BRAZILIAN JOURNAL OF RHEUMATOLOGY
REVISTA BRASILEIRA DE REUMATOLOGIA
Official Organ of Brazilian Society of Rheumatology
Órgão Oficial da Sociedade Brasileira de Reumatologia
NOVEMBER/DECEMBER 2011 • VOLUME 51 • NUMBER 6
NOVEMBRO/DEZEMBRO 2011 • VOLUME 51 • NÚMERO 6
ISSN: 0482-5004
EDITORIAL | EDITORIAL
535
537
Magnetic resonance imaging in rheumatoid arthritis
Ressonância magnética na artrite reumatoide
Marcello H. Nogueira-Barbosa
ORIGINAL ARTICLE | ARTIGO ORIGINAL
539
544
Physical activity and its association with quality
of life in patients with osteoarthritis
Atividade física e sua associação com qualidade de vida em pacientes com osteoartrite
Esmeraldino Monteiro de Figueiredo Neto, Thais Thomaz Queluz, Beatriz Funayama Alvarenga Freire
550
554
Ocular changes due to the treatment of juvenile systemic lupus erythematosus
Alterações oftalmológicas decorrentes do tratamento
do lúpus eritematoso sistêmico juvenil
Melissa Mariti Fraga, Claudio Arnaldo Len, Luciana Peixoto dos Santos Finamor, Kimble Teixeira Fonseca Matos,
Cristina Muccioli, Maria Odete Esteves Hilário, Maria Teresa Ramos Ascensão Terreri
558
564
Autoantibodies in early rheumatoid arthritis – Brasília cohort –
results of a three-year serial analysis
Autoanticorpos na artrite reumatoide inicial – coorte Brasília –
resultados de uma análise seriada de três anos
Licia Maria Henrique da Mota, Leopoldo Luiz dos Santos Neto, Ivânio Alves Pereira,
Rufus Burlingame, Henri A. Ménard, Ieda Maria Magalhães Laurindo
572
579
Anti-citrullinated peptide antibodies and rheumatoid factor in
Sudanese patients with Leishmania donovani infection
Anticorpos antipeptídeos citrulinados e fator reumatoide em
pacientes sudaneses com infecção por Leishmania donovani
Erik Ahlin, Amir Elshafei, Musa Nur, Sayda Hassan El Safi, Ronnelid Johan, Gehad Elghazali
587
594
Influence of the interaction between environmental quality and
T102C SNP in the HTR2A gene on fibromyalgia susceptibility
Influência da interação entre qualidade ambiental e o SNP T102C
do gene HTR2A sobre a suscetibilidade à fibromialgia
Michelle Mergener, Roze Mary Ribas Becker, Adriana Freitag dos Santos,
Geraldine Alves dos Santos, Fabiana Michelsen de Andrade
603
609
Incidence of infectious complications in hip and knee arthroplasties
in rheumatoid arthritis and osteoarthritis patients
Incidência de infecções em artroplastias de quadril e joelho
em pacientes com artrite reumatoide e osteoartrite
Bernardo Matos da Cunha, Sandro Barbosa de Oliveira, Leopoldo Santos-Neto
REVIEW ARTICLE | ARTIGO DE REVISÃO
616
622
Influence of meteorological elements on osteoarthritis
pain: a review of the literature
Influência de elementos meteorológicos na dor de
pacientes com osteoartrite: revisão da literatura
Evânia Claudino Queiroga de Figueiredo, Giovannini Cesar Figueiredo, Renilson Targino Dantas
629
635
Magnetic resonance imaging in rheumatoid arthritis
Imagens de ressonância magnética na artrite reumatoide
Wilson Campos Tavares Junior, Renata Rolim, Adriana Maria Kakehasi
CASE REPORT | RELATO DE CASO
642
645
Association of tibial osteomyelitis and pneumonitis due to miliary
tuberculosis in a patient with systemic lupus erythematosus
Associação de osteomielite tibial e pneumonite por tuberculose
miliar em paciente com lúpus eritematoso sistêmico
Vitor Emer Egypto Rosa, Daniel Martin, André Marun Lyrio, Maria Aparecida Barone Teixeira, José Roberto Provenza
648
651
Multiple myeloma-amyloidosis presenting as pseudomyopathy
Amiloidose-mieloma múltiplo apresentando-se como pseudomiopatia
Mário Sérgio F. Santos, Bianca Soares, Osvaldo Mendes, Cintia Moura Carvalho, Rossana Fonseca Casimiro
655
658
Gangrene of the auricle as the first sign of antiphospholipid antibody syndrome
Gangrena de pavilhão auricular como primeira manifestação
de síndrome do anticorpo antifosfolípide
Erika Bettini de Sá, Adson da Silva Passos, Mariana Cecconi,
Maria Lourdes Peris Barbo, José Eduardo Martinez, Gilberto Santos Novaes
LETTER TO THE EDITORS | CARTA AOS EDITORES
662
667
Opinion of some Brazilian rheumatologists about biosimilars
Opinião de uma amostra de reumatologistas brasileiros sobre biossimilares
Valderilio Feijó Azevedo, Lúcio Ricardo Felippe, Denise Magalhães Machado
672
673
Cholesterol and chloroquine
Colesterol e cloroquina
Eduardo Ferreira Borba
INDEX | ÍNDICE REMISSIVO
674
Content index | Índice por edição
680
Subject index
682
Índice por assunto
684
Authors index | Índice por autor
EDITORIAL
Ressonância magnética
na artrite reumatoide
© 2011 Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados.
