O sepultamento do mérito administrativo
O SEPULTAMENTO DO MÉRITO
ADMINISTRATIVO*1
Giuliano Cesar da Silva Tatagiba**2
RESUMO
A partir da reflexão sobre as concepções que funda entraram o
Direito Administrativo no seu surgimento com o Estado Liberal,
passando pelas estruturas estatais de bem-estar social até a realidade
pós-moderna brasileira no século XXI, constata-se a determinação
constitucional que estrutura o Estado Brasileiro em Democrático de
Direito com íntima relação a padrões éticos e morais decorrentes
da necessidade de efetivar concretamente os direitos fundamentais.
Nesta ordem, o mérito administrativo falece por falta de consistência,
pois o ato administrativo, não mais diferenciado em vinculado e
discricionário, por se submeter a toda juridicidade, tem como regra a
sua apreciação pelo Judiciário, desde que possa proferir uma decisão
de qualidade material pelo menos igual a que seria produzida pela
Administração.
Palavras-chave: Direito administrativo. Mérito administrativo. Ato
discricionário.
ABSTRACT
Upon reflection on concepts which motivated the Administrative
*
Artigo apresentado como trabalho de conclusão da disciplina Controle da Administração
Pública, ministrada pelo Prof. Dr. Maurício Jorge Pereira da Mota, no Curso de Mestrado
em Direito – Políticas Públicas e Processo – na Faculdade de Direito de Campos, em Campos do Goytacazes – RJ, em julho de 2006 e avaliado pelo próprio professor com nota 10.
** Capitão da Polícia Militar do Espírito Santo; mestre em Direito pela Faculdade de Direito
de Campos e especialista em Segurança Pública pela Faculdade de Direito de Vitória; exprofessor de Teoria Geral do Estado, Processo Penal e Direito Penal Econômico da FACASTELO/ES. Contato: [email protected].
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Law in his appearance with the Liberal State, through the state
structures of social welfare to the post-modern Brazilian reality in
the XXI century, there is a determination that constitutional structure
the State Brazilian democratic rule of law in close relationship with
the moral and ethical standards arising from the need to specifically
carry out fundamental rights. Accordingly, the merit administrative
dies for lack of consistency, because the administrative act, not more
differentiated in bound and discretion by entering into juridicidade
whole, is to rule their judgement by the judiciary, since that might
make a decision of quality material at least that would be produced
by the Administration
Key-words: Administrative law. Administrative merit. Discretional
act.
1
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
As reflexões que constituirão o estudo que aqui se inicia, não têm a
presunção de reinventar a roda ou propor uma revolução copernicana
no Direito Administrativo brasileiro, o que não quer dizer que seu
conteúdo seja destituído de valor.
O que se pretende é o desenvolvimento de uma lógica argumentativa
estruturada de forma a possibilitar ao seu leitor, mais um, dentre
muitos outros trabalhos que tem se desenvolvido no cenário jurídico
brasileiro nos últimos 18 anos, que buscam a árdua e difícil tarefa
de construir e solidificar uma ordem que sustente, de forma efetiva
e racionalizada, as reais necessidades do Estado Democrático de
Direito. Ressalte-se que todo esse movimento de construção de uma
nova ordem jurídica brasileira não é causa de nada, mas tão somente,
conseqüência de uma nova ordem de idéias, valores e princípios que
surgem a partir da segunda metade do século XX no mundo ocidental,
por conta das profundas reflexões que as sociedades necessitaram
realizar diante do fracasso do Estado Providência, cujo marco foi a
Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948.
Os horrores e as atrocidades da segunda guerra mundial determinaram
uma profunda reflexão sobre as bases teóricas que sustentavam o
modelo de Estado de então, fazendo com que fosse delineado no
âmbito internacional, um sistema normativo de proteção aos direitos
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humanos que projetou um constitucionalismo global protetivo dos
direitos fundamentais, inclusive com a possibilidade efetiva de
sanções e até de intervenção de outros Estados sobre aqueles que não
se alinhassem neste contexto.
Trata-se do movimento que condicionou a titularidade de direitos ao
único e exclusivo requisito da condição humana, não dependendo
de qualquer outro critério, visto que todo ser humano possui uma
dignidade que é atributo de sua própria essência (PIOVESAN, 2004,
p. 87). Na realidade, significou um retorno aos mesmos ideais que
inspiraram e promoveram o constitucionalismo do final do século
XVIII, que se propugnavam a limitar o poder do Estado e a preservar
direitos, com a diferença de que, os novos textos constitucionais
foram dotados de princípios abertos de elevada carga axiológica
(PIOVESAN, 2004, p. 88), em cujo núcleo comum reside a dignidade
da pessoa humana, passando a dirigir e conformar toda a ordem
jurídica, bem como fixar os parâmetros de atuação de todos os agentes
públicos e privados. Contudo, esse movimento, como qualquer outro
de feição histórica, não se instalou imediatamente nas sociedades
ocidentais, principalmente nos Estados periféricos, que necessitaram
aguardar momento oportuno para sua inserção, que no Brasil, ocorreu
a partir da Constituição de 1988, mesmo porque não possuía qualquer
compatibilidade com o regime militar ditatorial instalado em 1964.
A partir do processo de democratização do Brasil e o estabelecimento
de uma nova ordem constitucional, em cuja matriz se verifica
a positivação de diversos núcleos de direitos fundamentais,
inspirados pela reflexão funcional do direito enquanto instrumento
garantístico da dignidade da pessoa humana e, promotor de direitos
sociais, econômicos e culturais, inclusive abrangendo os interesses
coletivos e difusos, é que se percebe a sua inserção de fato nesse
contexto internacional. Portanto, é a partir deste movimento de
transformação do Estado e do Direito Constitucional, denominado de
Neoconstitucionalismo, é que será norteado este trabalho, de modo a
situar o contexto e as implicações no âmbito do direito administrativo.
Luís Roberto Barroso, no Prefácio da obra de Gustavo Binembojm
(2006, p. XI), discorre que:
[...] o fenômeno do Neoconstitucionalismo tem como marco filosófico
o pós-positivismo, como marco histórico, a formação do Estado
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constitucional de direito, após a 2ª Guerra Mundial, onde, no caso
brasileiro, ocorreu com a redemocratização institucionalizada pela
Constituição de 1988 e, como marco teórico, o conjunto de novas
percepções e de novas práticas, que incluem o reconhecimento de
força normativa à Constituição, a expansão da jurisdição constitucional
e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação
constitucional, envolvendo novas categorias, como os princípios, as
colisões de direitos fundamentais, a ponderação e a argumentação.
Para tanto, é de necessidade premente a desconstrução dos
paradigmas (KUHN, 2000) que fundamentaram a versão clássica de
cunho liberal de Estado de Direito e a conseqüente reconstrução de
outros, que consagrem a supremacia de uma Constituição normativa
e dirigente (OHLWEILER, 2004, p. 299).
Orientando-se pelo estudo desenvolvido por Gustavo Binenbojm
(2006, p. 25), tem-se que:
- A Constituição passa a ser o centro de vinculação administrativa
à juridicidade, e não mais a lei;
- o conceito de interesse público, integrante do sistema normativo
constitucional, não se encontra imune da necessária ponderação com
outros direitos fundamentais realizada pelo Juiz e não possui valor
hierárquico superior definido de forma apriorística e, muito menos,
pertencente ao livre arbítrio do administrador;
- a juridicidade administrativa substitui a dicotomia ato
discricionário e ato vinculado;
- a substituição do Executivo unitário para uma miríade de
autoridades administrativas autônomas.
Diante da vastidão e complexidade em que se verifica a
construção de cada um destes paradigmas, a partir da constatação da
inadequação dos anteriores à nova ordem constitucional estabelecida,
é que este trabalho buscará compreender apenas a forma pela qual se
desenvolveu o processo de elaboração teórica de vinculação do ato
administrativo à juridicidade, em oposição à concepção clássica de
dicotomia entre ato discricionário e ato vinculado, demonstrando
que o dogma da vedação da apreciação do mérito administrativo
pelo Poder Judiciário, além de não ter qualquer fundamentação
jurídica, não mais possui sustentação teórica, assim demonstrando
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o seu falecimento e a necessidade urgente de providenciar o seu
sepultamento de nossa cultura jurídica.
Insta considerar que, embora na atualidade exista uma
grande produção acadêmica no Brasil sobre a discricionariedade
administrativa e seu controle, ainda há uma acentuada divergência,
aonde os principais estudiosos do tema vêm formulando suas
concepções a partir de teorias importadas, principalmente da
Alemanha, como “conceitos jurídicos indeterminados”, “margem de
livre apreciação”, “redução de discricionariedade a zero”, etc., cuja
discussão sobre o assunto vem sempre se circunscrevendo entre os
pólos principiológicos do acesso irrestrito ao Poder Judiciário e da
Autonomia da Administração Pública no exercício de sua função
constitucional. (KRELL, 2004, p. 34).
No entanto, partilhando-se da mesma visão de Adeodato
(2004, p. 179), não se deve deixar iludir que todo esse movimento
neoconstitucionalista, cuja dignidade da pessoa humana tornase ponto central de toda a discussão jurídica e, a juridicização
constitucional, com a concretização da constituição por intermédio do
Poder Judiciário, será a panacéia responsável pela solução dos graves
problemas estruturais do Estado brasileiro e do desenvolvimento
social, pois isso, somente o exercício democrático tem capacidade
para resolver.
