MELHOR "PAIxAO QUE A NOVE LA DAS OITO: E MORTE DE TANCREDO NEVES" Maria Alice de Oliveira ILHPA - UNESP, A doenera e a morte de Tancredo -se autenticamente "narrativa naquilo Assis Neves Faria - SP consti tuiu que Jules Gritti chamou de de imprensa": "Logo que a eventualidade da morte (de urn "grande homem") e seriamente encarada, a narrativa jornalIstica instaura-se (••• ).A primeira vista, a diegese de urn conto, de uma obra dramatica, de urn filme ••• parece diferir da de uma narrativa de jornal: a se gunda comandada dia a dia pelo aconteci= mento; na primeira, 0 'suspense' manipulado, na segunda aparece inteiramente dado. (••• ) No instante em que 0 acontecimento apresentado, 0 vivido transforma-se em representado, 0 dado circunstancial apreen dido segundo as 'categorias' da narrativaV (1, p. 165) e e e e Os 41 dias que se estenderam operaerao de Tancredo imprensa tas fossem nao SO tecendo e uma novela primeira: "Paixao da sucessao de Tancredo sejo da cura desespero) elementos, ficcionais Neves" de alternancias (momentos agravamento do Presidente desespero) organiza ate instaura 0 da presidencial". Neves de expectativas possivel irremediavel a certeza desenlace em seqdencia estabele entre 0 de 1nquietaerao, de ansiedade, e a crenera na melhora 0 drarnat! e "As ansie do estado da mOrte d~ de (momentos de e~ peranera e de distenerao). A partir de urn certo tretanto, a deram a segunda dependendo A prirneira operaerao de Tancredo ce urn esquema primeira para que os jornali~ rica de todos paralelamente, e Morte a seu sepultamento, 0 necessarios de uma, mas de duas narrativas cas, que evoluiram dades Neves todos os lances entre ponto, de (sofrimento fatal. A nar~ativa, en- saiide assim, de picos drarnaticos, amplamente e se ex plorados pela imprensa. Nela se alternam momentos de su~ pense e ~omentos de distensao, enquadrando-se plenamente na "especie de ternario fundamental" que Jules Gritti e~ tabeleceu como 0 esquema classico de todos os jornaisque acompanham "a morte de urn grande homem", irtdependenteme!l te da suas "escrituras narrativas": 1) DILEMA (doenc;a incuravel) 2) DISJUN~O (melhora posslvel) 3) DILEMA (agr~ vamento irremediavel). Junto com esta novela da luta entre a vida e a morte de um personagem tranaformado no r~ dentor mitico da miseria brasileira e em paladino da democracia e da Nova RepUblica, deaenvolve-se outra narrativa: a polltica; Centrada na questao da auce.sao de Ta!l credo Neves e nas expectativas e especulacroes em torno de um possivel retrocesso ao regime militar, esta segunda trama depende diretamente do desenlace da primeira. Mas ela flui sob uma tensao contInua, um suspense so, em viE tude de estarmos no limiar de um governo civil, por longo tempo aspirado pela parte mais esclarecida da populaerao, e inesperadamente amea9ado. Seu esquema se caracteriza por urn unico dilema, sern disjunerao, centrado em duas perguntas basicas: Podera acontecer urn retrocesso polItico e os Bdlitares reto.arern 0 poder? Sarney A morte tomara posse? de Tancredo (desenlace 1n£el1z da pri- meira narrativa) lancra a segunda no seu clImax, - prov2 cando 0 JK>mento I:Ucial de sua decisio - • 0 seu desenla ce (feliz): 4;>S1Il1.1itaresn:io Be envolve1D na sucessao e Sarney e definitiva.ente confirmado 0 sucessor de Tancre do lleVes na Presidencia da JlJepUbl1ea. Os