substituição das radiografias simples pelas imagens de
ressonância magnética (RM) no apoio ao diagnóstico
inicial da artrite reumatoide (AR) tornou-se gradativamente uma realidade em nosso meio. O conhecimento de que
as radiografias são insuficientes para identificar precocemente
as anormalidades sinoviais da AR não é novidade – há publicações alertando a este respeito já por mais de uma década.1 Na
prática, no entanto, a aplicação das imagens de RM na rotina
clínica precisou vencer a inércia, acredito que mais pelos custos e pela relativa dificuldade de acesso ao exame do que pela
falta de informação, pelo menos em grande parte dos centros
nacionais. Por vários motivos, o método tornou-se mais disponível nos últimos anos, notando-se uma distribuição maior
de equipamentos tanto para os principais centros quanto para
várias cidades do interior brasileiro. O uso crescente das drogas
modificadoras da doença impôs a necessidade de diagnóstico
precoce, já que o gol da terapia medicamentosa moderna é
evitar que a doença alcance sua forma crônica erosiva e debilitante. Este fato, aliado à crescente disponibilidade da RM,
configuram o cenário que tem possibilitado maior acesso para
a investigação precoce dessa artropatia.
Há, porém, um número considerável de questões a serem
respondidas em relação ao papel da RM e de outros meios de
diagnóstico por imagem no diagnóstico inicial e na monitoração da atividade da AR. A ultrassonografia (US) e a RM são,
ambas, capazes de detectar a proliferação do pannus reumatoide de forma mais precoce e mais eficiente que as radiografias simples. Cada um desses métodos de imagem apresenta
pontos fortes e fracos,2 mas não há consenso definitivo sobre
qual técnica deve ser utilizada preferencialmente na prática
clínica. Os pontos fortes da RM são: capacidade de avaliar
diretamente o tecido ósseo, lembrando que o edema ósseo é um
dos bons preditores de erosões ósseas futuras; avaliação mais
completa das superfícies articulares; maior reprodutibilidade;
e maior potencial de mensurações quantitativas da sinóvia. A
US não permite a avaliação do interior dos ossos nas margens
articulares, e apresenta dificuldade de acesso a algumas partes
de certas articulações devido à sombra acústica originada na
a
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):535-538
cortical óssea. Por outro lado, a US permite estudo em tempo
real de forma mais barata e com maior disponibilidade, e possibilita a avaliação de um número maior de articulações em
um tempo factível. A RM não pode ser utilizada em qualquer
paciente, sendo contraindicada, por exemplo, em indivíduos
com marcapasso cardíaco; para um número não desprezível de
pacientes claustrofóbicos, adicionam-se os custos e a potencial
morbidade de uma sedação. Não se pode deixar de citar a tendência majoritária de considerar a curva de aprendizado maior
para a interpretação da US em relação às imagens de RM, mas
embora haja aí um fundo de verdade, este é um tópico controverso, ou pelo menos me parece um ponto contornável pela
educação dos profissionais envolvidos. Concordo, entretanto,
que uma vez documentadas as imagens estáticas da US e da
RM, o maior campo visual e a facilidade de avaliar as relações
anatômicas das estruturas na RM proporcionam uma avaliação
“de novo” mais reprodutível por outros examinadores, ausentes
no momento do exame original. Para finalizar a questão em
relação à competição da US e da RM pelo papel na investigação
precoce da sinovite, devo citar que tenho, pessoalmente, uma
boa experiência em utilizar o ultrassom no estudo de pacientes
com artrite idiopática juvenil, uma vez que em tenras idades a
possibilidade de colaboração para a realização da RM é baixa
e, consequentemente, há um forte potencial para a necessidade
de avaliação sob anestesia.
