O sepultamento do mérito administrativo O SEPULTAMENTO DO MÉRITO ADMINISTRATIVO*1 Giuliano Cesar da Silva Tatagiba**2 RESUMO A partir da reflexão sobre as concepções que funda entraram o Direito Administrativo no seu surgimento com o Estado Liberal, passando pelas estruturas estatais de bem-estar social até a realidade pós-moderna brasileira no século XXI, constata-se a determinação constitucional que estrutura o Estado Brasileiro em Democrático de Direito com íntima relação a padrões éticos e morais decorrentes da necessidade de efetivar concretamente os direitos fundamentais. Nesta ordem, o mérito administrativo falece por falta de consistência, pois o ato administrativo, não mais diferenciado em vinculado e discricionário, por se submeter a toda juridicidade, tem como regra a sua apreciação pelo Judiciário, desde que possa proferir uma decisão de qualidade material pelo menos igual a que seria produzida pela Administração. Palavras-chave: Direito administrativo. Mérito administrativo. Ato discricionário. ABSTRACT Upon reflection on concepts which motivated the Administrative * Artigo apresentado como trabalho de conclusão da disciplina Controle da Administração Pública, ministrada pelo Prof. Dr. Maurício Jorge Pereira da Mota, no Curso de Mestrado em Direito – Políticas Públicas e Processo – na Faculdade de Direito de Campos, em Campos do Goytacazes – RJ, em julho de 2006 e avaliado pelo próprio professor com nota 10. ** Capitão da Polícia Militar do Espírito Santo; mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos e especialista em Segurança Pública pela Faculdade de Direito de Vitória; exprofessor de Teoria Geral do Estado, Processo Penal e Direito Penal Econômico da FACASTELO/ES. Contato: [email protected]. Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 73 Giuliano Cesar da Silva Tatagiba Law in his appearance with the Liberal State, through the state structures of social welfare to the post-modern Brazilian reality in the XXI century, there is a determination that constitutional structure the State Brazilian democratic rule of law in close relationship with the moral and ethical standards arising from the need to specifically carry out fundamental rights. Accordingly, the merit administrative dies for lack of consistency, because the administrative act, not more differentiated in bound and discretion by entering into juridicidade whole, is to rule their judgement by the judiciary, since that might make a decision of quality material at least that would be produced by the Administration Key-words: Administrative law. Administrative merit. Discretional act. 1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES As reflexões que constituirão o estudo que aqui se inicia, não têm a presunção de reinventar a roda ou propor uma revolução copernicana no Direito Administrativo brasileiro, o que não quer dizer que seu conteúdo seja destituído de valor. O que se pretende é o desenvolvimento de uma lógica argumentativa estruturada de forma a possibilitar ao seu leitor, mais um, dentre muitos outros trabalhos que tem se desenvolvido no cenário jurídico brasileiro nos últimos 18 anos, que buscam a árdua e difícil tarefa de construir e solidificar uma ordem que sustente, de forma efetiva e racionalizada, as reais necessidades do Estado Democrático de Direito. Ressalte-se que todo esse movimento de construção de uma nova ordem jurídica brasileira não é causa de nada, mas tão somente, conseqüência de uma nova ordem de idéias, valores e princípios que surgem a partir da segunda metade do século XX no mundo ocidental, por conta das profundas reflexões que as sociedades necessitaram realizar diante do fracasso do Estado Providência, cujo marco foi a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. Os horrores e as atrocidades da segunda guerra mundial determinaram uma profunda reflexão sobre as bases teóricas que sustentavam o modelo de Estado de então, fazendo com que fosse delineado no âmbito internacional, um sistema normativo de proteção aos direitos 74 Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 O sepultamento do mérito administrativo humanos que projetou um constitucionalismo global protetivo dos direitos fundamentais, inclusive com a possibilidade efetiva de sanções e até de intervenção de outros Estados sobre aqueles que não se alinhassem neste contexto. Trata-se do movimento que condicionou a titularidade de direitos ao único e exclusivo requisito da condição humana, não dependendo de qualquer outro critério, visto que todo ser humano possui uma dignidade que é atributo de sua própria essência (PIOVESAN, 2004, p. 87). Na realidade, significou um retorno aos mesmos ideais que inspiraram e promoveram o constitucionalismo do final do século XVIII, que se propugnavam a limitar o poder do Estado e a preservar direitos, com a diferença de que, os novos textos constitucionais foram dotados de princípios abertos de elevada carga axiológica (PIOVESAN, 2004, p. 88), em cujo núcleo comum reside a dignidade da pessoa humana, passando a dirigir e conformar toda a ordem jurídica, bem como fixar os parâmetros de atuação de todos os agentes públicos e privados. Contudo, esse movimento, como qualquer outro de feição histórica, não se instalou imediatamente nas sociedades ocidentais, principalmente nos Estados periféricos, que necessitaram aguardar momento oportuno para sua inserção, que no Brasil, ocorreu a partir da Constituição de 1988, mesmo porque não possuía qualquer compatibilidade com o regime militar ditatorial instalado em 1964. A partir do processo de democratização do Brasil e o estabelecimento de uma nova ordem constitucional, em cuja matriz se verifica a positivação de diversos núcleos de direitos fundamentais, inspirados pela reflexão funcional do direito enquanto instrumento garantístico da dignidade da pessoa humana e, promotor de direitos sociais, econômicos e culturais, inclusive abrangendo os interesses coletivos e difusos, é que se percebe a sua inserção de fato nesse contexto internacional. Portanto, é a partir deste movimento de transformação do Estado e do Direito Constitucional, denominado de Neoconstitucionalismo, é que será norteado este trabalho, de modo a situar o contexto e as implicações no âmbito do direito administrativo. Luís Roberto Barroso, no Prefácio da obra de Gustavo Binembojm (2006, p. XI), discorre que: [...] o fenômeno do Neoconstitucionalismo tem como marco filosófico o pós-positivismo, como marco histórico, a formação do Estado Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 75 Giuliano Cesar da Silva Tatagiba constitucional de direito, após a 2ª Guerra Mundial, onde, no caso brasileiro, ocorreu com a redemocratização institucionalizada pela Constituição de 1988 e, como marco teórico, o conjunto de novas percepções e de novas práticas, que incluem o reconhecimento de força normativa à Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional, envolvendo novas categorias, como os princípios, as colisões de direitos fundamentais, a ponderação e a argumentação. Para tanto, é de necessidade premente a desconstrução dos paradigmas (KUHN, 2000) que fundamentaram a versão clássica de cunho liberal de Estado de Direito e a conseqüente reconstrução de outros, que consagrem a supremacia de uma Constituição normativa e dirigente (OHLWEILER, 2004, p. 299). Orientando-se pelo estudo desenvolvido por Gustavo Binenbojm (2006, p. 25), tem-se que: - A Constituição passa a ser o centro de vinculação administrativa à juridicidade, e não mais a lei; - o conceito de interesse público, integrante do sistema normativo constitucional, não se encontra imune da necessária ponderação com outros direitos fundamentais realizada pelo Juiz e não possui valor hierárquico superior definido de forma apriorística e, muito menos, pertencente ao livre arbítrio do administrador; - a juridicidade administrativa substitui a dicotomia ato discricionário e ato vinculado; - a substituição do Executivo unitário para uma miríade de autoridades administrativas autônomas. Diante da vastidão e complexidade em que se verifica a construção de cada um destes paradigmas, a partir da constatação da inadequação dos anteriores à nova ordem constitucional estabelecida, é que este trabalho buscará compreender apenas a forma pela qual se desenvolveu o processo de elaboração teórica de vinculação do ato administrativo à juridicidade, em oposição à concepção clássica de dicotomia entre ato discricionário e ato vinculado, demonstrando que o dogma da vedação da apreciação do mérito administrativo pelo Poder Judiciário, além de não ter qualquer fundamentação jurídica, não mais possui sustentação teórica, assim demonstrando 76 Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 O sepultamento do mérito administrativo o seu falecimento e a necessidade urgente de providenciar o seu sepultamento de nossa cultura jurídica. Insta considerar que, embora na atualidade exista uma grande produção acadêmica no Brasil sobre a discricionariedade administrativa e seu controle, ainda há uma acentuada divergência, aonde os principais estudiosos do tema vêm formulando suas concepções a partir de teorias importadas, principalmente da Alemanha, como “conceitos jurídicos indeterminados”, “margem de livre apreciação”, “redução de discricionariedade a zero”, etc., cuja discussão sobre o assunto vem sempre se circunscrevendo entre os pólos principiológicos do acesso irrestrito ao Poder Judiciário e da Autonomia da Administração Pública no exercício de sua função constitucional. (KRELL, 2004, p. 34). No entanto, partilhando-se da mesma visão de Adeodato (2004, p. 179), não se deve deixar iludir que todo esse movimento neoconstitucionalista, cuja dignidade da pessoa humana tornase ponto central de toda a discussão jurídica e, a juridicização constitucional, com a concretização da constituição por intermédio do Poder Judiciário, será a panacéia responsável pela solução dos graves problemas estruturais do Estado brasileiro e do desenvolvimento social, pois isso, somente o exercício democrático tem capacidade para resolver. A constituição canaliza e viabiliza a democracia, mas se se espera que ela, unicamente por suas normas, possa substituir, apenas a título de exemplo, o tratamento político dos problemas políticos e o cuidado econômico das questões econômicas por imperativos constitucionais cogentes que dispensem o jogo democrático e a condução concreta de políticas econômicas e sociais, terminar-se-á por pagar o preço do incremento da desestima constitucional a corroer todo o seu potencial força normativa e a gerar a ineficácia de suas normas, produzindo, na prática, efeitos opostos aos almejados. Como mostra Habermas (Era das transições, p. 167), relaciona-se com o tempo também na dimensão do futuro, isto é, de sua realização. O desgaste do paradigma do Estado de Bem-Estar nos mostra os limites do direito, o limite das normas, não são capazes, de, por si, realizar o que quer que seja. (BAHIA, 2004, p. 313). Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 77 Giuliano Cesar da Silva Tatagiba 2 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA ADMINISTRATIVO DO DIREITO Toda a discussão que se empreenderá neste trabalho estará circunscrita na reconstrução do arcabouço teórico e jurídico do direito administrativo brasileiro, para que se possa conformá-lo aos fundamentos do paradigma em que se assenta o Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição de 1988. Assim como diversos juristas têm procedido, e à guisa da advertência realizada por Gustavo Binenbojm (2006), a essência da noção de paradigma que será apresentada neste trabalho, é a decorrente da célebre obra de Thomas S. Kuhn, A estrutura das revoluções científicas. Embora o autor não tenha se baseado nas Ciências Sociais para o desenvolvimento de sua pesquisa e nem mesmo referenciado sobre a sua aplicação nesta seara, o que não possibilita a utilização de seu conceito de forma confortável, constituir-se-á de parâmetro semântico norteador para a demonstração de que, o processo de substituição de paradigmas, decorre da insustentabilidade teórica dos fundamentos de determinados conceitos conformadores de todo o direito administrativo, bem como da necessidade de construção de outros, possuam a legitimidade necessária no meio acadêmico para a estabilização da ciência normal. Neste aspecto, valiosa é a contribuição de Habermas, que a partir da consideração da historicidade e descontinuidade do conhecimento científico, pela alteração de paradigmas, encerram que as diferentes conformações que as ordens jurídicas possuem não são determinadas apenas pela forma com que os direitos fundamentais foram consagrados, pois também refletem paradigmas jurídicos distintos. É por este motivo que os princípios norteadores do Estado de Direito e dos Direitos fundamentais, é que irão determinar o conteúdo destes paradigmas em sua respectiva comunidade jurídica. (BAHIA, 2004, p. 302). Relevante também é a concepção de paradigma trazida por Geraldo Prado (2005, p. 13), e pela qual se constituirá o propósito deste trabalho, ao considerar que a sua crise não significa a descontinuidade do conhecimento até então apreendido pelo grupo social, mas sim de uma nova compreensão conformada aos valores que emergem 78 Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 O sepultamento do mérito administrativo da transformação que se opera. Corroborando com seu pensamento, introduz o que discorre Darcy Ribeiro: [...] ao contrário da natureza, que evolui por mutação genética, a cultura – em cujo campo está inserido o Direito – segue evoluindo por adições de corpos de significado e de normas de ação difundidos por meio da aprendizagem, de sorte a redefinir-se permanentemente, compondo configurações cada vez mais inclusivas e uniformes. (RIBEIRO, 1998 apud PRADO, 2005, p 13) Neste sentido, torna-se necessária a compreensão dos paradigmas que construíram o direito administrativo no decorrer do processo histórico da modernidade, que se iniciam a partir das transformações oriundas dos séculos XVIII e XIX no mundo ocidental, tendo-se como marco histórico os ideais de igualdade, liberdade e propriedade da Revolução francesa, que culminou com a formação do Estado Liberal: en el modelo liberal burguês que impusieron los relucionarios de 1789 estaban los principios y, por tanto, el germen de lo que hoy llamamos Derecho Administrativo, aunque no, logicamente, el Derecho Administrativo entera y cabalmente construido. (OHLWEILER, 2004, p. 308). Diante da significativa modificação social, impulsionada pela revolução industrial que reordenou toda a estrutura econômica e política, faz com que a burguesia, a grande responsável por este fenômeno, buscasse mecanismos que possibilitassem atender a esta nova realidade. Conforme descreve Bahia (2004, p. 303-351), é a partir deste contexto que se forma o paradigma do Estado Liberal, que cria a noção de indivíduo e do Estado de Direito, que deve se envolver apenas nas funções públicas essenciais. A noção de indivíduo vem conferir à burguesia, a liberdade necessária para agir de acordo com as suas convicções. O reconhecimento de sua condição de ser igual a todos os outros de sua espécie, podo fim aos privilégios de nascimento, possibilita agir conforme os seus interesses e adquirir a propriedade decorrente de seu esforço, o que, no regime precedente, lhe era inacessível, uma vez que a propriedade era privilégio do Estado (o monarca), da nobreza e do clero. Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 79 Giuliano Cesar da Silva Tatagiba Para que a intervenção do Estado, apenas nas funções públicas essenciais fosse concretizada, necessitava-se que o poder do soberano fosse limitado. Assim retira-se o poder de legislar do Executivo, onde a vontade do soberano é substituída pela vontade do povo, cabendo ao Judiciário dirimir os conflitos decorrentes. É o estabelecimento do paradigma da separação dos Poderes, a partir da clássica concepção idealizada por Locke e Montesquieu, significando muito mais do que a limitação do Poder Executivo. Significou a formulação de um ordenamento jurídico que garantisse os direitos conquistados pela burguesia, que não restringisse sua liberdade e a aquisição da propriedade, mas, sobretudo, que ainda lhe subordinasse o governante. É a construção do paradigma do Estado de Direito, cuja produção legislativa, agora atribuída ao Parlamento, legitimava-se pela sua caracterização como expressão da vontade popular, podendo não só limitar, como também preordenar e vincular as funções dos Poderes. Significou ainda a vinculação das decisões do Poder Judiciário à lei, principalmente pela cautela em se confiar em uma estrutura que há tanto serviu a nobreza, relegando a atividade interpretativa à lógica da subsunção e vedando qualquer possibilidade de interpretação que não se baseasse em casos de incontestável obscuridade legislativa. Para tanto, ensejou na positivação absoluta de todo o conteúdo do direito natural para poder ordenar plenamente a sociedade, o que só foi possível com o auxílio da razão absoluta, cujo ápice se deu no positivismo jurídico, que trouxe à ciência jurídica o método desenvolvido nas ciências naturais, negando qualquer fundamento metafísico ao Direito. O grande desafio do Estado de Direito residia na busca pela conciliação entre o princípio da legalidade e da liberdade decisória da Administração Pública, que deveria ter suas ações regulamentadas pelo Legislativo e controladas pelo Judiciário. A discricionariedade, resquício do arbítrio do soberano, não possuía assento teórico, então devendo ser eliminada (KRELL, 2004, p. 35). Contudo, como se depreende da lição de Binenbojm (2006, p. 1217), a construção teórica e acadêmica que reporta a gênese do direito administrativo ao advento do Estado de direito e ao princípio da separação de poderes na França pós-revolucionária, denota um grande equívoco que perpassou pelas gerações subseqüentes, por conta de uma reflexão sempre acrítica, pois as categorias peculiares e características do direito administrativo (supremacia do interesse público, 80 Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 O sepultamento do mérito administrativo prerrogativas da administração, discricionariedade, insindicabilidade do mérito administrativo, entre outras), nada mais eram a reprodução das práticas administrativas do ancien regime, que agora servia de instrumento aos novos detentores do Poder. A concepção de legalidade, como vinculação positiva à lei, conferindo aos particulares a autonomia de fazer o que não fosse proibido, e à Administração Pública, de agir conforme a lei determinasse ou facultasse, decorrente da vontade emanada da legitimação política do legislador, é simplesmente falsa. Serviu apenas como discurso para a manutenção da administração pública fora do alcance do controle dos cidadãos, alargar sua esfera de decisão e se imunizar do controle judicial, devido à desconfiança dos revolucionários franceses em relação aos juízes hostis à revolução. Assim demonstra-se que a atribuição de legislar, no nascedouro do Direito Administrativo, conferida a um órgão de jurisdição administrativa próprio do Executivo, não se revestia de nenhuma característica garantista, pelo contrário, seu intuito era o de diminuir as garantias que eventualmente o indivíduo teria se submetesse a Administração a um juízo imparcial e independente, aliás “em nada se pode esperar de uma Administração Pública que edita suas próprias normas jurídicas e julga soberanamente seus litígios com os administrados”. (BINEBOJM, 2006, p. 12). Toda a construção, dos princípios gerais, e das regras jurídicas do direito administrativo, foi produzida pelo Conseil d’Ètat, que postulavam soluções muito diversas daquelas em que, naturalmente, seriam efetivadas pela aplicação subsuntiva do direito civil, demonstrando uma postura totalmente insubmissa à legislação produzida pelo Parlamento: [...] a idéia clássica de que a Revolução Francesa comportou a instauração do princípio da legalidade administrativa, tornando o Executivo subordinado à vontade do Parlamento expressa através da lei, assenta num mito repetido por sucessivas gerações: a criação do direito administrativo pelo Conseil d’Ètat, passando a Administração Pública a pautar-se por normas diferentes daquelas que regulavam a actividade jurídico-privada, não foi um produto da vontade da lei, antes se configura como uma intervenção decisória autovinculativa do Executivo sob proposta do Conseil d’Étát”.