carne” já ocupava um valor inferior na escala dos valores cristãos. A mudança de concepções acerca da infância começa a ser constatada a partir do século XVII, com o aparecimento de outros sentimentos em relação a esta. Ali tem início a criação de espaços dentro da constituição familiar, e o afeto dos adultos em relação à criança vai se instituir como um dos fatores que impossibilita seu afastamento da vida cotidiana. Emerge como um ser ativo, ou seja, começa a estar presente nas consignações daqueles que estão à sua volta. Heywood (2004, p. 36), com os estudos que faz através de historiadores, lembra que o movimento dos puritanos foi decisivo para que o interesse sobre as crianças prevalecesse. “Um interesse permanente pelas crianças, na Inglaterra, começou com os puritanos, que foram os primeiros a questionar sobre a natureza e seu lugar na sociedade” (HEYWOOD, 2004, p. 36). O movimento dos puritanos caracterizava-se pelo entendimento de que as crianças nasciam como fardos sujos, oriundas do pecado original, e/ou como pequenas víboras. Essa percepção inferiorizada a respeito das crianças também se fazia presente na França, onde às denominavam como fracas e culpadas de pecado original. Mas, mesmo assim, jansenistas do século XVII, em Port-Royal, e outros educadores, afirmavam que as crianças valiam à atenção; que se deveria dedicar a vida à sua instrução e que cada indivíduo precisava ser compreendido e auxiliado. (HEYWOOD, 2004, p. 36). 22 Com essas mudanças de percepção sobre o espaço a ser ocupado pelas crianças, nasceu a importância do cuidado, inicialmente com o sentido de assistência, que vai se delineando gradativamente no seio das relações com os adultos. A educação e a inserção das crianças nas escolas, progressivamente, configuram-se a partir da diferenciação entre esses dois espaços. Heywood (2004, p. 37) aponta que enquanto alguns historiadores observavam a esfera cultural para explicar o interesse renovado da criança durante este período, outros destacaram o impacto das transformações econômicas, argumentando que entre os séculos XV e XVIII, se testemunhou o surgimento do capitalismo na Europa Ocidental. Outra questão importante para a compreensão do lugar ocupado pela criança na história da humanidade remete aos mecanismos utilizados para justificar o seu abandono, com especial destaque para a criação da Roda dos Expostos. Sua origem data da Idade Média e, na Itália, com a aparição das confrarias de caridade, as Rodas tinham por objetivo recolher, nas instituições, as crianças rejeitadas por seus familiares. Com isso, as crianças eram salvas da morte e as mães permaneceriam no anonimato, evitando enfrentar as marcas morais da sua época, ou o constrangimento das perdas. Ao mesmo tempo, a igreja acreditava cumprir sua função: garantir o anonimato de quem abandonava e praticar a caridade. Além disso, a Roda poderia servir para defender a honra das famílias, cujas filhas teriam engravidado fora do casamento, isto é, a roda serviu também de subterfúgio para se regular o tamanho das famílias, dado que na época não havia métodos eficazes de controle da natalidade. (MARCÍLIO, 1997, p. 72). 23 No século XIX, a Roda dos Expostos regulamentou a prática do abandono das crianças, camuflada pelos ideais da caridade que permitiam recolhimento dos “enjeitados” em instituições já destinadas às meninas pobres. A Roda serviu para revelar as contradições do modelo familiar patriarcal, sustentado na moralidade de aparências, e as dificuldades de muitas famílias para garantir a sobrevivência dos filhos. Buscavam, na caridade cristã, materializada nas Santas Casas, uma possibilidade de sobrevivência de “seus pequenos”. 24 No caso brasileiro, além desses aspectos, a Roda dos Expostos foi vinculada à Santa Casa, a qual cumpriu também um importante papel, pois essa unidade religiosa, aproximadamente por um século, foi a única instituição de assistência à criança abandonada (MARCÍLIO, 1997, p. 51). A importância histórica do lugar da criança explicita que a prática de abandonar filhos pequenos é muito antiga e está enraizada na dinâmica relacional dos agrupamentos familiares e sociais, característicos de cada época. Então podemos constatar que: • É antigo o abandono social da criança – desde a Antiguidade Clássica. • Os mitos gregos já traziam o abandono através da figura de Édipo; na religião, temos o caso de Moisés, abandonado num cesto de vime; a filosofia retrata o caso de Rômulo e Remo, abandonados e amamentados por uma loba. • Gregos e Romanos evidenciavam pouca preocupação com o infanticídio. • Na Idade Média, a mortalidade infantil era altíssima; em toda a Europa, chegou a 80% no período do Renascimento. • Não existiam métodos e conhecimentos que amenizassem o abandono e o sofrimento da criança. • Portanto, a ideia de que a criança sempre foi protegida precisa ser revisitada; historicamente, os adultos vêm desistindo das crianças e é essa uma das razões que vai justificar a terceirização do outro. • Existia, ainda, a Roda dos Expostos, uma solução criada pela Igreja; a Oblata, uma prática em que famílias pobres e ricas doavam filhos indesejados para conventos, igrejas ou mosteiros, para que ali se tornassem religiosos; Amas de leite, quase sempre mulheres negras, escravas, recrutadas para cuidarem de crianças abandonadas, até que pudessem voltar ao convívio com adultos. Algumas práticas de transição: • Colocar crianças abandonadas na casa de outras famílias, onde eram iniciadas nos trabalhos domésticos, desde os três anos de idade. [!] Saiba mais em: MARTINS FILHO, José. A criança terceirizada: os descaminhos das relações familiares no mundo contemporâneo. Campinas, SP: Papirus, 2007. 25 [!] Saiba mais em: MARTINS FILHO, José. A criança terceirizada: os descaminhos das relações familiares no mundo contemporâneo. Campinas, SP: Papirus, 2007. A obra de John Locke, Some thoughts concerning education (Algumas reflexões sobre a educação), datada de 1693, foi apontada pela historiadora Margaret Ezell como uma das mais importantes influências que possibilitou modificações de atitudes em relação à infância no século XVIII (HEYWOOD, 2004, p. 37). • No período conhecido como Brasil Colônia, crianças escravizadas se alimentavam de sobras jogadas ao chão, junto com os cães, para que não esquecessem a sua condição inferior. • Já no século XIX, as crianças foram introduzidas nas fábricas, como aprendizes, junto com seus pais, empobrecidos; aí começou, oficialmente, o Trabalho Infantil. A importância da criança e o que deve ser feito com ela aparece com entusiasmo no século XVII, com pensadores como Locke, Rousseau e os primeiros românticos. Esses atribuíam à criança uma importância por ela mesma, e não como adultos imperfeitos. A concepção de criança como uma tábula rasa, expressa por Locke, buscava se contrapor ao entendimento forjado pelo discurso do pecado original, o qual sentenciava que a criança era possuída de certas características inerentes a ela. A partir da noção lockiana de que a educação pode fazer “uma grande diferença para a humanidade”, existe uma lógica na sugestão de que ele considerava a criança como nascida nem boa nem má (HEYWOOD, 2004, p. 37). Compreendemos que mudanças de paradigmas não acontecem apenas porque as desejamos, mas quando uma comunidade, de maneira complexa, adota novas posturas. Mesmo assim, a percepção anterior permanece imbricada, em conflito com os pressupostos atuais, como no caso das crianças, que ainda hoje carregam o fardo dos pontos de vista, impregnados pelas noções “cristãs de impureza” (HEYWOOD, 2004, p. 37). As contra-argumentações que surgiam como respostas a esse novo olhar que Locke afirmava sobre e para a criança estavam ainda carregadas de entendimentos especulativos, os quais apontavam que “a aprendizagem envolvia uma luta longa para 26 ensinar a criança a ‘dominar suas inclinações’, e submeter seu apetite à razão” (HEYWOOD, 2004, p. 37). Críticos da obra de Locke assinalam que ele não conseguia se desprender da cultura que forjou sua visão de mundo em relação à infância, já que, em seus escritos, estava presente a percepção negativa da infância, com argumentos voltados ao uso da razão com as crianças: com o descuido, a desatenção e a alegria que lhe são característicos, as crianças precisavam de ajuda: eram pessoas fracas sofrendo de uma enfermidade natural. (HEYWOOD, 2004, p. 38). A obra de Heywood (2004) aponta Jean-Jacques Rousseau como um estudioso que efetivamente combateu a tradição cristã do pecado original e trouxe para as relações estabelecidas com as crianças uma visão diferente acerca da infância. Rousseau ressaltava que “a criança nasce inocente, mas corre o risco de ser sufocada por preconceitos, autoridade, necessidade, exemplo, em todas as instituições sociais em que estamos submersos.” (HEYWOOD, 2004, p. 38). Cabe observar que Rousseau, com sua obra intitulada Emílio, dirigiu às mães a responsabilidade da educação de seus filhos, ao destacar a necessidade de se criar tratados de educação que fossem dirigidos a elas. O aprendizado seria importante tanto para as crianças, quanto para as mães, “portanto, para Rousseau, não somente as crianças acham-se em estados de aprender, como também as mães, as mulheres.” (VEIGA, 2004, p. 53). Rousseau defendia que a “infância tem formas próprias de ver, pensar, sentir e particularmente, sua própria forma de raciocínio, sensível, pueril, diferentemente da razão intelectual ou humana do adulto.” (HEYWOOD, 2004, p. 38). Havia a proposição de que o aprendizado deveria iniciar a partir da relação de vivência com as coisas (da experiência), e não a partir dos homens. Mas preocupava-se com a relação estabelecida entre mães e seus filhos e A modernidade enseja uma nova tarefa para a mulher, com a concretização do ideal de família feliz: viver o amor pelo trabalho doméstico e pelo lar. Essa valorização ganhou visibilidade enquanto conceito quando as mulheres burguesas se tornaram “senhoras do lar”, mesmo com ajuda de governantas, consolidando o padrão esperado de “boa mulher” igual a boa dona de casa. A família demonstrava sua distinção social, entre outras coisas, pela dedicação de suas mulheres exclusivamente aos papéis familiares. 27 alertava que muitos “mimos”, por parte delas, os exacerbariam de afetividade e poderiam “estragá-los”. Pede, portanto, o controle da afetividade nas relações estabelecidas (VEIGA, 2004, p. 54). A visão rousseauniana sofreu modificações e foi questionada a partir dos séculos XVIII e XIX quando, no cenário das teses que envolviam a infância, surgia a contribuição da concepção romântica. Uma das diferenças importantes apontada pelos românticos se contrapunha ao entendimento de Rousseau, de que as crianças não se tornavam virtuosas durante os primeiros doze anos de sua vida. Os românticos falavam de uma criança possuidora de saberes, com uma apurada sensibilidade estética e com uma consciência mais profunda das verdades morais duradouras. (HEYWOOD, 2004, p. 38). Surgia a condição de uma criança como alguém que tinha o que ensinar para os adultos que a cercavam, contestando também a visão de que ela era uma tábula rasa e possibilitando uma redefinição das relações sociais construídas para com a infância. Porém, Heywood lembra que essas ideias românticas tinham mais reflexos nos círculos de classe média, porque ali havia a preocupação para com o desenvolvimento da criança, para com a sua domesticidade e educação. No final do século XIX e início do XX, o modo de reconhecer a criança foi modificado no cenário social e se configuraram outras percepções a partir de temas que envolviam a sua inserção no campo de trabalho. Questionamentos foram sendo efetivados no sentido de sacralizar essa infância, um movimento que tinha como objetivo a retirada “dos pequenos” dos ambientes de trabalho, pois “lucrar a partir do trabalho de crianças era tocar de forma profana em algo sagrado” (HEYWOOD, 2004, p. 42). O autor evidencia que esse movimento possibilitou agregar um valor sentimental para com a criança, alargar os espaços de per- 28 tencimento em que ela estava presente, criar outros caminhos para uma reconceituação da infância e fazer surgir uma versão politizada da criança romântica. Apresentou-se, nesse período histórico, a noção da adolescência como uma infância prolongada, estimulando-se a compreensão de um período amplo de transição entre a infância e a idade adulta. Heywood (2004, p. 43) aponta que o interesse elevado na definição de um período prolongado de infância e adolescência a partir do final do século XIX pode ser explicado parcialmente pelo fato de que os jovens eram cada vez mais segregados dos adultos nesse momento, especialmente em escolas organizadas por idade. Criavam-se outras formas de apartação na convivência, com artefatos culturais que marcavam as distinções entre os sujeitos, mas também o status econômico a que pertenciam. Até então falamos sobre alguns entendimentos históricos, sobre a condição da criança na trajetória da humanidade, para tornar relevante a reflexão sobre as violências que marcam o processo de desenvolvimento da infância. Essas violências têm dimensões ampliadas e podem ser compreendidas a partir do conceito de Sousa (2002, p. 31), apresentado no material didático do Módulo I. Essas violências são sentidas na pele e na alma, atravessam a corporalidade viva e se instalam na existência. Assim, quando vivenciadas pelas crianças, estas têm o agravante da ausência de seu consentimento e da questão vital de estarem em um tempo peculiar de desenvolvimento. Violências: todo e qualquer processo que produza desorganização emocional do sujeito, a partir de situações em que este é submetido ao domínio e controle de um outro; caracterizamse por relações de domínio, em que alguém é tratado como objeto, e na radicalidade, como toda e qualquer circunstância que ameace a organização dos sistemas vivos. Sanderson (2005, p. 3) chama a atenção para a dimensão cultural das violências, lançada para explanar ensinamentos conforme as tradições. Como exemplo, podemos observar que, nos rituais de cuidados domésticos com as crianças, acontecem as surras 29 severas, que são legitimadas como meio de garantir a obediência e a aceitação daquilo que os adultos consideram necessário para uma boa formação do caráter, para uma educação exemplar. Em muitas sociedades, não se considera os espancamentos abusivos. No ocidente, ainda é aceitável deixar os bebês sozinhos na própria cama ou no “seu” quarto durante a noite; manter horários rígidos para a amamentação ou deixá-los chorando até a exaustão para que adormeçam e aprendam, desde cedo, a não se tornarem manhosos. Esse autor ressalta que “em sociedades cada vez mais multiculturais, certamente é importante estar sensível a todas as práticas culturais, mas, ao mesmo tempo, devem ser observadas as necessidades da criança dentro de uma estrutura que a proteja.” (SANDERSON, 2005, p. 3). Ele indica a necessidade de se compreender a diferença entre cuidado dos filhos, em seu aspecto culturalmente normativo, e o cuidado que possibilita e naturaliza o abuso e a negligência. Sanderson lembra que, na Índia, como se sabe, em tempos remotos, era comum que adultos masturbassem as crianças para tranquilizá-las, com realce para fazer dormir bem as meninas e para os meninos como forma de se tornarem másculos. Ou seja, essas práticas não eram identificadas como abuso sexual (SANDERSON, 2005, p. 8). Esse mesmo autor diz que historicamente, em algumas partes da Índia, o incesto era a regra e não a exceção [...]; os baigas, uma tribo indo-européia da Índia, ainda praticavam o casamento incestuoso entre pai/ filha, mãe/filho, irmãos, avós e netos. (SANDERSON, 2005, p. 8). Em alguns casos, as crianças com cinco ou seis anos serviam como possibilidade de cura para os mais velhos, situação em que eram usadas sexualmente em dormitórios destinados para esse fim. Era aceitável a união e a venda de crianças para ho- 30 mens mais velhos, para a exploração sexual, como também para se tornarem donzelas de templos, proporcionando serviços sexuais para adoradores (SANDERSON, 2005, p. 8). A China também entra no contexto situado por Sanderson como país em que prevaleceram e talvez ainda prevaleçam, em certas regiões, práticas culturais que tornavam/tornam crianças em servas sexuais, escravas de adultos que podiam ser vendidas para a prostituição. O castramento era outro rito presente nas famílias, para que os meninos se tornassem eunucos, enquanto outros fetiches se materializavam na decisão de atar os pés das meninas para moldá-los como representação da “flor de lótus e, ao mesmo tempo”, para que tivessem “a aparência de um pênis substituto que seria utilizado como fetiche durante o ato sexual”. (SANDERSON, 2005, p. 9). O Japão, por sua vez, tinha como regulamento de seus tribunais o casamento incestuoso, uma prática longamente tolerada. O casamento entre pai e filha comumente era praticado após o falecimento da mãe, e o incesto também permeava as relações entre irmãos, primos, tios e tias (SANDERSON, 2005, p. 9). [Eunuco] Homens castrados que tinham a função de guarda dos haréns orientais. [Fetiche] Crença no poder sobrenatural ou mágico de certos objetos materiais. O casamento de crianças era outra prática recorrente no Oriente Médio, aceitável também entre irmãos, como o concubinato infantil, escravidão sexual e prostituição nos Templos, independentemente dos sexos. Porém, Sanderson (2005, p. 9) destaca a questão de gênero, já que as mulheres, desde sempre, eram/são mais abusadas sexualmente, o que denuncia o lugar ocupado por elas nas relações sociais estabelecidas. A mutilação genital feminina constituía-se em prática assimilada como ritual de iniciação, embutida em grandes significados religiosos e culturais. Mas a prática de excisão genital feminina também teve espaço na constituição dos seres humanos na Europa e nos Estados Unidos, exercida em espaços ilegais. Na África, em determinadas comunidades, ainda se constata esse tirocínio, [Excisão genital] Prática realizada que consiste na amputação do clitóris da mulher de modo a que esta não possa sentir prazer durante o ato sexual. [Tirocínio] Aprendizado, primeiro ensino. 31 que, entre outras coisas, contribui para aumentar os indicadores de mortes por infecções, pela epidemia da aids, manter as meninas em cenários de subserviência aos ditames adultocêntricos. Tudo isso se torna um fator agravante na medida em que o abuso sexual não se restringe ao modelo que se conhece, mais evidente no âmbito doméstico. Ele se espraia culturalmente por todas as esferas do tecido social e penetra o imaginário coletivo para causar indignação ou aceitação. No Brasil, as relações de violências que historicamente envolvem crianças e adolescentes não indicam um quadro muito distinto do que ocorreu e ocorre em outros países. Ramos (2007) ressalta como essa população é inserida em experiências violentas, como fatores que marcam a organização da sociedade. Nas embarcações portuguesas do século XVI, como ilustram os acontecimentos, era dramática a situação enfrentada por crianças e adolescentes, já que permaneciam, durante meses, em alto mar, numa convivência com adultos e onde era rara a presença de mulheres, uma figura quase sempre proibida, o que facilitava as práticas de abusos e gerava um terreno fértil para sujeições e explorações dos pequenos a bordo. Crianças, mesmo acompanhadas dos pais, eram violadas por pedófilos e as órfãs tinham que ser guardadas e vigiadas cuidadosamente, a fim de manterem-se virgens, pelo menos, até que chegassem à Colônia. (RAMOS, 2007, p. 19). Vale ressaltar que as crianças eram preferidas para o trabalho dentro das naus, uma vez que comiam menos e ocupavam lugar reduzido para dormirem e para a convivência cotidiana. Os grumetes, como as crianças eram nomeadas enquanto mão-de-obra e força produtiva, eram em torno de 18% do total dos tripulantes [...]; a partir do século XVII e principalmente, de meados do século XVIII, o núme- 32 ro de grumetes nos navios lusitanos chegou a ser o mesmo que o número de marinheiros e, algumas vezes, até superior devido à falta de profissionais adultos. (RAMOS, 2007, p. 23). A vida dessas crianças e adolescentes, no interior dessas naus, era marcada por inúmeras violências, de caráter patético, desde o pagamento reduzido em relação ao trabalho exercido, até as inúmeras formas de maus tratos que configuravam as relações entre adultos e crianças. Os miúdos eram sistematicamente acometidos de inanição e escorbuto; os grumetes eram estuprados por marinheiros, e quer por medo ou por vergonha, dificilmente se queixavam para os oficiais, até porque, muitas vezes, eram os próprios [Escorbuto] Doença provocada pela falta da vitamina C, que resulta no apodrecimento das gengivas. oficiais os autores das violências [...]; alguns grumetes podiam mesmo prostituir-se como forma de obter proteção do adulto. (RAMOS, 2007, p. 27, grifo nosso). Nessa história luso-brasileira, há ainda outras perversões que merecem destaque. Olhando a partir do quesito gênero, meninas órfãs de pai eram retiradas à força de sua família e eram embarcadas sob a categoria de “órfãs do Rei”. Ramos (2007, p. 32) diz que, “dada a falta de mulheres brancas nas possessões portuguesas, a Coroa procurou reunir meninas e moças pobres de 14 a 30 anos, nos orfanatos de Lisboa e Porto, a fim de enviá-las à Índia”. A permanência dessas meninas-moças nos navios, sem contar com o cuidado de alguém que as protegessem, favorecia distintas formas de violências, desde o estupro até as privações alimentares. O cotidiano marcado por humilhações, fome, sede, fadiga, abusos sexuais era um dos grandes desafios enfrentados pelas crianças e pelos adolescentes embarcados. Ramos (2007, p. 49) afirma que a história do cotidiano infantil a bordo das embarcações portuguesas quinhentistas foi, de fato, uma história de tragédias pessoais e coletivas. A história das crianças, de qualquer ida- 33 de, nas naus do século XVI só pode ser classificada, portanto, como uma história marítima trágica, ou se preferirem como uma história trágico-marítima. As violências compõem a história da humanidade e se inscrevem como condutas que afetam diferentes sujeitos, de modo emblemático, crianças e adolescentes. A relação entre lugares e experiências enseja a importância de um pensamento complexo que englobe o mundo pensado e que encontre, na reflexão, uma forma mais adequada para construir explicações. O sentido dessas violências e o valor para o desenvolvimento peculiar de crianças e adolescentes decorrem da proximidade atribuída entre os lugares e as experiências, com seus dados genuínos. Ou seja, para falar das violências, torna-se indispensável situar onde elas acontecem e como buscam suas justificativas para que possamos discernir seus fundamentos e formular conhecimentos pertinentes, mesmo que provisórios. Nelson Mandela, quando escreveu o Preâmbulo do Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, deixou-nos como presente a sabedoria de seu estilo de luta para instigar a nossa reflexão. Ele nos lembra como as concepções vigentes estão encharcadas de heranças históricas: O século vinte será lembrado como um século marcado pela violência. Em uma escala jamais vista e nunca antes possível na história da humanidade, ele nos oprime com seu legado de destruição em massa, de violência imposta. Mas esse legado – resultado de novas tecnologias a serviço de ideologias de ódio – não é o único que carregamos, nem que devemos enfrentar. Menos visível, mas ainda mais disseminado, é o legado do sofrimento individual diário. É a dor das crianças que sofrem abusos provenientes das pessoas que deveriam protegê-las, mulheres feridas ou humilhadas por parceiros violentos, pessoas idosas maltratadas por aqueles que são os responsáveis 34 pelos seus cuidados, jovens oprimidos por outros jovens e pessoas de todas as idades que infligem violência contra si próprias. Este sofrimento – e há muitos outros exemplos que eu poderia citar – é um legado que se reproduz quando novas gerações aprendem com a violência de gerações passadas, quando as vítimas aprendem com seus agressores, e quando se permite que se mantenham as condições sociais que nutrem a violência. Nenhum país, nenhuma cidade, nenhuma comunidade está imune à violência, mas, também, não estamos impotentes diante dela. (KRUG et al., 2002, p. 09). 1.3 A escola arquitetada para a infância Compreender a função social da escola foi sempre um esforço de todos aqueles que dedicam sua inteligência a pesquisar esse tema e a ensinar ali. Esse esforço implica reconhecer, nessa escola, os espaços em que crianças e adolescentes estão inseridos e as concepções que sobre eles se desdobram como aprendizagens pretendidas. De algum modo, exige situar a escola como instituição feita de inter e transculturas, criadoras e reprodutoras de visões de mundo que formam os sujeitos. Kuhlmann Jr. e Fernandes (2004, p. 23) nos fazem pensar que a defesa da instituição escolar como o lugar da criança revestiu-se da ilusão de que a escola seria um meio de afastá-la da sociedade, foco da degeneração moral, de modo que, sob a condução de educadores incorruptíveis, ela fosse educada para uma vida regida por valores opostos aos vigentes. Os conflitos e as conquistas contemporâneos indicam que a escola cumpriu os desígnios da história no mesmo movimento em 35 que os contestou, forjando sinuosidades e descompassos em sua função social, com e sem determinismos que a enraízam na comunidade onde se materializa como instituição. [Visceral] A parte mais íntima de qualquer coisa. Para Kohan (2003, p. 15), “quando nos deixamos atravessar pela experiência”, esta produz incômodos e obstáculos, reconhecendo que as relações sociais são conflituosas por excelência. A escola não escapa desse contexto e vive sua contradição e inventividade atravessada pelas experiências que acumulou em processo. Esse sentimento nos aparece quando se efetiva o encontro com crianças violentadas, pois abarca todas as nossas experiências de infância e escolaridade. A construção de paradigmas sobre elas contribui para contornar, antropologicamente, modos de concebê-las nas práticas educativas, nos contextos de atenção às suas demandas viscerais e sociais, na maneira adultocêntrica como nelas encravamos o nosso mundo. É aí também que se pensa e se realiza a intervenção das políticas públicas, lapidadas pelos adultos para o seu pertencimento contemporâneo. Arroyo, em seu livro Ofício de Mestre (2000, p. 47) lembra que, paradoxalmente, a nossa capacidade de escuta sensível é renovada cada vez que nos dispomos, com toda a nossa corporeidade, a “ler e a escutar a história real, brutal da infância popular”. De tantos meninos e meninas, em suas faixas etárias diferentes, que jamais terão a oportunidade de retornar “à estação primeira da infância não vivida.” (ARROYO, 2000, p. 47). Compreender e empreender o cuidado com o desenvolvimento humano gera a disposição de acompanhar, com atenção, a “própria infância e adolescência, juventude ou vida adulta com que convivemos.” (ARROYO, 2000, p. 47). São estes e estas, nossa leitura inicial, o tema guia de nosso percurso educador, “nunca aprendida, nunca aprovada porque sempre surpreendente.” (ARROYO, 2000, p. 47). Com a mesma importância que refletimos a nossa prática, que elegemos os conteúdos dos projetos pedagógicos, somos desa- 36 fiados a não abandonar, por esquecimento, os sujeitos de nossa ação educadora e suas histórias de sofrimento. À volta à infância nos reeduca como educadores, torna-se nossa cúmplice. Saberes e ofícios diversos foram aniquilados pela industrialização com o advento das tecnologias. A escola, afetada por essa composição, perdeu aspectos de seu movimento peculiar e se viu obrigada a adequar-se às novas exigências do mercado. Relações interpessoais ganharam sentidos de produtividade, de cumprimento de normas padronizadas e hierárquicas, de decisões pouco democráticas e, principalmente, de controle das subjetividades. Imersa em resistências e contradições, incorporou saberes de guerra para a educação de crianças e adolescentes, confirmando processos tensos de eliminação dos ofícios e dos artífices. Com isso, a escuta da infância não aconteceu como se esperava, tampouco o prestígio de sua legitimidade em formação. Nesses embates, as comunidades construíram saberes culturalmente seus, que, na maioria das vezes, está em dissonância com o conhecimento escolar. Um exemplo de como se constituem processos paralelos que geram violências no interior da escola é o fato de crianças e adolescentes serem tratados a partir dos diagnósticos de deficiências. As influências do século XVIII marcaram, de modo extraordinário, a educação escolar ao transformá-la em epicentro das atenções, mas apenas nos momentos em que ela era indispensável para somar na manutenção das benesses dos segmentos dominantes da sociedade. A escola assumia a função de socializar os conteúdos científicos e técnicos e dela se exigia que garantisse a incorporação dos valores da sociedade capitalista emergente. No Brasil, as perspectivas sobre a educação dos sujeitos com deficiências foram se construindo paralelamente à educação das crianças consideradas normais, embora, na finalidade da escola, não estivesse contemplada a escolarização, pela via regular, 37 dos deficientes mentais por exemplo. Enquanto se promoviam políticas e práticas de inclusão das diferenças, situações de segregação, exclusão, manutenção do fracasso escolar e diversas violências eram gestadas. »»Em síntese... Este capítulo procurou retomar os referenciais sobre as violências e a interface com o cuidado, viajando pelas concepções historicamente construídas em torno da infância e as práticas instituídas de abandono que nossas crianças foram (e são) submetidas. E de algum modo, situar a escola como instituição feita de inter e transculturas, criadoras e reprodutoras de visões de mundo que formam os sujeitos. Isto porque ao longo da história a escola foi tomando contornos cada vez mais paradoxais, entre eles Sujeito Normal/Anormal, Inclusão/Exclusão, Sucesso/Fracasso escolar e Violências/Cuidado. »»Referências ABREU, Martha. Meninas perdidas. In: DEL PRIORI, Mary (Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1987. ARROYO, Miguel. Ofício de mestre: imagens e auto-imagens. Petrópolis: Vozes, 2000. BALANDIER, Georges. O contorno: poder e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. 38 BOFF, Leonardo. 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[Objetivo desse Capítulo] Dialogar com o fenômeno das violências apresentando suas formas e caracterizações, na multidimensionalidade dos contextos nos quais estão envolvidos os sujeitos, com suas práticas sociais. 43 2.1 Violências em formas que con-formam e de-formam Violência O movimento começou, o lixo fede nas calçadas. Todo mundo circulando, as avenidas congestionadas. O dia terminou, a violência continua. Todo mundo provocando todo mundo nas ruas. A violência está em todo lugar. Não é por causa do álcool, Nem é por causa das drogas. A violência é nossa vizinha, Não é só por culpa sua, Nem é só por culpa minha. Violência gera violência. Violência doméstica, violência cotidiana, São gemidos de dor, todo mundo se engana... Você não tem o que fazer, saia pra rua, Pra quebrar minha cabeça ou pra que quebrem a sua. Violência gera violência. Com os amigos que tenho não preciso inimigos. Aí fora ninguém fala comigo. Será que tudo está podre, será que todos estão vazios? Não existe razão, nem existem motivos. Não adianta suplicar porque ninguém responde, Não adianta implorar, todo mundo se esconde. É difícil acreditar que somos nós os culpados, É mais fácil culpar deus ou então o diabo. Fonte: Britto e Gavin (200-). 