A constituição canaliza e viabiliza a democracia, mas se se espera que
ela, unicamente por suas normas, possa substituir, apenas a título de
exemplo, o tratamento político dos problemas políticos e o cuidado
econômico das questões econômicas por imperativos constitucionais
cogentes que dispensem o jogo democrático e a condução concreta
de políticas econômicas e sociais, terminar-se-á por pagar o preço do
incremento da desestima constitucional a corroer todo o seu potencial
força normativa e a gerar a ineficácia de suas normas, produzindo, na
prática, efeitos opostos aos almejados. Como mostra Habermas (Era
das transições, p. 167), relaciona-se com o tempo também na dimensão
do futuro, isto é, de sua realização. O desgaste do paradigma do Estado
de Bem-Estar nos mostra os limites do direito, o limite das normas, não
são capazes, de, por si, realizar o que quer que seja. (BAHIA, 2004, p.
313).
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2
A
EVOLUÇÃO
HISTÓRICA
ADMINISTRATIVO
DO
DIREITO
Toda a discussão que se empreenderá neste trabalho estará
circunscrita na reconstrução do arcabouço teórico e jurídico do
direito administrativo brasileiro, para que se possa conformá-lo aos
fundamentos do paradigma em que se assenta o Estado Democrático
de Direito instituído pela Constituição de 1988.
Assim como diversos juristas têm procedido, e à guisa da
advertência realizada por Gustavo Binenbojm (2006), a essência da
noção de paradigma que será apresentada neste trabalho, é a decorrente
da célebre obra de Thomas S. Kuhn, A estrutura das revoluções
científicas. Embora o autor não tenha se baseado nas Ciências Sociais
para o desenvolvimento de sua pesquisa e nem mesmo referenciado
sobre a sua aplicação nesta seara, o que não possibilita a utilização
de seu conceito de forma confortável, constituir-se-á de parâmetro
semântico norteador para a demonstração de que, o processo de
substituição de paradigmas, decorre da insustentabilidade teórica
dos fundamentos de determinados conceitos conformadores de todo
o direito administrativo, bem como da necessidade de construção de
outros, possuam a legitimidade necessária no meio acadêmico para a
estabilização da ciência normal.
Neste aspecto, valiosa é a contribuição de Habermas, que a partir
da consideração da historicidade e descontinuidade do conhecimento
científico, pela alteração de paradigmas, encerram que as diferentes
conformações que as ordens jurídicas possuem não são determinadas
apenas pela forma com que os direitos fundamentais foram
consagrados, pois também refletem paradigmas jurídicos distintos. É
por este motivo que os princípios norteadores do Estado de Direito e
dos Direitos fundamentais, é que irão determinar o conteúdo destes
paradigmas em sua respectiva comunidade jurídica. (BAHIA, 2004,
p. 302).
Relevante também é a concepção de paradigma trazida por
Geraldo Prado (2005, p. 13), e pela qual se constituirá o propósito deste
trabalho, ao considerar que a sua crise não significa a descontinuidade
do conhecimento até então apreendido pelo grupo social, mas sim
de uma nova compreensão conformada aos valores que emergem
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da transformação que se opera. Corroborando com seu pensamento,
introduz o que discorre Darcy Ribeiro:
[...] ao contrário da natureza, que evolui por mutação genética, a cultura
– em cujo campo está inserido o Direito – segue evoluindo por adições
de corpos de significado e de normas de ação difundidos por meio da
aprendizagem, de sorte a redefinir-se permanentemente, compondo
configurações cada vez mais inclusivas e uniformes. (RIBEIRO, 1998
apud PRADO, 2005, p 13)
Neste sentido, torna-se necessária a compreensão dos paradigmas
que construíram o direito administrativo no decorrer do processo
histórico da modernidade, que se iniciam a partir das transformações
oriundas dos séculos XVIII e XIX no mundo ocidental, tendo-se como
marco histórico os ideais de igualdade, liberdade e propriedade da
Revolução francesa, que culminou com a formação do Estado Liberal:
en el modelo liberal burguês que impusieron los relucionarios de 1789
estaban los principios y, por tanto, el germen de lo que hoy llamamos
Derecho Administrativo, aunque no, logicamente, el Derecho
Administrativo entera y cabalmente construido. (OHLWEILER, 2004,
p. 308).
Diante da significativa modificação social, impulsionada pela
revolução industrial que reordenou toda a estrutura econômica
e política, faz com que a burguesia, a grande responsável por este
fenômeno, buscasse mecanismos que possibilitassem atender a esta
nova realidade. Conforme descreve Bahia (2004, p. 303-351), é a partir
deste contexto que se forma o paradigma do Estado Liberal, que cria
a noção de indivíduo e do Estado de Direito, que deve se envolver
apenas nas funções públicas essenciais. A noção de indivíduo vem
conferir à burguesia, a liberdade necessária para agir de acordo
com as suas convicções. O reconhecimento de sua condição de ser
igual a todos os outros de sua espécie, podo fim aos privilégios de
nascimento, possibilita agir conforme os seus interesses e adquirir a
propriedade decorrente de seu esforço, o que, no regime precedente,
lhe era inacessível, uma vez que a propriedade era privilégio do
Estado (o monarca), da nobreza e do clero.
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Para que a intervenção do Estado, apenas nas funções públicas
essenciais fosse concretizada, necessitava-se que o poder do soberano
fosse limitado. Assim retira-se o poder de legislar do Executivo, onde
a vontade do soberano é substituída pela vontade do povo, cabendo
ao Judiciário dirimir os conflitos decorrentes. É o estabelecimento do
paradigma da separação dos Poderes, a partir da clássica concepção
idealizada por Locke e Montesquieu, significando muito mais do
que a limitação do Poder Executivo. Significou a formulação de
um ordenamento jurídico que garantisse os direitos conquistados
pela burguesia, que não restringisse sua liberdade e a aquisição da
propriedade, mas, sobretudo, que ainda lhe subordinasse o governante.
É a construção do paradigma do Estado de Direito, cuja produção
legislativa, agora atribuída ao Parlamento, legitimava-se pela sua
caracterização como expressão da vontade popular, podendo não só
limitar, como também preordenar e vincular as funções dos Poderes.
Significou ainda a vinculação das decisões do Poder Judiciário à lei,
principalmente pela cautela em se confiar em uma estrutura que há
tanto serviu a nobreza, relegando a atividade interpretativa à lógica
da subsunção e vedando qualquer possibilidade de interpretação que
não se baseasse em casos de incontestável obscuridade legislativa.
Para tanto, ensejou na positivação absoluta de todo o conteúdo do
direito natural para poder ordenar plenamente a sociedade, o que
só foi possível com o auxílio da razão absoluta, cujo ápice se deu
no positivismo jurídico, que trouxe à ciência jurídica o método
desenvolvido nas ciências naturais, negando qualquer fundamento
metafísico ao Direito. O grande desafio do Estado de Direito residia
na busca pela conciliação entre o princípio da legalidade e da
liberdade decisória da Administração Pública, que deveria ter suas
ações regulamentadas pelo Legislativo e controladas pelo Judiciário.
A discricionariedade, resquício do arbítrio do soberano, não possuía
assento teórico, então devendo ser eliminada (KRELL, 2004, p. 35).
Contudo, como se depreende da lição de Binenbojm (2006, p. 1217), a construção teórica e acadêmica que reporta a gênese do direito
administrativo ao advento do Estado de direito e ao princípio da separação de poderes na França pós-revolucionária, denota um grande
equívoco que perpassou pelas gerações subseqüentes, por conta de
uma reflexão sempre acrítica, pois as categorias peculiares e características do direito administrativo (supremacia do interesse público,
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prerrogativas da administração, discricionariedade, insindicabilidade do mérito administrativo, entre outras), nada mais eram a reprodução das práticas administrativas do ancien regime, que agora servia
de instrumento aos novos detentores do Poder.
A concepção de legalidade, como vinculação positiva à
lei, conferindo aos particulares a autonomia de fazer o que não
fosse proibido, e à Administração Pública, de agir conforme a lei
determinasse ou facultasse, decorrente da vontade emanada da
legitimação política do legislador, é simplesmente falsa. Serviu
apenas como discurso para a manutenção da administração pública
fora do alcance do controle dos cidadãos, alargar sua esfera de
decisão e se imunizar do controle judicial, devido à desconfiança dos
revolucionários franceses em relação aos juízes hostis à revolução.
Assim demonstra-se que a atribuição de legislar, no nascedouro
do Direito Administrativo, conferida a um órgão de jurisdição
administrativa próprio do Executivo, não se revestia de nenhuma
característica garantista, pelo contrário, seu intuito era o de diminuir
as garantias que eventualmente o indivíduo teria se submetesse
a Administração a um juízo imparcial e independente, aliás “em
nada se pode esperar de uma Administração Pública que edita suas
próprias normas jurídicas e julga soberanamente seus litígios com os
administrados”. (BINEBOJM, 2006, p. 12).
Toda a construção, dos princípios gerais, e das regras jurídicas
do direito administrativo, foi produzida pelo Conseil d’Ètat, que
postulavam soluções muito diversas daquelas em que, naturalmente,
seriam efetivadas pela aplicação subsuntiva do direito civil,
demonstrando uma postura totalmente insubmissa à legislação
produzida pelo Parlamento:
[...] a idéia clássica de que a Revolução Francesa comportou a
instauração do princípio da legalidade administrativa, tornando o
Executivo subordinado à vontade do Parlamento expressa através da
lei, assenta num mito repetido por sucessivas gerações: a criação do
direito administrativo pelo Conseil d’Ètat, passando a Administração
Pública a pautar-se por normas diferentes daquelas que regulavam
a actividade jurídico-privada, não foi um produto da vontade da lei,
antes se configura como uma intervenção decisória autovinculativa do
Executivo sob proposta do Conseil d’Étát”.(OTERO, apud BINEBOJM,
2006, p. 12).