(OTERO, apud BINEBOJM, 2006, p. 12). Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 81 Giuliano Cesar da Silva Tatagiba Neste sentido, observa-se que, a máxima da submissão do súdito ao soberano, tão condenada pelos ideais da Revolução Francesa, cuja existência impedia a efetivação plena do princípio da isonomia, mascara-se no paradigma do Estado Liberal de Direito, como princípio da Supremacia do Interesse Público, que auxiliado pelos dogmas das prerrogativas da Administração Pública, da discricionariedade e da insindicabilidade, ainda toma para si, a competência para decidir, em caráter definitivo, os litígios com seus administrados em proveito próprio. Ainda fiel ao estudo de Binembojm, cumpre salientar que a perspectiva da revisão histórica adotada, da dinâmica em que desenvolveu o direito administrativo europeu continental, não tem o objetivo de confirmar a concepção histórica marxista ou de uma teoria da conspiração, formulada deliberadamente pelos detentores do poder. O que se pretende é apresentar, através de um discurso lógico e racional, uma crítica consistente à visão desfocada que foi responsável pela construção das origens do direito administrativo, e que ainda neste início de século XXI se encontra difundida nos meios acadêmicos e demonstrar que o seu devir histórico consiste em “uma sucessão de impulsos contraditórios, produto da tensão dialética entre a lógica da autoridade e a lógica da liberdade”. (BINEBOJM, 2006, p. 18). Confirma-se tal assertiva, a oposição entre a adoção de mecanismos de controle das atividades da administração pelos cidadãos, bem caracterizando uma noção garantística, e as estratégias de fuga à rigidez das formas e das restrições legais à liberdade de decisão do administrador, refletindo o “caráter ambíguo em inúmeros dos seus institutos e na fragilidade de sua estrutura teórica” (BINEBOJM, 2006, p. 18). Binembojm (2006), recorrendo a Mártim-Recortilho, credita à constante fuga do direito administrativo ao direito constitucional, a mais paradoxal contradição de sua trajetória histórica, no que a explica pela descontinuidade das Constituições e pela necessidade de continuidade da burocracia, o que determinava a formulação de princípios, categorias, institutos e regras próprias, assim o mantendo alheio às mutações constitucionais, o que, na realidade, vem significar a sua alienação aos princípios norteados e legitimados politicamente em dado momento histórico. Não se quer dizer que não houve o estabelecimento de uma gama de funções e objetivos previstos nas 82 Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 O sepultamento do mérito administrativo Constituições, principalmente na passagem para o Estado Social, o que era ignorado no Estado Liberal, pois diante do novo contexto em que se via a sociedade, a Administração Pública deixa de ser considerada uma ameaça à liberdade individual para transformar-se em instrumento para efetivação dos direitos sociais (OHLWEILER, 2004, p. 311). Este foi o reflexo das profundas desigualdades sociais e econômicas geradas pelo Estado Liberal que, além de uma exploração sem limites da classe trabalhadora, que se rebela em constantes revoltas, demonstra que a simples previsão legislativa da igualdade, da liberdade e do acesso à propriedade não eram suficientes para sua efetivação. A revolução Russa, a difusão de seus ideais através das Internacionais Socialistas e as conseqüências políticas e econômicas do final da 1ª Guerra Mundial, faz com que o paradigma do Estado Liberal fosse substituído pelo do Estado Social, que agora deveria intervir nas mais diversas áreas sociais para poder materializar os direitos então proclamados. Para a atuação do Estado de Bem Estar Social, uma vasta edição legislativa foi necessária para a regulação de toda esta nova ordem, inclusive com a ampliação do conteúdo das constituições, através da utilização de normas programáticas, de garantias de efetivação dos direitos, dos denominados direitos de segunda geração e de processos de controle da atividade legislativa para a sua proteção, bem como das inúmeras legislações infraconstitucionais (BAHIA, 2004, p. 308). Contudo, mesmo com o exercício desta atividade de promoção de bem-estar, permanece intacta a formulação teórica dos institutos do Direito Administrativo, mantendo seus atos alheios à normatividade constitucional e do controle judicial, onde o discurso de sua autonomia científica contribuiu para o seu distanciamento da juridicidade (BINEBOJM, 2006, p. 19). Diante do fracasso do Estado de Bem-Estar Social e das conseqüentes promessas da modernidade (BAHIA 2004, p. 313), uma profunda reflexão se instala a partir da 2ª Guerra Mundial por conta dos horrores nunca vistos e pela possibilidade concreta da humanidade, pela primeira vez em toda a sua existência, se deparar com a possibilidade real de se auto-dizimar pela tecnologia nuclear. Como conseqüência imediata deste contexto, tem-se a emergência Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 83 Giuliano Cesar da Silva Tatagiba do Direito Internacional dos Direitos Humanos com a Declaração Universal dos Direitos Humanos editada pela ONU em 1948 e de uma nova concepção do direito constitucional no mundo ocidental que, fundado na dignidade da pessoa humana, adquire conformação globalizada (PIOVESAN, 2004, p. 88). Talvez a mais irônica das conclusões que se tenha chegado ao processo reflexivo sobre as conseqüências dantescas da 2ª Guerra Mundial, tenha sido a constatação, durante o julgamento dos principais acusados nazistas pelo Tribunal de Nuremberg, de todos terem invocado o fiel cumprimento da lei e obediência às ordens emanadas da autoridade competente (PIOVESAN, 2004, p. 88). Assim opera-se uma grande crítica ao positivismo jurídico indiferente à ética e à moral e propicia o estabelecimento do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento basilar da nova ordem que se instaura, bem como, modifica os conceitos tradicionais de democracia, a partir da instituição do controle da regra da maioria no espaço intocável dos direitos fundamentais e reserva à nova concepção constitucional a função de garantir não só as formas, mas, sobretudo, “os conteúdos da democracia política, social e cultural”. (PRADO, 2005, p. 87). Saliente-se também que paralelamente a esse movimento reaproximação da ética e da moral ao direito, que, aliás, devem integrar tanto o núcleo do texto quanto expressar o resultado de sua interpretação, outro aspecto relevante a ser considerado é o da inflação legislativa que se instaurou no Estado de Bem-Estar Social, para regular as relações econômicas e privadas. Vê-se neste período, o surgimento de vários micro-sistemas normativos, que por conter valores e objetivos diversos daqueles que inspiraram o Estado Liberal, acarretou um processo de descodificação, o que ainda culminou na desvalorização da lei (BINEBOJM, 2006, p. 62), no que muitos autores denominam como crise da legalidade. Tem-se a partir deste contexto histórico, a instauração de um novo paradigma no sistema jurídico romano-germânico, que substitui o “legicentrismo” (BINEBOJM, 2006, p. 62), que considerava a lei como a emanação da vontade geral do povo e que tinha no Código Civil, o centro do ordenamento jurídico, pela jurisdição constitucional, que tem no super-princípio da dignidade da pessoa humana, ponto de partida e chegada da 84 Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 O sepultamento do mérito administrativo interpretação constitucional, cuja intangibilidade ética possui a tarefa de inspirar o Direito (PIOVESAN, 2004, p. 92). Canotilho (2000, p. 84), citado por Flávia Piovesan (2004, p. 92), neste sentido, discorre que “o direito do Estado de Direito do século XIX e da primeira metade do século XX é o direito das regras dos códigos; o direito do Estado Constitucional Democrático e de Direito leva a sério os princípios, é um direito de princípios”. A necessidade de se compreender a construção do direito administrativo no período pós-revolucionário francês, e seu respectivo devir histórico, decorre do fato de que tenha sido esta a estrutura jurídica inspiradora da que foi implementada no ordenamento brasileiro (OHLWEILER, 2004, p. 310). 3 O SEPULTAMENTO DO MÉRITO ADMINISTRATIVO Como visto, a partir da segunda metade do século XX, a comunidade internacional se depara com a necessidade de realizar profundas reflexões na estrutura conceitual do modelo de Estado e das conseqüentes relações sociais. Da crise da legalidade, motivada pela inflação legislativa que se propugnava alcançar o bem-estar da coletividade, através da positivação máxima das interações sociais, a partir da perspectiva de uma dogmática jurídica dissociada da ética e da moral, à constatação de que o almejado alcance global da modernidade, atingindo os limites mais longínquos do planeta, inclusive eliminando divisão entre centro e periferia (BAUMAN, 2005, p. 89), frustra-se diante da realidade de não ter se traduzido, efetivamente, em mecanismos promotores da felicidade humana, constituindo em exemplos marcantes da crise de identidade que se opera no âmago do atual contexto histórico da humanidade. Assim é que se observa o redesenhar de uma nova arquitetura mundial de relações entre nações que, necessariamente, deve perpassar também por uma reengenharia interna, que deve modificar o quadro de suas interações de forma tão incisiva, que não se contenta em apenas corrigir falhas, mas, sobretudo, de se reformular os paradigmas existentes. Uma das conclusões mais contundentes sobre todas estas reflexões é a constatação de que, a reconstrução destes paradigmas, Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 85 Giuliano Cesar da Silva Tatagiba deve significar o resgate da compreensão dos valores éticos e morais que envolvem as relações sociais, determinando assim, que o Direito, enquanto instrumento ordenador e conformador desta nova ordem de coisas, também realize esta operação etiológica. De igual modo, a constatação de que dignidade da pessoa humana é o valor de maior expressão a ser considerado, desperta o sentimento/necessidade global de centralizá-lo como fundamento, premissa, objetivo e finalidade a orientar este novo conceito Estado a ser construído. 