44 As violências são multiformes, tecidas tanto na sutileza das relações interpessoais, quanto nos gestos explícitos que con-formam a convivência social. Uma e outra de-formam a qualidade da nossa humanização porque fazem desaparecer a gentileza da escuta; destroem a suavidade da palavra em comunicação; asfixiam a reverência mútua presente nos diálogos; queimam a paciência para aprender o que ainda não se sabe e a generosidade para compartilhar as aprendizagens já consolidadas; geram prescrições e juízos de valor; escondem e dissimulam preconceitos, jeitos estigmatizantes de olhar o outro; insistem na anulação do diverso que difere; ampliam os espaços das ausências; degradam a possibilidade de uma cumplicidade em comunhão, como bem nos ensina Paulo Freire, onde nos dizemos, nos revelamos e nos construímos em presença uns dos outros. Eis porque se pode afirmar que as violências alcançam uma extensão sem medidas exatas. Elas atravessam conflitos de classes, fazem germinar práticas de segregação que mutilam culturalmente as pessoas, especialmente as mais empobrecidas. Vem à lembrança um dizer de Manoel de Barros, em O Casaco, intuindo-nos de que, mesmo em circunstâncias adversas, todos nós queremos amanhecer: Um homem estava anoitecido. Sentia-se por dentro um trapo social, igual se, por fora, usasse um casaco rasgado e sujo. Tentou sair da angústia, isto ser, ele queria jogar o casaco rasgado e sujo no lixo. Ele queria amanhecer. (BARROS, 2010). Quando as violências são justificadas, elas permitem que determinados atores, em conformidade com a posição que ocupam na organização do Estado e da Sociedade Civil, afirmem a necessidade do uso da força para subordinar alguém, fortalecendo o controle policialesco e gerando mais violências. A história traz como ilustração vários atores, dirigentes eleitos ou autoempos- 45 sados pelas ditaduras, chefes nomeados, gestores públicos, pessoas em postos culturais de mando. Associados às circunstâncias, encontram, nas violências, motivos de prazer, pelo poder que elas trazem em suas entranhas. São manifestações que elevam o prestígio pessoal, que aumentam a audiência dos meios de comunicação, e tentam convencer toda a sociedade de que a brutalidade é necessária para manter a ordem das coisas. A escola, com suas particularidades, também se inspira nessas convicções. Explica-se, com isso, por que as violências contra crianças e adolescentes são praticadas com certa constância por diferentes atores e em distintos lugares, com prevalência na esfera doméstica. A classificação mais usual denomina como formas de violências: violência física, psicológica e sexual. Essa especificação serve para construir indicadores que orientem as políticas públicas de prevenção e atenção. A violência sexual, por sua vez, é dividida em abuso e exploração sexual comercial; o abuso sexual em intra e extrafamiliar; a exploração sexual em prostituição, pornografia, turismo sexual e tráfico de pessoas para fins sexuais; a violência psicológica como tortura, produção de medo agregado com imagens e objetos de pavor, exigência de silenciamento sob ameaças verbais; violências físicas, como negligência alimentar e de vestuário, espancamentos, agressões com objetos que produzam dor e machucados corporais. (SOUSA, 2002). No entanto, uma análise mais rigorosa dessa classificação revela imprecisões e lacunas que não podemos deixar de apreciar, à medida que nenhuma forma de violência é exclusiva. Ao contrário, toda vez que violentamos alguém, o fazemos com recursos variados, usamos xingamentos e gestos que se acrescentam com a tonalidade da voz por exemplo. Para quem sofre aquela violên- 46 cia, inúmeras outras dores são sentidas na corporeidade, mesmo sem o consentimento da vítima, que desconhece as marcas que serão inscritas em sua vida a partir dessa experiência. Nesse sentido, a análise de situações objetivas pressupõe estabelecer interfaces subjetivas, já que essas diferentes formas de violências não são excludentes, mas associadas. Outro acontecimento que ilustra a nossa reflexão refere-se à violência sexual, uma forma de violência física e psicológica. Para nós, não há violência física separada do sofrimento psicológico. Na exploração sexual comercial, encontram-se presentes, além da exploração econômica, as violências estrutural, física, psicológica, social e moral. Isso nos faz compreender que lidamos todo o tempo com violências. Esse cenário não se origina de um simples nível isolado, mas de momentos em que a história de meninos e meninas constitui instâncias de possibilidades, quando o olhar sobre a infância e a adolescência não os desenraiza dos lugares social e histórico em que existem e quando são considerados como atores sociais, ainda que imersos em situações de vulnerabilidade e em experiências de exclusão decorrentes de um panorama coletivo de violências. E, ainda, quando os riscos que enfrentam estão associados às condições precárias de vida, ao uso de drogas, às diversas experimentações sexuais, à intolerância pública e privada, entre outros acontecimentos graves. Os educadores que atuam em escolas, Organizações Não-Governamentais (ONGs), na educação do campo e de jovens e adultos, ou em outros espaços pedagógicos, ainda carecem de formação continuada que lhes ajudem com alternativas de proteção. Nos encontros pedagógicos, revelam a necessidade de se considerar as relações entre infância, adolescência, juventude e violências como subsídios fundamentais para uma reflexão sobre o papel de uma “escola que protege”. A Educação, com todos aos saberes que engendra, incentiva a elaboração de projetos de inter- 47 venção, de ações organizadas que contemplem as referências vividas por crianças e adolescentes: as violências. É essencial desvelar o movimento real desse mundo, onde se constroem saberes dentro e fora da escola, nos movimentos sociais, mas que precisam dialogar e explicitar os propósitos de uma outra trajetória de vida para essa população, socialmente vulnerável. Pensamos, com efeito, que a formação continuada tem um papel definidor para que os educadores possam escolher realizar atividades político-pedagógicas de interlocução com muitos saberes, abertas aos novos projetos de vida para todos, principalmente para crianças e adolescentes. Com esse entendimento, vão considerar que existem públicos diferenciados, que os sujeitos que participam dos processos educativos estão sendo ensinados por eles. Como coloca Marques (1998, p. 145), tais processos se dão, desde os lugares das relações educativas imediatas e diretas, tais como os grupos primários, os grupos de convivência, de trabalho, de lazer, a sala de aula e, no interior dela, os subgrupos de alunos e professores, até nas articulações mais amplas mediadas por organizações e instituições de natureza econômica, política, cultural, educacional etc. Assim, todo trabalho escolar é entendido como uma prática político-pedagógica, ou seja, como um conjunto de ações intencionais precedido de reflexões, em que educadores/as e outros/as profissionais se encontram com um grupo de crianças, adolescentes, jovens ou adultos para realizar a sua docência centrada na vida. 48 2.2 Diferentes olhares para as violências Quando a mão arrogante insiste em possuir o outro, deixa de ser seda para tornar-se garra, fracassando o encontro e abrindo-se passagem à incorporação. A singularidade é devorada. A possibilidade do diálogo desaparece. A ternura é substituída pela violência (RESTREPO, 1998). Como já realçamos anteriormente, certos estudos sobre violências utilizam quatro tipos de classificação: a negligência, a violência psicológica, a violência física e a sexual. Essa classificação padronizada pode esconder questões subjetivas salutares para compreendermos as implicações inerentes às violências praticadas contra outrem. Ampliar nosso olhar para esse apanhado de informações significa mergulhar nessa complexa rede de espaços sociais que também promovem ações calcadas em gestos culturalmente agressivos, que nem sempre oferecem uma perspectiva atualizada da dimensão do problema a ser enfrentado na defesa dos direitos de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Gestos que não se guiam na perspectiva do cuidado de si e do outro, o que traduz um dos objetivos deste Curso de Especialização. Utilizaremos, como base para a reflexão dos diferentes olhares para as violências, o documento intitulado A Escola que Protege: enfrentando a violência contra crianças e adolescentes, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (BRASIL, 2007). 49 2.2.1 Violência estrutural: a expressão das desigualdades O Brasil é um país com enormes desigualdades econômicas e sociais, e sua população historicamente é separada em classes, com uma cultura adultocêntrica, pautada em valores sexistas, machistas, com nebulosos recortes étnicos e raciais, com padrões de normalidade que refutam sujeitos e expressões que escapem aos seus ditames. Então podemos afirmar que é um mito descrever este país como lugar em que vive “um povo” pacífico. As relações predominantes evidenciam uma nação extremamente violenta, que destrói vidas em proporções similares a de uma guerra civil, como mostram os conflitos de enfrentamento do narcotráfico nas grandes cidades. São conflitos de natureza sangrenta, os quais não cuidam inclusive de crianças e adolescentes enredados no uso que fazem de sua incipiente maturidade para tomar decisões e de suas condições de empobrecimento. Tratase, portanto, de violências cumulativas e excludentes. Estudos atuais revelam os altos índices de mortalidade de crianças e adolescentes, provocados por causas externas ligadas ao tráfico de drogas, pela atuação das gangues de extermínio de adolescentes em conflito com a lei, bem como, por homicídios, suicídios e acidentes de toda ordem. Minayo (1994) denomina esse conjunto de violência estrutural, que se caracteriza pelo destaque na atuação das classes, grupos ou nações econômicas, ou politicamente dominantes, que se utiliza de leis e instituições para manter sua situação privilegiada, como se isso fosse um direito natural. Apesar das garantias democráticas claramente expressas no texto da Constituição de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1999), as políticas públicas nem sempre estão comprometidas com o 50 princípio constitucional da prioridade absoluta às crianças e aos adolescentes. É o Estado um dos principais responsáveis pela violência estrutural e, para minimizar essa realidade, o Governo Federal busca criar e efetivar projetos e programas, tais como: Escola que Protege, Sentinela, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e o Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil no Território Brasileiro (PAIR). Embora haja um esforço institucional de enfrentamento das violências praticadas contra crianças e adolescentes, sabemos que a concretização das ações, muitas vezes, é cercada de ineficiências, mesclada por corrupções que desviam recursos e gera favorecimentos político-partidários, tornando insuficiente o efeito das políticas públicas e sem eficácia preventiva. Faltam pontes entre a apropriação do conhecimento gerado pela sociedade organizada em defesa dos direitos civis e as reais propostas de ação. Com relação às violências que se desdobram no ambiente familiar, por exemplo, ainda é muito recente a identificação desse problema, o que dificulta a adoção de medidas competentes, já que existem diferentes compreensões acerca do fenômeno. As instituições que realizam pesquisas contribuem para sistematizar indicadores que possam trazer subsídios em políticas de atenção às demandas sociais. Mas torná-las disponíveis para atender a diversidade das fontes originárias requer decisão política e escolhas por uma nação que se recusa a abandonar seus filhos. De posse das informações existentes e de inquéritos populacionais nacionais, o Estado reafirma sua disposição de enfrentar as violências que produz e minimizar os fatores que dificultam as ações em torno de estimativas mais acuradas. Ademais, é importante reconhecer que a maioria dos indicadores sistematizados na área da vulnerabilidade infantojuvenil, por 51 exemplo, reflete somente os casos mais visíveis e/ou graves de violências. Possivelmente, a escassez de uma metodologia básica capaz de gerar um reconhecimento mais abrangente e situado nas rotinas das instituições poderia trazer clareza na formulação de diretrizes eficientes, abertas ao diálogo e estimuladas a estabelecer fluxos adequados dessas informações entre todas as instâncias responsáveis pelo cuidado de crianças e adolescentes. Queremos dizer que, lamentavelmente, há instituições envolvidas na Rede de Proteção que também contribuem para o agravamento da situação. 2.2.2 Violências simbólicas: a construção da inferioridade O conceito de violência simbólica foi criado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu para descrever o processo pelo qual a classe que domina economicamente impõe sua cultura aos dominados. Bourdieu, juntamente com o sociólogo Jean-Claude Passeron (1970 apud BRASIL, 2007, p. 32), parte do princípio de que a cultura, ou o sistema simbólico, configura-se como artefatos arbitrários, uma vez que se assenta em uma única realidade, tecida por mitos e preconceitos que são dados como naturais. São exemplos disso: a mulher é mais fraca do que o homem; os negros são menos inteligentes do que os brancos; todo adolescente é revoltado; o homossexual é um doente; os pobres são preguiçosos (MINAYO, 1994). Há outros que continuamos a afirmar: os homens violentam as mulheres porque elas os provocam; mulher apanha porque merece; em briga de marido e mulher ninguém mete e a colher; as famílias pobres são desestruturadas. O sistema simbólico de uma determinada cultura é uma construção social. Sua manutenção é fundamental para a perpetuação 52 de uma determinada sociedade, como o modelo capitalista em que vivemos, através da interiorização dos aportes culturais dominantes pelas pessoas. Ele se traduz na imposição “legítima” e dissimulada dos valores e símbolos de poder que se tornam naturais, inquestionáveis e mesmo invisíveis no dia-a-dia. Pense sobre isso! Podemos definir violências simbólicas como exercício e difusão de uma superioridade fundada em mitos, símbolos, imagens, afirmações, mídia e construções sociais que discriminam, humilham, inferiorizam, excluem. Outra possível acepção é a de que se trata do estabelecimento de regras, de normas, crenças e valores que obrigam o outro a consentir pela obediência, pela dominação ou servidão. A escola, como um dos lugares de formação humana, tem um papel fundamental na introjeção e na desconstrução das violências simbólicas e das práticas culturais da inferiorização que abrangem gênero, raça, etnia, classe social, escolaridade e geração. 2.2.3 Violências institucionais: onde falta o cuidado, submerge a proteção As violências institucionais têm diferentes fisionomias e se caracterizam por estar sempre associadas às condições específicas dos locais onde ocorrem: nas prisões, nos hospitais, nas ruas, nos postos de saúde, no ambiente familiar, nas escolas, nos abrigos e nas casas de passagem, nos tribunais e ministérios, nos espaços onde há relações hierárquicas e verticais instaladas para assegurar uma situação contínua de mando e obediência. Essas violências acontecem porque, nas instituições, são criadas as condições materiais e simbólicas, de forma que “os gestores” e “seus” funcionários possam exercer o que aqui denominamos como violência estrutural. 53 Com outras configurações, encontramos instituições subordinadas, nas quais se mantém a precariedade do quadro de pessoal e de equipamentos modernos; onde se repetem cotidianamente as filas de espera, justificadas pela falta de material de trabalho, pelos horários inadequados de atendimento, pela ausência de profissionais. Ou seja, muitos são os adereços que procuram justificar a insuficiência do atendimento à população, embora deixem transparecer que ele existe, conservando o desrespeito aos direitos essenciais dos usuários. Essas práticas são também manifestações de violências. Nelas habitam outros tipos de violências que podem passar despercebidos: é a negligência profissional. Seu espectro mais visível é o desprezo dedicado à esfera pública, o desinteresse para com as pessoas e suas necessidades imediatas, caracterizados pelo despreparo na formação, ou pela preguiça social, em que o outro se torna indiferente. Perduram as violações de direitos, como é o caso de crianças e adolescentes, ignorados na validade de seus pleitos e negligenciados pela ineficiência profissional, ou pela falta de compromisso político. Embrutecidos em suas condições de trabalho, muitos profissionais se tornam “inabilitados” para identificar os sinais de risco e as marcas de atitudes violentas que estão em curso e que poderão levar a outras violências, tais como o abuso sexual, ou até mesmo a morte (L’APICCIRELLA, 2006 apud BRASIL, 2007, p. 33). É urgente nos perguntarmos: como foram sendo colocadas e aceitas as vendas que tampam ou embaçam o nosso olhar, no espaço institucional em que atuamos? Michel Random (2002, p. 26), ao refletir sobre “o território do olhar”, de imediato nos pergunta: “está nosso olhar limitado aos nossos sentidos, a nossas avaliações, a nossa subjetividade? Um olhar que, infinitamente, se refletiria em seu próprio espelho?” É possível perceber as realidades que se derramam por sobre nossos corpos, pelo chão 54 onde nossos pés pisam? O que se esconde atrás de nosso olhar viciado, intoxicado de tanto ver o mesmo? É possível um novo jeito de olhar o outro, a nós, aos nossos lugares? O que é preciso para que possamos agir com amor ao próximo, sem negligenciar as ações políticas em todas as suas acepções? Nosso olhar conduz nossa maneira de agir na presença e na ausência do outro, o que serve para enrijecer ou para facilitar as oportunidades de transformação daquilo que vivemos. Nada nos acontece fora de nossa experiência, porque nada se situa fora de nossa interioridade; por isso Maturana (1997) não nos deixa esquecer que nada do que fazemos, dizemos ou pensamos é trivial; nada em nossas atitudes é inconsequente; tudo está implicado no todo do qual somos parte e totalidade a um só tempo. Para Random (2002, p. 28), é quase impossível vislumbrar até que ponto nada está separado na ordem orgânica e cósmica, em que o real é uma interação instantânea entre o local e o global, o subjetivo e o objetivo, o infinitamente pequeno e o infinitamente grande. Nós é que aprendemos o mecanismo sutil de inventar distanciamentos, acreditando que assim podemos não nos envolver com o mundo do qual somos co-criadores. 2.2.4 Negligência e abandono: a existência em negação A negligência é um tipo de relação construída entre adultos e crianças ou adolescentes e é baseada em atitudes de omissão, de rejeição e descaso. Manifesta-se através da indiferença para com as suas necessidades vitais, do descompromisso com a sua 55 condição de autonomia, do desinteresse sobre os riscos a que é submetido. A negligência está onde fixamos a negação da existência. Dados estatísticos de serviços de proteção e assistência a crianças e adolescentes, como o Disque-Denúncia e o SOS, revelam que a negligência é uma das formas de violência mais reiterada. A negligência nem sempre é claramente assimilada em seus estilos e extensões. Na área da saúde, apenas para ilustrar, crianças negligenciadas são aquelas que apresentam baixo peso, não recebem as vacinas recomendadas; que não frequentam a escola; que são deixadas sozinhas em casa, sem o olhar atento de um adulto; que não se alimentam de nutrientes que assegurem a saúde; que são submetidas ao trabalho infantil, em detrimento de seu bem-estar geral; que cumprem responsabilidades características de adultos. Há, no entanto, modos de negligências inadmissíveis na atualidade, mas que perduram sob o nosso conhecimento, como se fossem invisíveis: 56 • O abandono, que forja o viver nas ruas, talvez a forma extrema do descuido; • Crianças que não são registradas; pais que não reconhecem e não fazem o registro da paternidade; • Crianças “deixadas/entregues/dadas sem papel passado” a familiares, ou conhecidos, ou mesmo desconhecidos; • Crianças “pingue-pongue”, que circulam de “mão em mão” e que “não são de ninguém”; • Crianças e adolescentes que assumem responsabilidades de adultos, ao cuidarem de si e de irmãos pequenos; • Crianças que assumem o trabalho doméstico no lugar de adultos; • Crianças e adolescentes que contribuem para a renda ou para o sustento familiar através de orçamento advindo da mendicância, do trabalho infantil, da exploração sexual; • Meninos e meninas em contextos de rua, sem proteção e expostos às violências familiares ou comunitárias; • Meninos e meninas imersos no uso e tráfico de drogas, desde a mais tenra idade, submetidos a uma miséria avassaladora e a crueldades indescritíveis. 57 Peregrinando diante dos adultos e de seus preconceitos, dos discursos arraigados que fomentam suas desculpas, crianças e adolescentes sofrem os resultados das negligências, embora seja a figura materna quase sempre aquela que é responsabilizada publicamente. É importante reafirmar, contudo, que, segundo o artigo 4° do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), a família, a comunidade, a sociedade em geral e o Poder Público são responsáveis pela proteção desses sujeitos e devem assegurar a efetivação de seus direitos. A negligência, nesse sentido, traduz-se como negação e falta de responsabilidade da família, da comunidade, do governo e da sociedade. Na falta de proteção e de cuidado para com as crianças e os adolescentes, esconde-se a inexistência de uma relação amorosa, a falta de reconhecimento da condição peculiar infantojuvenil; a incapacidade prática de valorizá-los como sujeitos de direitos. A não-escuta às suas necessidades provoca profunda adulteração em seu crescimento pessoal e lhe atribui referências negativas sobre como as pessoas convivem na coletividade. Crianças e adolescentes negligenciados, ao viverem situações de abandono, de privação e de exposição aos riscos, estarão sendo “formados” pelos adultos para a possibilidade de tornarem-se adultos violentos, à medida que são essas as referências culturais e afetivas que lhes ensinamos. Como vão se relacionar familiares e filhos/ filhas daqui a dez ou vinte anos por exemplo? Quais os ensinamentos que interiorizaram os meninos e as meninas violentados agora pelos adultos, muitas vezes, integrantes de seu núcleo familiar, ou próximos deles? Como a escola insere essas questões na sua dinâmica curricular? De que maneiras nós conjugamos no cotidiano os verbos proteger, cuidar, zelar, amar? É importante destacar que a negligência é apenas o primeiro estágio e também um fio da meada para os desiguais contornos que cercam as violências praticadas contra crianças e adoles- 58 centes. Quando são protegidos, cuidados, amados e respeitados, eles dificilmente serão expostos a vulnerabilidades e terão a oportunidade de se tornarem adultos socialmente responsáveis (MATURANA, 1997). As sequelas físicas, psicológicas e sociais das negligências são extremamente graves, pois se acomodam como ausências de um afeto qualificado, da socialização dos direitos de filiação, de convivência familiar, de nacionalidade, de cidadania. 2.2.5 Violência física: a corporeidade em sofrimento A violência física contra crianças e adolescentes se revela como relação social de poder, na qual as marcas são deixadas na corporeidade, machucando-a, causando-lhe lesões, ferimentos na pele e na alma. [Corporeidade] O termo corporeidade pretende expressar um conceito não-dualista do organismo vivo. Sair das polarizações semânticas contrapostas: corpo/alma; matéria/espírito; mente/cérebro. Assmann (1999, p. 150) assegura que o conceito de corporeidade está “a serviço de temas urgentes como: a aprendizagem como processo corporal; o estatuto do corpo na era virtual; a ameaça do neoplatonismo com o advento da inteligência artificial e da vida artificial. [...]. A corporeidade constitui a instância básica de critérios para qualquer discurso pertinente sobre o sujeito e a consciência histórica. A corporeidade não é fonte complementar de critérios educacionais, mas seu foco irradiante primeiro e principal. De maneira visível, os espancamentos, as torturas com uso de objetos produzem fraturas, queimaduras, traumatismos, hemorragias, escoriações, lacerações, arranhões, mordidas, equimoses, convulsões, inchaços, hematomas, mutilações, desnutrição e até morte. A violência física se apresenta diversamente e, quando aguda, suscita a gravidade do quadro clínico, o que propicia mensurar a intensidade da força física utilizada pelo agressor, o grau de sofrimento causado à vítima, o agravamento dos ferimentos ocasionados pela frequência com que é aplicada e pelas sequelas que provocam na corporeidade. Tipos mais comuns de violência física: • A disciplina física abusiva, com fins corretivos: tapas, surras e agressões com qualquer tipo de objeto; 59 • Torturas utilizando instrumental sádico, ou simbólico, para aterrorizar a criança com imagens ou promessas de aniquilamento; • Privações físicas deliberadas que impedem crianças e adolescentes de se alimentar, ou de ingerir água; • Restrições de movimentos com a prática do confinamento; • Privação ou transferência de abrigos, por meio da expulsão do lar, da colocação em outra residência, da internação; • Trabalho forçado e inadequado à idade e ao desenvolvimento do sujeito; • Eliminação física com o assassinato; • Violência sexual. Essa modalidade de violência é sempre acompanhada pelo medo, pelo terror, pela submissão, pelo espanto, pelo sofrimento psíquico, constituindo-se ao mesmo tempo em outras violências que afetam a dimensão biopsicossocial-espiritual dos sujeitos violentados. No âmbito familiar, essas violências fazem uso da força e do poder na relação de superioridade ou de autoridade que uma pessoa exerce sobre outra, ou que dela depende, ou que a ela está vinculada por laços afetivos, de parentesco ou de trabalho, entre outros. Em determinadas situações, a violência física é acobertada pelo silêncio, pela negação da autoria ou da vítima, cercada de mentiras que buscam “apagar” as marcas. Nos casos de referência em serviços de saúde, essas marcas são muitas vezes justificadas como se tivessem sido causadas por acidentes. A violência física praticada contra crianças e adolescentes é uma forma de violação dos Direitos Humanos universais e dos direitos peculiares à pessoa em desenvolvimento, assegurados 60 na Constituição Brasileira, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Normativa Internacional. O Código Penal, no artigo 129, prevê como crimes as lesões corporais dolosas e culposas. As situações de violência física são, muitas vezes, atendidas pelas instituições da área da saúde, que, obrigatoriamente, devem encaminhar os casos ao Conselho Tutelar. Essas ocorrências, por se caracterizarem como crimes, precisam ser notificadas aos órgãos policiais. [Conselho Tutelar] Órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, com atribuições definidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1999). 2.2.6 Violência psicológica: autoimagem comprometida A violência psicológica sedimenta a relação de poder desigual entre adultos dotados de autoridade e crianças e adolescentes sob seu domínio. Esse poder é exercido através de atitudes arbitrárias de mando, seguidas quase sempre de agressões verbais, chantagens, regras excessivas, ameaças, inclusive de morte; de humilhações, desvalorização, estigmatização, desqualificação, rejeição, isolamento; de exigências de comportamentos “éticos” inadequados, ou acima da capacidade do indivíduo; de exploração econômica ou sexual. Essa forma de violência é corriqueira, embora seja a modalidade que menos se notifica junto aos órgãos de proteção, porque raramente é identificada como violência e em função do alto grau de tolerância da sociedade frente a esse tipo de abuso. Quase ninguém denuncia ou responsabiliza familiares, parentes, professores, policiais, profissionais da saúde e da assistência, entre outros, que desqualificam, aterrorizam, fazem chantagens ou humilham crianças e adolescentes. 61 Diferentemente da violência física, a violência psicológica não deixa traços imediatamente visíveis no corpo. Contudo, destrói com mais vigor a autoimagem do violentado, o que se exprime no comportamento “desajustado” da criança ou do adolescente, principalmente na escola. Ela provoca traumas emocionais que podem danificar o psiquismo dessa população, suas atitudes e a qualidade do afeto inter-relacional com a natureza, traduzindose até mesmo na inabilidade da criança ou do adolescente de interagir socialmente, de acordo com as condições consideradas próprias de sua idade. Esse sujeito tem como probabilidade tornar-se passivo diante do sofrimento a ele impetrado, ou agressivo perante qualquer situação que se assemelhe a sua vivência de dor e pânico. Não é raro que a vítima tenha uma imagem deteriorada de si mesma, com baixa estima ou depressão. Pode mostrar-se extremamente ansiosa, ou negligente consigo, apresentando condutas de desatenção, alucinatórias e estranhas, vindo até a perder a pulsão de vida e a energia que caracterizam uma criança. Às vezes, a violência psicológica pode levar ao suicídio quando as exigências ou o abandono se tornam insuportáveis. Como uma forma de crueldade mental, pode estar associada ou combinada com a violência sexual e com a violência física. A violência psicológica situa-se no conceito geral de violência como uso ilegítimo da autoridade decorrente de uma relação de poder. Assim, no lugar de oferecer a proteção, que é o seu dever, o adulto se relaciona com a criança por meio da agressão verbal, gestual e do domínio, invertendo o seu papel de educador. Essa inversão da proteção em opressão sedimenta a “despaternalização”, ou seja, o indeferimento do papel social e pessoal de pai e mãe, do poder familiar, muitas vezes ligada a uma tradição autoritária da disciplina. Nesse caldo cultural que transmite, de geração em geração, uma relação complexa de dominação/submissão, parece normal, e 62 até natural ou inquestionável, o domínio do adulto macho, da mãe repressiva e dos chefes arbitrários. Esse autoritarismo se espalha nas formas incorporadas de violências de gênero, no massacre das individualidades, na opressão dos subalternos. Não é somente na família que essa violência se revela, mas também na escola, nos serviços públicos, nos meios de transportes e de comunicação, nas relações entre os próprios adolescentes ou com seus irmãos mais jovens. A violência psicológica tem como pressuposto cultural a noção de que a criança é alguém que só age sob o medo, a disciplina e a intimidação, devendo aceitar a intolerância do dominante como uma atitude que lhe educa. O lugar da criança foi desenhado ao longo da história como lugar de objeto, de um ser incapaz, de menor valor. Esse lugar continua a ser mantido com estratégias que forçam crianças e adolescentes a obediência servil, sem discussão ou outra forma de resistência, para que se submetam às punições que castigam qualquer desvio da ordem estabelecida de cima para baixo. Os projetos familiares e os desejos de pais e mães, quando não são bem elaborados, por vezes, resultam em violência psicológica. Crianças e adolescentes são forçados a realizar projetos familiares acerca da profissão a seguir, ou usados como objeto de chantagem nas brigas de casais. Interferem também na violência psicológica as situações de alcoolismo que envolvem relações parentais, de ciúmes e de vingan- 63 ças. Do ponto de vista da intervenção profissional, a violência psicológica é vista como uma questão de saúde e bem-estar e precisa ser enfrentada tanto no âmbito das relações familiares quanto no contexto cultural. Eis por que é interessante construir uma intervenção em redes, levando-se em conta a convivência das crianças e dos adolescentes com todos os adultos que fazem parte de seu grupo comunitário. Essas relações precisam ser curadas dos sofrimentos, em suas múltiplas dimensões: cultural, educativa e afetiva. Nessa abordagem, o sofrimento da criança e do adolescente ganha o foco da atenção terapêutica, através de intervenções que podem ser realizadas por diferentes profissionais. A intenção é transformar as relações de dominação em convivência de parcerias, incluindo os agressores nessa dinâmica para interromper o ciclo das violências. 2.2.7 Violência sexual: o uso perverso da sexualidade do outro A violência sexual contra a criança e o adolescente se configura como uma das violações de seus direitos e se caracteriza pela transgressão da sua intimidade, com base em relações de mando e obediência. É marcada pela perversão e pela ausência de escolhas quando a vítima é uma criança. A luta para superar essa forma de violência é dificultada pela circunstância complexa de seu enredo, quando deriva, em muitos casos, do envolvimento de grupos que atuam em rede. Além de violar Direitos Humanos universais e peculiares à pessoa em desenvolvimento, esse tipo de violência ameaça a integridade física e psicológica, destrói o sentido de respeito que é ensinado à criança e ao adolescente, empobrece a condição de dignidade e faz adoecer sua existência. A violência sexual, no 64 âmbito familiar, deturpa o direito a uma sexualidade segura e os princípios de uma convivência doméstica protetora. Na exploração sexual comercial, o explorador infringe o direito da criança e do adolescente de não ser explorados economicamente, de não trabalhar antes dos 14 anos, e, após os 14 anos, como aprendiz, em condições honestas, que não ofereçam perigo à vida. A violência sexual praticada com essa população, além de inaceitável, é ilegal, fere a ética e transgride as regras sociais e familiares de convivência mútua e de responsabilidade dos adultos. Contrapõem-se as possibilidades de uma vida familiar e comunitária livre de ameaças. Nesse sentido, podemos afirmar que a violência sexual é o abuso delituoso de crianças e adolescentes, em especial de sua sexualidade. É considerada uma ação criminosa na legislação brasileira, já que o poder do adulto agressor sobre crianças e adolescentes é arbitrário e desestrutura a identidade da pessoa violentada. A violência sexual acarreta diversas consequências negativas às crianças. Citaremos algumas: • São deturpadas as relações socioafetivas e culturais entre adultos e crianças/adolescentes, ao transformá-las em relações genitalizadas, erotizadas, comerciais, violentas e criminosas; • Crianças e adolescentes violentados se sentem confusos quanto aos papéis dos adultos, o que descaracteriza as representações sociais de pai/mãe, irmão/irmã, avô/avó, tio/tia, professor/a, religioso/a, profissional, empregador/a. Perde-se a legitimidade da autoridade do adulto e de suas atribuições educativas; • Inverte-se a natureza das relações entre adultos e crianças/adolescentes tornando-as: desumanas; negligentes em lugar de protetoras; agressivas e não-afetivas qualitativa- 65 mente; individualistas e narcisistas em lugar de solidárias; dominadoras em lugar de democráticas; controladoras em vez de libertadoras; perversas em lugar de amorosas; desestruturadoras em lugar de socializadoras; • É possível que se estabeleça, no sujeito violentado, estruturas psíquicas, morais e sociais pervertidas, principalmente nos casos de abusos sexuais de longa duração e na exploração sexual comercial. A violência sexual pode acontecer de várias formas: através do contato físico, por meio de carícias não desejadas; com penetração oral, anal ou vaginal; com introdução do pênis ou de outros objetos nos genitais e em outras partes do corpo da criança e do adolescente; através da masturbação forçada, entre outras. Também sem contato físico, por exposição obrigatória a material pornográfico, a situações de exibicionismo, ao uso de linguagem erotizada e em contextos inadequados. 