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Neste sentido, observa-se que, a máxima da submissão do súdito
ao soberano, tão condenada pelos ideais da Revolução Francesa,
cuja existência impedia a efetivação plena do princípio da isonomia,
mascara-se no paradigma do Estado Liberal de Direito, como princípio
da Supremacia do Interesse Público, que auxiliado pelos dogmas das
prerrogativas da Administração Pública, da discricionariedade e da
insindicabilidade, ainda toma para si, a competência para decidir,
em caráter definitivo, os litígios com seus administrados em proveito
próprio. Ainda fiel ao estudo de Binembojm, cumpre salientar que
a perspectiva da revisão histórica adotada, da dinâmica em que
desenvolveu o direito administrativo europeu continental, não tem
o objetivo de confirmar a concepção histórica marxista ou de uma
teoria da conspiração, formulada deliberadamente pelos detentores
do poder. O que se pretende é apresentar, através de um discurso
lógico e racional, uma crítica consistente à visão desfocada que foi
responsável pela construção das origens do direito administrativo, e
que ainda neste início de século XXI se encontra difundida nos meios
acadêmicos e demonstrar que o seu devir histórico consiste em “uma
sucessão de impulsos contraditórios, produto da tensão dialética
entre a lógica da autoridade e a lógica da liberdade”. (BINEBOJM,
2006, p. 18).
Confirma-se tal assertiva, a oposição entre a adoção de mecanismos
de controle das atividades da administração pelos cidadãos, bem
caracterizando uma noção garantística, e as estratégias de fuga à
rigidez das formas e das restrições legais à liberdade de decisão do
administrador, refletindo o “caráter ambíguo em inúmeros dos seus
institutos e na fragilidade de sua estrutura teórica” (BINEBOJM, 2006,
p. 18). Binembojm (2006), recorrendo a Mártim-Recortilho, credita à
constante fuga do direito administrativo ao direito constitucional,
a mais paradoxal contradição de sua trajetória histórica, no que a
explica pela descontinuidade das Constituições e pela necessidade
de continuidade da burocracia, o que determinava a formulação de
princípios, categorias, institutos e regras próprias, assim o mantendo
alheio às mutações constitucionais, o que, na realidade, vem significar
a sua alienação aos princípios norteados e legitimados politicamente
em dado momento histórico. Não se quer dizer que não houve o
estabelecimento de uma gama de funções e objetivos previstos nas
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Constituições, principalmente na passagem para o Estado Social, o
que era ignorado no Estado Liberal, pois diante do novo contexto
em que se via a sociedade, a Administração Pública deixa de ser
considerada uma ameaça à liberdade individual para transformar-se
em instrumento para efetivação dos direitos sociais (OHLWEILER,
2004, p. 311).
Este foi o reflexo das profundas desigualdades sociais e
econômicas geradas pelo Estado Liberal que, além de uma exploração
sem limites da classe trabalhadora, que se rebela em constantes
revoltas, demonstra que a simples previsão legislativa da igualdade,
da liberdade e do acesso à propriedade não eram suficientes para sua
efetivação. A revolução Russa, a difusão de seus ideais através das
Internacionais Socialistas e as conseqüências políticas e econômicas
do final da 1ª Guerra Mundial, faz com que o paradigma do Estado
Liberal fosse substituído pelo do Estado Social, que agora deveria
intervir nas mais diversas áreas sociais para poder materializar os
direitos então proclamados. Para a atuação do Estado de Bem Estar
Social, uma vasta edição legislativa foi necessária para a regulação
de toda esta nova ordem, inclusive com a ampliação do conteúdo
das constituições, através da utilização de normas programáticas,
de garantias de efetivação dos direitos, dos denominados direitos
de segunda geração e de processos de controle da atividade
legislativa para a sua proteção, bem como das inúmeras legislações
infraconstitucionais (BAHIA, 2004, p. 308).
Contudo, mesmo com o exercício desta atividade de promoção de
bem-estar, permanece intacta a formulação teórica dos institutos do
Direito Administrativo, mantendo seus atos alheios à normatividade
constitucional e do controle judicial, onde o discurso de sua autonomia
científica contribuiu para o seu distanciamento da juridicidade
(BINEBOJM, 2006, p. 19).
Diante do fracasso do Estado de Bem-Estar Social e das
conseqüentes promessas da modernidade (BAHIA 2004, p. 313),
uma profunda reflexão se instala a partir da 2ª Guerra Mundial por
conta dos horrores nunca vistos e pela possibilidade concreta da
humanidade, pela primeira vez em toda a sua existência, se deparar
com a possibilidade real de se auto-dizimar pela tecnologia nuclear.
Como conseqüência imediata deste contexto, tem-se a emergência
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do Direito Internacional dos Direitos Humanos com a Declaração
Universal dos Direitos Humanos editada pela ONU em 1948 e de
uma nova concepção do direito constitucional no mundo ocidental
que, fundado na dignidade da pessoa humana, adquire conformação
globalizada (PIOVESAN, 2004, p. 88).
Talvez a mais irônica das conclusões que se tenha chegado ao
processo reflexivo sobre as conseqüências dantescas da 2ª Guerra
Mundial, tenha sido a constatação, durante o julgamento dos
principais acusados nazistas pelo Tribunal de Nuremberg, de todos
terem invocado o fiel cumprimento da lei e obediência às ordens
emanadas da autoridade competente (PIOVESAN, 2004, p. 88).
Assim opera-se uma grande crítica ao positivismo jurídico
indiferente à ética e à moral e propicia o estabelecimento do princípio
da dignidade da pessoa humana como fundamento basilar da nova
ordem que se instaura, bem como, modifica os conceitos tradicionais
de democracia, a partir da instituição do controle da regra da maioria
no espaço intocável dos direitos fundamentais e reserva à nova
concepção constitucional a função de garantir não só as formas, mas,
sobretudo, “os conteúdos da democracia política, social e cultural”.
(PRADO, 2005, p. 87).
Saliente-se também que paralelamente a esse movimento
reaproximação da ética e da moral ao direito, que, aliás, devem
integrar tanto o núcleo do texto quanto expressar o resultado de
sua interpretação, outro aspecto relevante a ser considerado é o da
inflação legislativa que se instaurou no Estado de Bem-Estar Social,
para regular as relações econômicas e privadas. Vê-se neste período,
o surgimento de vários micro-sistemas normativos, que por conter
valores e objetivos diversos daqueles que inspiraram o Estado Liberal,
acarretou um processo de descodificação, o que ainda culminou na
desvalorização da lei (BINEBOJM, 2006, p. 62), no que muitos autores
denominam como crise da legalidade. Tem-se a partir deste contexto
histórico, a instauração de um novo paradigma no sistema jurídico
romano-germânico, que substitui o “legicentrismo” (BINEBOJM,
2006, p. 62), que considerava a lei como a emanação da vontade
geral do povo e que tinha no Código Civil, o centro do ordenamento
jurídico, pela jurisdição constitucional, que tem no super-princípio
da dignidade da pessoa humana, ponto de partida e chegada da
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interpretação constitucional, cuja intangibilidade ética possui a tarefa
de inspirar o Direito (PIOVESAN, 2004, p. 92).
Canotilho (2000, p. 84), citado por Flávia Piovesan (2004, p. 92),
neste sentido, discorre que “o direito do Estado de Direito do século
XIX e da primeira metade do século XX é o direito das regras dos
códigos; o direito do Estado Constitucional Democrático e de Direito
leva a sério os princípios, é um direito de princípios”.
A necessidade de se compreender a construção do direito
administrativo no período pós-revolucionário francês, e seu respectivo
devir histórico, decorre do fato de que tenha sido esta a estrutura
jurídica inspiradora da que foi implementada no ordenamento
brasileiro (OHLWEILER, 2004, p. 310).
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O SEPULTAMENTO DO MÉRITO ADMINISTRATIVO
Como visto, a partir da segunda metade do século XX, a
comunidade internacional se depara com a necessidade de realizar
profundas reflexões na estrutura conceitual do modelo de Estado e
das conseqüentes relações sociais. Da crise da legalidade, motivada
pela inflação legislativa que se propugnava alcançar o bem-estar da
coletividade, através da positivação máxima das interações sociais,
a partir da perspectiva de uma dogmática jurídica dissociada da
ética e da moral, à constatação de que o almejado alcance global
da modernidade, atingindo os limites mais longínquos do planeta,
inclusive eliminando divisão entre centro e periferia (BAUMAN,
2005, p. 89), frustra-se diante da realidade de não ter se traduzido,
efetivamente, em mecanismos promotores da felicidade humana,
constituindo em exemplos marcantes da crise de identidade que se
opera no âmago do atual contexto histórico da humanidade. Assim
é que se observa o redesenhar de uma nova arquitetura mundial de
relações entre nações que, necessariamente, deve perpassar também
por uma reengenharia interna, que deve modificar o quadro de suas
interações de forma tão incisiva, que não se contenta em apenas
corrigir falhas, mas, sobretudo, de se reformular os paradigmas
existentes.
Uma das conclusões mais contundentes sobre todas estas
reflexões é a constatação de que, a reconstrução destes paradigmas,
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deve significar o resgate da compreensão dos valores éticos e morais
que envolvem as relações sociais, determinando assim, que o Direito,
enquanto instrumento ordenador e conformador desta nova ordem
de coisas, também realize esta operação etiológica. De igual modo, a
constatação de que dignidade da pessoa humana é o valor de maior
expressão a ser considerado, desperta o sentimento/necessidade
global de centralizá-lo como fundamento, premissa, objetivo e
finalidade a orientar este novo conceito Estado a ser construído.