Outra pergunta que também se impõe é qual o potencial
de técnicas quantitativas como, por exemplo, a volumetria do
tecido sinovial e a RM com injeção de contraste endovenoso
e mensuração dinâmica do realce sinovial. Alguns trabalhos
mostraram que pelo menos a volumetria sinovial pode ser
precisa e reprodutível, e sugerem que possa ser um marcador
de atividade da doença superior ao escore proposto pelo grupo
OMERACT.3,4 O volume do líquido sinovial também pode
ser mensurado de forma reprodutível no caso da articulação
do joelho, e mostrou-se um bom marcador da atividade da
doença após o tratamento, mas não está claro se a mensuração
do volume de derrame oferece alguma vantagem em relação à
mensuração do volume de sinovite.5 As técnicas quantitativas
537
EDITORIAL
supracitadas e o escore RAMRIS (Rheumatoid Arthritis
Magnetic Resonance Imaging Score), proposto pelo grupo
OMERACT, são importantes ferramentas para a pesquisa clínica, mas exigem operadores com treinamento muito específico
e consomem um tempo significativo. O tempo necessário pode
chegar a 5 a 20 minutos para a avaliação de um paciente no
caso do escore RAMRIS6; já o tempo gasto com a volumetria
do tecido sinovial, por exemplo, pode chegar a 1 a 2 horas no
caso de se utilizar a delimitação manual da sinóvia, embora
este tempo possa cair para cerca de 15 minutos se for utilizada
uma técnica semiautomática.5 São técnicas, portanto, que ao
menos por enquanto parecem distantes de maior aplicabilidade
no dia a dia da rotina clínica.
Outras novas técnicas estão sendo utilizadas em caráter
preliminar, e por certo novas técnicas de imagem serão testadas para a AR, de forma que o conhecimento neste campo do
diagnóstico não deve deixar de crescer na presente década.
Como técnica promissora, destacaria a RM com imagens por
difusão, pois tem potencial para substituir ou para complementar a avaliação da atividade da doença sinovial, atualmente
baseada na injeção de contraste endovenoso. Estudos com
imagens baseadas em contraste por marcadores a nível celular
provavelmente também estarão em desenvolvimento, como,
por exemplo, a RM combinada com o uso de contraste USPIO
(ultrasmall superparamagnetic iron oxide), nanopartículas que
têm potencial de marcar os macrófagos.
Neste número da Revista Brasileira de Reumatologia é
apresentada uma revisão interessante sobre a utilização da RN
na AR,7 oferecendo ao reumatologista uma visão geral sobre
a importância e sobre o papel desta técnica de imagem. As
imagens da capa da edição de setembro de 2011 do American
Journal of Roentgenology foram extraídas de outro artigo de
revisão que versa sobre a comparação da US e da RM no estudo
538
da AR.2 Podemos concluir que o assunto está a pleno vapor
por causa da importância do diagnóstico precoce e também
pelas questões ainda por responder. Várias revisões interessantes têm aparecido na literatura, evidenciando por um lado
que já se atingiu alguma maturidade sobre o assunto, e que,
por outro lado, persistem controvérsias. Para nossa felicidade,
uma dessas revisões está à disposição do leitor nesta edição.
REFERENCES
REFERÊNCIAS
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Tavares Junior WC, Rolim R, Kakehasi AM. Imagens de ressonância
magnética na artrite reumatoide. Rev Bras Reumatol 2011; 51(6):629–41.
Marcello H. Nogueira-Barbosa
Professor Doutor da Divisão de Ciências das Imagens e Física Médica da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):535-538
ARTIGO ORIGINAL
Atividade física e sua associação com qualidade
de vida em pacientes com osteoartrite
Esmeraldino Monteiro de Figueiredo Neto1, Thais Thomaz Queluz2,
Beatriz Funayama Alvarenga Freire3
RESUMO
Objetivo: Avaliar a qualidade de vida e sua associação com a atividade física nos diferentes contextos da vida diária de
pacientes com osteoartrite (OA) encaminhados pelas unidades básicas de saúde para um serviço universitário. Métodos:
Estudo transversal, série de casos, em que a atividade física foi avaliada pelo International Physical Activity Questionnaire
(IPAQ) e a qualidade de vida foi avaliada pelos questionários Medical Outcomes Study 36 Short-Form Health Survey
(SF-36), Western Ontario and McMaster Universities Index (WOMAC) e Australian/Canadian Osteoarthritis Hand Index
(AUSCAN). Para verificação da intensidade da dor, utilizou-se também a Escala Visual Analógica (EVA). Resultados:
Foram incluídos 100 pacientes (92 mulheres e oito homens), com média de idade de 59,9 ± 9,4 anos. As articulações
mais comprometidas foram joelhos e mãos. Dez pacientes tinham comprometimento de uma única articulação, 69 de
duas, oito de três e 13 de quatro. O IPAQ demonstrou que 70 pacientes eram ativos ou muito ativos e 30 eram insuficientemente ativos ou sedentários. A atividade física associou-se positivamente aos domínios do SF-36, que avaliam a
saúde física (capacidade funcional, aspectos físicos, dor, estado geral da saúde). Houve associação entre atividade física
e qualidade de vida quando avaliada pelo WOMAC, e quanto mais intensa a dor, pior a qualidade de vida. Conclusão:
Nessa população, a maioria dos pacientes apresenta piora dos aspectos físicos da qualidade de vida, mas mantém as
atividades físicas cotidianas.