2.2.8 Abuso sexual O abuso sexual contra crianças e adolescentes é a marca de um relacionamento interpessoal sexualizado, privado, com base numa dominação perversa, e geralmente mantida em silêncio, ou em segredo, forçados por ameaças ou compensações materiais. Os episódios de abusos sexuais, longe de serem idênticos, distinguem-se profundamente, seja pelo autor da violência sexual, pelo seu grau de parentesco com a vítima, seja pela autoridade e responsabilidade em relação ao vitimizado. Também pela idade e sexo da vítima e do abusador, pelo tipo de violências cometidas, pela duração e frequência, pelo local em que o abuso comumente acontece. Nas situações de abuso sexual, crianças ou adolescentes são usados para gratificação orgástica de um 66 adulto, ou mesmo de um adolescente mais velho, o que pode incluir, desde a manipulação da genitália, das mamas, até a exploração sexual, o voyeurismo, a pornografia, o exibicionismo e o ato sexual, com ou sem penetração. Caso Araceli: 18 de maio Dia Nacional de Combate ao Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes Araceli Cabreira Crespo tinha 8 anos de idade e morava em Vitória, Espírito Santo. Era o dia 18 de maio de 1973, e ela não havia voltado do colégio. Seu pai começou a procurá-la pela cidade e, sem a encontrar, espalhou fotos suas pelas redações de jornais. Seis dias depois seu corpo foi encontrado: ela havia sido drogada, estuprada, torturada e morta. Seu corpo estava desfigurado com ácido, para que não houvesse possibilidades de identificação. Conta-se que o corpo de Araceli foi identificado pelo seu cachorro, de nome Radar, ainda na gaveta do IML. Aí começou uma das investigações mais confusas na história criminal do país. Os supostos assassinos, filhos de famílias ricas de Vitória, foram absolvidos. As provas do crime destruídas. A mãe da menina, dona Lola, uma boliviana que retornou ao país de origem logo depois da morte de Araceli, traficava drogas e foi, indiretamente, acusada de participação no crime, pois teria pedido à menina que entregasse um envelope em um determinado edifício, na tarde do seu assassinato; era aquele o local onde Araceli fora morta. O tempo passou e o crime prescreveu sem a punição dos culpados. Por esse motivo o Dia 18 de Maio se transformou em Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. 67 A dominação sexual perversa é uma construção deliberada, paciente e ritualizada. Ela é gerativa de um relacionamento cruel, que se mantém através da dominação do outro em ocorrências de longa duração. Começa por um processo de sedução, que consiste na conquista sutil, mas que, aos poucos, vai anulando a capacidade de percepção e de decisão da vítima. Nesses rituais, meninos e meninas são dominados e sujeitados ao aprisionamento de uma rede nefasta de abusos. Furniss (1993) e Perrone e Nannini (1995 apud BRASIL, 2007, p. 40) identificam, nos abusos sexuais repetitivos, uma dinâmica capaz de gerar o “enfeitiçamento” que mantém a pessoa vitimizada como que “sequestrada” e envolvida em uma armadilha da qual não pode e nem sabe como se livrar. Esse processo de aprisionamento é edificado através de uma trama emocional contraditória, de amor e ódio, de sedução e ameaça, que faz com que a vítima, aterrorizada, permaneça imobilizada ou “anestesiada”. Como uma trama, mantém-se e se solidifica através de rituais que envolvem o silenciamento do abusado, por meio de chantagens ou de uma forma de comunicação muito particular; uma forma perversa de anticomunicação; um monólogo que tem por objetivo ocultar, confundir, amedrontar e manter o poder através de não-ditos, silêncios, reticências, subentendidos. Suas formas preferenciais de “comunicar” sem dizer claramente são: a mentira, o paradoxo, o sarcasmo, o desprezo, a desqualificação, as mensagens de duplo sentido, a tonalidade de voz fria, a intriga, o olhar dominador, as ordens. A dominação sexual perversa exercida por adultos contra crianças e adolescentes pode ser incestuosa ou não, hetero ou homossexual. Ocorre, geralmente, em lugares fechados (residências, consultórios, igrejas, internatos, hospitais, escolas) e inclui diferentes e variadas formas de relações abusivas. É incestuosa quando o violentador é parte do grupo familiar (pai, mãe, avós, 68 tios/as, irmãos/ãs, padrasto, madrasta, cunhados/as). Nesses casos, considera-se família não apenas a consanguínea, mas também aquelas adotivas e substitutas. Os violentadores, conhecidos da vítima e/ou de sua família, aproveitam-se da confiança que gozam, do status que possuem na convivência, do papel e do poder que desfrutam, do lugar de privilégio que os põe em contato direto e continuado com a vítima, da cobertura legal e pouco sujeita a suspeitas de que dispõem. Nas situações em que o abusador é amigo da família, invariavelmente, ele exerce uma espécie de fascinação, tanto sobre sua vítima, quanto sobre seus familiares, apresentando-se como uma pessoa agradável, simpática, generosa, serviçal e atenciosa com todos, especialmente com a vítima e com seus pais. Em diversas ocasiões, o agressor promove maneiras de favorecer economicamente a família (ABRAPIA, 1992 apud BRASIL, 2007, p. 40). Há um completo descasamento de níveis e tratamentos por parte do grupo familiar e dos órgãos que compõem a Rede de Proteção, com conversas dissonantes e explicações entrecortadas por julgamentos e outras inadequações no atendimento. Não se pode negar que, embora com tantos esforços, as dissonâncias produzem ineficiências e deixam a Rede de Proteção vulnerável no cumprimento de seu papel social. 2.2.9 Exploração sexual comercial Leal e Leal (2002, p. 18) definem a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes como uma relação de mercantilização (exploração/dominação) e abuso (poder) do corpo de crianças e adolescentes (oferta), por exploradores sexuais (mercadores), organizados em re- 69 des de comercialização local e global (mercado), ou por pais ou responsáveis, e por consumidores de serviços sexuais pagos (demanda). Além de exploração econômica, a exploração sexual de crianças e adolescentes obrigados ao mercado do sexo é uma violência e um crime. Por seu caráter econômico, a exploração deve ser estudada e compreendida no contexto do sistema capitalista e da sociedade de consumo globalizados, em suas articulações com as atividades mercantis dos territórios onde ocorre. A exploração sexual comercial, que enreda crianças e adolescentes, acontece num mercado específico: o mercado do sexo, que toma a corporeidade do outro como mero objeto de satisfação alheia. Esse mercado abrange, de maneira profundamente articulada, o agenciamento sexual e a indústria pornográfica. É sustentado pelo lucro derivado da exploração do trabalho sexual, de mão-de-obra de adultos subordinados e da população infantojuvenil. Sustenta-se como um mercado clandestino que funciona fora das normas legais de outros comércios, sem registro, sem o pagamento de impostos ou emissão de notas fiscais. Como um negócio ilegal, as empresas do sexo tendem a atuar com uma cobertura legal, na base de propinas e com um “nome fantasia” que não corresponde à verdadeira atividade comercial ou aos serviços de fato ofertados. Enquadram-se nessa situação muitas boates, bares noturnos, hotéis e pousadas, bem como agências de modelos, agências de viagem e de turismo, entre outros. É interessante notar que a clandestinidade do mercado do sexo é de certa forma ambígua, pois as “mercadorias” comercializadas são altamente expostas. A oferta de serviços sexuais, restrita durante séculos quase que exclusivamente à prostituição, vem-se ampliando e se diversi- 70 ficando. Com o desenvolvimento da tecnologia, dos meios de comunicação de massa, da internet e da sociedade de consumo, bem como com a liberalização sexual, o comércio do sexo tornou-se variado e desenvolveu-se extraordinariamente com o apoio da indústria pornográfica. A produção de mercadorias e serviços sexuais contempla a fantasia generalizada de pedófilos e outros abusadores. Atualmente encontra-se, no mercado do sexo, uma multiplicidade de produtos e serviços, com distintos níveis de qualidade e preço. Há também uma significativa diversidade no perfil dos consumidores e de profissionais que esse mercado emprega (LEAL, 2002 apud BRASIL, 2007, p. 41). É lucrativo e abrangente o mercado consumidor de serviços sexuais, pois o sexo, numa economia capitalista, é considerado um artigo altamente vendável e valorizado, principalmente quando praticado com jovens, considerado uma iguaria de significativo valor mercadológico. A essa cultura se associam outros produtos comercializados: pessoas, shows eróticos, fotos, revistas, objetos, vídeos e filmes pornográficos. O conceito e as concepções acerca da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes evoluíram nas duas últimas décadas. Durante muitos anos, a presença de crianças no comércio sexual confundia-se com a prostituição infantojuvenil. O incremento do turismo sexual, a rápida expansão do sexo via a internet, levaram à compreensão de que a pornografia, o turismo sexual e o tráfico para fins sexuais são também formas de exploração de crianças e de adolescentes, no organizado negócio de produção e comercialização de “mercadorias” sexuais. Hoje também há uma compreensão das dimensões política e ética do fenômeno, encarado como uma questão de cidadania e de Direitos Humanos, cuja violação constitui um crime contra a humanidade. Há diversas visões a respeito do uso de crianças e adolescentes no mercado do sexo: uma forma moderna de es- 71 cravidão; uma das piores formas de trabalho infantil (OIT); uma exploração sexual comercial – concepção adotada no I Congresso Mundial contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças, realizado em agosto de 1996, em Estocolmo. Entre as formas de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, é importante ressaltar que são de tal modo articuladas e inter-relacionadas que se torna difícil definir uma delas sem citar as demais. Um exemplo claro disso é o tráfico de mulheres, que abastece os centros da prostituição, da pornografia e do turismo sexual. 2.2.10 Prostituição A prostituição é entendida como uma atividade na qual atos sexuais são negociados em troca de dinheiro, da satisfação de necessidades básicas como alimentação, vestuário, abrigo, ou do acesso ao consumo de bens e serviços. A prostituição tem 72 diferentes configurações, serviços e preços e pode ser exercida por garotas ou garotos de programa, em bordéis, nas ruas, em estradas, em barcos. Testemunhos de vítimas, pesquisas e a bibliografia sobre essa problemática no Brasil evidenciam que crianças e adolescentes envolvidos na exploração sexual comercial trabalham, em geral, nas ruas das cidades, nos portos, nas estradas ou em bordéis, na maioria das vezes sob ordens de cafetões, cafetinas e agenciadores/as. Em especial na Região Norte do Brasil, eles/elas seviciam meninas e meninos que trabalham em regime de escravidão e que normalmente estão envolvidos com o turismo sexual e o tráfico para fins sexuais. Muitas dessas crianças e desses adolescentes moram nas ruas, são vítimas de violências e encontram-se em circunstâncias de extrema pobreza e exclusão social. De ambos os sexos, crianças, pré-adolescentes e adolescentes quase sempre têm pouca ou nenhuma escolarização. As atividades a que são obrigados/as a realizar são extremamente perigosas e eles/elas estão sujeitos a todo tipo de violências, da repressão policial à discriminação. Profissionais, pesquisadores e estudiosos dessa temática questionam a adoção do termo “prostituição” quando envolve crianças e adolescentes. Consideram que esses sujeitos não optam espontaneamente por esse tipo de atividade, mas são cooptados para praticá-la e, portanto, são prostituídos. São induzidos por adultos, por suas próprias carências e imaturidade emocional, bem como pelos apelos da sociedade de consumo. Nesse sentido, não podem ser caracterizados como trabalhadores do sexo, mas sim como prostituídos, abusados e explorados sexual, econômica e emocionalmente. Os clientes, os empregadores e os intermediários que induzem, facilitam ou obrigam crianças e adolescentes a se prostituir são todos considerados exploradores sexuais, portanto, criminosos. 73 2.2.11 Pornografia Trata-se da produção, exibição, divulgação, distribuição, venda, compra, posse e utilização de material que transforme a sexualidade humana em cenas bizarras, imorais e pornográficas. Inclui material como vídeos, revistas, espetáculos, mas também textos literários, fotografia, publicidade, cinema, quando apresentam ou descrevem explícito caráter pedófilo, com situações envolvendo crianças desejadas, expostas e usadas sexualmente por adultos. Pela utilização de criança e adolescente na pornografia se entende toda representação por qualquer meio, dedicada a atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou toda representação das partes genitais de uma criança ou adolescente com fins primordialmente sexuais. No Brasil, a pornografia infantojuvenil é muito pouco estudada, o que gera uma ausência significativa de pesquisas e de bibliografia sobre as formas de exploração sexual de crianças e de adolescentes. Pouco se sabe a respeito das vítimas, dos aliciadores, dos produtores, dos distribuidores e dos consumidores desse material, tampouco como funciona esse mercado específico, sua importância econômica, os lucros auferidos, valores pagos por esse tipo de trabalho e as condições em que as atividades acontecem (KEIROZ, 2006 apud BRASIL, 2007, p. 40). São desconhecidas também as consequências desse tipo de exploração sexual para meninas e meninos, pois não há uma tradição em políticas públicas voltadas para esse problema. As vítimas, apesar de estarem sempre expostas devido à própria natureza da atividade, são paradoxalmente desconhecidas. Constata-se, desse modo, que há, no Brasil, uma escassez de produção teórica, de material empírico, ou mesmo de experiências acumuladas e compartilhadas para o enfrentamento da pornografia infantojuvenil. Essa pornografia na internet constitui atualmente 74 um dos mais graves problemas a ser enfrentado pela sociedade, nacional e internacionalmente. O rápido desenvolvimento dessa nova modalidade de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes e sua imensa extensão, sua facilidade de acesso e gravidade vêm mobilizando enormes esforços de organismos governamentais, não-governamentais e agências internacionais de proteção à infância. A pornografia, na internet, exerce uma grande atração sobre crianças e adolescentes. Torna-se indispensável que profissionais como médicos/as, enfermeiros/as educadores/as e familiares se preparem para enfrentar essa questão, estudando-a, discutindoa com crianças, adolescentes, jovens sob sua responsabilidade e orientando-os sobre como se proteger dessas ações criminosas. 2.2.12 Turismo sexual O comércio eletrônico de pornografia infanto-juvenil é um negócio que envolve desde esquemas amadores até redes criminosas de alta complexidade. Por se tratar de crime cibernético, de âmbito mundial, seu enfrentamento se depara com enormes dificuldades operacionais e legais. No Brasil, a Polícia Federal e a Interpol têm sua ação dificultada pela deficiência da legislação vigente. Existem variadas formas de pornografia que envolvem crianças e adolescentes, inclusive a difusão de imagens de abuso sexual de crianças de tenra idade, em cenas de sexo perverso e sádico. Há sites que vendem espetáculos de pornografia com crianças em tempo real, e mesmo de necrofilia. É importante destacar a estreita articulação da pornografia infanto-juvenil com o tráfico de crianças e adolescentes para fins sexuais. O turismo sexual pode ser autônomo ou comercializado em excursões e pacotes turísticos que prometem prazer sexual “organizado”. É uma modalidade mais sofisticada de comércio sexual em cidades turísticas e abarca turistas nacionais e estrangeiros interessados em meninas e meninos, em homens e mulheres jovens, quase sempre oriundos de setores pobres e excluídos, e residentes em países denominados subdesenvolvidos ou emergentes. O serviço sexual comercializado através do turismo sexual é uma forma de prostituição, mas está geralmente associada ao tráfico de pessoas para fins sexuais ou para trabalho escravo. O turismo sexual é, talvez, a forma de exploração sexual mais articulada com atividades econômicas, inclusive com o próprio desenvolvimento do turismo. As redes do turismo sexual, muitas vezes, são as mesmas que promovem e ganham com o turismo em geral, envolvem profis- 75 sionais como guias turísticos, porteiros, garçons, taxistas etc. e empresas, agências de viagem, hotéis, restaurantes, bares, barracas de praia, boates, casas de show. Crianças e adolescentes que trabalham no turismo sexual possuem poucos anos de escolaridade e, em geral, já experimentaram ocorrências de abandonos, negligências, violências; contextos de miserabilidade que incitam atuar nessas redes. Mais do que em outras modalidades de exploração sexual, o turismo sexual é a atividade que mais responde, e de forma imediata, às demandas da juventude pobre e excluída por uma inclusão social associada ao consumo, com acesso a boates, bares, hotéis, restaurantes, shoppings e butiques por exemplo. O turismo sexual e o turismo em geral desenvolveram-se, simultaneamente, no Brasil, a partir do final da década de 80 do século passado, principalmente em cidades litorâneas do Nordeste Brasileiro. Na década de 90, houve uma grande mobilização governamental e não-governamental visando o enfrentamento dessa problemática por meio de ações em rede, algumas delas mantidas até hoje. Participam dessa rede a Secretaria Especial de Direitos Humanos, a Embratur, o Ministério de Relações Exteriores, as companhias aéreas, os órgãos da Segurança Pública, o Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes e os organismos internacionais, entre outros. No entanto, apesar de todos os esforços empreendidos, o Brasil ainda não conseguiu erradicar essa forma de exploração sexual. 76 2.2.13 Tráfico de pessoas para fins sexuais De acordo com as Nações Unidas, o tráfico de pessoas significa: recrutamento, transporte, transferência, abrigo e guarda de pessoas por meio de ameaças, uso da força ou outras formas Protocolo de Prevenção, Supressão e Punição do Tráfico de Pessoas, especialmente de mulheres e crianças. Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. de coerção, abdução, fraude, enganação ou abuso de poder e vulnerabilidade, com pagamentos ou recebimento de benefícios que facilitem o consentimento de uma pessoa que tenha controle sobre outra, com propósitos de exploração. (NACIONES UNIDAS, 2001, p. 35). Isso inclui, no mínimo, “a exploração da prostituição de terceiros ou outras formas de exploração sexual, trabalho ou serviços forçados, escravidão ou práticas similares à escravidão, servidão ou remoção de órgãos”. A Assembléia das Nações Unidas, em 2000 (apud BRASIL, 2004), definiu o tráfico de pessoas como: [...] o movimento clandestino e ilícito de pessoas através de fronteiras nacionais, principalmente dos países em desenvolvimento e de alguns países com economias em transição, com o objetivo de forçar mulheres e adolescentes a entrar em situações sexualmente ou economicamente opressoras e exploradoras, para lucro dos aliciadores, traficantes e crime organizado ou para outras atividades (por exemplo, trabalho doméstico forçado, emprego ilegal e falsa adoção). Segundo as normativas nacionais e internacionais, o tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial é crime e uma gravíssima violação dos direitos humanos. 77 A prática das redes de tráfico envolve atividades de cooptação e/ ou aliciamento, bem como o rapto, a promessa de intercâmbio, a transferência e a hospedagem da pessoa recrutada para essa finalidade. É relevante realçar que, no tráfico nacional ou transnacional de mulheres, crianças e adolescentes, as pessoas são exploradas não somente nas atividades sexuais comerciais, como a prostituição, o turismo sexual, a pornografia, mas também por meio de trabalho forçado e escravo. Muitas jovens são seduzidas pelo sonho propagado de uma vida diferente e exitosa, com promessas de casamento e/ou vida farta em outros países, de sucesso profissional e de trabalho altamente remunerado. Embarcam para outros estados do país ou para outros países, onde são forçadas a trabalhar no mercado do sexo. As redes que alimentam o tráfico de pessoas para fins sexuais também fazem a maquiagem das suas ações, clandestinas e criminosas, através de aparato legal, para escapar da fiscalização e esconder as realidades vividas por essas mulheres, com as mediações de agências de modelos, empresas de turismo, de oferta de trabalho e emprego, de namoro-matrimônio e, mais raramente, por agências de adoção internacional. Essa forma de atuar e os esquemas de segurança do crime organizado, do qual fazem parte as redes de tráfico, tornam aparentemente invisíveis os mecanismos de exploração sexual. A primeira importante pesquisa nacional sobre o tráfico de mulheres, crianças e adolescentes, para fins de exploração sexual comercial no Brasil, foi realizada nos anos 2000, 2001 e 2002. Coordenada por Maria de Fátima Leal e Maria Lúcia Leal, a pesquisa tornou-se referência obrigatória para quem quer compreender essa realidade, pois ela identificou a existência de um grande número de rotas nacionais e internacionais de tráfico e um contingente expressivo de adolescentes do sexo feminino traficadas para fins de exploração sexual comercial, turismo sexual e por- 78 nografia. No entanto, o Brasil ainda se ressente da ausência de uma maior consciência da sociedade e de uma atenção especial de governantes, prefeitos, parlamentares e operadores das redes de atenção e defesa de crianças e de adolescentes para a eficácia de enfrentamento a esse tipo de crime. 2.2.14 Exploração econômica A exploração econômica ocorre quando crianças e adolescentes são constrangidos, convencidos ou obrigados a exercer funções e a assumir responsabilidades de adulto, inapropriadas ao seu desenvolvimento e circunstâncias em que se encontram. Essa exploração é entendida como uma das piores formas de violência, porque expõe suas vítimas a muitas outras violências: negligência, agressões físicas, psicológicas e torturas que resultam inclusive em mortes. O trabalho infantojuvenil vem sendo pesquisado, denunciado e enfrentado no âmbito nacional e internacional. No entanto, nos estudos sobre violências contra crianças e adolescentes, ele raramente é relacionado como uma das formas de violência, apesar de tratar-se de exploração econômica e violação dos direitos, punido na forma da lei, conforme o artigo 5° do Estatuto da Criança e do Adolescente (LEAL et al, 2002 apud BRASIL, 2007, p. 47). Trata-se de uma negligência, como vimos anteriormente, quando crianças, por vezes de tenra idade, são exploradas pelos familiares, são “alugadas” para estranhos, mendigam em meio ao trânsito, vendem mercadorias em bares, moram e transitam nas ruas, têm de cuidar sozinhos de suas vidas e até sustentam economicamente adultos. Vivenciam um tipo de relação parental que os leva a crer que têm obrigação de se deixar explorar porque estão ajudando seu pai e sua mãe. Há crianças e adolescentes 79 que trabalham com a anuência ou negligência dos genitores responsáveis, em atividades ilegais e periculosas, com risco de morte e em regime de escravidão. O tráfico de drogas, a prostituição, a pornografia e mesmo a participação em roubos e assassinatos são atividades que podem moldar personalidades antisociais. Há também crianças e adolescentes, na maioria do sexo feminino e negras, que trabalham como domésticas e babás. São exploradas em jornadas de trabalho excessivas e, não raro, abusadas sexualmente por patrões e/ou seus filhos. 2.2.15 Trabalho infantil Um meio utilizado pelo capitalismo que, de forma brutal, adultera a vida de milhares de crianças e adolescentes submetidos, desde o início de suas vidas, à exploração cruel de sua força (frágil) de trabalho para gerar lucros aos adultos. Embora a luta pela erradicação do trabalho infantil seja alvo das políticas sociais do Gover- 80 no brasileiro, que anuncia ações integradas para garantir à criança e ao adolescente o direito à vida e ao desenvolvimento integral, sabemos: são os meninos e as meninas situados em bolsões de miséria e em regiões minadas pela corrupção, a qual faz desviar recursos de orçamentos públicos destinados à reparação social dos excluídos, os sujeitos imersos na dinâmica do trabalho infantil. Uma dinâmica nefasta, que faz morrer a infância, o direito de estar na escola, de brincar com outras crianças, de crescer no seu tempo interno e com experiências que lhe ensinem valores como cuidado de si, do outro, dignidade, respeito, ética com a vida. No Brasil, 12 anos é a idade mínima instituída para a entrada de meninos e meninas no mercado de trabalho, desde 1891. As Constituições de 1934, 1937 e 1946 ampliaram essa idade para 14 anos. Porém, em 1967, em plena ditadura militar, o limite foi reduzido novamente para 12 anos. Atualmente, a Constituição Brasileira determina, como idade mínima para o ingresso no mercado de trabalho, 16 anos. Contudo, proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre (que pode ocasionar doenças) para jovens com menos de 18 anos. Apenas na condição de aprendiz o adolescente pode exercer trabalho remunerado, dos 14 aos 16 anos, com direitos trabalhistas garantidos, em jornada e regime especificados na lei. Nos termos do art. 10 da Lei n°10.097/2000, “é proibido empregar menores de dezesseis anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos”. Algumas formas de exploração do trabalho de crianças e adolescentes, como a prostituição e a participação no tráfico de drogas, são especialmente trágicas. No primeiro caso, o machismo que impera em amplos setores da sociedade favorece o acobertamento e a tolerância dessa prática infame em muitas regiões; no segundo, a falta de perspectiva, a escassez de recursos e a desesperança têm levado milhares de crianças e adolescentes ao circuito do crime organizado, vislumbrando possibilidades de 81 ganhos fáceis e imediatos. Sabemos que essas práticas se desdobram em outras, como a prostituição e o tráfico de drogas, que os entrelaça como autores e vítimas de ações violentas, como tem sido verificado em estatísticas sobre jovens em contextos de infração, de mortes em chacinas. Em ambos os casos, crianças e adolescentes estão expostos a todos os riscos que esse cenário oferece, sendo o pior deles o da perda do senso de dignidade da existência humana. Necessidade, oportunismo, preconceitos e incompreensão mesclam as explicações sobre o trabalho precoce. A situação de pobreza obriga os pais a utilizar os/as filhos/as como mão-de-obra, a oferecê-los/as no mercado de trabalho para aumentar a renda familiar. Como uma das expressões da pobreza e da injusta distribuição de renda, o trabalho infantil sempre se fez presente em nossa sociedade. 12 de junho Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil Esta data é reavivada todos os anos em 12 de junho. Em 2009, a data marcou o décimo aniversário da adoção simbólica da Convenção n.º 182 da OIT, que definiu as piores formas de trabalho infantil e a sua proibição. Ao mesmo tempo em que se pode celebrar os progressos alcançados nos últimos dez anos, o dia 12 de junho, mais uma vez, mostrou os desafios que ainda restam, enfatizando o papel fundamental da educação na solução do problema, bem como, a emergência do combate à exploração de meninas no trabalho infantil doméstico. 82 2.3 Atores das violências contra crianças e adolescentes Quando se discute violências contra crianças e adolescentes, é comum focar-se exclusivamente nos autores, adotando uma visão binária violentador-violentado. No entanto, as violências ocorrem em situações nas quais outros atores participam. Quase sempre há pessoas que têm conhecimento dessas violências e permanecem em silêncio, consentindo para que ela se mantenha, ou até colaborando para que ela ocorra. Atores são coniventes com as redes que sustentam as violências, como veremos a seguir. As violências contra crianças e adolescentes, que podem ser cometidas tanto por adultos (de ambos os sexos), quanto por outros adolescentes, é correntemente classificada como intra ou extrafamiliar. A análise das situações de violências tem revelado que essa classificação é demasiado genérica, insuficiente para acolher a diversidade dos autores e atores envolvidos nessas situações. Por outro lado, essa classificação refere-se às violências privadas, a relacionamentos interpessoais violentos, não incluindo as violências públicas, mercantilizadas, como a exploração sexual comercial. Nas violências privadas, classificadas como violências intra e extrafamiliar, é importante identificar os atores e os autores que se encontram implicados. A violência intrafamiliar pode ser praticada tanto pelos genitores ou responsáveis quanto por parentes mais ou menos próximos das vítimas. No entanto, é preciso estabelecer o grau de autoridade do violentador sobre a vítima. Na violência extrafamiliar, definir o grau de conhecimento e o tipo de convivência existente entre atores, autores/as e violentados/as, serve para localizar se quem violenta é uma pessoa: 83 • Ligada aos familiares, com estreita convivência com a vítima; • Conhecida, que reside na mesma casa ou no mesmo terreno; se é vizinha; educador/a ou outro profissional; religiosa, amiga da família; patrão/patroa, comerciante do bairro; • Desconhecida da vítima. Nas violências pública, mercantilizada, extrafamiliar, como a exploração sexual comercial, por exemplo, os atores e autores/as nelas enredados/as podem ser desconhecidos/as (clientes, internautas pedófilos) ou conhecidos/as (empregadores, gigolôs). Os demais atores que testemunham ou até estimulam as violências são conhecidos: amigos/as, aliciadores/as, taxistas, donos/as de hotéis e de casas de show, fotógrafos/as e outros/as. 2.3.1 Quando a família é lugar de violências A estrutura familiar não é uma ilha isolada do contexto histórico, econômico, cultural e social, mas um dos subsistemas em que se encontra presente e que compõe os poderes estruturados e estruturantes da sociedade. Autoritarismos, machismos, preconceitos e conflitos, em geral, articulam-se com as condições de vida das famílias e as questões de poder que se manifestam nas relações afetivas e na sexualidade. É nesse contexto de poder que devem ser analisadas e compreendidas as violências de adultos contra crianças e adolescentes. A violência familiar é tão somente uma forma de relacionamento ancorada na história e na cultura brasileira. Vale ressaltar que a grande maioria das famílias, no Brasil, é identificada como protetora, ainda que suas atitudes se sustentem em enormes sacrifícios. No entanto, 84 também nessas famílias protetoras encontram-se traços culturais, em diferentes graus, de relações familiares adultocêntricas, machistas, arrogantes, que as tornam mais ou menos violentas. É salutar que se distinga a violência doméstica da violência familiar. A primeira refere-se ao lugar onde ela ocorre: em casa; a segunda remete à natureza dos laços parentais que unem as vítimas: os atores e os autores das violências. A violência doméstica pode ser cometida inclusive contra pessoas que não são da família, tais como empregados domésticos e agregados. Já a violência familiar pode ocorrer entre cônjuges, entre pais e filhos/as, mães e filhos/as, entre irmãos, com parentes idosos, habitantes ou não da mesma casa. Familiares podem manter referências mútuas de ódio, podem ser violentos mesmo quando habitam a muitos quilômetros de distância ou vivendo sob o mesmo teto. Exemplos disso: o pai que nunca reconheceu o/a filho/a, o/a filho/a que sequer conhece o pai ou a mãe; a mãe separada do marido que não deixa os/as filhos/as ver o pai, ou o inverso; filhos/as e pais/mães que se agridem verbal ou fisicamente. Muitas das agressões e violências praticadas por pais, mães ou responsáveis contra seus/suas filhos/as, crianças e adolescentes são, em geral, justificadas como “medidas educativas” pelos autores e pelos demais atores coniventes com elas. Pesquisas nacionais e internacionais indicam que os familiares são os maiores autores de violências contra crianças e adolescentes. De modo frequente, a violência física e psicológica é praticada pelas mães e a violência sexual é praticada por pais e padrastos. Em seguida, nas estatísticas, aparecem as violências praticadas por pessoas que são conhecidas das vítimas. Desconhecidos raramente são os/as autores/as de violências. Os pactos de conivência e de silêncio que envolve o abuso sexual e as 85 redes do mercado do sexo indicam a presença e a ação de pessoas com poderes para gerenciar essas violências contra crianças e adolescentes. Centrar a análise no binômio vitimizador/vitimizado implica desconsiderar a importância das redes familiares, comunitárias e institucionais, responsáveis pela ocultação e manutenção dessas formas de violências. Crianças e adolescentes são violentados e dominados tanto pelo agressor quanto pela existência de redes e pactos de segredos que cultuam a tolerância, garantem a conivência pautada no medo e a impunidade. Membros da família, vizinhos, colegas, profissionais da educação, da saúde, da assistência social, que atuam na área da segurança, ao silenciarem sobre as situações de violências que presenciam, conhecem ou suspeitam, agem no sentido de proteger o/a violentador/a. Não é raro o/a agressor/a manter outras pessoas, além da vítima, sob sua dominação. Observamos que a indústria do sexo se entrelaça com outras tramas de corrupção, ligadas ao tráfico de pessoas e de drogas, e as de pedofilia e de pornografia via internet. As redes de prostituição organizam o tráfico de pessoas para o comércio sexual e estabelecem as “rotas” que vão assegurar o abastecimento de “peças” humanas em prostíbulos, boates, casas de show, além de alimentar a indústria pornográfica com a produção de revistas, fotos, filmes, vídeos, objetos. O tráfico nacional e internacional de pessoas está associado ao turismo sexual, facilitado pela globalização dos mercados de contravenção que atuam por meio de redes clandestinas, mas muito poderosas, com interlocuções mafiosas e violentas, vigiadas por fortes esquemas de segurança. Sem essas redes privadas e societárias de silêncio e de conivência, dificilmente haveria espaço para a grande incidência das violências que afetam crianças e adolescentes. Por isso, os artigos 13, 56 e 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecem 86 que profissionais e dirigentes das áreas de educação e de saúde são obrigados a notificar oficialmente, aos órgãos competentes, todos os casos suspeitos ou confirmados de maus-tratos e outras violências contra crianças e adolescentes (BRASIL, 1999). 