3.1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO NÚCLEO NORMATIVO E DIRETIVO DA JURIDICIDADE NO PARADIGMA CONSTITUCIONAL A forma com a qual se possibilitou empreender o status de maior valor jurídico a ser considerado, à dignidade da pessoa humana, foi a sua inserção como núcleo constitucional fundamental em todas as suas disposições. Até o fim da primeira metade do século XX, o conceito até então de Constituição não possibilitava tal empreendimento. Para tanto, uma nova concepção foi estruturada, que bem pode ser esclarecida por Jackman (PIOVESAN, 2004, p. 89), onde discorre que seu sentido ultrapassa a consideração de um simples documento legal, sendo “um documento com intenso valor simbólico e ideológico – refletindo tanto o que nós somos enquanto sociedade, como o que nós queremos ser”. Em breve estudo à obra de Konrad Hesse (1991, p. 24), constatase que, inquestionavelmente, a Constituição é a verdadeira força viva capaz de proteger a vida do Estado contra as desmedidas investidas do arbítrio. Para tanto, deve expressar a realidade política e social de seu tempo, à qual também ordena e conforma por conta de seu elemento normativo, convertido em força ativa dependente de sua própria vontade, da vontade da constituição (Wille zur Verfasssung). A efetividade desta força será tanto maior quanto maior for a convicção sobre a sua inviolabilidade. As normas integrantes do texto da Constituição brasileira de 1988, cuja rigidez para a sua modificação também impõe, formam um complexo sistema normativo de mesma natureza e condicionamento recíproco e sem qualquer valoração hierárquica, pois todas são dotadas de eficácia, cujas distinções existentes referem-se somente aos 86 Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 O sepultamento do mérito administrativo efeitos jurídicos que cada uma visa produzir (SOUZA, 2005, p. 10). O desenvolvimento da Teoria de interpretação conforme a Constituição é a conseqüência imediata dos fundamentos do Estado Democrático de Direito construído com a Constituição de 1988, que promoveu a constitucionalização dos princípios e preceitos básicos de todos os assuntos de importância jurídica, política e cultural. Vê-se claramente a elevação do status político do Poder judiciário, especialmente do STF pelo atributo de guardião da Constituição, que tem por fim “obter a probidade e efetividade da Administração Pública e integral respeito aos Direitos Fundamentais”. (MORAES, 2004, p. 99). Todas as questões apreciadas pelo Poder Judiciário passam a ser analisadas pela ótica constitucional, inclusive as políticas e as administrativas, fazendo com que a política do Estado brasileiro sejam conduzidas pelo direito Constitucional, o que determina não só a aplicação de métodos interpretativos constitucionais, como também, dos efeitos do controle de constitucionalidade. É a instituição do paradigma Constitucional, necessário ao desenvolvimento do Estado democrático de Direito, estabelecido fundamentalmente sobre os pilares dos Direitos fundamentais do homem, cuja eficácia concreta apenas se estabelece com sua total observância e inviolabilidade (MORAES, 2004, p. 99). Diante desta perspectiva, o estudo sobre qualquer instituto jurídico deve ser realizado e interpretado de acordo com a Constituição, sob pena de ver a sociedade subjugada ao arbítrio e ao autoritarismo. A interpretação jurídica (MORAES, 2004, p. 99) encontrada na Hermenêutica, que “na área jurídica tem por finalidade o estudo, a definição e a sistematização dos métodos aplicáveis para determinar o sentido das expressões contidas nas normas jurídicas”, deve buscar o sentido normativo do texto para aplicá-lo em um caso concreto, a partir da identificação do significado mais exato. A interpretação constitucional possui um caráter especial decorrente da supremacia da Constituição e do seu papel político dentro do ordenamento jurídico, o que lhe confere princípios, especificidades e complexidades próprias. Assim decorre o princípio de que as regras que concedem direitos não comportam interpretação restritiva, pois o interprete não está autorizado a restringir o alcance de dispositivos constitucionais. Necessita-se que o aplicador do direito, primeiramente, investigue o Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 87 Giuliano Cesar da Silva Tatagiba que realmente disse o legislador constituinte, pois a lei ordinária deve ser interpretada conforme a Constituição, e não o contrário. Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus (onde a lei não distingue, não pode o interprete distinguir) (RANGEL, 2005, p. 2). Saliente-se que a interpretação resultante do sistema constitucional deve ter por fim atingir o princípio da unidade da Constituição em detrimento da interpretação orientada pela literalidade de seus textos, para que realmente confirme o seu status de marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos e garantias fundamentais. No entanto, nestas quase duas décadas de vigência de novo sistema constitucional, ainda se percebe uma grande dificuldade nos operadores do direito em se lidar com a amplitude e o alcance da jurisdição constitucional e, principalmente, da sua jurisprudencialização, a partir da sua função que lhe emprega o Estado Democrático de Direito, em efetivar e consolidar os direitos fundamentais. Deste modo, impera que a compreensão do paradigma do Estado Democrático de Direito se concretize diante deste “estado de incertezas diante da dicotomia verificada entre o estático discurso sustentado pela doutrina e a vertiginosa velocidade com que se transformam as relações sociais no mundo pós-moderno”. (TRINDADE, 2004, p. 11). 3.2 A BASE TEÓRICA DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO: UM PARADIGMA EM CRISE A busca por uma construção jurídica que se amolde ao contexto social e possibilite ao Direito exercer seu papel de realização da justiça, impõe que se compreendam as bases com as quais a estrutura vigente se estabelece e a indicação dos seus principais pontos de conflito, para que se possa realizar sua reformulação teórica e a conseqüente reconstrução de seus institutos. No Brasil, a construção das categorias, princípios e valores do direito administrativo, tem nas obras de Hely Lopes Meirelles uma contribuição cuja relevância determina que se faça a reconstituição de seus institutos a partir de seus ensinamentos. A nosso ver, a interpretação do Direito Administrativo, além da utilização analógica das regras do Direito Privado que lhe forem aplicáveis, há de considerar, necessariamente, esses três pressupostos: 88 Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 O sepultamento do mérito administrativo 1º) a desigualdade jurídica entre a Administração e os administrados; 2º) a presunção de legitimidade dos atos da Administração; 3º) a necessidade de poderes discricionários para a Administração atender ao interesse público. (MEIRELLES, 1995, p. 39). Os princípios informadores do Direito Administrativo têm no Direito Civil sua fonte imediata e a relação mais intensa, que determina, inclusive, a sua interpretação. Afora estas regras privativas do Direito Público, admite-se a utilização dos métodos interpretativos do Direito Civil (LICC, arts. 1º ao 6º), que é a lei de todos, quando estabelece princípios gerais para aplicação do Direito. Os princípios do Direito Civil são traslados para o Direito Administrativo por via analógica, ou seja, por força de compreensão, e não por extensão. (MEIRELLES, 1995, p. 40). Este é o paradigma em que se funda o direito administrativo brasileiro, cuja estrutura se alicerça na primazia do Princípio da supremacia do Interesse Público sobre os interesses dos indivíduos que, aprioristicamente, sobrepõe o suposto interesse coletivo da administração sobre os particulares. Desta desigualdade, resultariam privilégios e prerrogativas para o Poder Público que jamais poderiam ser desconsiderados pelo intérprete, por conta de sua finalidade em assegurar o bem comum. Neste sentido, as leis administrativas devem assegurar a supremacia do Poder Público sobre os indivíduos, a fim de atingir os fins da administração. Portanto, por seu caráter especial em relação à lei civil, enquanto é lícito aos particulares agirem enquanto não houvesse vedação legal, à administração só é possível agir conforme e nos limites da lei. Esta construção é decorrente da clássica divisão de Poderes instituída por ocasião da formação do Estado Liberal, onde a cada um dos Poderes compete uma função, cujos atos diferenciariam em natureza, conteúdo e forma. “Temos, assim, na atividade pública geral, três categorias de atos inconfundíveis entre si: atos legislativos, atos judiciais e atos administrativos”. (MEIRELLES, 1995, p. 132). Para o exercício de suas atividades, os atos emanados da administração devem possuir presunção de legitimidade, dispensando-a da prova de sua constituição, e de poderes Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 89 Giuliano Cesar da Silva Tatagiba discricionários, assim entendidos como uma margem decisória conferida ao administrador público para a prática de seus atos, que tão somente se limitam pelo interesse público. O conceito de ato administrativo é construído com a mesma fundamentação de ato jurídico estabelecido pela Lei Civil, sendo deste diferenciado com a integração da finalidade pública, sendo considerado como “toda manifestação unilateral de vontade da administração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria”. (MEIRELLES, 1995, p. 133). A respeito do ato administrativo típico, dentre as principais classificações, aqui se reveste de importância a que distingue ato administrativo vinculado e ato discricionário. Ato administrativo vinculado é aquele em que a lei estabelece os requisitos e condições para a sua realização, não oferecendo qualquer margem de liberdade para o administrador