3.1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO NÚCLEO
NORMATIVO E DIRETIVO DA JURIDICIDADE NO
PARADIGMA CONSTITUCIONAL
A forma com a qual se possibilitou empreender o status de maior
valor jurídico a ser considerado, à dignidade da pessoa humana, foi a
sua inserção como núcleo constitucional fundamental em todas as suas
disposições. Até o fim da primeira metade do século XX, o conceito
até então de Constituição não possibilitava tal empreendimento.
Para tanto, uma nova concepção foi estruturada, que bem pode ser
esclarecida por Jackman (PIOVESAN, 2004, p. 89), onde discorre que
seu sentido ultrapassa a consideração de um simples documento
legal, sendo “um documento com intenso valor simbólico e ideológico
– refletindo tanto o que nós somos enquanto sociedade, como o que
nós queremos ser”.
Em breve estudo à obra de Konrad Hesse (1991, p. 24), constatase que, inquestionavelmente, a Constituição é a verdadeira força viva
capaz de proteger a vida do Estado contra as desmedidas investidas
do arbítrio. Para tanto, deve expressar a realidade política e social
de seu tempo, à qual também ordena e conforma por conta de seu
elemento normativo, convertido em força ativa dependente de sua
própria vontade, da vontade da constituição (Wille zur Verfasssung). A
efetividade desta força será tanto maior quanto maior for a convicção
sobre a sua inviolabilidade.
As normas integrantes do texto da Constituição brasileira de
1988, cuja rigidez para a sua modificação também impõe, formam um
complexo sistema normativo de mesma natureza e condicionamento
recíproco e sem qualquer valoração hierárquica, pois todas são
dotadas de eficácia, cujas distinções existentes referem-se somente aos
86
Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008
O sepultamento do mérito administrativo
efeitos jurídicos que cada uma visa produzir (SOUZA, 2005, p. 10). O
desenvolvimento da Teoria de interpretação conforme a Constituição
é a conseqüência imediata dos fundamentos do Estado Democrático
de Direito construído com a Constituição de 1988, que promoveu a
constitucionalização dos princípios e preceitos básicos de todos os
assuntos de importância jurídica, política e cultural. Vê-se claramente
a elevação do status político do Poder judiciário, especialmente do STF
pelo atributo de guardião da Constituição, que tem por fim “obter a
probidade e efetividade da Administração Pública e integral respeito
aos Direitos Fundamentais”. (MORAES, 2004, p. 99).
Todas as questões apreciadas pelo Poder Judiciário passam a
ser analisadas pela ótica constitucional, inclusive as políticas e as
administrativas, fazendo com que a política do Estado brasileiro sejam
conduzidas pelo direito Constitucional, o que determina não só a
aplicação de métodos interpretativos constitucionais, como também,
dos efeitos do controle de constitucionalidade. É a instituição do
paradigma Constitucional, necessário ao desenvolvimento do Estado
democrático de Direito, estabelecido fundamentalmente sobre os
pilares dos Direitos fundamentais do homem, cuja eficácia concreta
apenas se estabelece com sua total observância e inviolabilidade
(MORAES, 2004, p. 99).
Diante desta perspectiva, o estudo sobre qualquer instituto
jurídico deve ser realizado e interpretado de acordo com a Constituição,
sob pena de ver a sociedade subjugada ao arbítrio e ao autoritarismo.
A interpretação jurídica (MORAES, 2004, p. 99) encontrada na
Hermenêutica, que “na área jurídica tem por finalidade o estudo, a
definição e a sistematização dos métodos aplicáveis para determinar
o sentido das expressões contidas nas normas jurídicas”, deve buscar
o sentido normativo do texto para aplicá-lo em um caso concreto,
a partir da identificação do significado mais exato. A interpretação
constitucional possui um caráter especial decorrente da supremacia
da Constituição e do seu papel político dentro do ordenamento
jurídico, o que lhe confere princípios, especificidades e complexidades
próprias. Assim decorre o princípio de que as regras que concedem
direitos não comportam interpretação restritiva, pois o interprete não
está autorizado a restringir o alcance de dispositivos constitucionais.
Necessita-se que o aplicador do direito, primeiramente, investigue o
Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008
87
Giuliano Cesar da Silva Tatagiba
que realmente disse o legislador constituinte, pois a lei ordinária deve
ser interpretada conforme a Constituição, e não o contrário. Ubi lex
non distinguit nec nos distinguere debemus (onde a lei não distingue, não
pode o interprete distinguir) (RANGEL, 2005, p. 2).
Saliente-se que a interpretação resultante do sistema
constitucional deve ter por fim atingir o princípio da unidade
da Constituição em detrimento da interpretação orientada pela
literalidade de seus textos, para que realmente confirme o seu status
de marco jurídico da transição democrática e da institucionalização
dos direitos e garantias fundamentais. No entanto, nestas quase duas
décadas de vigência de novo sistema constitucional, ainda se percebe
uma grande dificuldade nos operadores do direito em se lidar com a
amplitude e o alcance da jurisdição constitucional e, principalmente,
da sua jurisprudencialização, a partir da sua função que lhe emprega
o Estado Democrático de Direito, em efetivar e consolidar os
direitos fundamentais. Deste modo, impera que a compreensão do
paradigma do Estado Democrático de Direito se concretize diante
deste “estado de incertezas diante da dicotomia verificada entre o
estático discurso sustentado pela doutrina e a vertiginosa velocidade
com que se transformam as relações sociais no mundo pós-moderno”.
(TRINDADE, 2004, p. 11).
3.2 A BASE TEÓRICA DO DIREITO ADMINISTRATIVO
BRASILEIRO: UM PARADIGMA EM CRISE
A busca por uma construção jurídica que se amolde ao contexto
social e possibilite ao Direito exercer seu papel de realização da justiça,
impõe que se compreendam as bases com as quais a estrutura vigente
se estabelece e a indicação dos seus principais pontos de conflito,
para que se possa realizar sua reformulação teórica e a conseqüente
reconstrução de seus institutos. No Brasil, a construção das categorias,
princípios e valores do direito administrativo, tem nas obras de Hely
Lopes Meirelles uma contribuição cuja relevância determina que se
faça a reconstituição de seus institutos a partir de seus ensinamentos.
A nosso ver, a interpretação do Direito Administrativo, além da
utilização analógica das regras do Direito Privado que lhe forem
aplicáveis, há de considerar, necessariamente, esses três pressupostos:
88
Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008
O sepultamento do mérito administrativo
1º) a desigualdade jurídica entre a Administração e os administrados;
2º) a presunção de legitimidade dos atos da Administração; 3º) a
necessidade de poderes discricionários para a Administração atender
ao interesse público. (MEIRELLES, 1995, p. 39).
Os princípios informadores do Direito Administrativo têm
no Direito Civil sua fonte imediata e a relação mais intensa, que
determina, inclusive, a sua interpretação.
Afora estas regras privativas do Direito Público, admite-se a utilização
dos métodos interpretativos do Direito Civil (LICC, arts. 1º ao 6º), que
é a lei de todos, quando estabelece princípios gerais para aplicação
do Direito. Os princípios do Direito Civil são traslados para o Direito
Administrativo por via analógica, ou seja, por força de compreensão, e
não por extensão. (MEIRELLES, 1995, p. 40).
Este é o paradigma em que se funda o direito administrativo
brasileiro, cuja estrutura se alicerça na primazia do Princípio da
supremacia do Interesse Público sobre os interesses dos indivíduos
que, aprioristicamente, sobrepõe o suposto interesse coletivo da
administração sobre os particulares. Desta desigualdade, resultariam
privilégios e prerrogativas para o Poder Público que jamais poderiam
ser desconsiderados pelo intérprete, por conta de sua finalidade em
assegurar o bem comum. Neste sentido, as leis administrativas devem
assegurar a supremacia do Poder Público sobre os indivíduos, a fim de
atingir os fins da administração. Portanto, por seu caráter especial em
relação à lei civil, enquanto é lícito aos particulares agirem enquanto
não houvesse vedação legal, à administração só é possível agir
conforme e nos limites da lei. Esta construção é decorrente da clássica
divisão de Poderes instituída por ocasião da formação do Estado
Liberal, onde a cada um dos Poderes compete uma função, cujos atos
diferenciariam em natureza, conteúdo e forma. “Temos, assim, na
atividade pública geral, três categorias de atos inconfundíveis entre si:
atos legislativos, atos judiciais e atos administrativos”. (MEIRELLES,
1995, p. 132).
Para o exercício de suas atividades, os atos emanados
da administração devem possuir presunção de legitimidade,
dispensando-a da prova de sua constituição, e de poderes
Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008
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Giuliano Cesar da Silva Tatagiba
discricionários, assim entendidos como uma margem decisória
conferida ao administrador público para a prática de seus atos, que
tão somente se limitam pelo interesse público.
O conceito de ato administrativo é construído com a mesma
fundamentação de ato jurídico estabelecido pela Lei Civil, sendo
deste diferenciado com a integração da finalidade pública, sendo
considerado como “toda manifestação unilateral de vontade da
administração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por
fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir
e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si
própria”. (MEIRELLES, 1995, p. 133).