Palavras-chave: osteoartrite, atividade motora, qualidade de vida.
© 2011 Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados.
INTRODUÇÃO
A osteoartrite (OA) é uma doença degenerativa articular que
incide predominantemente no gênero feminino entre a quarta
e quinta décadas e no período de menopausa, acometendo
principalmente as articulações dos quadris, joelhos, mãos e
coluna vertebral. Sua prevalência aumenta com a idade, e é
pouco observada antes dos 40 anos e frequentemente após
os 60 anos.1
Indivíduos sintomáticos têm dor mecânica, noturna e referida ou irradiada para regiões distais às articulações envolvidas,
e rigidez matinal de curta duração ou no início dos movimentos
(protocinética). Ao exame clínico encontram-se crepitação
palpável ou audível à mobilização e diminuição ou perda da
função articular. Aumento de volume e de temperatura articular,
hipotrofia muscular adjacente, deformidades e nódulos também
podem ser observados.2
Tem sido relatado que, em decorrência dessas alterações,
pacientes com OA reduzem paulatinamente a atividade física,
com consequente piora da qualidade de vida.3,4 Estudo populacional com 4.573 pacientes com OA, aos quais foi aplicada
a versão por correspondência do questionário do Centers for
Disease Control and Prevention (CDC) para avaliação da qualidade de vida relacionada à saúde (Health-Related Quality Of
Life – HRQOL), mostrou que grande parte desses indivíduos
apresentou piora dos escores nos itens relacionados a saúde
Recebido em 10/05/2010. Aprovado, após revisão, em 30/08/2011. Os autores declaram a inexistência de conflito de interesses. Comitê de Ética: 2430/2007.
Faculdade de Medicina de Botucatu, Departamento de Clínica Médica, Universidade Estadual Paulista – UNESP.
1. Mestre em Fisiopatologia em Clínica Médica pela Universidade Estadual Paulista – UNESP; Professor MSc do Instituto de Saúde e Biotecnologia de Coari,
Universidade Federal do Amazonas – UFAM
2. Professora Titular do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Botucatu, UNESP
3. Professora-Assistente Doutora da Disciplina de Reumatologia da Faculdade de Medicina de Botucatu, UNESP
Correspondência para: Profª Drª Beatriz Funayama Alvarenga Freire. Departamento de Clínica Médica, Disciplina de Reumatologia, Faculdade de Medicina de
Botucatu – UNESP. Av. Rubião Júnior, s/nº - Rubião Júnior. CEP: 18603-970. Botucatu, SP, Brasil. E-mail: [email protected]
544
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):539-549
Atividade física e sua associação com qualidade de vida em pacientes com osteoartrite
geral, saúde física, limitação de atividades, saúde mental e
alterações do sono.5
O tratamento medicamentoso pode, em parte, controlar
os sintomas, e medidas não farmacológicas ocupam lugar de
destaque na terapia da OA. Exercícios físicos,6,7 fisioterapia e
terapia ocupacional8,9 estão relacionados à melhora da atividade
física e da qualidade de vida.
Por ser uma doença de elevada prevalência, a OA é,
em geral, diagnosticada e tratada nas Unidades Básicas de
Saúde, por médicos generalistas e do Programa de Saúde
da Família.
Por essa razão, o objetivo do presente trabalho foi verificar,
por meio de questionários genéricos e específicos, a qualidade
de vida e sua associação com a atividade física em pacientes
com OA encaminhados pelas Unidades Básicas de Saúde para
tratamento especializado em um serviço universitário.
PACIENTES E MÉTODOS
Trata-se de um estudo transversal, descritivo, de série de casos,
em que foram avaliadas a atividade física e a qualidade de vida
de pacientes com OA atendidos pela primeira vez nos ambulatórios de reumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade
de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista
(UNESP). Os pacientes estavam sendo tratados em Unidades
Básicas de Saúde da região e foram encaminhados ao nosso
serviço para avaliação e orientação terapêutica especializada.
A região compreende o centro-oeste do estado de São Paulo,
com população de cerca de 1.650.000 habitantes. O diagnóstico
de OA foi confirmado por médico reumatologista experiente
conforme os critérios do American College of Rheumatology
para classificação de OA.10–12 O estudo foi aprovado pelo
Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de
Botucatu, UNESP, sob número 2430/2007.