em sua realização. A inobservância dos pressupostos estabelecidos pela norma legal para a validade da atividade administrativa compromete sua eficácia, tornando-o passível de anulação, tanto pela própria administração quanto pelo judiciário, se reclamado pelo interessado. Ato administrativo discricionário é aquele em que o administrador pode praticá-lo com liberdade de escolha de seu conteúdo e destinatário, de acordo com seu juízo de conveniência, oportunidade e modo de realização para a efetivação do interesse público. Seu fundamento e justificativa residem na complexidade e diversidade de problemas a serem resolvidos pelo poder público nos quais seria impossível a sua previsão legislativa (MEIRELLES, 1995, p. 150). Para que o ato administrativo, tanto vinculado quanto discricionário, possua validade e eficácia, sua constituição vem a decorrer da existência necessária de cinco requisitos: competência, finalidade, forma, motivo e objeto. A competência decorre do poder atribuído legalmente ao agente da administração, com a função específica para o desempenho de determinado ato. A finalidade decorre do interesse público a atingir. A forma é o revestimento material do ato. O motivo ou causa é a situação de direito ou de fato que autoriza a realização de determinado ato. O objeto se identifica 90 Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 O sepultamento do mérito administrativo com o próprio conteúdo do ato pelo qual a Administração manifesta sua vontade ou atesta situações pré-existentes (MEIRELLES, 1995, p. 134). Diante destes requisitos, todo ato administrativo tem sua competência, finalidade e forma pré-estabelecida pela lei, enquanto que seu motivo e objeto estarão ou não vinculados a critério do legislador. Neste sentido, toda vez que a lei estabelecer o motivo e o objeto do ato administrativo a ser realizado, o administrador estará vinculado em sua realização, caso contrário, sua decisão estará livre para escolher, a partir dos juízos de conveniência e oportunidade, a solução mais adequada para o alcance do interesse público. Outro conceito que, em decorrência das proposições dispostas acima, possui relevância destacada, é o de mérito administrativo (MEIRELLES, 1995, p. 137), cuja denominação é dada à decisão tomada pela administração pública em decorrência de um ato discricionário pautado no juízo de conveniência e oportunidade na valoração dos motivos e na escolha do seu objeto. Recorrendo a Seabra Fagundes, Hely Lopes Meirelles (1995, p. 138) discorre que o mérito administrativo é um fenômeno decorrente dos atos administrativos praticados no exercício da competência discricionária, uma vez que os atos vinculados não permitem que o administrador faça qualquer opção, mas tão somente, verifique os pressupostos de direito e de fato que condicionam a decisão a ser tomada, resumindo-se no atendimento das imposições legais, até confundindo a conduta do administrador com a do juiz na função de aplicar a Lei. Desta forma, todas as vezes que um ato administrativo a ser executado possuir, além dos elementos que sempre serão vinculados (competência, finalidade e forma), outros que permitem à administração decidir livremente (motivo e objeto), a sua decisão não ensejará qualquer possibilidade de correção judicial, a não ser que o seu proceder caracterize excesso ou desvio de poder. Assim é que se tem a construção do paradigma da insindicabilidade do mérito administrativo pelo judiciário. 3.3 O DIREITO ADMINISTRATIVO E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: UM NOVO PARADIGMA A SE CONSOLIDAR Como visto, a construção teórica do direito administrativo Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 91 Giuliano Cesar da Silva Tatagiba brasileiro se reporta às contradições da lógica da autoridade e da liberdade que o acompanharam desde seu surgimento com o Estado Liberal no Século XIX. Do mesmo modo, o princípio da supremacia do interesse público (BINEBOJM, 2006, p. 86), ainda sendo caracterizado como pedra angular do regime jurídico administrativo, se reafirma em nove entre dez manuais de direito administrativo publicados no Brasil. Conseqüência imediata é ainda a manutenção de conceitos como o de mérito administrativo e a distinção entre ato vinculado e discricionário. No entanto, o novo contexto social, que tanto é conformador quanto é conformado pela Constituição de 1988, determina uma ruptura com este estado de coisas e a reconstrução de uma nova ordem jurídica administrativa assentada em percepções inteiramente diversas. É a partir dessa realidade que se depreende uma nova leitura dos valores, institutos e categorias do direito administrativo, o que permite antecipar a conclusão, por mais chocante que possa parecer aos assíduos estudiosos tradicionalistas do direito administrativo, as noções de mérito administrativo, bem como a distinção entre ato vinculado e discricionário, faleceram de consistência, e neste momento, resta-se apenas difundir esta notícia na doutrina, para que se possa em definitivo, sepultá-los na ordem jurídica brasileira. A clássica divisão de Poderes concebida por Montesquieu, como visto, não atende ao atual estágio de desenvolvimento da sociedade, onde a realidade fática corrente mostra o legislativo processando e julgando o executivo legislando e judiciário impondo políticas públicas. Nesse sentido, é que se atendo à discussão sobre as nuances que envolvem o mérito administrativo, a partir da construção de um novo arcabouço teórico da discricionariedade é que se pretende contribuir para o assentamento de um novo paradigma para o direito administrativo. Toda a discussão que irá se estabelecer deste ponto em diante, terá como perspectiva a evolução da construção teórica que busca delimitar os limites da atuação de cada Poder dentro do paradigma do Estado Democrático de Direito e, principalmente, para a discricionariedade administrativa, uma vez que não existe um limite jurídico para o controle judicial da discricionariedade (KREEL, 2004, p. 44), o que até então era, concebido como dogma intocável. Aliás, a regra fundamental, prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição 92 Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 O sepultamento do mérito administrativo de 1988, é a da inafastabilidade de apreciação pelo Poder Judiciário de qualquer lesão ou ameaça de direito. Por outro lado, também não se pode deixar de considerar, que a administração pública, por conta de sua destinação constitucional, necessita de autonomia e liberdade necessária para o pleno exercício de suas atribuições. Não se quer dizer que o administrador público não tenha liberdade de ação a fim de promover o bem da coletividade, o que na realidade, também decorre de um mandamento constitucional: a separação dos poderes. “No Estado moderno seria inviável imaginar uma Administração desprovida de uma margem de decisão independente, sendo um importante valor um Estado de Direito possuir um Administração autônoma”. (KREEL, 2004, p. 56). Até mesmo porque, a idéia de ato vinculado, segundo a visão tradicional de estrita vinculação à lei, abrange uma categoria absolutamente mínima dos atos administrativos (BINEBOJM, 2006 p. 19), principalmente diante de uma realidade histórica em que se perde a certeza da lei, da idéia de certeza a partir da reserva da lei, demonstrando se tratar de uma categoria em franco processo de esvaziamento. Um novo conceber do direito administrativo, dirigido pela ordem constitucional, demonstra que a clássica divisão dos atos administrativos em vinculados e discricionários não mais existe. A noção de ato vinculado à lei, em seu sentido formal, e de ato discricionário, como sendo espaço livre de decisão externa ao Direito, conferido ao administrador público, perde inteira significação, “parece remontar aos equívocos da Escola da Exegese, que pregava que normas legais ‘serviam de prontuários repletos e não lacunosos para dar solução aos casos concretos, cabendo ao aplicador um papel subalterno de automatamente (sic) aplicar os comandos prévios e exteriores de sua vontade”. (KRELL, 2004, p. 40). Em verdade, todo ato administrativo é vinculado, pois não se concebe que, no Estado Democrático de Direito, possa o administrador público atuar em dissonância com a legalidade. Não se trata de uma vinculação à lei nos moldes da concepção clássica, mas sim uma vinculação a toda juridicidade, de onde decorre que, a idéia de discricionariedade também não existe. A grande questão que vem sendo discutida, e que aqui também será tratada, é da intensidade de vinculação do ato administrativo à juridicidade e da tão propalada Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 93 Giuliano Cesar da Silva Tatagiba margem conferida à administração pública para a realização de seus atos. O que se quer demonstrar, é que a teoria dos elementos do ato administrativo, que os tornavam vinculados pela previsão legislativa da finalidade e motivo, que determinava a insindicabilidade do mérito administrativo daí decorrente pelo judiciário, não possui sustentação jurídica e teórica. Inicia-se na França do século XIX a idéia de que, em decorrência das crescentes demandas sociais, a Administração Pública, para agir com mais eficiência no atendimento e organização dos serviços públicos das sociedades industrializadas, necessitava de uma liberdade de apreciação ou escolha que se situava externamente ao ordenamento jurídico. Surgia assim o conceito de discricionariedade administrativa como um espaço livre da regulamentação da lei e, conseqüentemente, sem possibilidade de sindicabilidade (BINEBOJM, 2006, p. 194) pelo judiciário. Insta considerar que, mesmo verificando a sua imprescindibilidade, a discricionariedade administrativa, por ser incompatível com o Estado de Direito, necessitava de ser balizada juridicamente. Contudo, somente com o positivismo Kelsiano, a partir do 1º pós-guerra, é que se desenvolve a noção da subdeterminação das diversas etapas da produção normativa, que ao inserir a atuação da Administração Pública em uma destas etapas, justificou a discricionariedade administrativa ao considerá-la a concretização paulatina e gradual de normas jurídicas precedentes. É o que ocorre quando edita regulamentos que se fundamentam na Lei ou na Constituição (BINEBOJM, 2006, p. 196). Esta necessidade de se buscar parâmetros jurídicos para a discricionariedade administrativa, segundo Binembojm (2006, p. 197), fez com que o seu processo histórico evolutivo percorresse as seguintes etapas: - teoria dos Elementos do ato, com a vinculação da competência, forma e finalidade, relegando o motivo e o objeto à discricionariedade administrativa; - teorias de controle a partir de parâmetros implícitos na lei, desvio e excesso de poder e motivos determinantes; - teoria dos conceitos jurídicos indeterminados; - teoria da vinculação direta dos atos administrativos aos princípios constitucionais. 