2.3.2 Interlocução das violências com a adicção a drogas Vivemos numa sociedade apta a criar necessidades e essas, muitas vezes, destinam-se a introduzir “amortecedores” entre nós e o mundo. Portanto, estamos numa sociedade intoxicada por excessos, adicta de substâncias e de imediatismos que traduzem a vulnerabilidade do laço social, expondo adolescentes e jovens ao uso indiscriminado de drogas. A situação é tão grave que vem sendo denominada pela área da saúde como epidemia, circunstância que se agrava aliada às diferentes formas de violências. De acordo com Knapp (1998, p. 205), as drogas são substâncias psicoativas naturais ou sintéticas que, ao serem ingeridas, produzem alterações no sistema nervoso central do indivíduo e, conseqüentemente, podem produzir diferentes tipos de mudanças no comportamento, percepção, cognição e humor. Os processos de inclusão social, em cenários críticos e difíceis de serem enfrentados pelos dependentes químicos tecem um ciclo de fragilidade que os tornam passivos à adicção, com pouca probabilidade de levar adiante um projeto de vida próprio, em condições saudáveis e integradas ao cotidiano. Tais circunstâncias podem ser explicadas como “abandono de si”, em relação ao outro. O entendimento do adicto, em sua forma histórica, como um sujeito que se distingue dos demais, leva em conta os antecedentes 87 situacionais e ambientais, as crenças e expectativas, a história familiar individual e as experiências de aprendizado anteriores com drogas ou com outras atividades prejudiciais. Considera-se a compulsão como comportamento adictivo, habitualmente caracterizado pela gratificação imediata, o que não está relacionado apenas ao uso de drogas, uma vez que inclui outras atitudes compulsivas, como jogos, relações sexuais forçosas e, inclusive, algumas formas de relacionamentos familiares e sociais. Kalina e Kovadloff (1980, p. 24) chamam a atenção para o fato de que o substantivo “adicção” designa inclinação ou apego compulsivo de alguém por alguma coisa. Já o adjetivo “adicto” define a pessoa francamente propensa à prática excessiva de alguma coisa: crenças exacerbadas e intolerantes; atividades repetitivas, trabalho sem lazer e repouso, consumo desenfreado, hipocondria etc. A forma adicto origina-se no particípio passado addictum, que significa adjudicar ou designar. Esse particípio quer dizer adjudicado ou designado – oferecido ou oferendado. Kalina e Kovadloff (1980) ressaltam que, nos tempos da República Romana, o particípio passado addictum, empregado como adjetivo, designava o homem que, para pagar uma dívida, convertia-se em escravo, já que não dispunha de outros recursos para cumprir o compromisso contraído. Em suas palavras, Addictum era aquele que se assumia como marginal; aquele que, fatal ou voluntariamente, fora jogado numa condição inferior a que tivera até então. Em síntese: tratava-se de uma pessoa que não soube ou não pode preservar aquilo que lhe conferia identidade. O adicto aparece, assim, como um despojado: é aquele que perdeu sua identidade, e simultaneamente adotou uma identidade imprópria como única possível de saldar sua dívida. Através da renúncia à sua identidade verdadeira, mas insustentável, o adicto restabelece o equilíbrio social perdido em virtude de sua inadimplência. Adicto 88 era aquele que eludia a dissolução total de sua existência, apelando para a aceitação em público de sua falta de direito a uma identidade pessoal. Para ser alguma coisa, devia aceitar que não era ninguém. (KALINA; KOVADLOFF, 1980, p. 24). Há uma proposição para o protagonismo da droga entre adolescentes e jovens, inclusive no cenário mundial, onde essas são úteis para “anestesiar” essa população e aliená-la das lutas políticas, do envolvimento com causas sociais, de escolhas criativas para um viver com dignidade. Além disso, trata-se de um produto que gera mercado, que amplia relações, que envolve muitas pessoas e desperta o consumo para fortalecer a mercantilização ligada ao narcotráfico. Nos adolescentes e jovens em contexto de uso de drogas, há uma submissão de seu corpo às substâncias psicoativas, às relações familiares conflituosas, às diferentes situações de vulnerabilidade que geram grande tensão, entre elas, as condições socioeconômicas que dificultam seu acesso às oportunidades nos campos da saúde, da educação, do trabalho, do lazer e da cultura. Nesse cenário, os adolescentes e jovens em contexto de uso de drogas ocupam o lugar de “pessoas doentes”, problemáticas, que passam a ser tratadas de forma estigmatizada, sem reflexões mais cuidadosas sobre as situações que os enredam para o uso dessas substâncias e as condições que produzem a necessidade. Isso gera um processo autodestrutivo, que se materializa no cotidiano e afeta a rede de relações desses sujeitos, tais como a escola, os laços familiares, a inserção no grupo cultural. O mundo das drogas tem seus códigos conhecidos por aqueles que, de uma forma ou de outra, interagem com ele. Mostra-se na contraposição entre o mundo da miséria e o do prazer, um prazer que se revela na miséria, no imperativo de anestesia, no abandono, no prognóstico de morte anunciada. 89 Eis porque a caracterização dos espaços sociais que revelam maior incidência de violências, em suas diferentes manifestações, afirma que permanece em vigência culturas de incentivo a certas condutas violentas, que estão disseminadas pelo tecido social. Fazemos parte da criação e reprodução dessas culturas, estamos mais próximos delas do que percebemos e seus efeitos são abundantemente extensivos. Em função dessas características, a superação das violências na escola, para que ela se torne uma instituição que protege crianças e adolescentes, educadores e educadoras, a sua comunidade, supõe projetos de intervenção, como é o desejo dessa formação. Esses projetos precisam de eficácia para: a.Desarticular as atitudes agressivas, das mais sutis às mais evidentes; b.Instalar espaços dialógicos de reflexão sobre as relações interpessoais e com a natureza; c.Construir, no cotidiano, um “código de convivência”, como compromisso coletivo; d.Assumir a participação ativa da escola na Rede de Proteção Integral; e.Ensinar a importância do Sistema de Garantia de Direitos para evitar qualquer manifestação de violência; f. Manter viva uma afetividade qualificada de acolhida e cuidado com os sujeitos da educação; g.Transformar instituições áridas de cuidado em lugares de amor e proteção. 90 Para além desses enunciados, não podemos esquecer que existem grupos mais vulneráveis a esse fenômeno e que merecem atenção, principalmente quando, entre eles, estão crianças e adolescentes, mulheres, idosos/as, negros/as, lésbicas, gays, transexuais, indígenas, pessoas com deficiências, população em situação de moradia nas ruas e outros mais. 2.4 Grupos mais vulneráveis às violências VULNERABILIDADE: um ser vulnerável rasga o ventre materno, num gesto inapto de nascimento. Suga o afetuoso e quente seio, numa ânsia insciente de sobrevivência. Caminha trôpego, mas decididamente ao lado do sonho de conhecer o mundo, porque acredita que o conhecimento o torna menos vulnerável do que quando do princípio do todo. Cada dia, cada hora, cada instante é tempo ganho na estrada imperfeita da física da vida. Ser-se, é adaptar-se: ao vento que ruge, ao mar que fustiga ao fogo que queima ou à bala perdida que passa, consciente da vulnerabilidade guardada, num saco elástico de cútis, que pode em qualquer instante romper-se, por ser, também ela marcada, com o selo da susceptibilidade natural de tudo o que é vivente. (RODRIGUES, 2009). A história da humanidade é atravessada por violências que marcam lugares e experiências enfrentadas por diferentes sujeitos e, de modo emblemático, por grupos imbricados na vulnerabilidade de sua condição de estar no mundo, como crianças e adolescentes. As violências destinadas a esse público indicam o peso da marca social, reforçam compreensões excludentes de pertencimentos, ao mesmo tempo em que escancaram o aspecto das vulnerabilidades a que estão expostos. 91 Vulnerabilidade e situação de risco, muitas vezes, são conceitos utilizados nas falas dos atores que atuam em diversos contextos sociais de atendimentos, de maneira a se confundirem. Com relação ao primeiro conceito, Libório (2004, p. 35-36) ressalta que ele resulta da violação dos mais elementares direitos dos seres humanos; quanto ao segundo, ele remete a diversos tipos de eventos negativos de vida e que, quando presentes, principalmente de forma associada, aumentam a probabilidade dos sujeitos apresentarem problemas físicos, sociais e emocionais. A vulnerabilidade opera apenas quando o risco está presente; sem risco a vulnerabilidade não tem efeito [...], ou seja, a exposição às diversas situações de risco promove o processo de vulnerabilização de crianças e adolescentes, que interfere em seu desenvolvimento físico, psicológico e social. (LIBÓRIO, 2004, p. 35-36). Como é possível reconhecer, no seu espaço de trabalho, as crianças e os/as adolescentes que se encontram em contextos de vulnerabilidades e riscos sociais? Que aspectos estão enredados nas teias das relações violentas que os afetam? O que se esconde atrás dos detalhes? Como podemos transformar nossos julgamentos apressados em curiosidade de pesquisa e intervenção? Crianças e adolescentes estão sempre vulneráveis às violências, o que nos permite refletir sobre a importância de outras formas de atenção que auxiliem as políticas de proteção existentes, principalmente em relação à prevenção, que pode ser promovida também no ambiente escolar. No entanto, vimos que as diversas formas de violências acima explicitadas assumem outros contornos nessa vulnerabilidade, que dizem respeito às questões familiares e de gênero e pautam as violências sofridas por essa população. 92 2.5 Como questões de gênero explicam certas violências? O movimento feminista teve um papel social importante no reconhecimento e na compreensão das diferenças, das desigualdades e das crueldades que assinalam a vida das mulheres, do mesmo modo, nas inúmeras conquistas alcançadas. Assumiu o desafio de demonstrar que não são as características anatômicas e fisiológicas, em sentido estrito, ou tampouco desvantagens socioeconômicas tomadas de forma isolada, que definem diferenças apresentadas como justificativas para desigualdades de gênero. (MEYER apud LOURO, 2003, p. 14). Dessa forma, ressaltou que outras questões permeiam a problemática de gênero e elas começam a fazer parte das discussões em torno do tema, como é o caso das violências. A questão de gênero aparece como constituinte da identidade dos sujeitos, da mulher, do homem, da criança, do adolescente, envolvidos na teia do fenômeno da violência sexual, e abrange relações que emergem como parte deles. É nesse sentido que a questão de gênero se situa e, como diz Saffioti (2004, p. 45), esta pode ser concebida em várias instâncias, enquanto categoria histórica: uma gramática sexual, regulando não apenas relações homem-mulher, mas também relações homem-homem e relações mulher-mulher. O gênero é a construção social do masculino e do feminino. Quando faz referências às violências e ao gênero, Couto (2005, p. 25) ressalta que estes não são aspectos relacionados apenas à figura masculina, aos homens, mas remete a uma constituição societária em que as bases são formadas por relações desiguais, 93 numa perspectiva centrada na estrutura patriarcal, sendo violências e poder sempre masculinos, mesmo que sejam exercidos por um homem ou por uma mulher. A autora acena que não importa o sexo de quem agride, mas se faz necessário o entendimento de que as violências são sempre masculinas quando exercida nos limites domésticos, porque correspondem ao estereótipo do macho/dominador. Maturana (2004, p. 37), ao fazer referências ao patriarcado, chama atenção para nossa maneira de agir e de viver. Diz que a cultura patriarcal se caracteriza pelas coordenações de ações e emoções que fazem nossa vida cotidiana um modo de coexistência que valoriza a guerra, a competição, a luta, as hierarquias, a autoridade, o poder, a procriação, o crescimento, a apropriação de recursos e a justificação racional do controle e da dominação dos outros por meio da apropriação da verdade. Essa maneira de viver e de conviver dos seres humanos, em geral, rejeita os desacordos como possibilidades legítimas da convivência. Então, o agir se afirma na busca contínua de convencimento um do outro, das certezas como verdadeiras e da diferença que surge como um desafio, na medida em que ela é um ponto de partida para a procura da mudança sobre o que pensamos, ou para eliminá-la, caso isso não ocorra. Nessa cultura, Maturana (2004, p. 38) entende que vivemos na hierarquia, o que exige obediência. Afirmamos que uma coexistência ordenada requer autoridade e subordinação, superioridade e inferioridade, poder e debilidade ou submissão. 94 As violências que ocorrem nos espaços intrafamiliares, que sujeitam mulheres de diferentes idades e classes sociais, ainda incidem habitualmente e de forma impune para quem as comete. O Relatório da Anistia Internacional de 2004, conforme Cantera (2007) aponta que as mulheres, independentemente de nacionalidade, têm maior probabilidade de serem machucadas, estupradas ou assassinadas por seus companheiros, sejam eles o atual ou o anterior, ou por outra pessoa. Essa calamidade desmistifica o lar como “domicílio privado, considerado miticamente ‘santuário’ de tranqüilidade e referente de segurança, pois ele é, para milhões de mulheres, um lugar de sofrimento, no qual recebem maustratos, tortura e inclusive são mortas.” (CANTERA, 2007, p. 42). O modelo patriarcal de família é uma construção ideológica que serve como referência para a prática no que tange a padrões de relações afetivas, sexuais, de solidariedade e de hostilidade. Oferece recursos para pensar a modernidade na sociedade brasileira. As violências provocam metamorfoses que atravessam toda a corporeidade do sujeito, porque é sentida desde a sua pele, sem respeitar qualquer dimensão da sua existência. Quando praticadas contra mulheres e meninas, essas violências supõem um percurso entre a sua biologia e a cultura, entre o sensível e o imaginário, entre a impotência e a humilhação, mas com configurações próprias. As violências sexuais, por exemplo, violam a integridade feminina e invadem o que de mais sagrado reveste essa condição: o consentimento. No limite do corpo, a pele ratifica a agressão a essa integridade e as violências se instalam como sítios de desfiguração e metamorfoses, à medida que subtraem a inteireza de quem é violentada e a devolve à condição de coisa, de objeto que se pode manipular ao bel prazer do agressor. Como envoltório, a pele menciona uma dinâmica entre as violências que se iniciam na superfície e avançam ao mais íntimo de cada mulher-menina, mesmo sem aceitar que os atos tenham a sua participação. O outro é tomado como artefato de gozo e submetido a situações desiguais de violação de sua humanidade, assumindo ainda, e em muitos casos, as responsabilidades pelos danos a ele impetrados. 95 Embora as violências marquem desde a alma dos seres humanos, elas estão presentes nas relações familiares em que crianças e adolescentes têm sua infância maltratada e abusada. Nesse encontro de convivências multifacetadas, a brutalidade demarca espaços entre homens e mulheres, adultos e crianças/adolescentes, o que nos leva a acreditar que “isto não reduz o ser humano à mais completa impotência” (MORAIS, 1995, p. 24), ao contrário, o situa no espaço das possibilidades, capaz de lutar contra um destino terrível, como aquele que sobrepujava as antigas tragédias gregas. “Lembremo-nos de que, do mesmo modo que existem aqueles que se comprazem em práticas violentas, há os que lutam a vida inteira no esforço de evitar estas violências.” (MORAIS, 1995, p. 24). Como educadores, queremos continuar ou ingressar nessa coletividade em defesa da vida. Eis por que afirmo o quão complexas são as violências, com suas características multifacetadas, o que sempre desafia a buscar conhecimentos que transversalizem os acontecimentos, mesmo sendo provisórios e insuficientes. Nessa busca, crianças, violências e relações familiares permeiam o entendimento de que as violências às quais as crianças são submetidas na forma de ações humanas, não se dirigem contra seus corpos apenas, mas contra seu existir social; sofrem um processo de assujeitamento e coisificação efetuados por outros que estabelecem suas relações sociais anulando o próximo (LIMA; MAY, 2006, p. 234). 2.6 Diferentes contextos das violências Ao descrevermos as diversas formas de violências, precisamos refletir em quais contextos elas estão inseridas. Que elementos as constituem e de que maneira determinam e são determina- 96 dos por elas? Para isso, é preciso pensar no significado da palavra “contexto”, no que constitui o berço das nossas ações e na teia que retroalimenta nossas experiências. No dicionário Aurélio (2004), a palavra “contexto” diz respeito “a um conjunto do texto que precede ou sucede uma frase, um grupo de palavras, uma palavra”, podendo também expressar “um conjunto de circunstâncias que acompanham um acontecimento: julgar um fato em seu contexto histórico”. No entanto, para pensarmos nos contextos, é preciso entendêlos como um cenário específico, como tempo, local e pessoas presentes, que dá significado a um evento; como moldura que envolve um determinado evento, onde essa moldura normalmente determinará a maneira de se interpretar uma determinada experiência ou evento. Você já pensou em que contexto você vive? Em qual contexto está inserida a escola em que você trabalha? Como poderíamos caracterizar o contexto brasileiro ou o contexto mundial na atualidade? Esses questionamentos podem nos ajudar a entender que cada contexto tem seu próprio cenário e que ele se mescla com todos os demais através de sua história, de sua cultura, do seu povo, de suas leis e normas, de suas crenças, de sua política, entre outros, que vão gestar as relações entre os sujeitos. Dessa maneira, também se constituem as violências, sejam elas física, sexual, psicológica, institucional, doméstica, familiar, pois são sínteses dos meios que as alimentam. Prestem atenção na letra da música do grupo Engenheiros do Hawai. Ela trata de uma violência travestida, ou seja, de nossas atitudes cotidianas que desvelam a maneira como expressamos as violências que estão em nós, materializadas por meio das nossas práticas, das condutas e crenças que assumimos nas relações. 97 Violência Travestida Faz Seu Trottoir No ar que se respira, nos gestos mais banais Trottoir é uma palavra francesa que quer dizer “calçada”. Lugar por onde as pessoas passeiam e aproveitam pra se conhecerem, ou por onde passam indiferentes umas as outras. O autor dessa música se baseou em uma parte da obra “À sombra das maiorias silenciosas”, de Jean Baudrillard. Essa música denuncia diferentes maneiras de opressão simbólica, econômica, do marketing, da moral e da falta de moral ou parâmetros. Descreve um panorama de um mundo em que as violências travestidas de outras formas, preparam o flerte, à moda do comércio do sexo (Baudrillard teria dito, do desejo) em que, por estar travestida, pode não ser percebida. (Ferreira Júnior, 2009). Em regras, mandamentos, julgamentos, tribunais Na vitória do mais forte, na derrota dos iguais A violência travestida faz seu trottoir Na procura doentia de qualquer prazer Na arquitetura metafísica das catedrais Nas arquibancadas, nas cadeiras, nas gerais A violência travestida faz seu trottoir Na maioria silenciosa, orgulhosa de não ter Vontade de gritar, nada pra dizer A violência travestida faz seu trottoir Nos anúncios de cigarros que avisam que fumar faz mal A violência travestida faz seu trottoir Em anúncios luminosos, lâminas de barbear Armas de brinquedo, medo de brincar A violência travestida faz seu trottoir No vídeo, idiotice intergaláctica Na mídia, na moda, nas farmácias No quarto de dormir, na sala de jantar A morte anda tão viva, a vida anda pra trás É a livre iniciativa, igualdade aos desiguais Na hora de dormir, na sala de estar A violência travestida faz seu trottoir Uma bala perdida encontra alguém perdido Encontra abrigo num corpo que passa por ali E estraga tudo, enterra tudo, pá de cal Enterra todos na vala comum de um discurso liberal A violência travestida faz seu trottoir Em anúncios luminosos, lâminas de barbear Armas de brinquedo, medo de brincar A violência travestida faz seu trottoir 98 A violência travestida faz seu trottoir Em anúncios luminosos, lâminas de barbear Armas de brinquedo, medo de brincar A violência travestida faz seu trottoir Tudo que ele deixou foi uma carta de amor Para uma apresentadora de programa infantil Nela, ele dizia que já não era criança E que a esperança também dança como monstros de um filme japonês Tudo que ele tinha era uma foto desbotada Recortada de revista especializada em vida de artista Tudo que ele queria era encontrá-la um dia Todo suicida acredita na vida depois da morte Tudo que ele tinha cabia no bolso da jaqueta A vida, quando acaba, cabe em qualquer lugar E a violência travestida faz seu trottoir Não se renda Às evidências Não se prenda À primeira impressão Eles dizem com ternura O que vale é a intenção E te dão um cheque sem fundos Do fundo do coração (do fundo do coração) No ar que se respira Nessa total falta de ar A violência travestida Faz seu trottoir Em armas de brinquedo, medo de brincar Em anúncios luminosos, lâminas de barbear Nos anúncios de cigarros que avisam que fumar faz mal A violência travestida faz seu trottoir (Gessinger, 200-). 99 [Habitus] Aqui a autora utiliza a definição de habitus criada por Bourdieu (1996), como práticas empreendidas no grupo primário, que funcionam como esquemas classificatórios, que estabelecem as diferenças entre o bem e o mal, o bom e o mau, entre o que é distinto e o que é vulgar, e que asseguram a reprodução das relações sociais. Essa música ilustra, parcialmente, contextos de violências e acena para a constituição imbricada entre os sujeitos, o momento histórico, o social, o econômico e a cultura, circunstâncias que modelam relações violentas e que imprimem normas de comportamentos cada vez mais violentas. Isso porque, de acordo com Silva (1999, p. 184, grifo nosso), é possível afirmar que uma vez que as práticas violentas nos centros urbanos e rurais, incorporam-se a vida cotidiana de homens e mulheres, conformam mais uma modalidade da cultura brasileira, inscrevendo-se historicamente no habitus desses grupos que tenderá a reproduzi-las, sobretudo quando não houver nenhum tipo de resistência. Já para Sousa (2006, p. 35), quando traz o conceito de Balandier, as violências podem ser concebidas, tanto como “figuras de desordens” que compõem o social e se legitimam como fenômenos emblemáticos na contemporaneidade, quanto são matizadas por um enredamento difuso, embrenhado pelas subjetividades que não possibilitam suscitar explicações redondas em torno delas mesmas. [...] Nos contextos onde elas ganham efetividade permitem gerar argumentos que dão conta de uma aproximação explicativa desses episódios, na forma de um contorno antropológico. A partir dessa ideia, podemos localizar os contextos nos quais as violências são gestadas, com suas dimensões histórica, social, cultural, institucional, pública, privada, econômica, étnicoracial, sexual, geracional, política, nacional, territorial e global. Elas fazem interconexões e ampliam o olhar sobre a gênese das violências, mas, ao mesmo tempo, não as definem porque as violências jamais estão numa relação linear de causa e efeito. É na complexidade do mundo moderno que as certezas se desvelam frente aos movimentos de vida com expressões de morte. 100 Isso porque, para Maturana (apud SOUSA, 2006, p. 25), [...] guardamos como legado dessa disposição históricosocial aspectos requintados da cultura patriarcal em nossa maneira de viver, os quais valorizam práticas como a guerra, primam por conservar as relações verticais e hierárquicas, justificam a sanidade dos artifícios competitivos, reduzem a convivência a um anfiteatro de lutas diárias, almejam, desesperadamente, o controle e o progresso a qualquer custo e assim aprendem a buscar a dominação do outro, o seu semelhante, especialmente quando se apropriam de uma suposta verdade, aquela que é sua [...]. 2.7 Como nos perdemos no caminho? Para localizarmos as implicações sociais, históricas, políticas, territoriais e nacionais que nos tornam indivíduos mais ou menos violentos, é preciso recorrer às extraordinárias mudanças ocorridas, desde as sociedades arcaicas, até as contemporâneas. Anteriores à sociedade contemporânea, os grupos arcaicos cultivavam a paz e a ordem, ensinamentos que eram garantidos pela introjeção do sentimento de comunidade. A vida comunitária era gerida pelo coletivo sob o princípio da harmonia. Com a evolução das sociedades, dos impérios antigos até as nações modernas, o Estado passa a constituir o aparelho central de comando e de controle social (MORIN, 2002, p. 178-179). Seu poder é de conhecimento, de decisão, de dominação, de repressão. Memoriza (arquivos), calcula, computa, rege, decide, ordena. Dispõe de uma administração que centraliza a informação e o saber, fixa as normas escritas, os arquivos, as instruções, estabelece previsões e propõe programas. (MORIN, 2002, p. 178). 101 Para Morin (2002, p. 178), quando o Estado estabelece a ordem, apropria-se do monopólio das violências, dispondo de poderes “temporais através de aparelhos auxiliares: aparelho policial, aparelho militar; estes aplicam as ordens e impõem o poder coercitivo (repressão, prisão, pena de morte) do Estado”. Conjugando a coerção material e a possessão psíquica, a intimidação armada e a intimidação social, a dominação do Estado toma as suas formas tentaculares, da pressão externa sobre o corpo até a sujeição interna do espírito. (MORIN, 2002, p. 179). Diferentemente dos grupos arcaicos, o Estado moderno é “naturalmente paranóico, tendendo sempre a mais poder, ávido de aumentar seu território e as suas riquezas.” (MORIN, 2002, p. 179-180). E esse movimento pelo poder, pela conquista de novos territórios e por riquezas é vivido pelos Estados vizinhos levando-os às guerras incessantes. “O que justifica o caráter predador e guerreiro dos estados da antiguidade e dos tempos modernos, inclusive do século XX.” (MORIN, 2002, p. 179-180). Esse movimento que constituiu e se expressa ainda no século XX, demonstra em que contextos nós vivemos o fenômeno das violências e o quanto esse modo de organização constrói formas de vida cada vez mais violentas. Uma violência que é vivida pela miséria de uns e pela riqueza de outros; pelas guerras, pela exclusão sóciocultural, pela falta de oportunidades; também pelos subjugos, pelas doenças, pelos maus tratos e pela morte. Entorpecidos pela mecanização das relações, apressados e confusos na luta pela sobrevivência e encurralados pelas premissas individualistas que tomam conta de nosso viver, todos os dias, mediante diferentes mecanismos, com maior ou menor intensidade, cada um de nós produz a banalização da vida. (SOUSA, 2006, p. 29). 102 2.8 Entre o privado, o familiar e o geracional Entre o privado, o familiar e o geracional, vamos encontrar diversas maneiras dos sujeitos organizarem a vida, para entendermos como eles são afetados por diferentes sistemas, enquanto afetam tantos outros. É nesse entrelaçamento que são constituídas as regras da convivência entre eles, com permissões e repressões, as quais forjam as violências. Bronferbrener (apud ALVES, 1997), com uma visão ecológica, ressalta que o sujeito em desenvolvimento jamais está inserido em um único contexto, dado que são múltiplos e muito mais do que simples ambientes (no sentido da situação imediata que circunda o indivíduo). Devido à sua complexidade e abrangência, são chamados sistemas, multidimensionais e organizados em diferentes níveis. São eles: 1.Microssistema – é o ambiente em que a pessoa em desenvolvimento peculiar vive experiências pessoais diretas: família, escola, igreja. Aquele mais próximo, constituído por situações de aprendizagens que interagem com a pessoa mais imediatamente. 2.Mesossistema – inclui as inter-relações e influências recíprocas entre dois ou mais ambientes dos quais a pessoa em desenvolvimento peculiar participa ativamente É ampliado sempre que essa pessoa entra num novo microssistema. 3.Exossistema – inclui elementos do sistema que não envolve a pessoa em desenvolvimento peculiar como um participante ativo, mas é onde ocorrem eventos que afetam aquilo que acontece em um dos microssistemas, como movimentos de outros sujeitos e processos. Ou seja, intercorrências de outros microssistemas. 