Os critérios de inclusão foram: pacientes de ambos os
gêneros, com idade acima de 40 anos e diagnóstico de OA de
quadril, joelhos, mãos e/ou coluna, recebendo ou não, conforme
indicação clínica, tratamento medicamentoso e/ou fisioterápico
e que assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
Os critérios de exclusão foram: indivíduos com prótese total ou
parcial em alguma das articulações avaliadas, com diagnóstico
concomitante de outras doenças osteoarticulares/musculares
como artrite reumatoide, fibromialgia, lúpus eritematoso
sistêmico ou outras doenças reumáticas, com alterações cognitivas graves ou que não concordaram em assinar o termo de
consentimento livre e esclarecido.
Após consulta médica, os pacientes incluídos no estudo
foram entrevistados por um fisioterapeuta para avaliação da
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):539-549
atividade física, da qualidade de vida e da intensidade da dor. A
atividade física foi avaliada pelo International Physical Activity
Questionnaire (IPAQ).13 A qualidade de vida foi avaliada pelos
questionários Medical Outcomes Study 36 Short-Form Health
Survey (SF-36),14 Western Ontario and McMaster Universities
Index (WOMAC)15,16 e Australian/Canadian Osteoarthritis
Hand Index (AUSCAN).17,18 Para a quantificação do sintoma
doloroso, os pacientes foram avaliados pela Escala Visual
Analógica (EVA).19
Avaliação da atividade física: utilizou-se o IPAQ, v.8,
forma longa, contendo perguntas referentes à frequência e à
duração da realização de atividades físicas. Esse instrumento
permite estimar tanto o tempo semanal gasto na realização das
atividades físicas em diferentes contextos da vida (trabalho,
tarefas domésticas, transporte e lazer) quanto o despendido
em atividades passivas, realizadas na posição sentada. Os
pacientes são classificados em quatro categorias: sedentário,
insuficientemente ativo, ativo e muito ativo.13
Avaliação da qualidade de vida: utilizou-se um instrumento
genérico, o SF-36, e dois instrumentos específicos para OA,
o WOMAC e o AUSCAN. O SF-36 contém oito domínios:
capacidade funcional, aspectos físicos, dor, estado geral de
saúde, vitalidade, aspectos sociais, aspectos emocionais e
saúde mental. Os quatro primeiros (capacidade funcional,
aspectos físicos, dor, estado geral de saúde) avaliam a saúde
física, e os quatro últimos (vitalidade, aspectos sociais, aspectos
emocionais e saúde mental), a saúde mental. A pontuação de
cada domínio varia de 0 a 100, em que 0 corresponde ao pior
estado de saúde e 100 ao melhor. Cada domínio é analisado
separadamente, e não há escore total.14
Utilizou-se o WOMAC para pacientes com OA de joelho
e/ou quadril, instrumento que avalia três domínios (dor, rigidez
e disfunção física) percebidos nas últimas 72 horas. O escore
final é dado pela somatória dos pontos de todos os domínios,
e varia de 0 a 100 pontos. Quanto menor o valor, melhor o
estado de saúde do paciente.15 Para avaliação de pacientes com
OA de mãos utilizou-se o AUSCAN, instrumento que avalia
três domínios (dor, rigidez e disfunção física) percebidos nas
últimas 72 horas. O escore máximo possível é 10 para cada
domínio, e quanto menor o valor, melhor o estado de saúde
do paciente.17,18,20
Para avaliação da intensidade da dor utilizou-se a EVA,
que consiste em uma reta de 10 centímetros de comprimento
desprovida de números, na qual há apenas indicação na extremidade esquerda de “ausência de dor” e na extremidade
direita de “dor insuportável”. O paciente é instruído a marcar
um ponto que indique a intensidade da dor, e quanto maior o
escore, maior a intensidade da mesma.19
545
Figueiredo Neto et al.