A respeito do ato administrativo típico, dentre as principais
classificações, aqui se reveste de importância a que distingue ato
administrativo vinculado e ato discricionário. Ato administrativo
vinculado é aquele em que a lei estabelece os requisitos e condições
para a sua realização, não oferecendo qualquer margem de
liberdade para o administrador em sua realização. A inobservância
dos pressupostos estabelecidos pela norma legal para a validade
da atividade administrativa compromete sua eficácia, tornando-o
passível de anulação, tanto pela própria administração quanto
pelo judiciário, se reclamado pelo interessado. Ato administrativo
discricionário é aquele em que o administrador pode praticá-lo com
liberdade de escolha de seu conteúdo e destinatário, de acordo com
seu juízo de conveniência, oportunidade e modo de realização para a
efetivação do interesse público. Seu fundamento e justificativa residem
na complexidade e diversidade de problemas a serem resolvidos pelo
poder público nos quais seria impossível a sua previsão legislativa
(MEIRELLES, 1995, p. 150).
Para que o ato administrativo, tanto vinculado quanto
discricionário, possua validade e eficácia, sua constituição vem a
decorrer da existência necessária de cinco requisitos: competência,
finalidade, forma, motivo e objeto. A competência decorre do poder
atribuído legalmente ao agente da administração, com a função
específica para o desempenho de determinado ato. A finalidade
decorre do interesse público a atingir. A forma é o revestimento
material do ato. O motivo ou causa é a situação de direito ou de fato
que autoriza a realização de determinado ato. O objeto se identifica
90
Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008
O sepultamento do mérito administrativo
com o próprio conteúdo do ato pelo qual a Administração manifesta
sua vontade ou atesta situações pré-existentes (MEIRELLES, 1995, p.
134).
Diante destes requisitos, todo ato administrativo tem sua
competência, finalidade e forma pré-estabelecida pela lei, enquanto
que seu motivo e objeto estarão ou não vinculados a critério do
legislador. Neste sentido, toda vez que a lei estabelecer o motivo e o
objeto do ato administrativo a ser realizado, o administrador estará
vinculado em sua realização, caso contrário, sua decisão estará livre
para escolher, a partir dos juízos de conveniência e oportunidade, a
solução mais adequada para o alcance do interesse público.
Outro conceito que, em decorrência das proposições dispostas
acima, possui relevância destacada, é o de mérito administrativo
(MEIRELLES, 1995, p. 137), cuja denominação é dada à decisão
tomada pela administração pública em decorrência de um ato
discricionário pautado no juízo de conveniência e oportunidade na
valoração dos motivos e na escolha do seu objeto. Recorrendo a Seabra
Fagundes, Hely Lopes Meirelles (1995, p. 138) discorre que o mérito
administrativo é um fenômeno decorrente dos atos administrativos
praticados no exercício da competência discricionária, uma vez que
os atos vinculados não permitem que o administrador faça qualquer
opção, mas tão somente, verifique os pressupostos de direito e
de fato que condicionam a decisão a ser tomada, resumindo-se no
atendimento das imposições legais, até confundindo a conduta do
administrador com a do juiz na função de aplicar a Lei. Desta forma,
todas as vezes que um ato administrativo a ser executado possuir, além
dos elementos que sempre serão vinculados (competência, finalidade
e forma), outros que permitem à administração decidir livremente
(motivo e objeto), a sua decisão não ensejará qualquer possibilidade
de correção judicial, a não ser que o seu proceder caracterize excesso
ou desvio de poder. Assim é que se tem a construção do paradigma
da insindicabilidade do mérito administrativo pelo judiciário.
3.3 O DIREITO ADMINISTRATIVO E O ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO: UM NOVO PARADIGMA
A SE CONSOLIDAR
Como visto, a construção teórica do direito administrativo
Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008
91
Giuliano Cesar da Silva Tatagiba
brasileiro se reporta às contradições da lógica da autoridade e da
liberdade que o acompanharam desde seu surgimento com o Estado
Liberal no Século XIX. Do mesmo modo, o princípio da supremacia do
interesse público (BINEBOJM, 2006, p. 86), ainda sendo caracterizado
como pedra angular do regime jurídico administrativo, se reafirma em
nove entre dez manuais de direito administrativo publicados no Brasil.
Conseqüência imediata é ainda a manutenção de conceitos como o de
mérito administrativo e a distinção entre ato vinculado e discricionário.
No entanto, o novo contexto social, que tanto é conformador quanto
é conformado pela Constituição de 1988, determina uma ruptura com
este estado de coisas e a reconstrução de uma nova ordem jurídica
administrativa assentada em percepções inteiramente diversas. É a
partir dessa realidade que se depreende uma nova leitura dos
valores, institutos e categorias do direito administrativo, o que
permite antecipar a conclusão, por mais chocante que possa
parecer aos assíduos estudiosos tradicionalistas do direito
administrativo, as noções de mérito administrativo, bem como
a distinção entre ato vinculado e discricionário, faleceram de
consistência, e neste momento, resta-se apenas difundir esta
notícia na doutrina, para que se possa em definitivo, sepultá-los na
ordem jurídica brasileira.
A clássica divisão de Poderes concebida por Montesquieu, como
visto, não atende ao atual estágio de desenvolvimento da sociedade,
onde a realidade fática corrente mostra o legislativo processando
e julgando o executivo legislando e judiciário impondo políticas
públicas. Nesse sentido, é que se atendo à discussão sobre as nuances
que envolvem o mérito administrativo, a partir da construção de
um novo arcabouço teórico da discricionariedade é que se pretende
contribuir para o assentamento de um novo paradigma para o direito
administrativo. Toda a discussão que irá se estabelecer deste ponto
em diante, terá como perspectiva a evolução da construção teórica
que busca delimitar os limites da atuação de cada Poder dentro do
paradigma do Estado Democrático de Direito e, principalmente,
para a discricionariedade administrativa, uma vez que não existe um
limite jurídico para o controle judicial da discricionariedade (KREEL,
2004, p. 44), o que até então era, concebido como dogma intocável.
Aliás, a regra fundamental, prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição
92
Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008
O sepultamento do mérito administrativo
de 1988, é a da inafastabilidade de apreciação pelo Poder Judiciário
de qualquer lesão ou ameaça de direito. Por outro lado, também não
se pode deixar de considerar, que a administração pública, por conta
de sua destinação constitucional, necessita de autonomia e liberdade
necessária para o pleno exercício de suas atribuições. Não se quer
dizer que o administrador público não tenha liberdade de ação a
fim de promover o bem da coletividade, o que na realidade, também
decorre de um mandamento constitucional: a separação dos poderes.
“No Estado moderno seria inviável imaginar uma Administração
desprovida de uma margem de decisão independente, sendo um
importante valor um Estado de Direito possuir um Administração
autônoma”. (KREEL, 2004, p. 56).
Até mesmo porque, a idéia de ato vinculado, segundo a visão
tradicional de estrita vinculação à lei, abrange uma categoria
absolutamente mínima dos atos administrativos (BINEBOJM, 2006
p. 19), principalmente diante de uma realidade histórica em que
se perde a certeza da lei, da idéia de certeza a partir da reserva da
lei, demonstrando se tratar de uma categoria em franco processo
de esvaziamento. Um novo conceber do direito administrativo,
dirigido pela ordem constitucional, demonstra que a clássica divisão
dos atos administrativos em vinculados e discricionários não mais
existe. A noção de ato vinculado à lei, em seu sentido formal, e de ato
discricionário, como sendo espaço livre de decisão externa ao Direito,
conferido ao administrador público, perde inteira significação,
“parece remontar aos equívocos da Escola da Exegese, que pregava
que normas legais ‘serviam de prontuários repletos e não lacunosos
para dar solução aos casos concretos, cabendo ao aplicador um papel
subalterno de automatamente (sic) aplicar os comandos prévios e
exteriores de sua vontade”. (KRELL, 2004, p. 40).
Em verdade, todo ato administrativo é vinculado, pois não se
concebe que, no Estado Democrático de Direito, possa o administrador
público atuar em dissonância com a legalidade. Não se trata de uma
vinculação à lei nos moldes da concepção clássica, mas sim uma
vinculação a toda juridicidade, de onde decorre que, a idéia de
discricionariedade também não existe. A grande questão que vem
sendo discutida, e que aqui também será tratada, é da intensidade de
vinculação do ato administrativo à juridicidade e da tão propalada
Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008
93
Giuliano Cesar da Silva Tatagiba
margem conferida à administração pública para a realização de seus
atos. O que se quer demonstrar, é que a teoria dos elementos do ato
administrativo, que os tornavam vinculados pela previsão legislativa
da finalidade e motivo, que determinava a insindicabilidade do mérito
administrativo daí decorrente pelo judiciário, não possui sustentação
jurídica e teórica.
Inicia-se na França do século XIX a idéia de que, em decorrência
das crescentes demandas sociais, a Administração Pública, para
agir com mais eficiência no atendimento e organização dos serviços
públicos das sociedades industrializadas, necessitava de uma
liberdade de apreciação ou escolha que se situava externamente ao
ordenamento jurídico. Surgia assim o conceito de discricionariedade
administrativa como um espaço livre da regulamentação da lei e,
conseqüentemente, sem possibilidade de sindicabilidade (BINEBOJM,
2006, p. 194) pelo judiciário. Insta considerar que, mesmo verificando
a sua imprescindibilidade, a discricionariedade administrativa,
por ser incompatível com o Estado de Direito, necessitava de ser
balizada juridicamente. Contudo, somente com o positivismo
Kelsiano, a partir do 1º pós-guerra, é que se desenvolve a noção da
subdeterminação das diversas etapas da produção normativa, que ao
inserir a atuação da Administração Pública em uma destas etapas,
justificou a discricionariedade administrativa ao considerá-la a
concretização paulatina e gradual de normas jurídicas precedentes. É
o que ocorre quando edita regulamentos que se fundamentam na Lei
ou na Constituição (BINEBOJM, 2006, p. 196).