fatos ocorridos nos tres dlas doe funerais se constitu~ nua epIl0g0 para as duas narratlvas, agora correndo jW1tas: '!aacredo • enterrado esll apoteose emotiva e polItica (e a partir des funerai. se Instaura uma pequena n~rrativa independente) e Sarney firma-se \ como Presldente da Republica, em meio a promessas e frases de efeito, constituindo-se no executor do "legado de Tancre d6". Nos tres dias do "epllogo", a tensao emocional baixou lentamente, dando a "narrativa" uma direyao descendente, com certos momentos que marcam os pontos altos do "grand finale". Sao 0 acompanhamento do caixao pelo p~ vo paulistano (Joelmir Beting repetindo constantementena TV Bandeirantes que "0 povo de Sao Paulo carregou Tancr~ dO'literalmente nosbrayos"); a invasao do Palacio da L! b~tdade em Bela e, finalmente as despedidas resignadasdo pavo' em Sao Joao del Rey. 0 proprio sepultamento se da em Uln tb'tnmenor, esvaziado de sua solenidade pela extrema simplicldade da ultima cena, na qual 0 papel principal foi roubada pelo pedreiro, que, cOmeflciencia la'C'rbu' 0' tumulo. e seguranya, ~Neste epIlogo, a personagem principal se desma tet-1aIl'2:ana sua transformayao em mi to complete> e porta!! to"'Ellit ;:aul:ent1copersonagem de ficyao - Tancredo (Tiraden tes) 0 martir da Nova Republica, 0 Moisesbrasileiro, 0 p:ii ae~aparecidO deuiit "po-voorfao", 0 grande estadista, o simbolo de urn pov.o'e ate mElsmo "0 santo". Sua presenya material fica substitulda pela. e.8Rel'an~a, que nos lega. o...~:_ povo sofre, mas brilha essa esperanya vaga, que ninguem ~.J (--:;: ,. -. ,', } ,., s.~.. p~eocupou ellldizer em que consistia. "Morre Tancredo, n~?)~ e;;peranr;a",promete 0 Es tadao, numa grande folha v~ lante, pregada nos muros de S. Paulo. Ora, estas duas narrativas tern escritur~s dive~sas e diferente organizayao de suas seqdencias (em al guns jornais nao se desenvolve a segunda), conforme 0 es tilo do jornal. Alguns exploraram a ernotividade do povo e centraram as notlcias no estado de saude do Presidente, dando enfase a~ peripecias dramaticas da doenya (expect~ tivas de melhora e agravamento, os personagens do drama - fami1iares, medicos, polIticos, 0 povao em frente ao I!!, cor- tudo mediado pelo porta-voz Antonio Brito, uma das figuras centrais na coesao da narrativa). Outros jornais equilibraram as duas narrativas: a emotiva e a polItica. A Fo~ha de Sao Pau~o, desejosa de manter-se f2 ra do c1ima de histeria coletiva que se instaurou e cre~ ceu a medida que 0 estado de saude de Tancredo se agrav~ va, tentou, como Jules Gritti observou em Le Monde, na morte de Joao 23, "fornecer uma reportagem denotativa, sublinhando seu projeto de objetividade" (1, 166). Por i~ so, foi duramente atacada (mas tambem defendida) por alguns leitores que acusaram 0 jornal de frieza e indiferen~a. Esta manchete do dia 16-4-1985, sobretudo, desencadeou a ira de certos leitores: Medicos esfriam Tancre- do. Outros, sensacionalistas como as Not{cias Pop~ lares, estamparam manchetes debochadas, no mesmo estilo em que tratam crimes e exploram 0 sexo: M£DICOS ABREM au RACO NA GARGANTA DE TANCREDO (10-4-85). Pior do que lsso, este diario chegou a manipulae,ao extrema dos lei tores, com a manchete amblgua do dia 14-4-1985, na penultima crise do Presidente, levando pessoas a comprarem jornal, acreditando que ocorrera as