Análise estatística
O estudo do perfil dos participantes foi estabelecido utilizandose estatística descritiva. Foram realizadas medidas de posição e
variabilidade, assim como cálculos de frequências absoluta e
relativa percentuais. O coeficiente de correlação linear de Pearson
foi adotado como medida de intensidade de associação entre os
questionários SF-36 e WOMAC, entre os questionários SF-36 e
IPAQ e entre o SF-36 e a EVA. Para associação entre as variáveis
qualitativas empregou-se o teste de Goodman. O teste t de Student
foi utilizado para comparar diferenças entre os grupos ativo e sedentário. O teste não paramétrico de Mann-Whitney foi utilizado
para as amostras independentes sempre que os domínios do SF-36
não apresentavam distribuição normal. A associação entre EVA
e IPAQ foi feita com base em um modelo de regressão logística
para dados ordinais, considerando o IPAQ a variável-resposta. O
nível de significância considerado foi de 5%.21
RESULTADOS
A amostra foi composta de 100 pacientes (92 mulheres e oito
homens), com média de idade de 59,9 ± 9,4 anos (variação
40–85), encaminhados ao nosso serviço pelas Unidades Básicas
de Saúde da região. As articulações mais comprometidas foram
os joelhos (96 pacientes), seguidos pelas mãos (90 pacientes),
quadril (24 pacientes) e coluna (14 pacientes). Em 10 pacientes
havia comprometimento de uma única articulação (mão, joelho
ou quadril); em 69 de duas; em oito de três; e em 13 de quatro.
A Tabela 1 apresenta as medidas descritivas em cada um
dos domínios do SF-36 e do AUSCAN e os escores totais do
WOMAC e da EVA. Observa-se que no SF-36, aplicado a
todos os pacientes, os maiores escores foram nos domínios
“aspectos sociais” e “aspectos emocionais”, e o menor, no
domínio “aspectos físicos”. O escore médio do WOMAC,
aplicado aos 98 pacientes com comprometimento de joelho e/
ou quadril, foi baixo, assim como os escores médios dos três
domínios do AUSCAN, aplicado aos 90 pacientes com OA de
mãos. Na avaliação subjetiva da intensidade da dor articular
referida pela EVA, 75 pacientes apontaram mais que 80 mm
na escala analógica, indicando, portanto, dor intensa.
Pelo IPAQ, também aplicado a todos os pacientes, identificou-se que oito indivíduos eram muito ativos, 62 eram ativos, 26 eram
insuficientemente ativos e quatro eram sedentários. Para a análise
estatística, os pacientes foram agrupados em duas categorias: pacientes ativos ou muito ativos (n = 70), denominado grupo ativo,
e pacientes insuficientemente ativos ou sedentários (n = 30), denominado grupo sedentário. Não houve diferença estatisticamente
significante entre a média de idade dos dois grupos (58,6 ± 9,1
vs. 62,8 ± 9,6). Quanto ao número de articulações acometidas, o
546
grupo ativo tinha 48 pacientes com duas articulações envolvidas,
12 pacientes com três e 10 pacientes com acometimento de uma
única articulação. No grupo sedentário havia 21 pacientes com
envolvimento de duas articulações, nove com três e nenhum com
acometimento único (Tabela 2).
A comparação entre os grupos ativo e sedentário e os valores médios dos domínios do SF-36 e AUSCAN e o escore do
WOMAC estão na Tabela 3. Observa-se que o grupo sedentário
obteve piores resultados na qualidade de vida avaliada pelo
WOMAC e pelos domínios “capacidade funcional”, “aspectos
físicos” e “dor” do SF-36 e domínio “função articular” do
AUSCAN, mostrando que a piora da qualidade de vida está
relacionada aos aspectos físicos.
Os resultados da avaliação pela EVA mostraram que 75
pacientes marcaram 80 mm ou mais, isto é, dor intensa. Na
Tabela 1
Medidas descritivas das variáveis quantitativas. Médias ±
desvio-padrão dos escores obtidos no WOMAC, nos domínios
do SF-36 e AUSCAN e na EVA em pacientes com OA
Variável
Média ± DP
Variação
WOMAC
27,1 ± 18,9
0–66,7
SF-36-CF
37,9 ± 30,9
0–100
SF-36-AF
29,3 ± 42,8
0–100
SF-36-Dor
39,6 ± 23,6
0–100
SF-36-EGS
64,1 ± 26,3
0–100
SF-36-Vit
52,3 ± 28,1
0–100
SF-36-AS
71,5 ± 31,9
0–100
SF-36-AE
71,3 ± 44,2
0–100
SF-36-SM
54,8 ± 28,1
0–100
AUSCAN-Dor
2,8 ± 2,9
0–9,5
AUSCAN-Rig
3,3 ± 3,2
0–10
AUSCAN-Func
2,9 ± 3,2
0–9,2
EVA
55,1 ± 3,2
0–100
CF: capacidade funcional; AF: aspectos físicos; EGS: estado geral de saúde; Vit: vitalidade;
AS: aspectos sociais; AE: aspectos emocionais; SM: saúde mental; Rig: rigidez; Func: função.
Tabela 2
Número de articulações acometidas em pacientes com OA
classificados segundo o IPAQ em sedentários ou ativos
IPAQ
Número de articulações envolvidas
Três
Total
Uma
Duas*
Sedentários
0 (0)
21 (70%)
9 (30%)
Ativos
10 (14,3%)
48 (68,6%)
12 (17,1%)
70
Total
10
69
21
100
30
*P < 0.0001.