103 4.Macrossistema – composto pelo padrão global de ideologias, crenças, valores, religiões, formas de governo, costumes e estruturas institucionais, culturas e subculturas presentes no cotidiano das pessoas. O que se refere ao sistema sócio-cultural mais amplo. Com essas noções de sistemas que se alimentam e se retroalimentam, poderíamos nos indagar: pode haver um único entendimento sobre como nos tornamos tão violentos no século XX? Essa visão vem demonstrar que as violências domésticas, entre membros de uma mesma família, ou de gerações diferentes (violências contra crianças e adolescentes, violências contra idosos, violências contra mulheres, mães, esposas etc.), afetam e são afetadas por contextos. Então, não é possível pensá-las como relações diretas entre aquele/aquela que violenta e aquele/aquela que é violentado, e sim, pensarmos em diferentes sistemas de relações que produzem situações de violências. Para Sousa (2006, p. 33), “adultos violentam crianças por muitas razões concebidas e entranhadas num estilo de conviviabilidade histórico-cultural que atribui menoridade a elas”. Mas a autora argumenta que essas condutas não são inatas, elas expressam experiências e iniciações culturais em que somos ensinadores e aprendizes. Portanto, entendemos que o contexto das microrrelações entre os sujeitos se constitui do complexo mais amplo, que falamos anteriormente, ou seja, dos cenários social, histórico, político, territorial e nacional. Que as microrrelações acontecem também na conjuntura pública e institucional, por considerarmos que esses espaços só podem ser reconhecidos por meio de relações entre as pessoas. Quando falamos dos contextos públicos e institucionais, inspiramo-nos nos conceitos de Guirado (1997 apud AQUINO, 1998, p. 9), 104 para quem as instituições “são relações ou práticas sociais que tendem a se repetir e enquanto se repetem, legitimam-se”. Ou seja, fazem-se pela ação de seus agentes e de sua clientela, de maneira que não há vida social fora das instituições e sequer há instituição fora do fazer de seus atores. No entanto, podemos sugerir que as práticas institucionais, com seus objetos, atores e ações singulares, refletem, de maneira significativa, o meio social mais amplo. A compreensão de Guirado nos ajuda a apreender que as instituições, entre elas a escola, também produzem suas próprias práticas sociais, ou seja, elas não são um reflexo direto do contexto histórico, da conjuntura política, econômica e cultural. [Prática social] Todo o saber acumulado pelo ser humano através da história. Por um lado, é a ação prática e, por outro, conceito dessa prática que se realizou no mundo dos fenômenos materiais e que foi elaborado pela consciência que tem capacidade de refletir essa realidade material (TRIVINOS, 2006). Podemos assim identificar que toda ação humana diz respeito a um determinado lugar, com suas características e disposição para agir. Esse lugar é tecido pelo jeito como os seres humanos se agregam em convivências, tendo como referência as interconexões entre eles e tudo o que compreende o universo social. É esse universo social que corresponde à “realidade cotidiana com as concepções, os valores e os desejos, as necessidades e os conflitos vividos em seu meio próximo e a realidade social mais ampla, com os outros conceitos, valores e visões de mundo.” (OLIVEIRA, 2002, p. 169). E essa tessitura forja práticas sociais próprias, ou seja, “algo de novo se produz nos interstícios do cotidiano escolar, por meio da (re)apropriação de tais vetores de força por parte de seus atores constitutivos e seus procedimentos instituídos/instituintes.” (AQUINO, 1998, p. 10). As instituições lançam ideias e efetivam práticas que também são promotoras de violências, gerando, nesse contexto, exclusões, sofrimentos, fracassos, conflitos, entre outros, o que nos faz perguntar: tem se pensado a escola como espaço que também produz violências? Quais as implicações das políticas educacionais, dos processos educativos e das atitudes dos educadores e demais profissionais na promoção de violências? Para Guimarães 105 (1996b apud AQUINO, 1998, p. 77), a instituição escolar não pode ser vista apenas como reprodutora das experiências de opressão, de violências, de conflitos, advindas do plano macroestrutural. É importante argumentar que, apesar dos mecanismos de reprodução social e cultural, as escolas também criam suas próprias violências e indisciplinas. Outrossim, o sujeito só pode ser pensado na medida em que pode ser situado num complexo de lugares e relações pontuais – sempre institucionalizadas, portanto. A noção de sujeito passa a implicar, dessa forma, a premissa de lugar institucional, a partir do qual ele pode ser regionalizado no mundo; sujeito (sempre) institucional, portanto. Ele é estudante de determinada escola, aluno de certo(s) professor(es), filho de uma família específica, integrante de uma classe social, cidadão de um país, e assim por diante. (AQUINO, 1998, p. 11). E é refletindo sobre esse lugar chamado escola que podemos dialogar sobre as práticas que fazem brotar os contextos de violências, tais como: as avaliações classificatórias; a homogeneização das diferenças, pelas ações disciplinares e normativas; a coação pelo exagero da autoridade; a desvalorização e as péssimas condições do trabalho dos/as professores/as; a exclusão de educandos/as pela seleção meritocrática, entre outros, como zonas de manutenção do poder. Tudo isso fortalece os contextos institucionais e públicos, que são geradores de violências. Para Aquino (1998, p. 15), [...] do ponto de vista institucional, não há exercício de autoridade sem o emprego de violência, e, em certa medida, não há o emprego de violência sem exercício de autoridade. Portanto,...a violência como vetor constituinte das práticas institucionais teria como um de seus dispositivos nucleares a própria noção de autoridade, outorgada aos agentes pela clientela/público, e avalizada pelos supostos “saberes” da- 106 queles. Por essa razão, reafirmamos a convicção de que há, no contexto escolar, um quantum de violência “produtiva” embutido na relação professor-aluno, condição sine qua non para o funcionamento e a efetivação da instituição escolar. No entanto, Zapelini e Moraes (2006, p. 215-216) enfatizam que a escola, ao se constituir como um espaço autodestrutivo, “faz da autodestruição a possibilidade de se fazer uma escola diferente”, isso porque se entende “a escola dialogicamente, que ‘se autodestrói contruindo-se’, ou seja, produto e produtora de violências, mas, paradoxalmente, espaço de manutenção da existência humana”. Os diversos contextos aos quais nos referimos anteriormente, como produtos e produtores de violências, são aparecimentos, ao mesmo tempo, da paz e do consenso comunitário ativo, de relações afetivas que promovem a vida, de conhecimentos e práticas que qualificam os processos sociais e técnicos e que, de alguma maneira, humanizam-nos. Ao descrevermos alguns contextos que têm promovido situações de violências, desejamos instigar um olhar mais complexo desse fenômeno, já que, cada vez mais, é preciso uma visão interdisciplinar para entendê-lo e para buscar alternativas de intervenção. A interdisciplinaridade vem ‘associada ao desenvolvimento de certos traços de personalidade, tais como a flexibilidade, confiança, paciência, intuição, o pensamento divergente, a capacidade de adaptação, sensibilidade com relação as demais pessoas, aceitação de riscos, aprender a agir na diversidade, aceitar novos papeis, etc.’ Viver cada instante da vida sob questionamento e reflexão, cuidando para não precipitar conclusões sobre realidades (AZAMBUJA, 2004, p. 143). As políticas existentes não têm conseguido dar conta da crescente demanda por cuidado às crianças e aos adolescentes violentados e a Rede de Proteção tem se esforçado para garantir a 107 intersetorialidade e para integrar as áreas da saúde, educação, assistência social, entre outras, buscando a ação em conjunto. Isso desafia novos olhares e a coragem de gestar outras possibilidades. Nesse sentido, cabem os seguintes questionamentos: como a escola tem contribuído, enquanto instituição participante da Rede de Proteção, no combate às violências? É possível pensar formas de atuação contra as violências no âmbito escolar? Como estamos abertos ao pertencimento daqueles e daquelas que querem construir a gestão do cuidado para uma escola que protege? Sobre essas questões, iremos discutir no próximo capítulo. »»Em síntese... Entendemos neste capítulo que as violências são multiformes, tecidas tanto na sutileza das relações interpessoais, quanto nos gestos explícitos que con-formam a convivência social e que também de-formam a qualidade da nossa humanização. A partir das classificações, buscamos ampliar nosso olhar sobre as violências, apresentando a complexa rede de espaços sociais que também promovem gestos culturalmente agressivos e que não se guiam na perspectiva do cuidado de si e do outro. Neste sentido, as classificações padronizadas nem sempre oferecem perspectivas atualizadas das dimensões do problema a ser enfrentado na defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Quanto aos atores destas violências, vimos que é comum focar-se exclusivamente nos autores, adotando uma visão binária violentador-violentado. No entanto, as violências ocorrem em situações nas quais outros atores estão envolvidos e que muitas vezes não se vendo implicados no processo contribuem para sua permanência ou até colaboram para que elas ocorram. Desta maneira, compreendemos que as violências são gestadas em 108 contextos multidimensionais a partir de construções históricas, sociais, culturais, institucionais, públicas, privadas, econômicas, étnico-raciais, sexuais, geracionais, políticas, nacionais, territoriais e globais. »»Referências ALVES, P. B. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 10, n. 2, 1997. 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[Objetivo desse Capítulo] Trabalhar com cenários latinoamericanos que envolvem crianças e adolescentes em contextos de violências, destacar especialmente o Sul do Brasil, e ainda dialogar acerca das Rede de Proteção e do Sistema de Garantia de Direitos. Nossa intenção é apresentar fundamentos teóricos que tornem possível aprofundar a reflexão sobre práticas de uma gestão do cuidado e o lugar da Escola na proteção dos estudantes e na prevenção das violências. 115 3.1 Recortes de indicadores sociais: cenários de inspiração Somos o que fazemos, principalmente o que fazemos para mudar o que somos. (Eduardo Galeano) Desde muito tempo aprendemos a transferir para o outro a responsabilidade pelos acontecimentos dos quais somos cocriadores, na medida em que não é simples assumir que somos também o que fazemos. Mais difícil ainda é assumir a coragem de transformar o que nos tornamos socialmente, já que essa é uma experiência humanizadora que exige rupturas e questionamentos, que nos desafia a pensarmo-nos como sujeitos culturais capazes de saber de si e tomar consciência de seus atos. O continente latino-americano tem a herança cultural e a memória daquilo que somos, do que conseguimos mudar ou favorecer a permanência, traz em suas lutas a história construída arduamente por muitos, a despeito das contradições que enfrentaram e ainda enfrentam para torná-lo avesso ao “espelho do próspero” (Morse, 1988). Pelos princípios do Estado de bemestar social, todo o indivíduo teria o direito, desde seu nascimento até sua morte, a um conjunto de bens e serviços que deveriam ter seu fornecimento garantido, seja diretamente, através do Estado, ou indiretamente, mediante seu poder de regulamentação sobre a sociedade civil. Esses direitos incluiriam a educação em todos os níveis, a assistência médica gratuita, o auxílio ao desempregado, a garantia de uma renda mínima, recursos adicionais para a criação dos filhos, etc. 116 A situação atual que envolve crianças e adolescentes, especialmente na América Latina, vem tomando proporções significativamente preocupantes. Inúmeros indicadores socioeconômicos e referentes à conjuntura apontam, nos últimos anos, grandes dificuldades para a superação da pobreza e das consequências decorrentes deste estado em que milhões de pessoas vivem em condições de miserabilidade. Esses indicadores, entre outros, apontam para o imperativo de políticas sociais que assegurem os direitos comuns à cidadania dos setores menos atendidos. Conforme Pilotti e Rizzini (1995, p. 45), é preciso incorporar políticas que impeçam o desmantelamento do estado de bem-estar latino-americano, cuja missão declarada é a de oferecer serviços sociais com um sentido universalista, o que traria efeitos redistributivos, já que abriria canais de mobilidade social. Na década de 80 do século XX, partilhamos o papel de protagonistas dos movimentos sociais, o fortalecimento da sociedade civil, a intervenção e o controle das políticas através dos espaços de representação social. Neste contexto, um dos desafios que se colocava consistia em formular políticas sociais autenticamente participativas e passíveis de serem aplicadas num cenário socioeconômico diversificado, onde Estado e Sociedade Civil disputassem o mesmo espaço na formulação e no controle dessas políticas públicas. Ainda hoje, na área da infância e da adolescência, o impacto desse quadro recai sobre a população mais pobre. De cada mil nascidos vivos, setenta e oito morrem antes de completar cinco anos. As principais causas de mortalidade A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) produz alguns dos principais indicadores socioeconômicos sobre essas regiões. Suas referências baseiam-se principalmente em dados econômicos, nos níveis de escolaridade, no Produto Interno Bruto (PIB), e ainda em índices de natalidade e mortalidade infantil. Obtenha mais informações sobre o trabalho da CEPAL no endereço eletrônico desta instituição, que acessamos em 24 de julho de 2010: http://www.eclac.cl/estadisticas No Brasil, os principais indicadores socioeconômicos são: taxa de analfabetismo, níveis de escolaridade, PIB per capita, razão de renda, proporção de pobres, taxa de desemprego e ín- dices quantitativos de trabalho infantil. Muitas instituições brasileiras elaboram indicadores, e caso você tenha interesse em pesquisar essas informações, sugerimos, primeiramente, o endereço eletrônico da Rede Interagencial de Informações para a Saúde (RIPSA), que acessamos em 24 de julho de 2010: http://www.ripsa.org.br Outra importante fonte de informação sobre indicadores socioeconômicos brasileiros são os trabalhos do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), cujo endereço eletrônico acessamos em 24 de julho de 2010: www.dieese.org.br 117 infantil na América Latina estão associadas as doenças de fácil prevenção, tais como: diarreia, infecção respiratória, quase sempre combinada com a desnutrição (PILOTTI, 1995, p. 47). Também nas últimas décadas continuamos a conviver com a cólera, uma epidemia que se pensava ter sido erradicada, evidenciando as precárias condições de saúde em que se encontra grande parte da população latino-americana. Neste continente cerca de 45% da população total é formada por crianças e adolescentes, com até dezoito anos de idade. A metade dessa população está imersa em bolsões de miséria, sem acesso às condições básicas para o seu desenvolvimento, o que ressalta a falta de equidade demográfica. Isso reforça como a pobreza está relacionada ao excludente modelo de desenvolvimento econômico, o qual converte a miséria em palco permanente dos países latino-americanos. A pobreza na América Latina é uma questão histórica e estrutural, de caráter mais amplo, que ordena, para seu melhor equacionamento, um novo estilo de desenvolvimento econômico e político, com pilares básicos de equidade social (TAPIA; HENRIQUE, 199-, p. 14). Para Pilotti (1995), na realidade heterogênea da pobreza encontram-se os chamados núcleos duros, onde o infortúnio material está mais arraigado e as situações de risco para a população infantojuvenil são maiores, considerando que na maioria dos lares a mulher é a chefe da família, dada a ausência do cônjuge. Esses núcleos constituíam, até 1992, entre 10% e 25% do total de lares pobres e indigentes na América Latina, e as crianças menores de quinze anos residentes nesses lares correspondiam a de 11% a 27% do total dessa população. No Brasil, os indicadores sobre a pobreza não são menos drásticos. De acordo com a Rede Interagencial de Informações para a Saúde – RIPSA - (2009), no Brasil, em 2007, de uma população de 118 184.517.553 pessoas, 59.493.090 tem renda entre 1 e 2 salários mínimos e 32,24 % da população são considerados pobres ou sem nenhuma renda. Conforme dados do UNICEF (2008), nosso país possui a maior população infantil das Américas, com até seis anos de idade. Crianças na primeira infância representam 11% de toda a população brasileira e os dados socioeconômicos apontam que a grande maioria destas se encontra em situação de pobreza. Aproximadamente 11,5 milhões, ou seja, 56% de crianças brasileiras de até seis anos, vivem em famílias cuja renda mensal está abaixo de meio salário mínimo per capta, o que as coloca abaixo da linha da pobreza (IBGE, 2006). Do total de crianças em situação de pobreza, 66% são negras, o que representa 7,5 milhões com até seis anos vivendo em famílias com renda de menos de meio salário mínimo per capta. A população de adolescentes e jovens do País, de acordo com as informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2006), em 2005, era composta de cerca de 35 milhões de pessoas entre 15 e 24 anos, representando 19% da população brasileira; computada a faixa entre 15 e 29 anos, os números sobem para mais de 50 milhões de adolescentes e jovens, representando mais de um quarto (27%) do total dos brasileiros. [Primeira infância] Expressão utilizada pela UNICEF que aponta para um período de tempo compreendido entre zero e seis anos de idade, não se referindo à perspectiva desenvolvimentista utilizada por algumas teorias psicológicas do desenvolvimento humano. Crianças até 6 anos abaixo da linha da pobreza no Brasil 56% ou 11,5 milhões (IBGE, 2006) No Nordeste, Sul e no Sudeste do Brasil, as pessoas que vivem nas ruas, especialmente crianças e adolescentes, são vítimas de perversos modos de ocupação do espaço urbano, concentrado nas mãos de poucos privilegiados. Há também a escassez de moradias nas regiões metropolitanas, o que agrava a exclusão de muitos que permanecem sem direito a habitação. Nas regiões Norte e Centro-Oeste, as crianças e os adolescentes que vivem nas ruas são oriundos, principalmente, do êxodo rural, filhos e filhas de famílias que emigraram do Nordeste e do Sul. Os que pertencem às camadas mais empobrecidas, tendo em vista a alta 119 taxa de desemprego, a crescente favelização das comunidades, a falta de oportunidades para se constituírem dignamente no mundo, passam a se inserir no mercado de trabalho informal, indo para as ruas em busca da sobrevivência pessoal e da geração de renda para o sustento familiar. Os riscos inerentes às precárias condições familiares, ao fracasso escolar, à vivência na rua, entre outros fatores, passam a proporcionar o contato dessas crianças e adolescentes com o mundo das drogas, da exploração sexual, do roubo, entre outros. Em nosso país ainda há uma carência de estatísticas oficias acerca das violências a que são submetidas crianças e adolescentes, assim como, de estudos sistemáticos sobre essa temática. No Brasil, em 2006, 1,7 milhão (15,5%) das crianças até três anos freqüentavam creches. Os números de freqüência à pré-escola são relativamente melhores, mas ainda demandam avanços. Em todo o Brasil cerca de 7 milhões, ou seja, 76% de crianças entre quatro e seis anos estão matriculadas na Educação Infantil (UNICEF, 2008). Contudo, ainda há muito que se avançar para incluir os 9,5 milhões de crianças de até três Crianças que freqüentavam anos que não freqüentam unidades educacionais, e creche ou pré-escola em 2006 os 2,2 milhões entre quatro e seis anos que não estão na pré-escola, pelo menos nos percentuais estaRegião Brasil belecidos pelo Plano Nacional de Educação. Soma-se Sul 76% ainda à questão, uma perspectiva racial que expõe 66% a face discriminatória à qual as crianças estão expostas. Do total de crianças entre quatro e seis anos fora da escola, 58% são negras, o que corresponde 15,5% a mais de 1,3 milhões de crianças. Na Região Sul, 40,3% em 2006 (UNICEF, 2008), 40,3% de crianças de zero a três anos e 66,4% de quatro a seis anos freqüentaO-3 anos 4-6 anos O-3 anos 4-6 anos vam creche ou pré-escola. Com relação aos adoles(UNICEF, 2008) centes é possível constatar um avanço na cobertura 120 educacional e nos anos de escolaridade em relação às gerações passadas (o número de estudantes passa de 11,7 milhões em 1995 para 16,2 milhões em 2001). Entre 1995 e 2001, o número de pessoas de quinze a vinte e quatro anos que freqüentavam a escola cresceu 38,5%, o que corresponde ao acréscimo de 4,5 milhões de jovens à condição de estudantes. Mas, mesmo assim, o país ainda não oferece aos adolescentes oportunidades adequadas para a educação. Há problemas de oferta de educação pública nos graus Médio e Superior, persistindo dificuldades para que amplas parcelas de adolescentes e jovens perseverem na trajetória escolar, assim como graves problemas de qualidade do ensino. Apesar do crescimento de freqüência, mais da metade dos jovens (em torno de 60%) já não está na escola. No ano de 2005, 18,4 milhões de jovens entre quinze e vinte e nove anos não haviam concluído o ensino básico e não estavam freqüentando nenhuma escola. Desses, 12,5 milhões não tinham sequer concluído o Ensino Fundamental. Apenas a metade, aproximadamente, chega ao Ensino Médio. Além disso, a defasagem idade/série permanecia como grave problema, atingindo cerca de 60% dos jovens estudantes. (SOUTO; PONTUAL, 2007). 3.2 Breve mapeamento da região Sul do Brasil Conforme dados pesquisados no Laboratório de Estudos da Criança (LACRI) (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 2007a), no documento Pesquisando a infância e a violência doméstica no Brasil: incidência e prevalência, 25.534 crianças e adolescentes sofreram, no ano de 2007, algum tipo de violência doméstica. Na região Sul houve 2.360 notificações, com maiores incidências nos municípios pesquisados em Santa Catarina, onde o destaque é a negli- 121 gência. No Rio Grande do Sul, boa parte das incidências registram violências físicas. A Procuradoria Geral da República revela que o número de notificações de violências contra crianças e adolescentes, em Curitiba, aumenta ano a ano. Segundo números da Secretaria Municipal de Saúde, divulgados pela Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente, em 2006 foram registrados na capital paranaense 3.390 casos de violências contra pessoas com idade até 17 anos. Em 2005, houve registro de 2.437 casos, enquanto em 2004 eram 1.974 ocorrências. As entidades que integram a Rede de Proteção salientam que o aumento do número de notificações não representa, necessariamente, que as violências contra crianças e adolescentes estão se alastrando, mas que os mecanismos para denúncias e encaminhamentos estão ficando mais eficientes. No ano de 2006, 90% dos casos de violência contra crianças e adolescentes em Curitiba ocorreram dentro de casa. A negligência tem sido notificada em primeiro lugar, sendo um avanço o reconhecimento de que a falta do cuidar é uma forma grave de violência. Segue-se a ela a violência física, depois a sexual e a psicológica, cuja identificação na forma isolada também representa um conhecimento maior das características do desenvolvimento da criança e das marcas que este tipo de agressão pode deixar. (PFEIFFER, 2007, p. 04). Ainda segundo a pesquisa do LACRI (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 2007a), o Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (SIPIA), da Secretaria de Estado da Criança e da Juventude (SECJ), registrou em 2007, 55.797 casos de violências infantis no Paraná. Em Curitiba, no mesmo período, foram 3.569 registros de maus-tratos dos pais sobre seus filhos. Até o final do primeiro semestre de 2008, esse número já era de 1.336 na capital, conforme dados do Centro de Epidemiologia da Secretaria Municipal 122 da Saúde de Curitiba. Ainda segundo o SIPIA, que recebe dados das infrações vindos de todos os Conselhos Tutelares, as denúncias de violação da convivência familiar e comunitária lideram as ocorrências no Paraná, cujos casos ultrapassou vinte e três mil durante o ano passado. Pesquisa realizada nas Varas Criminais de Curitiba (ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SEÇÃO DO PARANÁ, 2006) revelou que, dos principais crimes praticados contra crianças e adolescentes, 92% dos agressores são homens, cerca de 50% das vítimas são meninas de 6 a 10 anos e 33% das ocorrências correspondem a casos de estupro. A pesquisa foi realizada pela Comissão da Criança e do Adolescente da Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Paraná, em onze varas criminais da capital, com o auxílio de estudantes de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, que analisaram 99 processos de julho a novembro de 2005. O 3° Relatório Nacional sobre Direitos Humanos no Brasil, elaborado pela Universidade de São Paulo (2007b), chama a atenção para o alto índice de denúncias de exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes na Região Sul. Apesar de abrigarem algumas das cidades com os melhores índices de desenvolvimento humano do País, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná “enfrentam sérios problemas” nessa área, “particularmente em polos industriais e de turismo”. Como agravante, o Relatório da USP acusa autoridades e agentes públicos de serem tolerantes com os envolvidos em redes de exploração sexual de jovens. De acordo com o relatório, o Disque-Denúncia de Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes recebeu, de maio de 2003 a janeiro de 2005, o seguinte número de denúncias nos três estados: 1.362 no Rio Grande do Sul, o que representa 14,4 denúncias 123 Disque-Denúncia – Disque 100 Criado para receber denúncias de exploração sexual contra crianças e adolescentes. Para mais informações, visite o endereço eletrônico do Disque-Denúncia, que acessamos em dois de agosto de 2010: <http://disque100.gov.br>. por 100 mil habitantes; 286 em Santa Catarina (5,87 por 100 mil); e 497 no Paraná (5,52 por 100 mil habitantes). O Relatório chama a atenção para o fato de que a taxa de denúncias no Rio Grande do Sul é superada apenas pelos estados do Amazonas (19,8 por 100 mil), Maranhão (15,3) e Distrito Federal (17,2). Entre 2000 e 2004, de acordo com o Relatório, foram assassinadas em média cinco pessoas por dia em solo gaúcho. Isso significa que 9.315 cidadãos perderam suas vidas por ação de outra pessoa nesse período. O aumento de 19% no número de mortes violentas, no Rio Grande do Sul, é quase três vezes superior à média nacional, que ficou em 6,6%. Tomando-se como base a taxa de homicídios por grupo 124 de 100 mil habitantes, o crescimento gaúcho foi de 14,2%, contra uma média nacional de 1,1% no mesmo período. Os jovens estão entre as principais vítimas do avanço da violência. Na população gaúcha de 15 a 24 anos, o número de assassinatos cresceu um terço, passando de 532 mortos em 2000 para 722 em 2004. O retrato das violências no Brasil registra uma média de 5,5 mortes por hora. “A ineficácia do Estado alimenta o crime, a violência e a insegurança da população”, diz trecho do Terceiro Relatório Nacional sobre Direitos Humanos (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 2007b). O trabalho elaborado pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP e pela Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos mostra que a juventude vem sendo afligida por outro problema: o recrudescimento do trabalho infantil. A proporção de jovens entre 10 e 14 anos trabalhando, que havia caído de 21,6% para 7,4% entre 1995 e 2000 no Estado, em 2004 disparou para 13,4%. Em todo o país, 151.227 novos casos de trabalho infantil foram detectados de 2004 para 2005. Segundo o estudo, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e o Programa Bolsa-Escola (incorporado ao Bolsa-Família) não foram suficientes para resolver o problema. A violação da juventude inclui ainda o abuso sexual. O Relatório aponta que as denúncias de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes no estado somaram 1.362 casos, entre 2003 e 2006. A taxa de 14,1 ocorrências por 100 mil habitantes coloca o Rio Grande do Sul no quarto lugar do ranking brasileiro da exploração sexual. A pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (LEAL; LEAL, 2002), realizada pelo Centro de Referência, Estudos e Ações Sobre Crianças e Adolescentes (CECRIA), com apoio da Organização dos Estados Americanos (OEA), localizou 241 rotas terrestres, marítimas e aéreas de tráfico para a exploração sexual, 131 internacionais, 78 interestaduais e 32 intermunicipais. No Rio Grande do Sul, segundo Mariza Alberton (SCOTTI, 2008) coor- 125 denadora do Movimento Contra a Violência e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes/RS, “o retrato também é alarmante: a cada quatro horas uma criança é vítima de violência sexual”. As meninas são as mais afetadas pelo crime. Conforme Alberton (SCOTTI, 2008) “as estatísticas mostram que uma em cada quatro garotas adolescentes sofrerá algum tipo de abuso”, destacando que os principais casos são registrados em ambientes familiares. A partir destes indicadores reafirmamos a importância deste Curso de Especialização – A GESTÃO DO CUIDADO PARA UMA ESCOLA QUE PROTEGE – nos estados de SC, PR e RS, onde perdura o mito genérico da “qualidade de vida”, sem problematizar as situações de violências. Acreditamos no papel da escola como mais um agente cuidador, capaz de participar da efetivação de políticas de proteção a crianças e adolescentes e também de identificar e denunciar outras situações à Rede de Proteção nos municípios. Em Santa Catarina no ano de 1995 o Ministério Público Catarinense instaurou um Inquérito Civil Público para apuração dos fatos e responsabilidades referentes às políticas estaduais e municipais de atendimento às crianças e adolescentes no estado, autuando-se, para efeito de celeridade, um procedimento para cada município. Diante dessa grande pesquisa-diagnóstica apurou-se que o Estado de Santa Catarina vivenciava um quadro bastante dramático no que dizia respeito a implantação das Políticas Públicas na área da infância e adolescência. Ficou constatado que vários municípios no Estado não haviam concretizado, através da Lei Mu- 126 nicipal, a política de atenção que previa não só a instalação dos Conselhos de Direitos e Conselhos Tutelares, como também os Programas Socioeducativos. O Inquérito Civil Público, como um instrumento jurídico contribuiu, na ocasião, para que muitos municípios se mobilizassem em torno das questões concernentes a nova política prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. No entanto, com a mudança da gestão política do Ministério Público, as ações até então conduzidas através do Inquérito Civil foram sendo abandonadas e, aos poucos, este processo de mobilização foi perdendo força no contexto estadual. 3.3 Sistema de Garantia de Direitos Nesse tópico vamos conhecer mais sobre a Rede de Proteção, dando ênfase a história de sua constituição no âmbito do Sistema de Garantia de Direitos da infância e adolescência. E ainda como se faz o controle das demandas e a participação das unidades na proposição de políticas públicas para essa população. Para começar convidamos você a se perguntar: • Como contribuo para que o Estatuto da Criança e do Adolescente seja cumprido? • E de que maneira o Estatuto tem orientado minha prática pedagógica? Você sabia que o antigo Código de Menores, Lei aprovada em 12 de outubro 1979, regia as situações previstas para o “menor em situação irregular”? Que essa era a condição atribuída àqueles de zero a 18 anos de idade em situação de abandono, maus-tratos, infração, dentre outras? O Código de Menores (BRASIL, 2010), quando falava das medidas de caráter preventivo, abrangia medidas de vigilância a todos os indivíduos menores de 18 anos de idade, mesmo aqueles que viviam na ocasião sob o pátrio poder, e ainda, não se encontravam em situação irregular. No entanto, as lutas da sociedade civil culminaram com algumas conquistas, entre elas uma legislação sobre a proteção integral de crianças e adolescentes, para respeitar sua condição peculiar de pessoa em estágio de desenvolvimento: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990). A partir do ECA, as crianças e os adolescentes alcançam status de sujeitos de direitos, passam a ser vistos como responsabilidade da família, da sociedade e do Estado. Com ele, cabe ao Estado dispor de políticas públicas de promoção e defesa dos direitos da infância e juventude. Fortalece-se a noção de uma Doutrina de Proteção Integral que deve assegurar à criança e ao adolescente acesso às condições materiais e afetivas de cuidado. Uma doutrina que se insere em 127 [Vulnerabilidade] Pode ser compreendida como a chance de exposição das pessoas a fatores individuais, coletivos e contextuais, que estão relacionados com a maior suscetibilidade ao adoecimento e, ao mesmo tempo, com a maior ou menor disponibilidade de recursos de proteção. Fonte: Brasil (2006b). [Risco social] Fenômeno que compromete a capacidade dos indivíduos de assegurar a si mesmos sua independência social (CASTEL, 2003 apud JARDIM, 2007). 