94 Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 O sepultamento do mérito administrativo A teoria dos elementos do ato administrativo, que o decompõe em competência, forma, finalidade, motivo e objeto, se assenta na frontal dicotomia entre ato discricionário e vinculado, onde ao judiciário caberia se ater ao exame da legalidade circunscrita às formalidades extrínsecas dos atos discricionários, sendo-lhe vedado o exame do mérito administrativo que se regia pela conveniência e oportunidade do administrador público. Em um segundo momento passou-se a entender que a competência, a forma e a finalidade seriam sempre elementos vinculados, enquanto que o objeto e o motivo só poderiam ser sindicados quando a legislação não houvesse possibilitado qualquer margem para a escolha de sua decisão. Contudo, uma primeira evolução para o controle dos atos discricionários surge com a teoria do desvio de poder ou do desvio de finalidade, ainda no século XIX no Conselho de Estado Francês, vindo a repercutir até no Brasil, onde a discricionariedade passa a ser entendida como um dever de atender a finalidade estampada na lei, e não como um Poder. Uma segunda evolução ocorre com o surgimento da teoria dos motivos determinantes, onde o ato administrativo deve corresponder ao motivo alegado como pressuposto para a sua prática. Ainda a guisa dessa evolução, verifica-se ainda teoria do excesso de poder, para os casos em que a Administração extrapolasse a sua competência, e à exigência de motivação, clara, congruente e explícita para todos os atos administrativos, mesmos aqueles em que não houvesse previsão legal para tanto. Assim, pela teoria dos elementos do ato administrativo, haveria uma auto-restrição do judiciário em apreciá-los nos aspectos referentes ao motivo e ao objeto. O judiciário só poderia apreciar a decisão que fosse motivada, em respeito à teoria dos motivos determinantes, que condicionava esta decisão do administrador público aos estritos limites do conteúdo de sua motivação. De igual modo, o judiciário não poderia controlar a delimitação do objeto, a não ser quando caracterizasse, perfeitamente, desvio de poder. Nesse sentido, a atuação da administração pública teria tão somente a conveniência e oportunidade como princípios determinantes de sua atuação. Contudo, a hermenêutica contemporânea, também orientada pelo contexto neoconstitucional, contrapondo à concepção de que ao interprete caberia tão somente fixar o sentido e o alcance da pretensa Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 95 Giuliano Cesar da Silva Tatagiba vontade do legislador e da lei, através do silogismo subsuntivo lógico e mecânico, prevendo existir apenas uma solução correta para determinado caso concreto, informa que a ação do interprete é determinada por um ato de vontade, derivada de sua pré-compreensão de mundo e que, de forma alguma, irá proferir uma solução neutra e desinteressada ao caso concreto. O interprete, através do discurso racionalizado, irá criar, na situação fática, a solução que a sua intuição particular o orientar, do que seja certo ou errado, desejável ou não (KRELL, 2004, p. 58-60). Desta forma, chega-se à conclusão de que não existe uma única resposta possível e razoável, tanto para a delimitação do objeto quanto para a motivação, possibilitando uma discussão perfeitamente razoável. Mesmo o avanço teórico, no sentido de se estabelecer o controle judicial à finalidade do ato, prevendo o desvio de finalidade caso não se concretize a finalidade para o qual foi criado, ao supor que esta seria algo objetivo, comete o mesmo pecado principiológico, uma vez que são plúrimas as finalidades do Estado. Tal ocorre pelo fato de que, o conteúdo destes elementos, serem perfeitamente discutíveis a partir de uma análise hermenêutica, o que lhe oferece diversas soluções quando se busca compreendê-los à luz dos princípios constitucionais. Não existe uma única finalidade para um ato administrativo, pois esta tende a conformar toda uma categoria de princípios que vão determinar esta finalidade. De igual modo, os motivos de um ato administrativo não são somente aqueles que o administrador público estabeleceu, mas aqueles que decorrem de todo o ordenamento constitucional. Por outro lado, verifica-se também que o ato vinculado e o ato discricionário não possuem uma diferença qualitativa e sim de densidade quantitativa (KRELL, 2004, p. 40), em que o ato discricionário teria uma vinculação mínima à juridicidade. O conceito de ato vinculado estará relacionado a uma maior intensidade vinculatória à previsão legislativa, que se liga tanto à idéia de lei quanto à idéia de constituição. É o que se observa, por exemplo, no lançamento tributário, onde a lei estará definindo os seus elementos em tal intensidade que, por mais que uma parte deste conceito possa ser discutida, como o que seja lançamento ou pessoa, sua densidade se mostra em um grau extremamente elevado. 96 Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 O sepultamento do mérito administrativo Neste sentido, diante da revelação de que a limitação da discricionariedade pela teoria dos elementos do ato, mesmo aperfeiçoada pela teoria dos motivos determinantes ou pelo desvio de finalidade, ao ser analisada, tanto pela hermenêutica quanto pela inconsistência da distinção entre ato vinculado e discricionário, não resolve esta celeuma, é que se verificou a necessidade de se buscar outras formas para sua elaboração. Ressalte-se que esta discussão se acentua ao refletir as transformações ocorridas pela complexidade das novas condições sociais, que culminaram com o processo de globalização mundial. O Estado perde a força, seu papel regulador através da lei, diante da obrigação de adequar suas políticas públicas a parâmetros internacionais. “As Constituições contemporâneas estão, hoje, cada vez mais vinculadas a princípios e regras de Direito Internacionais, que se convertem em parâmetro de validade das próprias Constituições nacionais”. (PIOVESAN, 2004, p. 97). Com a idéia de que a lei não pode a tudo regrar, ou mesmo regular inteiramente uma determinada situação, mas sim a de fixar, parâmetros, pautas diretivas, finalidades a serem atingidas, é que surge a noção conceitos indeterminados, programas de ação e de políticas públicas. São estes conceitos fluidos que irão oferecer a fórmula de melhor compreender toda essa complexidade do mundo real nas sociedades contemporâneas (KRELL, 2004, p. 37): A discricionariedade não é, destarte, nem uma liberdade decisória externa ao direito, nem um campo imune ao controle jurisdicional. Ao maior ou menor grau de vinculação do administrador à juridicidade corresponderá, via de regra, maior ou menor grau de controlabilidade judicial dos seus atos. (KRELL, 2004, p. 206). Diante desta complexidade, é que têm surgido diversas teorias que se propõem a fixar mecanismos de auto-restrição judicial para os casos em que, na concretude de sua ocorrência, caiba à administração pública valorar o conteúdo da decisão a ser tomada. O uso da técnica de conceitos jurídicos indeterminados, de conceitos abertos, como boa-fé objetiva, razoabilidade da atuação da administração, interesse público, permite que se faça uma abertura no Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 97 Giuliano Cesar da Silva Tatagiba sistema, permitindo conferir caráter de juridicidade a conteúdos que não se encontram dentro do direito, mas sim, em outros subsistemas sociais, como a ética, a política, a moral: Surge, assim, na doutrina dos conceitos jurídicos indeterminados, os quais não foram mais considerados como uma expressão da discricionariedade, mas plenamente sindicáveis pelo Poder Judiciário mediante interpretação, o que levou a uma forte restrição da própria discricionariedade administrativa. (KRELL, 2004, p. 46). A questão agora é a definição destes conceitos jurídicos indeterminados. Como é que se vai estabelecer o conteúdo destes conceitos para a delimitação do espaço da discricionariedade? Onde começa o exercício da discricionariedade, comportamento volitivo do administrador, e onde começa a cognição de conceito jurídico indeterminado, ou seja, o conteúdo deste conceito? A partir das últimas duas décadas na Alemanha, é crescente número de autores que não aceitam a distinção rígida entre conceitos indeterminados e discricionariedade, diante da mudança da doutrina administrativa que enfatizava um controle judicial abrangente: Assim, parece equivocada a distinção rígida no tratamento do controle dos conceitos jurídicos indeterminados – que exigem interpretação, sendo o seu pleno controle judicial a regra – e, por outro lado, dos atos discricionários como decisões baseadas na conveniência e oportunidade sindicáveis somente em casos de graves erros de avaliação ou arbitrariedade, Muitas vezes, a questão não passa de uma contingência na formulação do próprio texto legal. (KRELL, 2004, p. 48). Conceitos indeterminados são aqueles que vão requerer uma norma de valoração, de juízos de valor. Como o conceito de mulher honesta, ou o pundonor policial militar, por exemplo. É perfeitamente razoável estabelecer tanto um padrão moral mínimo para uma mulher honesta em determinada sociedade e em determinado contexto histórico, quanto que existe um mínimo ético a se esperar por de um policial militar (KRELL, 2004, p. 52). Encontra-se ainda dentro deste conceito, a definição do que seja