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):539-549
Atividade física e sua associação com qualidade de vida em pacientes com osteoartrite
avaliação pelo SF-36, a dor representou fator importante na
queda da qualidade de vida (Tabelas 1, 3, 4 e 5). No ajuste do
modelo logístico considerando o IPAQ variável-resposta ordinal e a EVA variável-explanatória não foi obtida associação
entre as mesmas (P = 0,4097).
As associações entre os domínios do SF-36 e o escore
de WOMAC e EVA estão mostradas na Tabela 4, na qual se
observa que a piora da qualidade de vida é detectada quando
avaliada tanto por um instrumento genérico quanto por um
específico para OA de quadril e de joelho. Também é possível
observar que a dor avaliada pela EVA associou-se significativamente aos diversos aspectos da qualidade de vida – isto é,
quanto mais intensa a dor, pior a qualidade de vida.
A associação entre qualidade de vida avaliada por um instrumento genérico, SF-36, e um específico para OA de mãos,
AUSCAN, pode ser vista na Tabela 5. Observou-se que dor,
rigidez e piora da função articular das mãos, detectados no
questionário específico, associaram-se a piora dos aspectos
físicos, do estado geral da saúde e da vitalidade no questionário
genérico. Entretanto, não houve associação a três dos domínios
Tabela 3
Medidas descritivas das variáveis do SF-36, do WOMAC e
do AUSCAN em pacientes com OA classificados segundo o
IPAQ em sedentários ou ativos
Variável
Grupo
P
Sedentários
Ativos
WOMAC
32,8 ± 19,8
24,7 ± 18,1
< 0,05*
SF-36-CF
21,5 ± 20,9
44,7 ± 32
< 0,001*
SF-36-AF
9,2 ± 24,1
37,9 ± 49,1
< 0,005*
SF-36-Dor
35 ± 15,6
41,5 ± 26,1
< 0,01*
SF-36-EGS
54,3 ± 26,9
68,3 ± 25,0
> 0,05
SF-36-Vit
48 ± 26,1
54,6 ± 28,8
> 0,05
SF-36-AS
64,2 ± 32,3
74,6 ± 31,5
> 0,05
SF-36-AE
66,7 ± 47,9
73,3 ± 42,7
> 0,05
SF-36-SM
51,1 ± 25,5
56,5 ± 29,1
> 0,05
AUSCAN-Dor
3,4 ± 3,1
2,5 ± 2,8
> 0,05
AUSCAN-Rig
3,7 ± 3,1
3,1 ± 3,2
> 0,05
AUSCAN-Func
4,3 ± 2,6
2,2 ± 2,5
< 0,05*
CF: capacidade funcional; AF: aspectos físicos; EGS: estado geral de saúde; Vit: vitalidade; AS: aspectos
sociais; AE: aspectos emocionais; SM: saúde mental; Rig: rigidez; Func: função.
*P < 0,05 = significante.
Tabela 4
Medidas de associação linear entre domínios do SF-36, do WOMAC e da EVA em pacientes com OA
Variável
CF
AF
Dor
EGS
Vit
AS
AE
SM
WOMAC
-0,719*
-0,446*
-0,624*
-0,379*
-0,513*
-0,393*
-0,282**
-0,397*
EVA
-0,539*
-0,343*
-0,507*
-0,360*
-0,428*
-0,273*
-0,239*
-0,416*
CF: capacidade funcional; AF: aspectos físicos; EGS: estado geral de saúde; Vit: vitalidade; AS: aspectos sociais; AE: aspectos emocionais; SM: saúde mental.
*P < 0,001; **P < 0,01.
Tabela 5
Medidas de associação linear entre os domínios do SF-36 e do AUSCAN em pacientes com OA
Domínios
CF
AF
AE
SM
AUSCAN-Dor
AUSCAN-Rig
AUSCAN-Func
SF-36-CF
—
0,603**** 0,587**** 0,438**** 0,444**** 0,313***
0,192
0,318***
-0,535****
-0,405****
-0,588****
—
0,363**** 0,349***
-0,296****
SF-36-AF
SF-36-Dor
SF-36-EGS
SF-36-Vit
SF-36-AS
SF-36-AE
SF-36-SM
AUSCAN-Dor
AUSCAN-Rig
Dor
EGS
Vit
AS
0,590**** 0,435**** 0,388**** 0,401***
—
-0,203
-0,325****
0,432**** 0,505**** 0,358**** 0,207
0,420**** -0,283**
-0,159
-0,311***
—
0,477**** 0,435**** 0,252*
—
0,457**** -0,256*
-0,216
-0,337***
0,524**** 0,419**** 0,725**** -0,237*
-0,147
-0,314***
—
0,489**** 0,623**** -0,172
-0,143
-0,218
—
0,571**** -0,131
-0,162
-0,122
—
-0,121
-0,110
-0,151
—
0,780****
0,855****
—
0,681****
AUSCAN-Func
—
CF: capacidade funcional; AF: aspectos físicos; EGS: estado geral de saúde; Vit: vitalidade; AS: aspectos sociais; AE: aspectos emocionais; SM: saúde mental; Rig: rigidez; Func: função.