128 um Sistema de Garantia de Direitos (SGD) regido por princípios e normas a respeito da política de atenção a essa população, segundo os quais as ações serão promovidas pelo Poder Público, nas esferas Federal, Estadual, Distrito Federal e Municipal, e também pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e pela sociedade civil. Os três eixos do Sistema de Garantia de Direitos são: Promoção, Defesa e Controle Social. A multisetorialidade é uma característica das políticas e programas de atenção à criança e ao adolescente, e visa operar numa perspectiva emancipatória, e não apenas voltada para as vulnerabilidades e riscos sociais. Sob o marco da Doutrina da Proteção Integral, a criança e o adolescente passam a ter prioridade absoluta, e as ações da rede do Sistema de Garantia de Direitos devem assegurar-lhes os meios de se fazer valer todas as oportunidades que garantam o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social destes. Os direitos fundamentais da doutrina compreendem: direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. É dever de todos os cidadãos prevenir a ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente. A garantia da prioridade inclui a primazia em receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; preferência na formulação e execução das políticas públicas sociais; prioridade na destinação de recursos públicos para as áreas relacionadas à proteção da infância e juventude (ECA); serviços especiais de prevenção, atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão. Devem também oferecer serviço de identificação de pais ou responsável, crianças ou adolescentes desaparecidos, e também, proteção jurídica e social por entidades de defesa de seus direitos. As diretrizes das políticas de atendimento compreendem: a municipalização do atendimento; e a criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente. Tais órgãos devem ter um caráter deliberativo, de controle das ações em todos os níveis, garantindo a paridade na participação popular através de organizações representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais. Do mesmo modo, as políticas de atendimento darão prioridade à criação e à manutenção de programas específicos, seguindo os parâmetros de descentralização político-administrativa, com a incumbência de prever a manutenção de fundos nacional (FIA), estaduais e municipais que estejam ligados aos respectivos conselhos de direitos. As políticas referentes ao Sistema de Garantia de Direitos preconizam a integração operacional dos órgãos do Judiciário, tais como Ministério Público, Defensoria Pública, Segurança Pública e Assistência Social, preferencialmente no mesmo local, com o objetivo de prestar atendimento inicial ao adolescente a quem se atribui autoria de ato infracional. A avaliação das políticas de atendimento à criança e ao adolescente precisa mobilizar a opinião pública, objetivando a participação ativa dos diversos segmentos da sociedade. A condição legal de sujeitos de direitos que nasce com os parâmetros da Doutrina da Proteção Integral assegura que as crianças e os adolescentes sejam reconhecidos como pessoas em peculiar desenvolvimento, para que tenham a sua integridade preservada. A palavra “sujeito” refere-se à condição de autonomia e protagonismo que passam a ser considerados como fundamentais para crianças e adolescentes. Com isso, a Rede de Proteção representa a instância principal que vai acolher meninos e meninas para garantir seus direitos. Conforme descreve Carvalho (1997), a Rede sugere uma teia de vínculos, relações e ações entre indivíduos e organizações. Elas se tecem ou se dissolvem continuamente em todos os campos 129 E afinal, o que são Redes? As redes são tecidos sociais que se articulam em torno de objetivos e focos de ação comuns, cuja teia é construída num processo de participação coletiva e de responsabilidades compartilhadas, assumidas por cada um e por todos os partícipes. As decisões são tomadas e os conflitos resolvidos democraticamente, buscando-se consensos mínimos que garantam ações conjuntas (FALEIROS; FALEIROS, 2007, p. 79). Como se caracteriza a gestão da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente? A Rede de Proteção de crianças e adolescentes é o conjunto social constituído por atores e organismos governamentais e não governamentais, articulado e construído com o objetivo de garantir os direitos gerais ou específicos de uma parcela da população infantojuvenil. Como exemplos, podem-se citar a Rede de Proteção de Adolescentes em Conflito com a Lei, a Rede de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes e a Rede de Proteção dos Meninos e Meninas de Rua, entre outras. Essas redes podem ter abrangência municipal, estadual, nacional ou internacional (FALEIROS; FALEIROS, 2007, p. 79). da vida societária; estão presentes na vida cotidiana (nas relações de parentesco, nas relações de vizinhança, nas relações comunitárias), no mundo dos negócios, na vida pública e entre elas. A existência de múltiplas redes supre necessidades humano-sociais. Uma rede envolve processos de circulação de informações e conhecimentos, articulação, participação e cooperação. A autora descreve ainda que as redes podem assumir características mais duradouras ou efêmeras, vínculos mais densos ou mais tênues, simples ou complexos. 130 No período anterior a concepção da Doutrina de Proteção Integral, do Sistema de Garantia de Direitos, o conceito de rede já era utilizado na gestão dos serviços sociais públicos. No entanto, o modelo de gestão era centralizado e caracterizado pela hierarquização e padronização na oferta de serviços. As terminologias utilizadas na época tratavam de rede escolar, rede de unidades básicas de saúde, rede hospitalar. Em sua grande maioria, elas eram subordinadas a uma organização gestora centralizada. As redes não se configuravam como uma cadeia de serviços, como se propõe atualmente. O atual conceito de redes engloba características como a gestão e condução de políticas e programas sociais e incorpora novos padrões de desempenho, nos quais as relações descentralizadas e horizontais substituíram as tradicionais relações centralizadoras e hierárquicas; prioriza a negociação e a participação de todos os sujeitos envolvidos na ação pública; e o reconhecimento da incompletude, assim como a necessária complementaridade entre serviços e atores sociais. As políticas e os programas agora são desenhados pelo prisma da multissetorialidade e interdisciplinaridade, substituindo os tradicionais recortes setoriais e especializações estanques; as ações públicas estão fortemente conectadas com o conjunto de sujeitos, organizações e serviços da cidade. Não existem mais ações isoladas. Os beneficiários das políticas públicas denominam-se cidadãos. No reconhecimento mais denso da cidadania compreende-se uma relação consciente entre direitos e deveres, assim como a garantia de interlocução política e de exercício do controle social. Todos estes atores sociais na ação pública assumem um padrão de relação marcado pela máxima interatividade, sendo a multissetorialidade característica marcante das políticas das redes. Refere-se aos diversos setores que compõe as políticas e programas sociais, visando uma atuação em Rede, ou seja, setores de saúde, educação, trabalho, renda, etc. Visualizaremos no quadro 1, a seguir, a dinâmica da Rede de Proteção, dentro do Sistema de Garantia de Direitos estabelecidos pelo ECA. 131 Funções Objetivos Instrumentos Organismos • Planejamento. • Formular políticas sociais Promoção orçamentária. • Plano públicas. • Propor e destinar recursos orçamentários. • Gerir Fundos da Criança e do Adolescente. • Planejar • Dotação ações integradas. de aplicação de recursos dos Fundos da Criança e do Adolescente. • Elaborar plano de garantia de direitos (Conselhos Estaduais e Municipais). • Propor e realizar conferências estaduais e municipais.* • Secretarias de governo estaduais e municipais. • Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente (nacional, estaduais e municipais). • Fundo da Criança e do Adolescente (nacional, estaduais e municipais). • Secretarias Atendimento • Manter programas e serviços de saúde, educação, assistência, cultura, profissionalização, proteção especial. Controle/vigilância/ fiscalização • Prestar atendimento. • Acompanhar, fiscalizar e avaliar programas e serviços governamentais e não-governamentais da área da criança e do adolescente. • Execução de programas e serviços de saúde, educação, assistência, cultura, profissionalização, proteção especial. • Assistência jurídica. • Acompanhamento, fiscalização e avaliação. • Registro de entidades de atendimento (Conselhos de Direitos Municipais). de governo estaduais e municipais executoras de políticas de saúde, educação, assistência, cultura, profissionalização e proteção especial. • ONGs que mantêm programas de atendimento. • Ministério Público. • Conselhos da Infância e da Juventude. • Fóruns DCA. * Essas conferências são fóruns de recomendações e avaliação das políticas para a infância e a adolescência que devem ser realizadas articuladamente nos níveis nacional, estadual e municipal. 132 Funções Objetivos Instrumentos Exibilidade/defesa • Aplicação de medidas protetivas e sócioeducativas. • Exigir e defender direitos assegurados em lei. • Aplicação de medidas jurídicas e extrajudiciais previstas em lei. • Requisição de serviços (Conselhos Tutelares). Organismos • Ministério Público. • Conselhos de Direitos. • Conselhos Tutelares. • Defensorias Públicas. • Varas da Infância e da Juventude. • ONGs de defesa de direitos. • Centros de Defesa. • Delegacias de Polícia e Delegacias Especializadas (da Mulher e DPCA). Responsabilização • Justiça • Investigação • Responsabilizar legalmente os responsáveis pela violação de direitos. • Processo • Aplicação policial. judicial. de penalidades e sanções de natureza civil, criminal e administrativa. (Varas da Infância e da Juventude, Varas Especializadas em Crimes contra Crianças e Adolescentes e Varas Criminais). • Centros de Defesa. • Ministério Público. • Defensorias Públicas. • ONGs e Universidades que oferecem assistência Jurídica. Quadro 1: ECA - Sistema de Garantia de Direitos. Fonte: Faleiros e Faleiros (2007, p. 81). 133 Este quadro demonstra como a Rede de Proteção pode garantir os Direitos previstos no ECA e responsabilizar os múltiplos organismos, governamentais e não governamentais, com diferentes funções, objetivos e instrumentos de ação (FALEIROS; FALEIROS, 2007, p. 80). E para que esta Rede possa expressar uma gestão do cuidado é preciso transpor seus principais desafios e limites que esta política vem enfrentando. 3.4 A gestão da Rede e a gestão do cuidado Para finalizar este capítulo vamos conversar sobre as dinâmicas instituídas na Rede de Proteção, buscando elencar os principais desafios e os limites das políticas para uma gestão do cuidado. Vamos iniciar com as seguintes questões: qual a interface entre a gestão da Rede de Proteção e a gestão do cuidado? É possível pensar as políticas e as instituições a partir do cuidado de si e do cuidado do outro? E, ainda, é admissível uma gestão do cuidado na Rede, pautada em princípios éticos, estéticos e afetivos? Como vimos anteriormente, embora a Rede de Proteção deva atuar de forma articulada aos setores e com diferentes funções, poderes e recursos para dar conta dos processos complexos que envolvem as situações de violências, quando nos debruçamos sobre as pesquisas que refletem acerca da sua gestão, muitas críticas são dirigidas às ações, dentre elas: 134 • A falta de aporte teórico que explique tais processos, com o objetivo de instituir novas práticas interventivas; • O número insuficiente de profissionais para atender à crescente demanda; • A falta de capacitação permanente destes profissionais; • A morosidade do sistema jurídico; • A falta de articulação entre os diversos setores envolvidos com a Rede; • Condutas profissionais excludentes e discriminatórias; • A insuficiência de alternativas preventivas contra as violências. Estas críticas vêm demonstrar que as práticas de proteção ainda são insuficientes e desconectadas entre si, muitas vezes promotoras também de violências. Neste sentido, estão longe de uma gestão do cuidado em que se pressupõem ações [...] numa perspectiva transdisciplinar, ecológica, ética e estética que potencializa a vida como sacralidade vivida. A ética dessa gestão do cuidado, por sua vez, se configura como estética da existência, por isso, rejeita qualquer conduta de humilhação, qualquer justificativa para a indiferença a dor do outro, qualquer forma de abandono daqueles e daquelas que não podem caminhar pela vida sozinhos, qualquer conduta jocosa no momento da escuta, qualquer prática de homogeneização das diferenças, qualquer adjetivação para anular as singularidades, qualquer mecanismo de silenciamento das divergências, qualquer movimento que se refira ao outro como objeto. (SOUSA; LIMA, 2004, p. 6). De acordo com essa concepção, as instituições ocupam o lugar social do cuidado, já que existem para garantir a cada criatura humana a integridade de seu desenvolvimento. Para nós, gestão do cuidado com a infância, a “[...] sua materialização se dá pelo reconhecimento teórico-prático, na convivência, da legitimidade das crianças, especialmente aquelas que são adulteradas pelos 135 Termo utilizado para se referir ao público que aguarda para ser atendido, pois a demanda de necessidade de atendimento supera o número de casos em acompanhamento, uma vez que as equipes são limitadas em número de profissionais. contextos de violências.” (SOUSA; LIMA, 2004. p. 7). Isto porque as crianças e os adolescentes estão entre as populações mais vulneráveis às violências, enfrentam demandas reprimidas em todo País, dada a ausência de uma infraestrutura adequada para acolher todos os casos denunciados e prevenir a incidência e a reincidência. Uma situação agravada pela falta de profissionais ou pela rotatividade, o que inviabiliza a continuidade dos atendimentos e encaminhamentos e deixa as famílias desamparadas até que o novo profissional assimile as informações dos prontuários da criança ou adolescente inseridos em contextos de violências. A formação, por outro lado, tem se mostrado outro agravante, já que muitos contratados não trazem qualquer experiência nesse campo ou são recém-saídos da graduação, com precário conhecimento em atividades sociais. Falta-lhes, inclusive, a supervisão psicológica de seu trabalho, isto é, não há profissionais para cuidar dos cuidadores. Para Azambuja (2004), os profissionais que lidam com as consequências das violências vêem-se diante de situações complexas e confusas que se confundem com o pessoal e o profissional, ameaçando papéis tradicionais já incorporados, gerando inseguranças e negação. As ações de enfrentamento destas violências exigem a desconstrução das concepções patriarcais, adultocêntricas, machistas e que se revelam nos encaminhamentos destinados ao atendimento, mais particularmente quando estes são realizados pelas profissionais do sexo feminino. Que há uma emergência na superação dos discursos jurídico-normativos, os quais oportunizam a produção de outras violências, tais como: prontuários não atendidos, filas de espera para julgar a gravidade das violências sofridas, a intimidação de profissionais, os interesses político-partidários que insuflam a descontinuidade das ações planejadas, entre outras (SOUSA; LIMA, 2004, p. 7). 136 As violências, pelo “[...] caráter multidimensional, pela diversidade de suas manifestações, pela sua constituição fluida que permite o esconder e o mostrar de um mesmo movimento, pelo simbólico que elas evocam, pelo jogo de cumplicidades ambivalentes [...]” (SOUSA; LIMA, 2004, p. 7), são produzidas também pela Rede de Proteção à medida que suas ações não conseguem alcançar a totalidade das vítimas. As condutas excludentes e discriminatórias que transversalizam a Rede nos levam a indagar: quais são os pressupostos que compõem o olhar sobre o fenômeno das violências, recorrentes e destrutivas? Embora reconheçamos que há uma incidência significativa dos casos de violências em populações empobrecidas, entendemos que seus contornos e seus centros são plurais, pois são inúmeras nuances que lhes dão visibilidade. Por exemplo: No estupro de uma criança, além da dor e da violação de sua integridade, outros adereços adornam as cenas que, embora repetitivas, são sempre singulares pelos sofrimentos que desencadeiam. Há o/a agressor(a), a vítima, a história de ambos, a vulnerabilidade da criança, a permissividade do ambiente, o desejo e o poder de um, a recusa possível do outro, as imagens, os gestos, as práticas. (SOUSA; LIMA, 2004, p. 7). Para Sousa (2006, p. 44), as alternativas existentes não tem congregado atitudes de cuidado com as crianças e adolescentes, pois ainda são insuficientes os procedimentos pós-denúncia, porque faltam as condições necessárias para assegurar a todos outros cuidados que contemplem: atenção a sua corporeidade, acompanhamento nutricional, intervenções afetiva, clínica, pedagógica, lúdica, entre outras para que atravessem o trauma com menores danos emocionais e redescubram sua identidade. 137 De acordo com as pesquisas de Sousa e Lima (2004, p. 8-9) evidenciou-se que o funcionamento das instituições criadas para proteger as crianças e os adolescentes dos processos de violências tem-se pautado em discursos como o jurídico-normativo, o médico-patológico e o pedagógico-assistencialista, como já apresentados no Módulo I. Nossa reflexão quer provocar outras que assumam a defesa incondicional de crianças e adolescentes, refutando os discursos e as práticas que têm se perpetuado como explicações das violências. São poucas as estratégias eficazes que têm surgido como alternativas de intervenção e cuidado. Além disso, encontramos vários locais onde coexistem práticas de heranças arraigadas, que remetem a um passado assistencialista e repressivo, a uma cultura racista e machista, no que diz respeito ao atendimento clientelista e pouco transparente nas relações entre o Estado e a Sociedade. Por sua vez, as Redes de Proteção mantêm a luta para fortalecer a capacidade de intervenção e a avaliação dos serviços públicos, ao mesmo tempo em que procura indicar outros serviços coerentes com sua proposta (BRASIL, 2004). As Redes de Proteção, como vimos anteriormente, são compostas pelos/as: • 138 Conselhos dos Diretos da Criança e do Adolescente; • Conselhos Tutelares; • Varas da Infância e da Juventude; • Promotorias da Infância e Juventude; • Delegacias de Proteção à Criança e ao Adolescente; • Fóruns dos Direitos da Criança e do Adolescente; • Centros de Defesa; • Defensoria Pública; • Secretarias de governo estaduais e municipais executoras de políticas públicas; • Organizações não Governamentais (ONG). Existem pelo menos quatro setores importantes que congregam todas essas instituições, são eles: Justiça, Assistência Social, Saúde e Educação. Neste sentido, na gestão das Redes há uma maior integração entre a Justiça e a Assistência Social no que diz respeito à proteção de crianças e adolescentes, enquanto a Saúde e a Educação parecem atuar à margem do que as políticas públicas têm determinado. Algumas questões dizem respeito às dificuldades dos profissionais da saúde e da educação responsabilizaremse pelas denúncias dos casos de suspeita de violências, conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente. Profissionais da saúde, por exemplo, justificam que não há formação sobre este tema para auxiliar na identificação de situações de violências, por outro lado há também o argumento de que a relação médico-paciente requer sigilo de informações, o que contribui para desresponsabilizá-los pela atuação em Rede. Já na educação argumenta-se que a falta de formação adequada dificulta tanto a identificação, quanto a abordagem com a criança e os familiares quando as situações de violências vêm à tona, deixando os profissionais vulneráveis. Entendemos que essas situações ilustram a desarticulação das Redes e a importância de escolhas que possam além de capacitar os profissionais, mobilizar todos os setores para atuarem em sintonia efetiva na proteção de crianças e adolescentes em situações de violências. Com relação à prevenção, voltar-se-ia para uma gestão do cuidado, a fim de atuar de forma educativa e informativa com crianças, adolescentes e seus familiares, na consolidação de condutas relacionais mais humanas. Para Maturana (2004), nos espaços de relações, as emoções são classes de condutas relacionais. Ou seja, em nosso viver no espaço emocional, onde um e outro se encontram, está o núcleo de onde surge um e outro. As emoções estão no curso dos modos de fazer e nos convidam à seguinte reflexão: como os educadores podem ser animados a atuar na 139 proteção e prevenção das violências contra seus alunos? Por que, nos dias atuais, o papel da Escola na Rede de Proteção a crianças e adolescentes ainda não alcançou a importância devida? Quais as dificuldades que os educadores encontram para participar das ações de proteção, prevenção e dos encaminhamentos aos serviços especializados? No relato a seguir temos um exemplo de como a escola lida com as violências. É um depoimento que retrata como não tem sido fácil para a Escola permanecer ausente das demandas sociais, ou eximir-se das responsabilidades institucionais e jurídicas na proteção dos sujeitos violentados ou imersos em circunstâncias vulneráveis. 140 Depoimento Atuo como Especialista em Educação Especial em uma rede municipal de ensino da Grande Florianópolis/SC, na qual realizo um trabalho de orientação, supervisão e formação na área da educação especial, acompanhando tudo referente à inclusão no município, não somente de deficientes, mas de toda e qualquer criança que esteja nas escolas e centros de educação infantil. O que mais me impressiona é estar vivenciando uma realidade de crianças e adolescentes em escolas do município que sofrem os mais diversos tipos de violência. Cito um caso vivenciado ano passado, no qual nós, as especialistas, depois de procuradas para discutir alguns casos de violência com crianças de uma escola oriunda de comunidade carente, procuramos auxílio junto ao Conselho Tutelar do município, no primeiro momento, e fizemos uma denúncia após o relato constante de abuso sexual de uma aluna com deficiência à professora do Atendimento Educacional Especializado. O Conselho Tutelar, ao intervir no caso, disse de onde partia a denuncia e colocou a escola em situação delicada, já que principalmente a mãe, culpou a professora pelas “mentiras” do abuso. Uma das exigências por parte da família foi a troca de professor o que foi concedido pela coordenação da época. Enquanto profissional da educação especial, envolvida no processo de inclusão da rede municipal, me senti “podada”, por tentar auxiliar essa aluna que convive com uma realidade dura e cheia de percalços. Diante do acontecimento, a família reestruturou o processo, a mãe parou de trabalhar e cuida hoje da menina e esta está em acompanhamento pelo Programa Sentinela. Vale salientar, que neste caso, a escola teve o papel de “acusador” e fica a dúvida, qual o papel da escola neste contexto? Que responsabilidades nós, como educadores, temos em relação a esses casos de violência? ∞∞ 141 São violências muitas vezes dissimuladas pela “síndrome do segredo”, uma espécie de “acordo de silêncio” entre abusador e vítima, que muitas vezes impede a quebra deste pacto por tempo ilimitado e causa muito sofrimento às vítimas. Esse “segredo” pode ser desvelado na escola, seja pelos sinais emitidos pelo estudante ou pela confiança em alguns professores. O ambiente escolar é um dos lugares possíveis para a constatação e intervenção em casos de violências e o profissional da educação é aquele que pode auxiliar no cuidado das cicatrizes, inevitavelmente deixadas pelas várias formas de abuso na vida de crianças e adolescentes. O desafio é rever nossos conceitos e preconceitos, bem como ativarmos nossas responsabilidades sociais para protegermos crianças e adolescentes, apesar dos inúmeros encargos que recaem sobre os educadores no cotidiano das escolas. Decifrar e traduzir os pedidos de socorro de quem vive tais situações antecede a decisão de denunciar. Nestes casos, denunciar não significa passar o caso adiante, mas obter e apresentar informações relevantes para tornar eficientes as medidas de atenção pelos órgãos competentes. Como um dever de todos, a atitude de cada educador pode fazer a diferença para garantir a integridade, a saúde física e psíquica de muitas crianças e adolescentes. Estamos convencidas que uma das funções da escola é somar na Rede e proporcionar aos estudantes práticas educativas que “[...] utilizem a ética da qualificação afetiva como substrato para suas ações [...]” (SOUSA, 2006, p. 45), ou seja, que construam informações dialógicas para que eles se sintam encorajados a falar das violências. Se a história inteira está em cada ser humano, tudo está em nós como potência e os processos educativos vão culturalmente modulando cada algoritmo de nossa trajetória, criando espaços distintos que podem fundar os postulados de 142 uma conviviabilidade ético-estética entre as pessoas e arregimentar nossa dimensão demens para criativamente, qualificar a sapiência que também nos conforma (SOUSA, 2006, p. 42, grifo nosso). Com base neste cenário recortado para ilustrar a problemática das violências que afetam a população infantojuvenil, e enfocando a dificuldade das políticas públicas em assegurar uma gestão do cuidado eficiente, queremos criar mais espaços de reflexão sobre o significado da qualificação entre educadores e outros profissionais, com o objetivo de alargar as condições de intervenção. Para Morin (2002, p. 59-60), “o ser humano é um ser racional e irracional, capaz de medida e desmedida; sujeito de afetividade intensa e instável. [...] E quando, na ruptura de controles racionais, culturais, materiais, há confusão entre o objetivo e o subjetivo, entre o real e o imaginário, quando há hegemonia de ilusões, excesso desencadeado, então o Homo demens submete o Homo sapiens e subordina a inteligência racional a serviço de seus monstros. E como podemos pensar nestas ações preventivas? De que maneira a interlocução da Escola com Rede pode auxiliar na criação de um projeto de intervenção com parcerias? Você pode entrar em contato com as instituições de sua cidade que acompanham diretamente crianças e adolescentes envolvidos em contextos de violência e pensar alternativas preventivas como: • Mobilizar toda a sua comunidade para o tema das violências e construir um projeto de orientação aos familiares; • Junto a comunidade escolar, você pode propor: discussões sobre o tema das violências para construir o Projeto Político Pedagógico da escola; organizar filmes, palestras, oficinas com os professores; e organizar atividades com as crianças e adolescentes. Estas são algumas sugestões, mas você pode construir outras junto com seus colegas na instituição. Compreendemos que é possível pensar na Rede de Proteção a partir de uma gestão do cuidado, onde possamos priorizar as re- 143 lações entre os sujeitos; promover condutas de convivência que tenham como centralidade a vida; articular a co-responsabilidade social das instituições a partir de práticas inclusivas; enfim, gestar outras possibilidades de acolher, cuidar e desenvolver a vida de crianças, adolescentes e seus familiares envolvidos em contextos de violências. E visualizamos que a Escola tem uma importante contribuição neste processo. »»Em síntese... Neste capítulo foi possível continuar a trilhar os caminhos explicativos de nossas reflexões conjuntas, estabelecendo agora, um diálogo com os cenários da América Latina que envolve crianças e adolescentes em contextos de violências. Nesses cenários os indicadores socioeconômicos apontam grandes dificuldades para a superação da pobreza e das conseqüências decorrentes deste estado onde milhões de pessoas vivem em condições de miserabilidade. Destacamos que no Sul do Brasil os indicadores apontam para altos índices de denúncias de violências, principalmente relacionadas à crianças e adolescentes. Mas contraditoriamente, os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná agregam algumas das cidades com os melhores índices de desenvolvimento humano do país. Conhecemos um pouco sobre a Rede de Proteção, sua conceituação e caracterização, dando ênfase a sua constituição no âmbito do Sistema de Garantia de Direitos da infância e adolescência. Refletimos sobre as dinâmicas instituídas na Rede de Proteção, buscando os fundamentos teóricos que tornem possível construir práticas de uma gestão do cuidado que enfatize o lugar da escola na proteção e na prevenção das violências contra crianças e adolescentes. 144 Essa é a base para avançarmos ao capítulo IV onde o objetivo é destacar a legislação e políticas públicas que regem o Sistema de Garantia de Direitos, seus encontros e desencontros, a fim de realçar sua importância histórica e social na proteção de crianças, adolescentes e seus familiares. »»Referências AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Violência sexual intrafamiliar: é possível proteger a criança? Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. BRASIL. Lei n° 6.697, de 10 de outubro de 1979. Código de Menores. Disponível em: <http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/ portal/cao_infancia_juventude/legislacao_geral/leg_geral_federal/ LEI_6697_79.HTM>. Acesso em: 4 ago. 2010. BRASIL. Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990. 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Lévinas, ser é ter cuidado, ter cuidado consigo, com os outros, com o mundo: ‘Cuidado do ser humano que se estende ao outro ser humano e expressa a solicitude de um para o outro’. Este cuidado com os outros se traduz por uma solicitude pelo seu comer, seu vestir, seu beber, seu abrigo. (LACOMBE, 2005) Nossa condição biológica nos torna dependentes de proteção e de cuidados essenciais para que possamos acoplar a ela a nossa humanidade em processo, para que possamos ser humanos. Sem guarida e carentes de afetos, de alimentação, da socialização primária que a vida coletiva nos proporciona, entre outras necessidades, não podemos viver, por vezes, sobreviver. Não suportamos o sofrimento de forma duradoura, a amargura nascida de padrões destrutivos de convivência nos dilacera. Quanto às crianças e aos adolescentes, a presença do adulto é indispensável para que eles se sintam protegidos, nutridos, a fim de que percebam que sua presença desperta interesse em seus educadores. Não existimos na solidão do abandono, não nos tornamos seres humanos felizes se criados envoltos em violências. Nesse sentido, a legislação tem um papel político de afirmar para todas as pessoas a segurança, as condições materiais elementares para a conservação da vida com dignidade, os direitos comunitários. Legislação e políticas públicas só têm sentido quando coincidem; para tanto, dependem de nossas ações como educadores para superarem seus desencontros na acolhida de crianças e adolescentes em situações de violência. 152 Políticas públicas Por políticas públicas entendemos o conjunto articulado de decisões orientadas para a resolução de problemas sociais ou para a realização de um objetivo considerado de interesse público. As decisões constituem um padrão de atividade governamental a respeito do assunto e representam aquilo que é de fato realizado, não um conjunto de intenções. As políticas públicas são desenvolvidas por instituições governamentais e seus responsáveis, por meio de processos políticos. Sua implementação pode ou não envolver organizações da sociedade civil (empresas e terceiro setor) para a decisão de elaboração legal e os atos subsequentes relacionados à implementação, à interpretação e ao cumprimento da lei. Um problema é considerado público quando um grupo considerável de pessoas precisa receber atenção por parte do governo, e este, por sua vez, passa a prestar atenção no referido problema. Para se entender o ciclo de formação da política pública, é preciso considerar alguns procedimentos, que não necessariamente devem estar em ordem, sendo eles: identificação do problema, inclusão na agenda, formulação de políticas, além da decisão, implementação e a sua avaliação. Para cada uma dessas situações, podemos abordar diversas questões sobre a relevância, legitimidade, representação social e todos os temas ligados a nossa qualidade de vida. Fonte: Rede de Cooperação da Cantareira (2010). Você já havia pensado como os movimentos sociais são importantes para a exigência de políticas públicas de direitos? Então reflita como a legislação pode garantir o cumprimento de direitos e deveres, os quais têm como princípio a melhoria da qualidade de vida de todos os cidadãos. Essas reflexões nos convidam ao compromisso com a vida pública para que possamos encarar os contextos de exclusões e as contradições que operam entre a lei e a política, para articular, cada vez mais, os diversos setores da sociedade em prol do bem comum. Para nos auxiliar no processo de compreensão, vamos apresentar um breve histórico do marco legal de enfrentamento das violências contra crianças e adolescentes; problematizar como a intersetorialidade tem se articulado no Sistema de Garantia de Direitos, os principais limites da legislação em vigor e das políticas públicas. 