Esta necessidade de se buscar parâmetros jurídicos para a
discricionariedade administrativa, segundo Binembojm (2006, p.
197), fez com que o seu processo histórico evolutivo percorresse as
seguintes etapas:
- teoria dos Elementos do ato, com a vinculação da competência,
forma e finalidade, relegando o motivo e o objeto à discricionariedade
administrativa;
- teorias de controle a partir de parâmetros implícitos na lei,
desvio e excesso de poder e motivos determinantes;
- teoria dos conceitos jurídicos indeterminados;
- teoria da vinculação direta dos atos administrativos aos princípios constitucionais.
94
Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008
O sepultamento do mérito administrativo
A teoria dos elementos do ato administrativo, que o decompõe em
competência, forma, finalidade, motivo e objeto, se assenta na frontal
dicotomia entre ato discricionário e vinculado, onde ao judiciário
caberia se ater ao exame da legalidade circunscrita às formalidades
extrínsecas dos atos discricionários, sendo-lhe vedado o exame do
mérito administrativo que se regia pela conveniência e oportunidade
do administrador público. Em um segundo momento passou-se a
entender que a competência, a forma e a finalidade seriam sempre
elementos vinculados, enquanto que o objeto e o motivo só poderiam
ser sindicados quando a legislação não houvesse possibilitado
qualquer margem para a escolha de sua decisão. Contudo, uma
primeira evolução para o controle dos atos discricionários surge
com a teoria do desvio de poder ou do desvio de finalidade, ainda
no século XIX no Conselho de Estado Francês, vindo a repercutir
até no Brasil, onde a discricionariedade passa a ser entendida como
um dever de atender a finalidade estampada na lei, e não como um
Poder. Uma segunda evolução ocorre com o surgimento da teoria dos
motivos determinantes, onde o ato administrativo deve corresponder
ao motivo alegado como pressuposto para a sua prática.
Ainda a guisa dessa evolução, verifica-se ainda teoria do excesso
de poder, para os casos em que a Administração extrapolasse a sua
competência, e à exigência de motivação, clara, congruente e explícita
para todos os atos administrativos, mesmos aqueles em que não
houvesse previsão legal para tanto. Assim, pela teoria dos elementos
do ato administrativo, haveria uma auto-restrição do judiciário em
apreciá-los nos aspectos referentes ao motivo e ao objeto. O judiciário
só poderia apreciar a decisão que fosse motivada, em respeito à
teoria dos motivos determinantes, que condicionava esta decisão
do administrador público aos estritos limites do conteúdo de sua
motivação. De igual modo, o judiciário não poderia controlar a
delimitação do objeto, a não ser quando caracterizasse, perfeitamente,
desvio de poder. Nesse sentido, a atuação da administração pública
teria tão somente a conveniência e oportunidade como princípios
determinantes de sua atuação.
Contudo, a hermenêutica contemporânea, também orientada
pelo contexto neoconstitucional, contrapondo à concepção de que ao
interprete caberia tão somente fixar o sentido e o alcance da pretensa
Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008
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Giuliano Cesar da Silva Tatagiba
vontade do legislador e da lei, através do silogismo subsuntivo
lógico e mecânico, prevendo existir apenas uma solução correta
para determinado caso concreto, informa que a ação do interprete é
determinada por um ato de vontade, derivada de sua pré-compreensão
de mundo e que, de forma alguma, irá proferir uma solução neutra
e desinteressada ao caso concreto. O interprete, através do discurso
racionalizado, irá criar, na situação fática, a solução que a sua intuição
particular o orientar, do que seja certo ou errado, desejável ou não
(KRELL, 2004, p. 58-60).
Desta forma, chega-se à conclusão de que não existe uma única
resposta possível e razoável, tanto para a delimitação do objeto
quanto para a motivação, possibilitando uma discussão perfeitamente
razoável. Mesmo o avanço teórico, no sentido de se estabelecer o
controle judicial à finalidade do ato, prevendo o desvio de finalidade
caso não se concretize a finalidade para o qual foi criado, ao supor
que esta seria algo objetivo, comete o mesmo pecado principiológico,
uma vez que são plúrimas as finalidades do Estado. Tal ocorre pelo
fato de que, o conteúdo destes elementos, serem perfeitamente
discutíveis a partir de uma análise hermenêutica, o que lhe oferece
diversas soluções quando se busca compreendê-los à luz dos
princípios constitucionais. Não existe uma única finalidade para um
ato administrativo, pois esta tende a conformar toda uma categoria
de princípios que vão determinar esta finalidade. De igual modo,
os motivos de um ato administrativo não são somente aqueles que
o administrador público estabeleceu, mas aqueles que decorrem de
todo o ordenamento constitucional.
Por outro lado, verifica-se também que o ato vinculado e o
ato discricionário não possuem uma diferença qualitativa e sim
de densidade quantitativa (KRELL, 2004, p. 40), em que o ato
discricionário teria uma vinculação mínima à juridicidade. O conceito
de ato vinculado estará relacionado a uma maior intensidade
vinculatória à previsão legislativa, que se liga tanto à idéia de lei
quanto à idéia de constituição. É o que se observa, por exemplo, no
lançamento tributário, onde a lei estará definindo os seus elementos
em tal intensidade que, por mais que uma parte deste conceito possa
ser discutida, como o que seja lançamento ou pessoa, sua densidade
se mostra em um grau extremamente elevado.
96
Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008
O sepultamento do mérito administrativo
Neste sentido, diante da revelação de que a limitação da
discricionariedade pela teoria dos elementos do ato, mesmo
aperfeiçoada pela teoria dos motivos determinantes ou pelo desvio
de finalidade, ao ser analisada, tanto pela hermenêutica quanto pela
inconsistência da distinção entre ato vinculado e discricionário, não
resolve esta celeuma, é que se verificou a necessidade de se buscar
outras formas para sua elaboração.
Ressalte-se que esta discussão se acentua ao refletir as
transformações ocorridas pela complexidade das novas condições
sociais, que culminaram com o processo de globalização mundial.
O Estado perde a força, seu papel regulador através da lei, diante
da obrigação de adequar suas políticas públicas a parâmetros
internacionais. “As Constituições contemporâneas estão, hoje, cada
vez mais vinculadas a princípios e regras de Direito Internacionais, que
se convertem em parâmetro de validade das próprias Constituições
nacionais”. (PIOVESAN, 2004, p. 97).
Com a idéia de que a lei não pode a tudo regrar, ou mesmo
regular inteiramente uma determinada situação, mas sim a de
fixar, parâmetros, pautas diretivas, finalidades a serem atingidas, é
que surge a noção conceitos indeterminados, programas de ação e
de políticas públicas. São estes conceitos fluidos que irão oferecer a
fórmula de melhor compreender toda essa complexidade do mundo
real nas sociedades contemporâneas (KRELL, 2004, p. 37):
A discricionariedade não é, destarte, nem uma liberdade decisória
externa ao direito, nem um campo imune ao controle jurisdicional. Ao
maior ou menor grau de vinculação do administrador à juridicidade
corresponderá, via de regra, maior ou menor grau de controlabilidade
judicial dos seus atos. (KRELL, 2004, p. 206).
Diante desta complexidade, é que têm surgido diversas teorias
que se propõem a fixar mecanismos de auto-restrição judicial para os
casos em que, na concretude de sua ocorrência, caiba à administração
pública valorar o conteúdo da decisão a ser tomada.
O uso da técnica de conceitos jurídicos indeterminados, de
conceitos abertos, como boa-fé objetiva, razoabilidade da atuação da
administração, interesse público, permite que se faça uma abertura no
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sistema, permitindo conferir caráter de juridicidade a conteúdos que
não se encontram dentro do direito, mas sim, em outros subsistemas
sociais, como a ética, a política, a moral:
Surge, assim, na doutrina dos conceitos jurídicos indeterminados,
os quais não foram mais considerados como uma expressão da
discricionariedade, mas plenamente sindicáveis pelo Poder Judiciário
mediante interpretação, o que levou a uma forte restrição da própria
discricionariedade administrativa. (KRELL, 2004, p. 46).
A questão agora é a definição destes conceitos jurídicos
indeterminados. Como é que se vai estabelecer o conteúdo destes
conceitos para a delimitação do espaço da discricionariedade? Onde
começa o exercício da discricionariedade, comportamento volitivo
do administrador, e onde começa a cognição de conceito jurídico
indeterminado, ou seja, o conteúdo deste conceito?
A partir das últimas duas décadas na Alemanha, é crescente
número de autores que não aceitam a distinção rígida entre conceitos
indeterminados e discricionariedade, diante da mudança da doutrina
administrativa que enfatizava um controle judicial abrangente:
Assim, parece equivocada a distinção rígida no tratamento do controle
dos conceitos jurídicos indeterminados – que exigem interpretação,
sendo o seu pleno controle judicial a regra – e, por outro lado, dos atos
discricionários como decisões baseadas na conveniência e oportunidade
sindicáveis somente em casos de graves erros de avaliação ou
arbitrariedade, Muitas vezes, a questão não passa de uma contingência
na formulação do próprio texto legal. (KRELL, 2004, p. 48).
Conceitos indeterminados são aqueles que vão requerer uma
norma de valoração, de juízos de valor. Como o conceito de mulher
honesta, ou o pundonor policial militar, por exemplo. É perfeitamente
razoável estabelecer tanto um padrão moral mínimo para uma mulher
honesta em determinada sociedade e em determinado contexto
histórico, quanto que existe um mínimo ético a se esperar por de um
policial militar (KRELL, 2004, p. 52).