a morte e as Not{cias Popu lares estavam dando um furo de re portagem: TANCREDO NEVES MORRE SEM A AJUDA DAS MAOUINAS. o redator apenas havia jogado ao mesmo tempo com dois empregos do presente do indicativo: 0 presente-passado e 0 presente-futuro. o encontro e 0 desenlace das duas tramas ocorrem nas Primeiras paginas dos jornais do dia 22 de abril de 1985, com a notlcia da morte de Tancredo Neves e elas refletem sinteticamente a escritura e a organizae,ao das seqtlencias da historia especificamente adotado por cada jornal. das duas narrativas: a emotiva e a politica. Observa - se porem umaevidente preocupa<rao na maior parte deles em r~ for<rar a consolida<rao de Sarney na Presidencia. Ao lado da notlcia de marte, geralmente limitada a urn seco: Tanaredo morreu ou Tanaredo morre (evitou-se em todos os j0E nais 0 verbo faleaer), enfatiza-se, numa segunda manchete, 0 compromisso de Sarney com a politica de Tancredo, como a maneira de confirmar 0 Vice como 0 sucessor natural do presidente morto. Como todos se lembram, se discu tia a legalidade da sucessao de Sarney, uma vez que a po~ se de Tancredo nao se efetivara: "Sarney mantera programa" (Correio Braziliens~ "Sarney promete cumprir 0 legado" (Porto Alegre, Zero H£. .l'a) "E Sarney garante cumprir 0 programa da Nova Repiibl! ca" (Fortaleza, Diario do Nordeste) "Sarney:' '0 legado de Tancredo permanecera'" (Rio, 0 Globo) "Sarney reafirma mudan<ras" (Folha de S. Paulo). Ora, nos tres dias dos funerais, a conf irma<rao de Sarney como 0 novo Presidente, sem nenhuma contesta<rao, atende plenamente as expectativas e leva a narrativa da sucessao a seu final feliz. Assim, na Primeira Pagina do dia 25 de abril, os jornais podem dar plena expansao ao sentimentalismo, sem nenhumtra<r0 de tensao. De 30 jornais brasileiros pesquisados, a maioria expressou uma emo<rao comedida, onde as palavras adeus e saudade foram as predominantes. Usaram-se, tambem, muitas cita<roes do discurso de Sarney a beira do tiimulo, nao so p~ 10 fate de ter side elevado aO posto maximo do pals, como pelo teor literario do texto, com iniimeras frases antologicas, prontinhas para serem citadas: "Presidente ~ ney no adeus a Tancredo: 'Seu sonho sera 0 nosso sonho'''. (Rio, 0 Globo). "Sarney em nome do povo brasileiro: A d e usa reio t e ta do jornal 5 e m pre, 5 a u dad e s' (Cor A explora<rao do pate.tico ficou por CO!! da tarde (S. Paulo), que ocupou a pagina to BraziZiense). da com a foto de D. Risoleta. Sob a manchete em letras garrafais: 0 A D E U S. Enfocada de baixo para cima (0 que aumenta a importancia da figural, olhos semicerrados, rictus de sofrimento na boca, maos postas, vestida inte! ramente de preto, D. Risoleta era a imagem mesma da viuva doLorosa! e talvez simbolizasse 0 sofrimento de todos os brasi1eiros. Entretanto, sem 0 apoio da narrativa po1Itica, a nove1a "Paixao e Morte" perdeu logo seu significado rei morto, rei posto. A imagem de Tancredo come9a rapid~ mente a se desvanecer. De trinta jornais consu1tados, apenas quatro reservaram toda a primeira pagina para a n2 tlcia do sepultamento. Os outros jornais dividiram-seoom as notIcias habituais do dia. E1es destacam sobretudo a atua9ao do novo Presidente, iniciando uma nova narrativa: "0 desempenho de Sarney". A FoLha da Tarde (5. Pau10),ja nem sequer noticia 0 sepultamento na manchete, mas aI co 10ca outras de interesse geral e/ou polItico: "Servidores estaduais terao abono de 25% em maio e junho. MINISTeRIO RENUNCIA". E 0 Estado, de F10rianopolis deixa Tancredo para tras e se projeta no futuro proximo: "0 prime.!. ro dia sem Tancredo Neves". ·0 jorna1, escreve Matinas Suzuki Jr., e urn t.!. po de vitrine da Historia (•••). 