153 De acordo com Mariana Lacombe (2005, p. 2), apenas um passo incomum, um salto, apesar do medo, da dor, do risco e do peso da responsabilidade, (que é literalmente resposta a um chamado) pode nos permitir modificar uma representação, ampliando, revendo, aprofundando, conversando com nossas representações anteriores, sobre o mundo, sobre os outros, sobre nós mesmos. Apenas um salto pode nos levar a perceber que a realidade possui vários níveis. A física contemporânea demonstrou a descontinuidade entre os níveis quântico e macrofísico. [...]. Para começar, dizia W. Yankelecitch, é preciso coragem. Não se ensina a começar. Aprender a ser sempre remete em última instância a uma decisão pessoal daquele que aprende e se podemos torcer pela decisão, distribuir metodologias, conselhos, afeto ou por vezes até aumentar a crise para ver se o outro acorda, nunca podemos decidir aprender a ser no lugar de ninguém. É dessa compreensão que necessitamos, pois apesar dos entraves estruturais e subjetivos da sociedade em que vivemos, com seus aparatos econômicos, políticos e culturais, está em cada um de nós a possibilidade de fazer escolhas em defesa do outro, de proteger a vida em sua diversidade. Cada um de nós guarda consigo a potência de ser de outros jeitos, de autodesafiar-se a mudar e a recriar as realidades das quais somos partícipes. 4.1.1 Lógicas dos serviços de enfrentamento das violências no Brasil Quais os marcos lógicos e legais dos serviços de enfrentamento das violências e as principais normativas internacionais que embasaram este movimento no Brasil? O que se denomina marco lógico tem como normativas internacionais uma ordem cronológica: 154 a.Declaração de Genebra – 1924: reconhecida pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (nomeadamente nos artigos 23° e 24°), pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (nomeadamente o artigo 10°); b.Declaração Universal dos Direitos Humanos – 1948: que arrola os direitos e deveres fundamentais de todo ser humano; c.Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem – 1948: resolução XXX, Ata Final, aprovada na IX Conferência Internacional Americana, em Bogotá, em abril de 1948. Cita os direitos essenciais do homem que os Estados americanos devem reconhecer; d.Declaração Universal dos Direitos da Criança – 1959: estabelece os direitos universais das crianças; e.Convenção Internacional dos Direitos da Criança – 1989: adotada pela Resolução n° L. 44 (XLIV) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989 e ratificada pelo Brasil em 20 de setembro e 1990. Enuncia um amplo conjunto de direitos fundamentais, civis e políticos, e também os direitos econômicos, sociais e culturais de todas as crianças, bem como as respectivas disposições para que sejam aplicados; f. Declaração Mundial sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento das crianças nos anos 90 – 1990: onde o bem-estar de todas as crianças torna-se um compromisso e é assumido por 71 presidentes e chefes de Estado, além de representantes de 80 países, durante o Encontro Mundial de Cúpula pela Criança, realizado nos dias 28 e 29 de setembro de 1990, na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque; 155 g. Plano de ação para implementação da Declaração Mundial sobre a sobrevivência, a proteção e o desenvolvimento da criança nos anos 90 – 1990: cujo objetivo é orientar os governos nacionais, as organizações internacionais, as agências bilaterais de assistência, as organizações não governamentais (ONGs), e a todos os outros setores da sociedade, na formulação dos seus programas de ação para garantir a efetivação da Declaração do Encontro Mundial de Cúpula pela Criança; h. Declaração de Viena e Programa de Ação – 1993: reafirma o empenho de todos os Estados em cumprirem as suas obrigações no que se refere à promoção do respeito universal, da observância e da proteção de todos os direitos do homem e liberdades fundamentais para todos, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, com outros instrumentos relacionados com os Direitos do homem e com o direito internacional; i. Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores – 1998: o objetivo dessa Convenção é a proteção dos direitos fundamentais e dos interesses superiores “do menor”; é a prevenção e sanção para o tráfico internacional de menores de idade, bem como a regulamentação de seus aspectos civis e penais; j. Protocolo de San Salvador – 1998: é um protocolo adicional à Convenção Interamericana Sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; k. Declaração de Estocolmo – 1998: que apresenta uma Agenda de Ação para prevenção e proteção da exploração sexual de crianças e adolescentes, bem como medidas para recuperação e reintegração de vítimas de abuso; 156 l. Relatório da Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre a Criança – 2002: documento resultante da Sessão Especial sobre a Criança que propõe um acordo unânime em torno de uma nova agenda para as crianças do mundo, incluindo 21 metas e objetivos específicos para saúde infantil, educação e proteção; m. Protocolos Facultativos à Convenção sobre os Direitos da Criança – 2003: relativos ao envolvimento de Crianças em Conflitos Armados e à Venda de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia Infantil (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2009). No Brasil destacamos como marcos lógicos: a.Programa Nacional de Direitos Humanos I (PNDH I) – 1996: que traz as propostas de ações governamentais, a fim de fortalecer a democracia, promover e aprimorar o sistema de proteção aos direitos humanos; b.Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil – 2000: instrumento de garantia e defesa de direitos de crianças e adolescentes, a fim de criar, fortalecer e implantar um conjunto articulado de ações e metas fundamentais para assegurar a proteção integral dessa população em situação ou risco de violência sexual; c.Guia de Atuação frente a maus-tratos na infância e na adolescência/SBP – 2001: apresenta orientações para pediatras e demais profissionais que trabalham com crianças e adolescentes; d.Programa Nacional de Direitos Humanos II (PNDH II) – 2002: uma atualização do PNDH I, esse programa deixa de circunscrever as ações propostas a objetivos de curto, médio 157 e longo prazo, e passa a ser concretizado por meio de planos de ação anuais, os quais definirão as medidas a serem adotadas, os recursos orçamentários destinados a financiálas e os órgãos responsáveis por sua execução; e.Política Nacional de Assistência Social – 2004: consolida as disposições da Norma Operacional Básica/SUAS e estabelece a gestão da Assistência Social no país; f. Guia Escolar: métodos para identificação de sinais de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes – MEC/ SEDH – 2004: dá orientações e informações aos profissionais da educação, sobre o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes; g.Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) - 2004: para investigar as situações de violência e redes de exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil; h.Matriz Intersetorial de Enfrentamento da Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes – SEDH/UNICEF/ SER/Comissão Intersetorial de Enfrentamento da Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes/Grupo de Pesquisa sobre Violência e Exploração Sexual Comercial de Mulheres, Crianças e Adolescentes – UNB – 2004: levantamento de dados sobre a Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes; i. Norma Operacional Básica – NOB/SUAS – 2005: disciplina a operacionalização da gestão da Política Nacional de Assistência Social; j. Relatório do Monitoramento 2003-2004 – Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil – 2006: elaborado pelo Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, sobre o mo- 158 nitoramento de todas as regiões brasileiras para aplicar o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil; k.Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos – 2006: Versão atual do PNEDH. A estrutura do documento estabelece concepções, princípios, objetivos, diretrizes e linhas de ação, contemplando cinco grandes eixos de atuação: Educação Básica; Educação Superior; Educação Não Formal; Educação dos Profissionais dos Sistemas de Justiça e Segurança Pública e Educação e Mídia; l. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à convivência Familiar e Comunitária – 2006: destinado à promoção, proteção e defesa do direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária e reflete a decisão de dar prioridade a essa temática, com vistas à formulação e implementação de políticas públicas que assegurem a garantia dos direitos das crianças e adolescentes, de forma integrada e articulada com os demais programas de governo; m. Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – 2006: publicada no decreto presidencial no 5.948 de 26/10/2006. Estabelece princípios, diretrizes e ações de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas e de atendimento às vítimas, conforme o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças; n.Caderno Temático: Direitos Sexuais são Direitos Humanos – 2006: organizado pelo Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, para trazer esclarecimento acerca da violência sexual contra 159 crianças e adolescentes no cenário brasileiro e promover a reflexão de todos; o.Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP) 2008: publicado no decreto presidencial n° 6.347 de 08/01/2008. Este decreto aprova o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - PNETP e institui Grupo Assessor de Avaliação e Disseminação do referido Plano; p.Centro de Referência Especializada em Assistência Social – CREAS: guia de orientação n° 1: para subsidiar estados e municípios na implantação dos CREAS. Tem como conteúdo: organização e gestão dos CREAS; cofinanciamento do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS); serviços oferecidos; instalações físicas; composição, formação e capacitação da equipe que atua nos serviços elencados; monitoramento e avaliação dos processos de trabalhos em execução (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2009). Além dessas instâncias temos um conjunto de leis que compõem os marcos legais que regulam todas as políticas existentes no enfrentamento às violências contra crianças e adolescentes no país (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2009). a.Decreto-Lei (Código Penal) 2.848 – 07/12/40 – Presidência da República (PR): Institui o Código Penal; b.Constituição Federal do Brasil – 05/10/88 – Assembleia Nacional Constituinte – (ANS): conjunto de normas, regras e princípios supremos do ordenamento jurídico do país; c.Lei 8.069 – 13/07/90 – (PR): dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e outras providências; d.Decreto 99.710 – 21/11/90 – (PR): promulga a Convenção sobre os direitos da criança; 160 e.Lei 8.242 – 12/10/91 – (PR): cria o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e dá outras providências; f. Lei 8.642 – 31/03/93 – (PR): dispõe sobre a instituição do Programa Nacional de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente (PRONAICA) e dá outras providências; g.Lei 8.742 – 07/12/93 – (PR): Lei Orgânica da Assistência Social: dispõe sobre a Organização da Assistência Social e dá outras providências. h.Resolução 16 – 09/11/93 – (CONANDA): cria a Comissão de Combate à Violência contra Crianças e Adolescentes; 161 i. Resolução 43 – 29/10/96 – (CONANDA): recompõe o Grupo de Trabalho para analisar a compatibilização das ações dos Ministérios, com objetivo de identificar os serviços, os programas e os projetos relacionados, especialmente, aos três eixos temáticos do CONANDA: Trabalho Infantojuvenil; Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes e Adolescente Autor de Infração e Aplicação das Medidas Socioeducativas; j. Lei 9.455 – 07/04/97 – (PR): define os crimes de tortura e dá outras providências; k.Lei 9.970 – 17/05/00 – (PR): institui o dia 18 de maio como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes; l. Portaria 1.968 – 25/10/01 – (Ministério da Saúde - Gabinete do Ministro): dispõe sobre a comunicação, às autoridades competentes, de casos de suspeita ou de confirmação de maus-tratos contra crianças e adolescentes atendidos nas entidades do Sistema Único de Saúde; m. Lei (Código Civil) 10.406 – 10/01/02 – (PR): institui o Código Civil; n.Decreto Legislativo 230 – 29/05/03 – (Senado Federal): aprova os textos dos Protocolos Facultativos à Convenção sobre os Direitos da Criança, relativos ao envolvimento de crianças em conflitos armados e à venda de crianças, à prostituição infantil e à pornografia infantil, assinados em Nova Iorque, em 6 de setembro de 2000; o.Decreto 5.007 – 08/03/04 – (PR): promulga o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança referente à venda de crianças, à prostituição infantil e à pornografia infantil; 162 p. Decreto 5.017 – 12/03/04 – (PR): promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças; q. Decreto 5.085 – 19/05/04 – (PR): define as ações continuadas de assistência social; r. Portaria 936 – 19/05/04 – (Ministério da Saúde - Gabinete do Ministro): dispõe sobre a estruturação da Rede Nacional de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde e a Implantação e Implementação de Núcleos de Prevenção à Violência em Estados e Municípios; s. Resolução 145 – 15/10/04 – (Ministério do Desenvolvimento Social – MDS/CNAS): Conselho Nacional de Assistência Social aprova a Política Nacional de Assistência Social; t. Decreto s/n – 19/10/04 – (PR): cria Comissão Intersetorial para Promoção, Defesa e Garantia do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, e dá outras providências; u. Resolução 130 – 15/07/05 – (Conselho Nacional de Assistência Social): aprova a Norma Operacional Básica da Assistência Social – NOB/SUAS; v. Resolução 03 – 29/08/05 – (MDS/CIT – COMISSÃO INTERGESTORES TRIPARTITE): considera a Matriz Intersetorial de Enfrentamento da Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes como referência; w. Decreto 5.948 – 26/10/06 – (PR): aprova a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e institui Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de elaborar proposta do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – PNETP. 163 Os documentos aqui elencados têm como intencionalidade, além de proporcionar a divulgação aos educadores em formação, evidenciar que as violências não resultam da falta de legislações, protocolos e normativas. Estas estão embrenhadas em uma dinâmica relacional muito complexa e afetam o tecido social e as relações interpessoais; assim, a possível superação de suas práticas exige de todos nós uma luta sem tréguas, ações cotidianas, compromisso público, disposição afetiva de cuidado. A lei pode ser considerada indispensável para regular a vida coletiva, mas se não educarmos os sujeitos para uma cultura de paz, ela permanecerá anacrônica em seus objetivos e princípios. [!] Relembre as características do "discurso da indignação inútil" com a leitura do primeiro capítulo do livro Módulo 1: Gestão do cuidado e educação biocêntrica. Eis porque permanece urgente criar movimentos em prol da atenção às crianças e aos adolescentes imersos em contextos de violências. Contudo, sem o conhecimento dos documentos legais, sem a reflexão coletiva e a inserção deste conteúdo nas atividades pedagógicas da escola, as atitudes ficam limitadas, na maioria das vezes, aos discursos da indignação inútil. Além de não contribuir para uma compreensão crítica, dificulta entender como as políticas públicas estão oficialmente organizadas. Portanto, os marcos nacionais e internacionais são relevantes para subsidiar estados e municípios na promoção das políticas, no fortalecimento das lutas para constituir uma Rede Nacional de atenção a toda forma de violência praticada contra crianças e adolescentes, contra todos os organismos vivos. Esses documentos ratificam a necessidade de que as ações entre os diversos setores sejam articuladas, a fim de dinamizar e qualificar as práticas de atenção e proteção. Entretanto, no Brasil, a Rede de Proteção tem se constituído de maneira bem diferenciada por causa de suas dimensões e condições regionais. Nas regiões Sul e Sudeste há uma maior efetivação e articulação das políticas, enquanto nas regiões Norte e Nordeste a precariedade das instituições e a falta de condições básicas configuram outro 164 cenário. Razão que nos faz insistir na indispensabilidade de nosso compromisso para consolidarmos o Sistema de Garantia de Direitos, articulado com as áreas da Assistência Social, da Saúde, da Educação e dos Órgãos de Justiça e Promotorias Públicas, para o enfrentamento das violências. 4.2 Sistema de Garantia de Direitos e intersetorialidade das políticas públicas O Sistema de Garantia de Direitos se constitui a partir do ECA e da criação dos Conselhos de Direitos, os quais são responsáveis por zelar pelo cumprimento e pela fiscalização dos direitos e das políticas públicas que envolvem a população infantojuvenil. O Estatuto, Lei n° 8.069/90 regulamentou o artigo 227 da Constituição Federal, que atribui à criança e ao adolescente prioridade absoluta no atendimento aos seus direitos como cidadãos brasileiros. A aprovação dessa lei ressalta o esforço coletivo de variados setores da sociedade organizada e concretiza o desejo de muitos por um projeto de sociedade que seja marcado pela igualdade de direitos e de condições. É, portanto, um instrumento importante nas mãos da sociedade e do poder público para transformar a realidade da infância e da juventude, historicamente vítimas das violências. Como já assinalado anteriormente, o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente nasceu com atribuição específica: articular pessoas e instituições que atuam na defesa dos direitos infantojuvenis, buscando a sintonia entre a família, as instituições sociais, associações comunitárias, sindicatos, escolas, empresas, os Conselhos de Direitos, Conselhos Tutelares e as diferentes instâncias do poder público. 165 Eixos do Sistema de Garantia de Direitos PORTAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. [2010?]. Disponível em: <http://www.direitos dacrianca.org.br/temas-prioritarios/ 8a-conferencia-dos-direitos-dacrianca-e-do-adolescente/eixo-3fortalecimento-do-sistema-degarantia-de-direitos>. Acesso em: 29 jul. 2010. •Promoção: formulação de políticas públicas. • Defesa: responsabilização do Estado, da sociedade e da família. • Controle social: espaço da sociedade civil articulada em fóruns, frentes, pactos, etc. Vigilância dos preceitos legais. Hoje existe um entendimento corrente de que os órgãos que compõem esse sistema podem ser agrupados em três áreas (Resolução 113 de 19/04/2006 do CONANDA): 1. Promoção dos Direitos Humanos: A política de atendimento aos direitos humanos de crianças e adolescentes operacionaliza-se por meio de três tipos de programas, serviços e ações públicas: i) políticas públicas, especialmente das políticas sociais, afetos aos fins da política de atendimento dos direitos humanos de crianças e adolescentes; ii) execução de medidas de proteção de direitos humanos; iii) execução de medidas socioeducativas e assemelhadas. 2.Efetivação dos direitos e controle social: Realizado por meio de instâncias públicas colegiadas próprias, tais como: i) Conselhos dos Direitos de Crianças e Adolescentes; ii) conselhos setoriais de formulação e controle de políticas públicas; iii) os órgãos e os poderes de controle interno e externo definidos na Constituição Federal. Além disso, de forma geral, o controle social é exercido soberanamente pela sociedade civil, por meio de suas organizações e articulações representativas. 3. Defesa dos direitos humanos: Os órgãos públicos judiciais; Ministério Público, especialmente as promotorias de justiça, as procuradorias gerais de justiça; a Advocacia Geral da União e as procuradorias gerais dos estados; o Sistema de Segurança Pública, principalmente as polícias; Conselhos 166 Tutelares; ouvidorias e entidades de defesa de direitos humanos, incumbidas de prestar proteção jurídico-social. O diagnóstico geral da atuação dos principais atores de garantia de direitos aponta, ao mesmo tempo, motivos para celebração e preocupação. Como motivo de celebração, o balanço dos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) indicou um avanço extraordinário na institucionalização e no aprimoramento dos mecanismos de exigibilidade de direitos das crianças e dos adolescentes compondo um amplo e complexo sistema. ∞∞ Segundo dados do Portal dos Direitos da Criança e do Adolescente (2010), há hoje uma rede de 5104 Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente para cobrir 92% dos municípios; 5004 Conselhos Tutelares para atender 88% das cidades brasileiras; dezenas de núcleos especializados em infância e juventude, junto às Defensorias Públicas, que estão presentes em 21 estados da federação; centenas de Centros Operacionais das Promotorias de Justiça da Infância e da Juventude; Varas Especializadas da Infância e Juventude. Os Conselhos de Direitos e Tutelares foram os dois mecanismos de exigibilidade dos direitos da criança e do adolescente, incorporados aos estados brasileiros pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Juntos, eles compõem uma rede de mais 70 mil pessoas que cotidianamente trabalham na construção da cidadania desta população. Essa rede atua como um dinamizador do Sistema de Garantia de Direitos (PORTAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, 2010). No portal consta ainda a pesquisa nacional intitulada “Os Bons Conselhos: Conhecendo a Realidade”, realizada em 2006, que reflete sobre a necessidade de se concentrar esforços na criação de Conselhos de Direitos e Tutelares naqueles municípios onde não 167 Sociedade civil organizada: Assume um duplo papel – atuar na linha de frente, Conselhos: colocando em prática ações de defesa e garantia dos Família: direitos das crianças e adolescentes; encaminhar São órgãos públicos de controle reivindicações e fiscalizar a atuação dos governos para social, fundamentados no prin- assegurar que seus pontos de vistas e suas necessida- cípio de democracia participati- des sejam atendidas/CONTROLE SOCIAL. va. Existem para garantir a participação da sociedade na formu- Esfera primeira, natural e básica lação de políticas públicas e são de atenção. Cabe ao Estado voltados para a defesa e promo- oferecer condições mínimas para que a família cumpra a sua função. Delegacias especializadas: Repartição policial especializada para atendimento ao ção dos direitos das crianças e Atribuições e competências das diversas instâncias que compõem o Sistema de Garantia de Direitos da criança e do adolescente adolescentes. Conselhos Tutelares: É um órgão permanente e autônomo, encarregado de zelar pelo cumprimen- adolescente. to dos direitos da criança e do adolescente. Juizado da Infância e da Juventude: As Varas da Infância e Juventude contam com Ministério Público: Defensoria Pública: juízes especializados na área da infância e adoles- É um órgão público que O Ministério Público cência que, em conjunto com uma equipe técnica, garante o define-se como órgão realizam estudos e pesquisas, acompanham o constitucional autôno- cumprimento das leis e das medidas de proteção, acesso à Justiça, ou seja, que permite às pessoas promovem o entrosamento dos serviços do juiza- que não podem pagar ter pela defesa da ordem do com os Conselhos Tutelares e acompanham a um advogado especiali- jurídica, dos interesses execução das medidas socioeducativas. Assim sociais como as Varas, as Promotorias da Infância costu- zado para orientá-las e defender seus direitos na mam denominar-se promotorias cíveis e de defesa Justiça. próprio regime demo- dos direitos difusos e coletivos da infância e da às pessoas mo, incumbido de zelar e individuais indisponíveis e do crático. juventude, promotorias inflacionais da infância e da juventude e promotorias de execução de medida socioeducativa. Fonte: Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente da Bahia (2010) 168 existem, e no aprimoramento da estrutura e funcionamento desses conselhos. A média nacional de implantação dos conselhos é considerada “boa”, mas existe grande desproporção regional, com prejuízo para as regiões Norte e Nordeste. Outro fator demonstrado na pesquisa é o de que hoje a maioria dos Conselhos dos Direitos e Tutelares existentes no Brasil atuam com uma enorme complexidade de problemas, indicando a necessidade de melhoria geral no seu padrão de funcionamento (PORTAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, 2010). Outro estudo da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores e Defensores Públicos da Infância e Juventude (ABMP) confirma a necessidade de se avançar na prática de criação das Varas Especializadas, como dispõe o ECA. Depois de 18 anos, elas são uma realidade em apenas 3% das comarcas brasileiras. Além de escassas, essas Varas têm funcionamento deficitário, sobretudo pela falta ou limitação de pessoal técnico qualificado. Nesse mesmo sentido, outro desafio do fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos é a expansão dos Núcleos Especializados em Infância e Adolescência das defensorias públicas – em especial naqueles estados onde estes ainda não foram criados – bem como a qualificação dos núcleos já existentes. (PORTAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, 2010). Para superar essas dificuldades, o CONANDA e a Secretaria Especial dos Direitos Humanos vêm apoiando técnica, política e financeiramente, por meio do Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente (FNCA), um conjunto de ações para criar os Conselhos nos municípios onde eles não existem; providenciar políticas de capacitação continuada para operadores deste Sistema; reformular e consolidar nacionalmente o Sistema de Informação para Infância e Adolescência (SIPIA); fortalecer Redes e Fóruns dos atores do Sistema de Garantia de Direitos. (PORTAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, 2010). 169 CONANDA O Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (CONANDA) é a entidade nacional formada por representantes do governo, empregadores e trabalhadores responsáveis por deliberar e fiscalizar as políticas de atenção a crianças e adolescentes. O CONANDA vem desempenhando um papel importante na articulação e no fortalecimento dessa Rede de Conselhos de Direitos e Tutelares. Tudo isso por intermédio de assembleias descentralizadas, encontros de articulação com os Conselhos Estaduais, Distrital e Municipal das capitais, das Conferências dos Direitos da Criança e do Adolescente, e do recém-criado Portal dos Direitos da Criança e do Adolescente. O CONANDA busca potencializar o papel político dessa Rede na promoção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Esse amplo Sistema de Garantia de Direitos tem sido considerado por especialistas das Nações Unidas e do mundo acadêmico internacional como a maior intervenção sistêmica baseada nos direitos da criança e do adolescente no mundo. Se esse fato é motivo de celebração, também é motivo de preocupação pela responsabilidade do Brasil perante a comunidade internacional (PORTAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, 2010). Podemos observar que o avanço nas políticas nacionais em prol da garantia dos direitos das crianças e adolescentes tem buscado não só a criação de alternativas, como também a melhoria das práticas decorrentes de seu funcionamento. Entretanto, é preciso refletir que a gestão do cuidado está muito além dessas ações, o que pressupõe assumir escolhas educativas e não policialescas. Lutamos para que o Estado brasileiro continue a promover políticas preventivas, as quais possam ir além das ações de garantia dos direitos de crianças e adolescentes que sofrem violências; que avance nas ações para qualificar intensamente a vida desta população, sem reduzir as intervenções à garantia dos diretos básicos. Compreendemos que o Sistema de Garantia de Direitos faz parte de uma luta histórica, mas é preciso melhorar o atendimento para construir no país uma infância e adolescência dignas. 170 4.3 Justiça e legislação: o cuidado por meio da lei A área da Justiça tem se debruçado na formulação e prática das leis que regulamentam e garantem os direitos de crianças e adolescentes. Suas ações baseiam-se nas principais normativas nacionais e internacionais sobre os Direitos Humanos, dentre elas: • Declaração Universal dos Direitos Humanos. • Declaração dos Direitos da Criança. • Constituição Federal. A partir das leis internacionais, alguns documentos importantes foram criados no país e fundamentam o Sistema de Garantia de Direitos para mobilizar as políticas sociais na atenção e proteção de crianças e adolescentes em situações de violências (BRASIL, 2009b): • Convenção sobre os Direitos da Criança. • Estatuto da Criança e do Adolescente. • Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho sobre a idade mínima para a admissão em emprego. • Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho sobre a Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e a ação Imediata para a sua Eliminação. • Protocolo Facultativo para Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à venda de crianças, prostituição e pornografia infantis. • Protocolo Facultativo para a Convenção sobre os Direitos da Criança sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados. 171 Esta gama de legislações poderia ser de conhecimento profundo na Rede Social da qual fazemos parte, mas por vezes não temos acesso à internet ou aos documentos impressos, ou não notamos a sua importância como instrumento de luta que pode contribuir para fazer valer os direitos. A Rede Social é um sistema composto de pessoas, funções e situações dentro de um contexto, que oferece apoio estrutural e emocional (com ajuda financeira), divisão de responsabilidades, atendimento psicossocial e diversas ações que promovem o sentimento de pertencer a um grupo (DESSEN, 2000). Muitas ações das redes que atuam nas políticas públicas brasileiras buscam romper com a cultura histórica do abandono e a institucionalização de crianças e adolescentes, fortalecendo assim o paradigma da proteção integral, que almeja a preservação dos vínculos familiares e comunitários. A manutenção desses vínculos precisa ser percebida associada ao contexto dinâmico e complexo em que estes cidadãos de direitos estão inseridos. De acordo com Zuma (2004, p. 4), “[...] a rede de justiça envolve todas as instâncias que, mesmo que formalmente distintas, podem ser identificadas como fazendo parte do elenco de atores necessários à condução do processo jurídico, indo do policial ao juiz, incluindo o legislador.” No entanto, o autor argumenta que ao olharmos para essa rede vemos instâncias já definidas, prontas, o que não resolve os problemas crônicos de seu funcionamento. E ainda, demonstram frágil capacidade de se transformar, de aprimorar suas intervenções e de indicar como podemos contribuir para isso. Este é um desafio na área da Justiça. Na medida em que avança na legislação, lança novos desafios para o cumprimento destas, já que ainda existem setores sociais que desconhecem o Estatuto da Criança e do Adolescente ou que não 172 se aproximaram da Constituição Federal, mesmo trabalhando diretamente com o Sistema de Garantia de Direitos. 