Encontra-se ainda dentro deste conceito, a definição do que
seja interesse público, obrigação de correção e lealdade na atuação
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O sepultamento do mérito administrativo
administrativa, através de norma objetiva. Logo, o grande problema
reside em como determinar qual seja o exato conteúdo desta norma.
A doutrina brasileira vem procurando definir o conteúdo dos
conceitos jurídicos indeterminados a partir de parâmetros que se
fundamentam na doutrina e no direito alemão.
Pela teoria da sustentabilidade (KRELL, 2004, p. 56), o Poder
Judiciário deve se limitar a verificar se a interpretação do conceito
jurídico indeterminado, realizado pela Administração Pública, pode
ser sustentado e defendido através de argumentos racionais. O
judiciário pode apreciar, a partir de parâmetros de razoabilidade do
direito, se aquela decisão que o administrador tomou é sustentável,
ou seja, se está de acordo com a ordem jurídica, ainda que não seja
a melhor decisão. Se esta decisão está adequada a esse juízo de
sustentabilidade, e por isso defensável juridicamente, o administrador
estaria atuando dentro de sua margem de discricionariedade e assim
não podendo sofrer qualquer controle judicial.
Uma outra teoria é a da prerrogativa estimatória (KRELL,
2004, p. 55), em que se prevê uma margem de livre apreciação pela
Administração Pública, pelo fato de não poder oferecer uma melhor
decisão, nas situações que envolvam conceitos de prognose, de
avaliação de futuro. A auto-restrição judicial deveria ser estabelecida
em beneficio do ente da administração que tenha melhor capacidade,
competência técnica e expertise de estabelecer a decisão mais
adequada para o caso concreto e que pressuponham decisões
insubstituíveis ou irrepetíveis (KRELL, 2004, p. 55). São os casos, por
exemplo, que envolvam impacto ambiental ou aspectos da política
econômica, onde os órgãos técnicos da administração teriam melhor
capacidade de estimar o dano possível, onde o juiz deve se abster
de examinar o mérito destes casos por se encontrarem dentro do
espaço da discricionariedade, por conta da densificação dos conceitos
de prognose. Para o estabelecimento do conteúdo da conseqüente
densidade dos conceitos jurídicos indeterminados, assim entendidos
como um fenômeno lingüístico, estas teorias pressupõem que no
momento de realização de sua interpretação, sempre haveria uma
zona de certeza positiva, de uma zona de certeza negativa e de
uma na zona de penumbra, onde aí residiria a margem de atuação
administrativa (KRELL, 2004, p. 57).
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Giuliano Cesar da Silva Tatagiba
Uma outra teoria, cujo número de defensores muito tem crescido
no Brasil, é a denominada teoria dos princípios (BINEBOJM, 2006,
p. 206). Assenta esta teoria na vinculação direta da Administração
Pública no reconhecimento da eficácia normativa dos princípios
jurídicos, que supera a concepção positivista de que na lei, conteria
todo direito, onde se concentram os “esforços em superar o modelo
de Estado de direito formal, em benefício de um Estado de direito
material” (BINEBOJM, 2006, p. 196). Por esta teoria, toda a atividade
administrativa se vincularia à ordem jurídica como um todo. Tratase do princípio da juridicidade, que consagra os princípios gerais ou
setoriais na Constituição:
Na atual fase ‘pós-positivista’, que foi instaurada com a ampla positivação
dos princípios gerais de Direito nos novos textos constitucionais, os atos
administrativos discricionários não devem ser controlados somente
por sua legalidade, mas por sua juridicidade. Essa ‘principialização’ do
Direito (proibição da arbitrariedade, razoabilidade, proporcionalidade,
igualdade, proteção da confiança legítima etc) aumentou a margem da
vinculação dos atos discricionários. (KRELL, 2004, p. 69).
Ganham relevância nesta teoria, os princípios da Administração
Pública, previstos no art. 37 da Constituição de 1988, que se estabelecem
como parâmetros balizadores de toda a atuação do Poder Público, e
que estreitam (parcial ou totalmente) o âmbito da discricionariedade.
A moralidade vem ocupar posição destacada, a partir do momento em
que representa o reencontro do direito e da moral, conseqüência dos
abusos e arbitrariedades que provocaram efeitos perniciosos em toda
a humanidade, decorrente da formulação dogmática juspositivista
de uma teoria pura do direito. É conseqüência imediata desta teoria,
a constatação da inexistência da dicotomia entre ato vinculado
e discricionário, ao prever que os atos administrativos possuem
diferentes graus de vinculação à juridicidade, cuja intensidade do
controle judicial se relaciona diretamente com este grau de vinculação.
Não há uma diferenciação qualitativa entre ato vinculado e ato
discricionário, mas sim uma diferenciação quantitativa em torno da
sua vinculação e pertinência à juridicidade (BINEBOJM, 2006, p. 207).
Modificado os parâmetros de controle da atividade
administrativa, do princípio da legalidade, por uma idéia mais
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O sepultamento do mérito administrativo
ampla de juridicidade, o núcleo do ato administrativo, o mérito antes
intocável, sofre a incidência direta dos princípios constitucionais,
assim acarretando uma crescente ingerência judicial (BINEBOJM,
2006, p. 207), que pelo princípio da divisão dos poderes, também
de âmbito Constitucional, vai apenas determinar a anulação do ato
administrativo. Cabe, no entanto, sua reedição pela Administração
Pública, caso a situação fática exija tal comportamento, desde que
não se refira aos casos de redução da discricionariedade “a zero”, que
ensejará um pronunciamento condenatório e não apenas anulatório
(KRELL, 2004, p. 70).
Assim como a própria teoria dos elementos do ato administrativo,
a falha do raciocínio destas teorias reside no fato de se admitir que
haja um sentido objetivo que possa ser buscado no próprio conceito.
Ao se trabalhar questões de densidade normativa dos fenômenos
lingüísticos, a partir de um processo hermenêutico, verifica-se que,
a construção dos conceitos, necessariamente passa por uma précompreensão do mundo.
A partir do momento em que a hermenêutica demonstra que
para a construção de determinado conceito, sempre se partirá desta
pré-compreensão, tanto o legislador quanto o interprete é que estarão
definindo o conteúdo deste conceito. Deste modo, será o interprete
que estará construindo tanto o que seja sustentável como o conteúdo
daquilo que é sustentável, ou do juízo a ser estabelecido para o
futuro, ou ainda de qual será o princípio jurídico mais adequado para
a situação fática. Assim, o que seja ou não sustentável, aquilo que
seja ou não a decisão mais técnica, ou qual princípio jurídico é o mais
adequado, sempre possibilitará várias respostas possíveis.
Neste sentido, tanto a teoria dos conceitos jurídicos
indeterminados, quanto a teoria dos princípios, acabam por não
conseguir estabelecer com precisão um conteúdo adequado, a partir
de uma análise, que tenha sob perspectiva, o sentido do próprio
objeto. O se conclui que o espaço reservado à discricionariedade
administrativa não consegue ser estabelecida por uma questão de
vontade, através de um processo hemenêutico, a partir da análise
discursiva do agir comunicativo, ou de uma análise ontológica de
seu conteúdo, resultado de processo de cognição, oriundo do próprio
conceito jurídico indeterminado:
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Giuliano Cesar da Silva Tatagiba
A hermeutica mostrou, há tempo, que a interpretação jurídica somente
funciona através de atos de vontade. Por isso, não faz mais sentido criar
uma estrita distinção entre a interpretação da norma legal (meramente
cognitiva) e do exercício (sempre volitivo) da discricionariedade,
entendimento que dominou a doutrina e a jurisprudência na Alemanha
durante muito tempo. (KRELL, 2004, p. 71).
A teoria dos conceitos jurídicos indeterminados no Brasil ainda
se apresenta como a mais moderna forma de se estabelecer os limites
da discricionariedade. Contudo, essa teoria vem sofrendo várias críticas por não conseguir definir os limites da discricionariedade pela
indeterminação de seu próprio conteúdo. Deste modo, a doutrina e a
jurisprudência têm transferido, para a órbita jurídico-funcional, a determinação da discricionariedade administrativa, que busca estabelecer a competência para a solução do caso concreto, a partir da análise
do órgão que tenha a possibilidade de oferecer a melhor solução:
As figuras do conceito jurídico indeterminado e da discricionariedade
são nada mais do que os códigos para uma delimitação jurídicofuncional dos âmbitos próprios da Administração e dos tribunais.
(KRELL, 2004, p. 61).
A definição sobre o que é ou não discricionário, perpassa pela noção
de funcionalidade dos poderes e não, como já visto, de sua clássica
divisão. Aquilo que finalmente seria o espaço da discricionariedade
vai estar estabelecido a partir de uma perspectiva funcionalizante.
Tal idéia se aproxima muito da noção de minimalismo jurídico, que
muito tem sido utilizado nos Estados Unidos, caracterizado por uma
auto-restrição que os tribunais fazem ao julgar que, em determinadas
matérias, procedimentos de questões especificas e concretas, o
executivo, estará mais bem aparelhado para decidir.
O Estado Democrático de Direito pretende oferecer repostas que,
em concreto, resultem do valor de justiça. O novo paradigma do Estado
contemporâneo não é mais a lei, e sim o justo, onde a juridicidade
possui conteúdo ético e moral. Relembre-se, como acentuado no início
deste trabalho, que a construção deste paradigma não pressupõe uma
cisão ou descontinuidade com o conhecimento apreendido. Assim é
que esta teoria, que estabelece a discricionariedade administrativa
a partir de uma visão jurídico-funcional de densidade adequada de
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O sepultamento do mérito administrativo
controle, não dispensa as contribuições trazidas pelas teorias dos
elementos do ato administrativo, conceitos jurídicos indeterminados
e dos princípios constitucionais.