0 presente e f1agrado e fixado como urn momenta desvincu1ado do acontecer".(2, 10) Essa Historia, porem, sobretudo a estampada na Primeira Pagina, nao nos e dada pronta, organizada e interpretad~ o que so 0 distanciamento no tempo nos permite obter. No No jornal, a historia se desenro1a diante de nossos ollxs no dia a dia de seu f luir. A interpreta9ao que 0 jorna1ista da hoje, dos acontecimentos da vespera, pode se re velar inteiramente fa1sa, se urn novo acontecimento venha a desmentir suas pa1avras. Assim, a historia que vive- mos no dia a dia da leitura do jornal e uma "historia truncada, uma atividade fragmentaria, urn mundo ca6tico", como escreveu Nicolau sevcenko (3, 14). Ora, e a "narrativa de imprensa", que, instaurando-se quando urn fato' im portante prende nossa aten<;ao por dias e dias, como a mor te de Tancredo Neves, organiza esse caos e Ihe da urn se~ tido ou direciona nossas em090es. Urn sentid~ transitori~ bem entendido, mas que, ocupando nossa imaglna<;ao atraves da transforma<;ao provisoria do real em fic<;ao, transmite 0 necessario sentimento de coesao. nos Alem do mais, "se poderia tambem lembrar como a forma jornalIstica de apresenta<;ao do realtende a pre~ der as informa<;oes num isolamento sedutor, num tempo ~ namente presente e superficial, e a transformar lances tragicos da historia dos homens num espetaculo para 0 d! leite complacente de seus leitores" (3, 14). Mais uma vez, esta e a fun<;ao da "narrativa de imprensa", que nos leva a isso atraves do poder envolvente da fic~ao. Por outro lado, por figurar nessa "vitrine de Histaria", a que se refere Matinas Suzuki, a "narrativa de imprensa" e ainda mais efemera que a novela das oito. Vimos como a morte de Tancredo Neves, depois de emocionar o pais durante mais de urn mes, sustentada e estimulada~ la imprensa (no caso, sObretudo, a televisiva), caiu rapidamente no esquecimento. E quem cobraria hoje de Sarney todas as promessas feitas no calor da hora, sob 0 efeito da emotividade e da necessidade de acalmar a popula<;ao , afirmando a continua<;ao do "legado de Tancredo", sem 0 que ele nao receberia 0 aval de ninguem como 0 presidente efetivo da Nova Republica? Mas, como finaliza Matinas "A maquiagem do mundo", "As folhas Suzuki em seu texto tambem s~ dos jornais cam. Amanha vira outro e mesmo jornal". Novas e sempre as mesmas, outras narrativas VaG se instaurar para 0 divertimento dos leitores. E cada uma sobrevivera apenas nas recordac;oes pessoais de cada leitor como autentica c;ao, atraves do impacto que ela the tenha causado da maneira como os jornalistas nos fizeram vive-la. 1. GRITTI, Jules - "Uma narrativa fice/ou de Imprensa: Os lilti- mos dias de um 'grande homem'", em AnaZise E8trutu raZ da Narrativa, Roland Barthes e outros. petrop£ lis, Vozes, 1971. 2. SUZUKI JR., Matinas - "A maquiagem do mundo", em Zha de S. PauZo. Primeira Pagina. ZB2S-Z98S. Fo- 3. SEVCENKO, Nicolau - "0 rosto do mundo·, em FoZha S. PauZo. Primeira Pagina, Z92S-l98S. de