4.3.1 O papel da escola... Agora vamos pensar juntos: a quem cabe a proteção e a garantia de direitos de nossas crianças e adolescentes? Você sabe o que preconiza o ECA sobre essa questão? Como lidar com as marcas das violências que chegam à escola? Na Escola, muitas vezes sabemos da existência da legislação, mas pela complexidade de nossas rotinas tal aspecto formativo não entra na pauta de estudos. Isso se agrava porque a educação tem sua própria legislação e parâmetros educacionais que mobilizam as ações docentes. No entanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – tem se constituído em um importante documento que precisa ser conhecido pelos educadores, e outros interessados, como ferramenta de proteção de crianças e adolescentes. No título II do ECA, que trata Dos Direitos Fundamentais – Capítulo I – Do Direito à Vida e à Saúde –, no Art. 13, diz que: os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescentes serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais. Compete também a todos os educadores a responsabilidade de denunciar ao Conselho Tutelar qualquer situação de violências contra crianças e adolescentes, mesmo em caso de suspeita. Isso significa que, além de conhecer a legislação, a escola participa do cuidado deles, por meio de um envolvimento visceral diante das consequências das violências para a vida desses sujeitos, 173 mesmo fora do ambiente escolar. Nosso convite é para aproximar-se, sentir-se pertencente, buscar conhecer a legislação, o Conselho Tutelar e a Rede de Proteção de sua localidade para interagir e formar a rede com os diversos profissionais nos diferentes setores públicos. Uma das grandes inovações desse Estatuto está na premissa de que todos os atores sociais são responsáveis em proteger integralmente crianças e adolescentes, enquanto uma atitude de cuidado com o outro, o que implica também disposição pessoal. O Estatuto nasceu da necessidade efetiva de políticas públicas, capazes de assegurar a esses sujeitos o direito de conviver e crescer em um ambiente familiar e social que não os colocassem em qualquer situação de violência. “Convidar esses atores sociais ao debate e a promover reavaliações sobre a articulação de suas áreas, explicitar e delimitar o papel de cada um, mas também aperfeiçoar o fluxo informacional necessário entre eles é o papel que a sociedade civil organizada pode assumir.” (ZUMA, 2004, p. 4). Cuidar do outro é cuidar de si, e para isso a generosidade é uma virtude imprescindível, desde que possa se traduzir em atitudes sinceras de prévia ocupação interessada, pelo menos com aqueles que estão sob a nossa responsabilidade. 4.4 O lugar da Assistência Social na consolidação da Rede de Proteção É notável o movimento da área da Assistência Social nesta última década, determinada a contribuir na efetividade de programas e serviços de atenção a crianças e adolescentes, incluindo os familiares de pessoas em situações de violências. No Brasil, a política 174 de Assistência Social é um direito garantido pela Constituição Federal de 1988, regulamentada pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Lei 8742, de 07.12.1993 que dispõe Sobre a Organização da Assistência Social. Esse instrumento legal define a família como eixo estratégico. Em seu artigo 2° diz que a proteção da família é um dos objetivos da Assistência Social; no artigo 4° garante o direito à convivência familiar, um dos princípios desta política; os artigos 20° e 22° definem que os benefícios a serem concedidos dependem da renda familiar; e o artigo 23° afirma que os serviços de assistência, dentre outros, devem priorizar a infância. Nesta perspectiva, a política de Assistência Social brasileira incorporou o conceito de cidadania no trabalho com as famílias, ao levar em conta a realidade econômica e o impacto das mais recentes transformações capitalistas na dinâmica familiar, tais como: a tecnologia, que tem sido decisiva para reduzir as vagas de emprego, já que exige mais qualificação; o trabalho precário das famílias empobrecidas e com pouca escolaridade; os padrões de consumo que afetam brutalmente crianças e jovens; há ainda uma dimensão cultural, que tem provocado a crise de identidade quanto ao modelo de família, seu papel social, suas representações, as relações de gênero, etc.; o aspecto sociopolítico, que modificou as relações de poder no interior da família, o acesso aos direitos e às políticas sociais, a participação de seus membros nas decisões sobre o modo de viver doméstico e comunitário; a dimensão psicossocial que repercute nas relações afetivas, sejam elas de violências, de solidariedade, de apoio, de proteção, de comunicação, de intimidade, de abandono, por exemplo; a estrutura jurídica que passa a assegurar com mais ênfase os direitos e deveres em relação à mulher, aos filhos, aos pais, à família. Compreender esses aspectos nos ajuda a redimensionar a maneira como nos relacionamos (educadores), sobretudo na escola, 175 com crianças e adolescentes, com a comunidade onde realizamos nosso trabalho, para que possamos constatar a complexidade que traça essas relações, especialmente quando mediadas por circunstâncias de violências. Serve também como referência para o planejamento político-pedagógico da escola e de outras instituições, bem como para a definição de políticas públicas de atenção aos sujeitos. Há um enunciado da sabedoria budista que diz: se fazemos o que sempre fizemos, não podemos nos surpreender que os resultados sejam os mesmos. A transformação das realidades em que vivemos requer, necessariamente, mudança de posturas diante dos desafios que elas cotidianamente nos apresentam. O SUAS foi a principal deliberação da IV Conferência Nacional de Assistência Social, realizada em Brasília (DF), em 2003, e se inscreve no esforço de viabilização de um projeto de desenvolvimento nacional, que pleiteia a universalização dos direitos à Seguridade Social e da proteção social pública com a composição da política pública de assistência social em nível nacional (BRASIL, 2010a). Como conteúdo dessas políticas, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) criou um modelo de gestão descentralizada e participativa (com regulação e organização em todo território nacional) com serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais, de caráter continuado ou eventual, executados e providos por pessoas jurídicas de direito público, sob critério universal de ação em rede hierarquizada, mas em articulação com iniciativas da sociedade civil. Além disso, o SUAS define as práticas essenciais para a execução da política pública de assistência social, o que possibilita normatizar os serviços, a qualidade no atendimento aos usuários, o registro de indicadores de avaliação e resultado, a nomenclatura dos serviços e da rede prestadora de serviços socioassistenciais (BRASIL, 2010a). Esse novo modelo de gestão supõe um pacto federativo, com a definição de competências e responsabilidades das três esferas de governo. Com um novo estilo de organização das ações, o governo definiu os níveis de complexidade do sistema: Proteção Social Básica (PSB) e Proteção Social Especial (PSE) de média e alta complexidade, com referência no território, de acordo com as especificidades das regiões e o porte dos municípios, mas 176 com centralidade na família. É uma forma de operacionalização da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que viabiliza o sistema descentralizado e participativo e a sua regulação em todo o território nacional (BRASIL, 2010a). A Proteção Social Básica Tem como objetivo prevenir situações de violências por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Tem um caráter preventivo e processador de inclusão social, tendo como BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Brasília, DF, [2010?b]. Disponível em: <http://www.mds.gov. br>. Acesso em: 4 ago. 2010. destinatários: segmentos da população que vive em condições de vulnerabilidade social, decorrentes da pobreza; privação (ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços públicos...); fragilização dos vínculos afetivos e de pertencimento social (discriminações etárias, étnica, de gênero ou por deficiência). Alguns exemplos dos serviços oferecidos são: Programa de Atenção Integral à Família – PAIF; Programa de Inclusão Produtiva e projetos de enfrentamento à pobreza; Centros de Convivência para idosos; serviços para crianças de 0 a 6 anos, que visem o fortalecimento dos vínculos familiares, o direito de brincar, ações de socialização, de sensibilidade e de defesa dos seus direitos; serviços socioeducativos para crianças, adolescentes e jovens de 6 a 24 anos, visando sua proteção, socialização e fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários; e Centros de Informação e de Educação para o Trabalho, destinados a jovens e adultos. Proteção Social Especial Em caráter compensatório exige atenção mais personalizada e processos protetivos de longa duração. Requer acompanhamento individual e mais flexibilidade nas soluções protetivas, com estreita interface com o Sistema de Garantia de Direitos. 177 Exige, muitas vezes, uma gestão compartilhada com o Poder Judiciário, o Ministério Público e outros órgãos, que leve em conta a complexidade do contexto. Destinatários: indivíduos que se encontram em situações de alta vulnerabilidade pessoal e social, decorrentes de abandono, de maus-tratos físicos e/ou psíquicos, de abuso e exploração sexual, ou usuários de drogas; adolescentes em conflito com a lei; pessoas em situação de moradia nas ruas, entre outros. A Proteção Social Especial operacionaliza-se pelos programas de atenção nos CREAS, abrangendo a Proteção Social Especial de Média e Alta Complexidade. Proteção Social Especial – PSE de Média Complexidade Contempla serviços de média complexidade e oferece atendimento às famílias e aos indivíduos com direitos violados, mas cujos vínculos familiares e comunitários não foram rompidos. São eles: orientação e apoio sociofamiliar; abordagem de rua; cuidado no domicílio; serviço de habilitação e reabilitação na O que é o CREAS? É um Centro de Referência Especializado em Assistência Social, que presta serviços de natureza especializada e continuada na Proteção Especial: Serviço de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e à Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes – tem como objetivo assegurar proteção imediata e atendimento psicossocial às crianças e aos adolescentes em situações de violências, bem como a seus familiares. Serviço de Orientação e Apoio Especializado a Indivíduos e Famílias Vítimas de Violências – objetiva 178 o atendimento de situações de violência contra mulheres, idosos, pessoas com deficiência, bem como situações de preconceito, homofobia, entre outros. Serviço de Orientação e Acompanhamento a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida e de Prestação de Serviços à Comunidade – tem como objetivo proporcionar o acompanhamento dos adolescentes em cumprimento de medidas socieducativas, de Liberdade Assistida e de Prestação de Serviços à Comunidade. comunidade das pessoas com deficiência; medidas socioeducativas em meio aberto (Prestação de Serviços à Comunidade – PSE e Liberdade Assistida – LA). Proteção Social Especial – PSE de Alta Complexidade São aqueles que garantem proteção integral – moradia, alimentação, higienização e trabalho protegido – para famílias e indivíduos que se encontram sem referências e/ou em situações de ameaça, necessitando ser retirados de seu núcleo familiar e/ou comunitário. Tais como: Atendimento Integral Institucional; Casa Lar; República; Casa de Passagem; Albergue; Família Substituta; Família Acolhedora; Medidas Socioeducativas restritivas e privativas de liberdade (Semiliberdade e Internação Provisória e Sentenciada). ∞∞ Com relação às medidas socioeducativas restritivas e privativas de liberdade, após dezesseis anos da publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente apresentam como normativa o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Ele surge da construção coletiva que envolveu, nos últimos anos, diversas áreas do governo, representantes de entidades civis e especialistas na área, além de uma série de debates protagonizados por operadores do Sistema de Garantia de Direitos, em encontros regionais em todo o País (BRASIL, 2007). Outro marco brasileiro das políticas públicas dirigidas a criança e adolescente é o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, de 2006. Ele representa uma conquista salutar e favorece a participação ativa de todos os brasileiros interessados no 179 SINASE Conjunto ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, que envolve desde o processo de apuração de ato infracional até a execução de medida socioeducativa. Como um sistema nacional, inclui a rede estadual, distrital e municipal, bem como todas as políticas, os planos e programas específicos de atenção aos adolescentes em conflito com a lei. Interes- sado em constituir parâmetros mais objetivos e procedimentos mais justos para evitar a discricionariedade, o SINASE reafirma a diretriz do Estatuto sobre a natureza pedagógica da medida socioeducativa. Para isso, o SINASE tem como plataforma inspiradora os acordos internacionais em Direitos Humanos e, em especial, na área de direitos de crianças e adolescentes, em que o Brasil é signatário. Fonte: Brasil (2007) fortalecimento do paradigma da proteção integral e na salvaguarda dos vínculos familiares e comunitários, preconizados pelo ECA. Essa normativa está fundamentada em estratégias, objetivos e diretrizes de prevenção ao rompimento dos vínculos familiares, na qualificação do atendimento pelos serviços de acolhimento e no investimento para o retorno ao convívio com a família de origem. [!] Você educador, em algum momento, entrou em contato com esses programas sociais no seu município? Como se organiza a Rede em sua localidade? Como os programas estão organizados no seu município e articulados com a legislação que promulga a atenção a crianças e adolescentes em contextos de violências? 180 Com esses programas e serviços, a Assistência Social articula a atuação da Rede de Proteção e busca efetivar os preceitos do Sistema de Garantia de Direitos. Sua intervenção permite a convergência de ações integradas nas políticas sociais (Assistência Social, Saúde, Educação, Trabalho, Cultura, Desporto e outras) e favorece o fortalecimento da família, em seus diferentes arranjos. Por meio das ações assistenciais preventivas e terapêuticas, visam à superação da problemática das violências presentes nas realidades onde está a maioria das famílias brasileiras. Por outro lado, como vimos no capítulo anterior, esses serviços ainda são insuficientes e suas práticas, em muitas circunstâncias, são também geradoras de violências àqueles que atende, o que justifica nossa defesa de uma gestão do cuidado para uma escola e outras instituições que se vejam comprometidas em proteger crianças e adolescentes. Para nós, as instituições sociais são mediadoras das relações que as crianças e os adolescentes estabelecem, portanto elas formam as referências para a construção de relações afetivas e de suas identidades individual e coletiva. Além da articulação em Rede e da efetiva atenção a crianças, adolescentes e suas famílias em contextos de violências, a área da Assistência Social busca dar visibilidade ativa ao Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil, uma ação nacional do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Esse plano é fruto da articulação da Rede, como resposta ao alto grau de mobilização da sociedade. O texto estabelece estratégias diferenciadas para uma maior eficiência, eficácia e efetividade dos programas sociais de atenção ao fenômeno (PORTAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, 2010). O Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes surgiu de uma proposta apresentada no Encontro realizado em Natal (RN), em junho de 2000, onde foi elaborado o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. O Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes foi instalado em todos os estados da federação, “[...] como uma instância nacional representativa da sociedade, dos poderes públicos e das cooperações internacionais, para monitoramento da implementação do Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infantojuvenil.” (BRASIL, 2002). 4.5 A violência como questão de saúde pública Na área da Saúde encontramos outras articulações com o Sistema de Garantia de Direitos, por meio de guias e portarias que integram as ações junto à Rede de Proteção. Vejamos: Guia de Atuação frente a maus-tratos na infância e na adolescência/SBP – 2001 – que orienta pediatras e outros profissionais que trabalham com crianças e adolescentes; a Portaria 1.968 – 25/10/01 – (Ministério da Saúde) dispõe sobre a comunicação de casos de suspeita ou de confirmação de maus-tratos, contra crianças e adolescentes atendidos nas entidades do Sistema Único de Saúde, às autoridades competentes; e a Portaria 936 – 19/05/04 – (Ministério da Saúde) fala sobre a estruturação da Rede Nacional de Prevenção da 181 Violência e Promoção da Saúde e a Implantação e Implementação de Núcleos de Prevenção à Violência em Estados e Municípios. Violências contra crianças e adolescentes são consideradas questão de saúde pública porque afetam, de modo decisivo, o desenvolvimento integral e saudável dos sujeitos. Na perspectiva do Sistema de Garantia de Direitos, a rede de saúde pública e privada deve adotar procedimentos de prevenção, promoção, diagnósticos e tratamento de situações de saúde física, psíquica e mental, quando no atendimento de crianças e adolescentes em situações de violências. Para isso, o Ministério da Saúde lançou, em 2008, uma Cartilha que destaca o impacto das violências na saúde das crianças e adolescentes, e enfatiza a importância da prevenção e da promoção da cultura da paz. Tal documento apresenta o slogan da campanha: “você é a peça principal para enfrentar este problema”. Na cartilha, o tema das violências é apontado como um grande desafio para este século, já que essas práticas causam significativo impacto na saúde da população brasileira, além de acionar 182 altos custos econômicos e sociais para o Estado e a sociedade. Os direitos previstos na Cartilha são aqueles assegurados mundialmente pela Convenção dos Direitos Humanos e pelos protocolos facultativos reafirmados pelo Brasil na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente e, ainda, as políticas setoriais referentes à saúde (BRASIL, 2009b). As violências e os acidentes são considerados, segundo dados do Ministério da Saúde de 2006, as principais causas de mortes de crianças até um ano de idade e adolescentes. Entre as crianças de 0 a 9 anos de idade, as agressões e violências aparecem como a quarta causa de mortalidade. Já entre adolescentes, as violências são as principais causas de óbito na faixa etária entre 10 e 19 anos. Sendo que, entre 10 e 14 anos, as principais causas de óbitos são acidentes de transporte; entre 15 e 19 anos, as violências e agressões lideram as estatísticas de causas de mortalidade (BRASIL, 2009b). No ano de 2006 foi implantado em 27 municípios brasileiros o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), a partir da ficha de notificação das violências junto aos atendimentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Conforme os dados coletados no período de 2006 e 2007 pelo VIVA, a violência sexual foi a principal causa de atendimento de crianças entre 0 e 9 anos, nos serviços de referência de violências. Dos 1.939 registros, 845 (44%) foram por violências sexuais. As meninas são as principais vítimas, com 60% do total dos casos registrados. A residência foi o local de maior ocorrência (58%). Em relação aos adolescentes de 10 a 19 anos, a violência sexual foi a principal causa de atendimento nos serviços de referência de violência. Dos 2.370 registros, 1.335 (56%) foram por violências. As adolescentes mulheres são as principais vítimas, com 78% do total dos casos. A maioria dos casos ocorreu na própria residência, com 58% dos registros, seguido pela via pública, com 20% (BRASIL, 2009b). 183 Para a Saúde, as consequências dessas violências contra crianças e adolescentes decorrem de problemas sociais e provocam outros de ordem emocional, psicológica e cognitiva que deixam marcas para toda a vida. Esses sujeitos tendem a apresentar outros comportamentos prejudiciais à saúde, como uso de substâncias psicoativas, álcool e outras drogas, e iniciação precoce em atividades sexuais, o que os torna ainda mais vulneráveis à gravidez precoce, à exploração sexual e à prostituição. Os problemas de saúde mental e social relacionados com as violências, em crianças e adolescentes, podem desencadear sintomas como ansiedades e outros transtornos; e até mesmo baixo desempenho ou evasão escolar, alterações de memória e aumento no risco de suicídio. Quanto mais precoce for a exposição de crianças e adolescentes às situações de violências, maiores as chances de comprometer o desenvolvimento físico e mental, provocar enfermidades em etapas posteriores da vida, como as doenças sexualmente transmissíveis, a aids, o aborto espontâneo e outros (SILVA, 2010). E como a escola e a saúde podem interagir? Para nós educadores vale nos informarmos no posto de saúde mais próximo da escola sobre os cuidados que estão sendo dados às crianças e aos adolescentes, como forma preventiva das situações de violências. Buscar, com essa interlocução, conhecê-los para conhecer outras ocorrências fora dos muros da escola. O cuidado neste caso é também exercido quando há o interesse por verificar as condições físicas e psíquicas dos educandos. 184 4.6 Educação em direitos humanos: a escola que protege A proteção é também inerente ao ser humano como mamífero, o qual guarda uma memória vital de cuidador da cria, portanto com capacidade para permanecer em atenção às demandas essenciais de preservação da vida. Culturalmente nos distanciamos dessa conduta ao longo da história, e ao que parece, ao final do século XX, de maneira mais visível e progressiva estamos assumindo, como responsabilidade social e individual, cuidar de crianças e adolescentes para que cresçam felizes. Esse retorno ao cuidado é expressão de muitas lutas desencadeadas por distintos setores e sujeitos, que acreditam numa sociedade fraterna e empenhada no fortalecimento de uma cultura de paz, na defesa intransigente dos Direitos Humanos como direitos de vida. Nasce dessa experiência a esperança, cada vez mais ativa, de consolidarmos uma escola que protege, onde aprender, conviver amorosamente, estar com alegria e oportunidades são direitos inalienáveis. Nesse sentido, a educação, além de sua legislação específica como a LDB, o Plano Nacional da Educação, entre outros, tem se articulado com a Rede de Proteção a crianças e adolescentes envolvidos em contextos de violências para promover ações protetivas nas escolas e outras instituições educacionais. Dentre as iniciativas, o MEC em parceria com a Secretaria Especial de Direitos Humanos lançou, em 2003, com segunda edição em 2004, o Guia Escolar: Métodos para Identificação de Sinais de Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, com o objetivo de aprimorar a habilidade de professores e profissionais da educação, em todo o País, para lidar com problemas de abuso e exploração sexuais de crianças e adolescentes. Em um relatório das Nações Unidas (BRASIL, 2004, p. 9), assinado por Juan Miguel 185 Petit, relator especial da Comissão de Direitos Humanos da ONU, que analisa a dimensão do fenômeno no Brasil, o GUIA ESCOLAR é citado como instrumento de referência em matéria de prevenção da violência sexual e sugere o desenvolvimento de metodologias adequadas à sua implementação nas escolas públicas do País. São parceiros do Observatório de Violências nas Escolas – Brasil, mantendo núcleos articulados de ensino, pesquisa e extensão no Brasil: Universidade Federal do Pará/UFPA (Campus Santarém - PA); Universidade da Amazônia/UNAMA (Belém - PA); Universidade Luterana do Brasil/ CEULS/ULBRA (Campus Santarém - PA); Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS (Porto Alegre - RS); Pontifícia Universidade Católica do Paraná/PUC-PR (Curitiba - PR); Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUC-RS (Porto Alegre - RS); Centro Universitário Salesiano de São Paulo/UNISAL (Lorena - SP); Instituto Científico de Educação Superior e Pesquisa/UNICESP (Guará - DF); Universidade Federal de Juiz de Fora/UFJF (Juiz de Fora - MG); Universidade de Caxias do Sul/UCS (Caxias do Sul - RS). Na Argentina: Pontificia Universidad Catolica de Argentina – Campus Mendoza (Mendoza - AR). Na Europa: Universidad Autónoma de Barcelona (Barcelona - España); Universidade Fernando Pessoa (Porto - Portugal). (OBSERVATÓRIO DE VIOLÊNCIAS NAS ESCOLAS - BRASIL, 2009). Outra iniciativa para o campo da educação é o Observatório de Violências nas Escolas – Brasil, lançado em 2006, originário de um projeto conjunto desenvolvido pela Universidade Católica de Brasília e pela UNESCO. O objetivo era reunir especialistas e instituições para promover estudos, pesquisas e debates sobre o tema da violência nas escolas. Avaliado pela UNESCO, ao projeto é agregado o incentivo da criação de uma cátedra que amplie o seu escopo para a temática da juventude, educação e sociedade. Hoje, a cátedra é hospedeira do Observatório, incluindo a sua rede de universidades e outras instituições de educação superior no Brasil e em outros países. Temos ainda o Projeto Escola que Protege, desenvolvido pelo MEC através da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD –, desde 2005. Ele visa à promoção e à defesa dos direitos de crianças e adolescentes, ao enfrentamento e à prevenção das violências no contexto escolar. Sua principal estratégia de ação é o financiamento de projetos de formação continuada de educadores da rede pública de educação básica, além da produção de materiais didáticos e paradidáticos nos temas do projeto, como esse curso de especialização que você está frequentando. A prioridade é dada aos projetos apresentados por instituições públicas de ensino superior, e a certificação do curso está condicionada à apresentação, pelos concluintes, de projetos de intervenção para o espaço escolar onde atuam. Pensando na articulação em Rede, o projeto estimula a participação de representantes de várias áreas, como: secretarias es- 186 tadual e municipal de educação, União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), instituição de ensino superior que desenvolve o projeto, Ministério Público, Conselho Estadual e Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselho Tutelar e secretarias de saúde e de assistência social. Com isso, busca incentivar a discussão e o debate junto aos sistemas de ensino para que definam um fluxo de notificação e encaminhamento das situações de violências identificadas ou vivenciadas na escola, junto à Rede de Proteção Social. Defende a integração e a articulação dos sistemas de ensino, dos profissionais da educação e, em especial, dos Conselhos Escolares à Rede de Proteção Integral dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Outra questão que diz respeito à insuficiência de programas de formação apropriados para mobilizar a atuação das pessoas com essa problemática está presente no cotidiano dos profissionais. Implica “diagnósticos” apressados e confusos que não contribuem, muitas vezes, para compreender e/ou interromper o ciclo das violências cometidas às crianças e aos adolescentes. Eis porque são essenciais as políticas públicas de atenção a crianças e adolescentes inseridos em contextos de violências, para garantir que as instituições sejam de fato lugares de proteção. São atendidos os municípios que incluírem o tema da promoção e da defesa no contexto escolar, para fortalecer os direitos de crianças e adolescentes e o enfrentamento, com a prevenção, das violências no seu Programa de Ações Articuladas (PAR). Municípios que apresentem baixo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) ou que fazem parte da Matriz Intersetorial de Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Também são contemplados aqueles que participam dos seguintes programas: Mais Educação; Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças no Território Brasileiro (PAIR); e Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (BRASIL, 2009a). O que fazer... Como podemos pensar numa Escola que Protege para uma gestão do cuidado? A ideia é desenvolver projetos de intervenção no interior da escola, que tenham como foco principal crianças e adolescentes em contextos de violências. Estes projetos podem ser de formações continuadas para os profissionais da escola; iniciativas que envolvam os familiares, crianças e adolescentes da instituição; comunidade na qual a escola pertence; articulações com a Rede de Proteção (Justiça, Saúde, Educação e Assistência Social). Articular o tema violências no PPP da instituição e promover atividades educativas com os educandos, por exemplo. 187 »»Em síntese... Além da articulação que vimos das diversas instâncias que compõem o Sistema de Garantia de Direitos, existem políticas intersetoriais que formam esta Rede de Proteção a crianças e adolescentes submergidos em conjunturas violentas. Os principais setores são a Justiça, a Assistência Social, a Saúde e a Educação, com suas principais ações no enfrentamento das violências. Pela articulação em Rede, vimos que a Saúde tem buscado, por meio da atenção básica, cuidar de crianças e adolescentes que vivem em contextos de violências, indo além das sequelas e das questões físicas para participar ativamente da prevenção das inúmeras formas de violências. Insistimos que é possível pensar em uma gestão do cuidado nas instituições, desde que se invista na reculturação afetiva, na valorização das carreiras, nas condições de trabalho, na formação continuada, para que gestores e profissionais, responsáveis por atender as demandas da sociedade, sintam-se em condições objetivas de cuidar de si e do outro, capacitados para acolher as denúncias de violências que chegam aos seus setores e para avançar na qualidade de suas proposições. Falamos sobre limites e possibilidades para enfrentar as violências. Para isso resgatamos as principais legislações que orientam as políticas de proteção destinadas a crianças e adolescentes envolvidos em contextos de violências. Nossa intenção é dar visibilidade ao modo como acontece a atuação em Rede, com a participação das áreas da Justiça, Assistência Social, Saúde e Educação. Suas iniciativas retratam aspectos relevantes da história de garantia de direitos de crianças e adolescentes no Brasil e demonstram o avanço da legislação nos últimos 20 anos. Segundo o CONANDA, foi desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente que o Brasil conquistou importantes progressos na garantia de direitos. 188 Com a Doutrina da Proteção Integral (DPI), o Estado brasileiro, a sociedade e a família passam a ser os responsáveis pelo cuidado e pela proteção de crianças e adolescentes, para garantir-lhes o bem-estar familiar, social e econômico. No entanto, apesar dessas importantes conquistas, nos últimos 10 anos os índices de violências contra crianças e adolescentes aumentaram e ganharam mais visibilidade, como demonstram as inúmeras denúncias todos os dias noticiadas sobre casos de maus-tratos, abusos, negligências e violências. O cenário dessas violências, portanto, pode ser a residência, as escolas, as comunidades e outros espaços de convivência. Decorrem quase sempre do estilo sociocultural que perpetra as relações interpessoais, mas também 189 da violência estrutural, como o trabalho infantil, as situações de alta vulnerabilidade social (população indígena e quilombola, dentre outras). Os efeitos destas são perversos, prejudicando o aprendizado, as relações sociais e o seu pleno desenvolvimento, e ainda podem se manifestar na construção de um círculo de reprodução e retroalimentação de práticas violentas que se caracterizam de forma intergeracional. As violências exigem respostas contundentes por parte do Estado e da sociedade, com ações de prevenção e enfrentamento. Ressaltamos que de alguma maneira a Educação tem procurado articular-se com a Rede de Proteção e tem buscado apropriarse da legislação que embasa o Sistema de Garantia de Direitos para organizar seus projetos. Embora essas iniciativas sejam de âmbito federal e muitas vezes não alcancem todos os estados e municípios, vimos que há uma mobilização para que a Escola possa se traduzir numa instituição de cuidado. Vimos ainda que tais iniciativas podem ser propulsoras de outras formas de atenção ou de políticas mais locais nos estados e municípios. Para tanto, o “Projeto Escola que Protege” atua na formação continuada de professores, para que possamos consolidar uma Gestão do Cuidado, em que políticas e legislações tornem-se, de fato, recursos essenciais para a proteção de crianças e adolescentes em contextos de violências (BRASIL, 2009a). Ao chegar ao final deste módulo, o sentimento que nos mobiliza é de caminho percorrido e atravessado por múltiplos diálogos entre: O Sistema de Garantia de Direitos na formulação de Políticas Públicas; a legislação que tem impulsionado a Rede de Proteção no cuidado às crianças e aos adolescentes envolvidos em contextos de violências; e o desafio da Escola em tornar-se protetora e protagonista desse processo. 190 »»Referências BRASIL. Ministério da Educação. Projeto escola que protege. Brasília, DF, 2009a. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/ index.php?option=com_content&view=article&id=12361:p rojeto-escola-que-protege&catid=307:projeto-escola-queprotege&Itemid=560>. Acesso em: 4 ago. 2010. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Guia escolar: métodos para a identificação de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. 2. ed. Brasília, DF, 2004. BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria de Estado dos Direitos Humanos. 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