interesse público, obrigação de correção e lealdade na atuação 98 Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 O sepultamento do mérito administrativo administrativa, através de norma objetiva. Logo, o grande problema reside em como determinar qual seja o exato conteúdo desta norma. A doutrina brasileira vem procurando definir o conteúdo dos conceitos jurídicos indeterminados a partir de parâmetros que se fundamentam na doutrina e no direito alemão. Pela teoria da sustentabilidade (KRELL, 2004, p. 56), o Poder Judiciário deve se limitar a verificar se a interpretação do conceito jurídico indeterminado, realizado pela Administração Pública, pode ser sustentado e defendido através de argumentos racionais. O judiciário pode apreciar, a partir de parâmetros de razoabilidade do direito, se aquela decisão que o administrador tomou é sustentável, ou seja, se está de acordo com a ordem jurídica, ainda que não seja a melhor decisão. Se esta decisão está adequada a esse juízo de sustentabilidade, e por isso defensável juridicamente, o administrador estaria atuando dentro de sua margem de discricionariedade e assim não podendo sofrer qualquer controle judicial. Uma outra teoria é a da prerrogativa estimatória (KRELL, 2004, p. 55), em que se prevê uma margem de livre apreciação pela Administração Pública, pelo fato de não poder oferecer uma melhor decisão, nas situações que envolvam conceitos de prognose, de avaliação de futuro. A auto-restrição judicial deveria ser estabelecida em beneficio do ente da administração que tenha melhor capacidade, competência técnica e expertise de estabelecer a decisão mais adequada para o caso concreto e que pressuponham decisões insubstituíveis ou irrepetíveis (KRELL, 2004, p. 55). São os casos, por exemplo, que envolvam impacto ambiental ou aspectos da política econômica, onde os órgãos técnicos da administração teriam melhor capacidade de estimar o dano possível, onde o juiz deve se abster de examinar o mérito destes casos por se encontrarem dentro do espaço da discricionariedade, por conta da densificação dos conceitos de prognose. Para o estabelecimento do conteúdo da conseqüente densidade dos conceitos jurídicos indeterminados, assim entendidos como um fenômeno lingüístico, estas teorias pressupõem que no momento de realização de sua interpretação, sempre haveria uma zona de certeza positiva, de uma zona de certeza negativa e de uma na zona de penumbra, onde aí residiria a margem de atuação administrativa (KRELL, 2004, p. 57). Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 99 Giuliano Cesar da Silva Tatagiba Uma outra teoria, cujo número de defensores muito tem crescido no Brasil, é a denominada teoria dos princípios (BINEBOJM, 2006, p. 206). Assenta esta teoria na vinculação direta da Administração Pública no reconhecimento da eficácia normativa dos princípios jurídicos, que supera a concepção positivista de que na lei, conteria todo direito, onde se concentram os “esforços em superar o modelo de Estado de direito formal, em benefício de um Estado de direito material” (BINEBOJM, 2006, p. 196). Por esta teoria, toda a atividade administrativa se vincularia à ordem jurídica como um todo. Tratase do princípio da juridicidade, que consagra os princípios gerais ou setoriais na Constituição: Na atual fase ‘pós-positivista’, que foi instaurada com a ampla positivação dos princípios gerais de Direito nos novos textos constitucionais, os atos administrativos discricionários não devem ser controlados somente por sua legalidade, mas por sua juridicidade. Essa ‘principialização’ do Direito (proibição da arbitrariedade, razoabilidade, proporcionalidade, igualdade, proteção da confiança legítima etc) aumentou a margem da vinculação dos atos discricionários. (KRELL, 2004, p. 69). Ganham relevância nesta teoria, os princípios da Administração Pública, previstos no art. 37 da Constituição de 1988, que se estabelecem como parâmetros balizadores de toda a atuação do Poder Público, e que estreitam (parcial ou totalmente) o âmbito da discricionariedade. A moralidade vem ocupar posição destacada, a partir do momento em que representa o reencontro do direito e da moral, conseqüência dos abusos e arbitrariedades que provocaram efeitos perniciosos em toda a humanidade, decorrente da formulação dogmática juspositivista de uma teoria pura do direito. É conseqüência imediata desta teoria, a constatação da inexistência da dicotomia entre ato vinculado e discricionário, ao prever que os atos administrativos possuem diferentes graus de vinculação à juridicidade, cuja intensidade do controle judicial se relaciona diretamente com este grau de vinculação. Não há uma diferenciação qualitativa entre ato vinculado e ato discricionário, mas sim uma diferenciação quantitativa em torno da sua vinculação e pertinência à juridicidade (BINEBOJM, 2006, p. 207). Modificado os parâmetros de controle da atividade administrativa, do princípio da legalidade, por uma idéia mais 100 Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 O sepultamento do mérito administrativo ampla de juridicidade, o núcleo do ato administrativo, o mérito antes intocável, sofre a incidência direta dos princípios constitucionais, assim acarretando uma crescente ingerência judicial (BINEBOJM, 2006, p. 207), que pelo princípio da divisão dos poderes, também de âmbito Constitucional, vai apenas determinar a anulação do ato administrativo. Cabe, no entanto, sua reedição pela Administração Pública, caso a situação fática exija tal comportamento, desde que não se refira aos casos de redução da discricionariedade “a zero”, que ensejará um pronunciamento condenatório e não apenas anulatório (KRELL, 2004, p. 70). Assim como a própria teoria dos elementos do ato administrativo, a falha do raciocínio destas teorias reside no fato de se admitir que haja um sentido objetivo que possa ser buscado no próprio conceito. Ao se trabalhar questões de densidade normativa dos fenômenos lingüísticos, a partir de um processo hermenêutico, verifica-se que, a construção dos conceitos, necessariamente passa por uma précompreensão do mundo. A partir do momento em que a hermenêutica demonstra que para a construção de determinado conceito, sempre se partirá desta pré-compreensão, tanto o legislador quanto o interprete é que estarão definindo o conteúdo deste conceito. Deste modo, será o interprete que estará construindo tanto o que seja sustentável como o conteúdo daquilo que é sustentável, ou do juízo a ser estabelecido para o futuro, ou ainda de qual será o princípio jurídico mais adequado para a situação fática. Assim, o que seja ou não sustentável, aquilo que seja ou não a decisão mais técnica, ou qual princípio jurídico é o mais adequado, sempre possibilitará várias respostas possíveis. Neste sentido, tanto a teoria dos conceitos jurídicos indeterminados, quanto a teoria dos princípios, acabam por não conseguir estabelecer com precisão um conteúdo adequado, a partir de uma análise, que tenha sob perspectiva, o sentido do próprio objeto. O se conclui que o espaço reservado à discricionariedade administrativa não consegue ser estabelecida por uma questão de vontade, através de um processo hemenêutico, a partir da análise discursiva do agir comunicativo, ou de uma análise ontológica de seu conteúdo, resultado de processo de cognição, oriundo do próprio conceito jurídico indeterminado: Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 101 Giuliano Cesar da Silva Tatagiba A hermeutica mostrou, há tempo, que a interpretação jurídica somente funciona através de atos de vontade. Por isso, não faz mais sentido criar uma estrita distinção entre a interpretação da norma legal (meramente cognitiva) e do exercício (sempre volitivo) da discricionariedade, entendimento que dominou a doutrina e a jurisprudência na Alemanha durante muito tempo. (KRELL, 2004, p. 71). A teoria dos conceitos jurídicos indeterminados no Brasil ainda se apresenta como a mais moderna forma de se estabelecer os limites da discricionariedade. Contudo, essa teoria vem sofrendo várias críticas por não conseguir definir os limites da discricionariedade pela indeterminação de seu próprio conteúdo. Deste modo, a doutrina e a jurisprudência têm transferido, para a órbita jurídico-funcional, a determinação da discricionariedade administrativa, que busca estabelecer a competência para a solução do caso concreto, a partir da análise do órgão que tenha a possibilidade de oferecer a melhor solução: As figuras do conceito jurídico indeterminado e da discricionariedade são nada mais do que os códigos para uma delimitação jurídicofuncional dos âmbitos próprios da Administração e dos tribunais. (KRELL, 2004, p. 61). A definição sobre o que é ou não discricionário, perpassa pela noção de funcionalidade dos poderes e não, como já visto, de sua clássica divisão. Aquilo que finalmente seria o espaço da discricionariedade vai estar estabelecido a partir de uma perspectiva funcionalizante. Tal idéia se aproxima muito da noção de minimalismo jurídico, que muito tem sido utilizado nos Estados Unidos, caracterizado por uma auto-restrição que os tribunais fazem ao julgar que, em determinadas matérias, procedimentos de questões especificas e concretas, o executivo, estará mais bem aparelhado para decidir. O Estado Democrático de Direito pretende oferecer repostas que, em concreto, resultem do valor de justiça. O novo paradigma do Estado contemporâneo não é mais a lei, e sim o justo, onde a juridicidade possui conteúdo ético e moral. Relembre-se, como acentuado no início deste trabalho, que a construção deste paradigma não pressupõe uma cisão ou descontinuidade com o conhecimento apreendido. Assim é que esta teoria, que estabelece a discricionariedade administrativa a partir de uma visão jurídico-funcional de densidade adequada de 102 Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 O sepultamento do mérito administrativo controle, não dispensa as contribuições trazidas pelas teorias dos elementos do ato administrativo, conceitos jurídicos indeterminados e dos princípios constitucionais. Para que se possa chegar à solução justa, de dar a cada um o que é seu, somente será