Para que se possa chegar à solução justa, de dar a cada um o
que é seu, somente será possível, se for atribuída ao órgão do estado
que estiver mais bem aparelhado para estabelecer a melhor solução,
a partir dos parâmetros construídos pela sua competência técnica
e expertise, que finalmente vão determinar qual seja o conteúdo
adequado.
O conteúdo final daquilo que vai ser o justo, emanado do órgão
que vai estabelecer a decisão ótima no caso concreto, vai depender
desta análise fundamental. “Para Herzog, o controle da Administração
pelos tribunais somente deve ir até onde se possa esperar da decisão
judicial uma ‘qualidade material pelo menos igual’ à da decisão que
se pretende corrigir”. (KRELL, 2004, p. 61).
Daí se apresenta de maneira perfeitamente harmoniosa com
esta teoria, a vinculação do ato administrativo à juridicidade e,
principalmente, seu direcionamento pelos princípios constitucionais,
inexistindo distinção entre ato vinculado e discricionário, bem
como do dogma da insindicabilidade do mérito administrativo. Se
em um caso concreto, o judiciário possuir condições de proferir a
melhor decisão, esta será de sua competência. Deverá analisar todos
os elementos do ato, que é um todo indivisível, e ainda, analisar se
este é o mais razoável, mais adequado, mais eficiente, e se está de
acordo com a moralidade e os demais princípios constitucionais,
não havendo qualquer restrição à sua sindicabilidade. Se por outro
lado, não dispuser de condições funcionais para dar uma decisão
de qualidade material pelo menos igual a que seria tomada pelo
administrador, deve se auto - limitar, deixando àquele a atribuição
de tomar a decisão.
É a partir da funcionalidade que se estabelece a densidade
adequada, o controle e a determinação da discricionariedade. É o
estabelecimento da tomada de decisão pela adequação do órgão, das
suas condições de funcionalidade, que envolve a sua composição,
legitimação e seu procedimento decisório, para que possa trabalhar
determinado problema a fim de possibilitar decisões otimizadas na
concretização da decisão mais justa (KRELL, 2004, p. 62).
Depoimentos, Vitória, n. 13, p. 73-108, jan./jun. 2008
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Giuliano Cesar da Silva Tatagiba
Qual é a legitimação de um juiz, cujo cargo não foi conferido
pela vontade popular, para decidir sobre a vida de toda uma cidade,
num caso de impacto ambiental decorrente da construção de um
grande complexo industrial? Pode ele impedir as obras, para que a
cidade permaneça totalmente despoluída, mas sem qualquer tipo de
desenvolvimento econômico?
A questão deve ser discutida pela funcionalidade dos poderes.
A concepção de discricionariedade não se estabelece por uma noção
de margem, por um determinado conteúdo que estaria expresso no
próprio conceito, mas sim a partir da funcionalidade daquele órgão
que possui a responsabilidade de dar o conteúdo no caso concreto. É
pela função que se definiria a discricionariedade.
Por outro lado, qual o conhecimento técnico do juiz para a
tomada de decisão neste caso? Esta é uma atividade que compõe a
sua rotina diária de decisão?
A discricionariedade então, passa a ser discutida a partir da
perspectiva de que, a sua ocorrência surge a partir do momento
em que o judiciário não possa conferir uma decisão de qualidade
material, pelo menos igual àquela que seria produzida pelo órgão
técnico oriundo da ação do administrador.
Se no direito contemporâneo se procura o justo no caso concreto,
tem-se que verificar qual é o órgão que está melhor habilitado
para chegar a esse nível de decisão. Se o judiciário não estiver
perfeitamente habilitado a isso, deve se auto-restringir e a decisão do
administrador público prevalecer. Assim, tem-se que, a partir desta
nova perspectiva, nos casos em que funcionalmente o judiciário for
o órgão mais adequado a oferecer a decisão mais justa para o caso
concreto, deverá sindicar todos os elementos do ato administrativo,
competência, objeto, forma, finalidade e motivo para verificar se são
eficientes, adequados moralmente e se encontram dentro das linhas
diretivas do Estado, segundo o padrão estabelecido pelos princípios
constitucionais.
A discussão não se encontra mais no ser, na busca do sentido
etiológico da norma, e sim, a partir de uma pauta diretiva do
Estado, na busca pela justiça social a partir de uma decisão que seja
funcionalmente adequada. Contudo, pelo que se depreende das
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O sepultamento do mérito administrativo
reflexões até aqui realizadas, o próprio conceito de discricionariedade,
como margem de livre atuação da Administração externa ao próprio
direito, perde sua consistência. Quando se estabelece que a decisão
sobre o caso concreto deva ser atribuída ao órgão da Administração
Pública, por oferecer a melhor solução, esta jamais poderá se
desvincular da juridicidade.
CONCLUSÃO
Durante o decorrer da pesquisa que culminou com a produção
deste trabalho evidenciou-se que grande parcela dos estudos realizados
sobre as categorias, institutos e valores do direito administrativo,
ainda carecem de uma discussão acadêmica adequada, uma vez que
as suas reflexões quase sempre se originam de argumentos oriundos
do senso comum e dissociada de uma visão sistêmica.
A dinâmica atual do mundo moderno, que no iniciar deste século
XXI, cada vez mais faz surgir situações de diferentes complexidades,
cuja imprevisibilidade, vem a exigir respostas estatais que quase
sempre não possibilita uma intervenção legislativa capaz de
regulamentar este processo, vem a determinar uma atuação imediata
da Administração.
Esta situação fática inserida no contexto do Estado Democrático
de Direito, onde o fundamento maior de construção de seu paradigma
reside na proteção dos direitos fundamentais inerentes à dignidade
da pessoa humana, em uma ordem mundial contemporânea em
que as noções relativas a espaço, tempo e poder, demandam ações
e interferências do Estado de forma imediata, não permitem que a
vontade geral do povo se manifeste apenas pelas atividades do
parlamento.
De ordem prática e material, a existência da discricionariedade,
compreendida como uma margem de liberdade concedida ao
administrador para a realização do direito não mais existe. A
necessidade de sobrevivência e desenvolvimento das sociedades de
um mundo globalizado, caracterizado por um processo de constante
evolução das ciências, que trazem à pauta de preocupações, a escassez
dos recursos naturais, bem como a proteção e o exercício de atividades
ligadas às novas tecnologias, como energia nuclear, biotecnologia,
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comunicações, etc., determinam uma intervenção pronta e imediata
da Administração Pública que, no entanto, não pode estar dissocia da
juridicidade informada pelas pautas diretivas de todo o ordenamento
jurídico, em especial, dos princípios normativos constitucionais.
A construção dos conteúdos dos conceitos jurídicos
indeterminados encontrados nesta juridicidade, deve ter como
perspectiva, o interesse público emanado do contexto constitucional,
não por conta de sua tradicional noção de supremacia apriorística em
relação aos interesses individuais ou da maximização dos interesses
do maior número de indivíduos, mas sim, como resultado de um
processo ponderativo de interesses fundamentais que porventura
venham entrar em rota de colisão, que vise a promoção e preservação
dos valores morais da dignidade da pessoa humana.
A sindicabilidade das decisões da Administração Pública pelo
Poder Judiciário, deve ser realizada de forma ampla e abrangente,
a fim de se efetivar o concreto controle da necessária atividade
voltada ao desenvolvimento social, onde sua auto-restrição deverá,
tão somente, se estabelecer a partir da visão jurídico-funcional da
densidade adequada de controle, nos casos em que não possa proferir
uma decisão de qualidade material pelo menos igual àquela que seria
ofertada pelo Administrador.
No Estado Democrático de Direito, onde se busca a idéia do justo,
não se pode, no caso concreto, dar predominância à opinião subjetiva
de um juiz, se ele não está habilitado a dar a melhor decisão naquele
caso concreto. Não é o juiz que deve decidir em última instância todas
as questões, mesmo porque, trata-se de um sujeito limitado nas suas
convicções concretas, não tendo capacidade para dar a melhor decisão
em todos os casos que a realidade fática possa produzir. Este é o
limite da atuação do poder judiciário, orientado pela sua capacidade
em oferecer uma solução funcionalmente adequada.
Essa teoria se reveste de uma profundidade maior que as
anteriores, uma vez que a visão jurídico-funcional da densidade
adequada de controle se molda às perspectivas da contemporaneidade
da jurisdição constitucional, determinando que o judiciário apenas
interfira nos atos da Administração Pública quando tiver capacidade
funcional para tanto.
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O sepultamento do mérito administrativo
A construção do novo paradigma do direito administrativo,
então se estabelece com a noção de que existe apenas um tipo de ato
administrativo, plenamente vinculado à juridicidade e sindicável
pelo Poder judiciário, que na realidade fática, deverá apreciar
todos os seus elementos (competência, objeto, forma, finalidade
e motivo). Deverá ainda verificar se este ato se consubstancia com
as diretivas constitucionais e respeita os direitos fundamentais,
proferindo uma decisão anulatória que poderá ensejar sua re-edição
pela Administração, ou até mesmo uma decisão condenatória em
determinados casos em que haja apenas uma única solução possível.
No entanto, tal procedimento, apenas ocorrerá se o judiciário
dispuser de condições funcionais de avaliá-lo de forma a concluir
com uma qualidade material pelo menos igual a que foi realizada
pelo administrador.
Como se depreende de toda essa reflexão, o mérito administrativo
faleceu há pelo menos 18 anos, restando apenas, aos ideários da pósmodernidade providenciar o seu sepultamento em definitivo na
doutrina publicista brasileira.
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