possível, se for atribuída ao órgão do estado que estiver mais bem aparelhado para estabelecer a melhor solução, a partir dos parâmetros construídos pela sua competência técnica e expertise, que finalmente vão determinar qual seja o conteúdo adequado. O conteúdo final daquilo que vai ser o justo, emanado do órgão que vai estabelecer a decisão ótima no caso concreto, vai depender desta análise fundamental. “Para Herzog, o controle da Administração pelos tribunais somente deve ir até onde se possa esperar da decisão judicial uma ‘qualidade material pelo menos igual’ à da decisão que se pretende corrigir”. (KRELL, 2004, p. 61). Daí se apresenta de maneira perfeitamente harmoniosa com esta teoria, a vinculação do ato administrativo à juridicidade e, principalmente, seu direcionamento pelos princípios constitucionais, inexistindo distinção entre ato vinculado e discricionário, bem como do dogma da insindicabilidade do mérito administrativo. Se em um caso concreto, o judiciário possuir condições de proferir a melhor decisão, esta será de sua competência. Deverá analisar todos os elementos do ato, que é um todo indivisível, e ainda, analisar se este é o mais razoável, mais adequado, mais eficiente, e se está de acordo com a moralidade e os demais princípios constitucionais, não havendo qualquer restrição à sua sindicabilidade. Se por outro lado, não dispuser de condições funcionais para dar uma decisão de qualidade material pelo menos igual a que seria tomada pelo administrador, deve se auto - limitar, deixando àquele a atribuição de tomar a decisão. É a partir da funcionalidade que se estabelece a densidade adequada, o controle e a determinação da discricionariedade. É o estabelecimento da tomada de decisão pela adequação do órgão, das suas condições de funcionalidade, que envolve a sua composição, legitimação e seu procedimento decisório, para que possa trabalhar determinado problema a fim de possibilitar decisões otimizadas na concretização da decisão mais justa (KRELL, 2004, p. 62). Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 103 Giuliano Cesar da Silva Tatagiba Qual é a legitimação de um juiz, cujo cargo não foi conferido pela vontade popular, para decidir sobre a vida de toda uma cidade, num caso de impacto ambiental decorrente da construção de um grande complexo industrial? Pode ele impedir as obras, para que a cidade permaneça totalmente despoluída, mas sem qualquer tipo de desenvolvimento econômico? A questão deve ser discutida pela funcionalidade dos poderes. A concepção de discricionariedade não se estabelece por uma noção de margem, por um determinado conteúdo que estaria expresso no próprio conceito, mas sim a partir da funcionalidade daquele órgão que possui a responsabilidade de dar o conteúdo no caso concreto. É pela função que se definiria a discricionariedade. Por outro lado, qual o conhecimento técnico do juiz para a tomada de decisão neste caso? Esta é uma atividade que compõe a sua rotina diária de decisão? A discricionariedade então, passa a ser discutida a partir da perspectiva de que, a sua ocorrência surge a partir do momento em que o judiciário não possa conferir uma decisão de qualidade material, pelo menos igual àquela que seria produzida pelo órgão técnico oriundo da ação do administrador. Se no direito contemporâneo se procura o justo no caso concreto, tem-se que verificar qual é o órgão que está melhor habilitado para chegar a esse nível de decisão. Se o judiciário não estiver perfeitamente habilitado a isso, deve se auto-restringir e a decisão do administrador público prevalecer. Assim, tem-se que, a partir desta nova perspectiva, nos casos em que funcionalmente o judiciário for o órgão mais adequado a oferecer a decisão mais justa para o caso concreto, deverá sindicar todos os elementos do ato administrativo, competência, objeto, forma, finalidade e motivo para verificar se são eficientes, adequados moralmente e se encontram dentro das linhas diretivas do Estado, segundo o padrão estabelecido pelos princípios constitucionais. A discussão não se encontra mais no ser, na busca do sentido etiológico da norma, e sim, a partir de uma pauta diretiva do Estado, na busca pela justiça social a partir de uma decisão que seja funcionalmente adequada. Contudo, pelo que se depreende das 104 Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 O sepultamento do mérito administrativo reflexões até aqui realizadas, o próprio conceito de discricionariedade, como margem de livre atuação da Administração externa ao próprio direito, perde sua consistência. Quando se estabelece que a decisão sobre o caso concreto deva ser atribuída ao órgão da Administração Pública, por oferecer a melhor solução, esta jamais poderá se desvincular da juridicidade. CONCLUSÃO Durante o decorrer da pesquisa que culminou com a produção deste trabalho evidenciou-se que grande parcela dos estudos realizados sobre as categorias, institutos e valores do direito administrativo, ainda carecem de uma discussão acadêmica adequada, uma vez que as suas reflexões quase sempre se originam de argumentos oriundos do senso comum e dissociada de uma visão sistêmica. A dinâmica atual do mundo moderno, que no iniciar deste século XXI, cada vez mais faz surgir situações de diferentes complexidades, cuja imprevisibilidade, vem a exigir respostas estatais que quase sempre não possibilita uma intervenção legislativa capaz de regulamentar este processo, vem a determinar uma atuação imediata da Administração. Esta situação fática inserida no contexto do Estado Democrático de Direito, onde o fundamento maior de construção de seu paradigma reside na proteção dos direitos fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana, em uma ordem mundial contemporânea em que as noções relativas a espaço, tempo e poder, demandam ações e interferências do Estado de forma imediata, não permitem que a vontade geral do povo se manifeste apenas pelas atividades do parlamento. De ordem prática e material, a existência da discricionariedade, compreendida como uma margem de liberdade concedida ao administrador para a realização do direito não mais existe. A necessidade de sobrevivência e desenvolvimento das sociedades de um mundo globalizado, caracterizado por um processo de constante evolução das ciências, que trazem à pauta de preocupações, a escassez dos recursos naturais, bem como a proteção e o exercício de atividades ligadas às novas tecnologias, como energia nuclear, biotecnologia, Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 105 Giuliano Cesar da Silva Tatagiba comunicações, etc., determinam uma intervenção pronta e imediata da Administração Pública que, no entanto, não pode estar dissocia da juridicidade informada pelas pautas diretivas de todo o ordenamento jurídico, em especial, dos princípios normativos constitucionais. A construção dos conteúdos dos conceitos jurídicos indeterminados encontrados nesta juridicidade, deve ter como perspectiva, o interesse público emanado do contexto constitucional, não por conta de sua tradicional noção de supremacia apriorística em relação aos interesses individuais ou da maximização dos interesses do maior número de indivíduos, mas sim, como resultado de um processo ponderativo de interesses fundamentais que porventura venham entrar em rota de colisão, que vise a promoção e preservação dos valores morais da dignidade da pessoa humana. A sindicabilidade das decisões da Administração Pública pelo Poder Judiciário, deve ser realizada de forma ampla e abrangente, a fim de se efetivar o concreto controle da necessária atividade voltada ao desenvolvimento social, onde sua auto-restrição deverá, tão somente, se estabelecer a partir da visão jurídico-funcional da densidade adequada de controle, nos casos em que não possa proferir uma decisão de qualidade material pelo menos igual àquela que seria ofertada pelo Administrador. No Estado Democrático de Direito, onde se busca a idéia do justo, não se pode, no caso concreto, dar predominância à opinião subjetiva de um juiz, se ele não está habilitado a dar a melhor decisão naquele caso concreto. Não é o juiz que deve decidir em última instância todas as questões, mesmo porque, trata-se de um sujeito limitado nas suas convicções concretas, não tendo capacidade para dar a melhor decisão em todos os casos que a realidade fática possa produzir. Este é o limite da atuação do poder judiciário, orientado pela sua capacidade em oferecer uma solução funcionalmente adequada. Essa teoria se reveste de uma profundidade maior que as anteriores, uma vez que a visão jurídico-funcional da densidade adequada de controle se molda às perspectivas da contemporaneidade da jurisdição constitucional, determinando que o judiciário apenas interfira nos atos da Administração Pública quando tiver capacidade funcional para tanto. 106 Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008 O sepultamento do mérito administrativo A construção do novo paradigma do direito administrativo, então se estabelece com a noção de que existe apenas um tipo de ato administrativo, plenamente vinculado à juridicidade e sindicável pelo Poder judiciário, que na realidade fática, deverá apreciar todos os seus elementos (competência, objeto, forma, finalidade e motivo). Deverá ainda verificar se este ato se consubstancia com as diretivas constitucionais e respeita os direitos fundamentais, proferindo uma decisão anulatória que poderá ensejar sua re-edição pela Administração, ou até mesmo uma decisão condenatória em determinados casos em que haja apenas uma única solução possível. No entanto, tal procedimento, apenas ocorrerá se o judiciário dispuser de condições funcionais de avaliá-lo de forma a concluir com uma qualidade material pelo menos igual a que foi realizada pelo administrador. Como se depreende de toda essa reflexão, o mérito administrativo faleceu há pelo menos 18 anos, restando apenas, aos ideários da pósmodernidade providenciar o seu sepultamento em definitivo na doutrina publicista brasileira. REFERÊNCIAS ADEODATO, João Maurício. Jurisdição constitucional à brasileira: situação e limites. 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