*P < 0,05; **P < 0,01; ***P < 0,005; ****P < 0,001.
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):539-549
547
Figueiredo Neto et al.
do SF-36 que avaliam saúde mental (aspectos sociais, aspectos
emocionais e saúde mental).
DISCUSSÃO
Nossa série é composta por pacientes tratados em Unidades
Básicas de Saúde da região de onde foram encaminhados para
avaliação e orientação terapêutica especializada. Reflete, portanto, um universo de pacientes com OA cuidados na atenção
primária por médicos generalistas e/ou do Programa de Saúde
da Família.
Nossos resultados são concordantes com aqueles amplamente descritos na literatura, segundo os quais, na OA, a redução da atividade física está relacionada a comprometimento
articular e, consequentemente, a piora da qualidade de vida,
inclusive da saúde mental.5,22–24 Apenas, diferentemente dos
achados de Dominick et al.,5 nossos pacientes não apresentaram comprometimento dos aspectos emocionais, talvez por
serem mais jovens e terem menos tempo de doença.
Foram utilizados questionários genéricos e específicos na
avaliação da qualidade de vida para reduzir possíveis discrepâncias de resultados, uma vez que os instrumentos específicos
mostram-se mais sensíveis que os genéricos.25,26 Em nossa
série, a piora da qualidade de vida foi detectada por ambos os
instrumentos, sugerindo que possam ser úteis no atendimento
clínico de rotina da atenção básica.
Embora a maioria de nossos pacientes tenha sido considerada ativa quando avaliada pelo IPAQ, tanto pacientes
ativos como sedentários tiveram a redução da qualidade de
vida identificada nos domínios diretamente ligados à função
física (capacidade funcional, aspectos físicos e dor). A dor
foi evidenciada especialmente em pacientes com comprometimento de joelhos e/ou quadris, como frequentemente
descrito para articulações de carga,27,28 enquanto pacientes
com comprometimento de articulações de mãos apresentaram maior prejuízo da função articular, possivelmente pelas
características de movimento mais refinados não dependentes
de carga.
Os resultados obtidos na avaliação da dor pela EVA foram
discrepantes em relação aos obtidos pelos questionários –
isto é, a dor referida pela EVA era muito mais intensa que
aquela referida nos questionários. Essa discrepância pode
estar associada à metodologia utilizada para avaliação do
sintoma dor, ora por meio de um sinal gráfico, ora por meio
de perguntas. Além disso, a dor pela EVA é referida no momento da entrevista, enquanto o WOMAC refere-se à dor
nas últimas 72 horas. Deve-se destacar, outrossim, o caráter
subjetivo da EVA, assim como a capacidade de compreensão
548
que os pacientes têm dos objetivos e da maneira correta em
responder à avaliação visual. Essas considerações sugerem
uma limitação da utilização de uma EVA para quantificação
da dor na população estudada. Além disso, nossos dados não
mostraram associação entre intensidade da dor e atividade
física (EVA vs. IPAQ, P = 0,4097); assim, mesmo com dor
articular intensa, os indivíduos mantinham as atividades de
trabalho, tarefas domésticas, transporte e lazer.
Se de maneira lógica o número de articulações acometidas
relacionou-se ao grau de atividade física, uma vez que todos
os pacientes classificados como sedentários tinham mais
que duas articulações comprometidas, por outro lado não foi
possível verificar a associação entre atividade física e tipo de
articulação acometida, porque a maioria dos pacientes estudados (97) tinha comprometimento de articulações de mãos e
de pelo menos uma articulação de membros inferiores. Esse
achado é similar aos resultados dos estudos de prevalência de
OA que mostram elevado comprometimento articular múltiplo
que aumenta com a idade.29
Uma limitação do presente trabalho é o fato de os pacientes
estarem em terapia medicamentosa de acordo com suas necessidades individuais. Entretanto, nosso objetivo foi verificar a
associação entre atividade física e qualidade de vida em pacientes com OA tratados na atenção primária, sem intervenção
do serviço especializado.
Em resumo, verificou-se que o perfil dos pacientes com
OA encaminhados pelas Unidades Básicas de Saúde para
um serviço universitário é de indivíduos que apresentam
duas articulações envolvidas, referem dor articular intensa,
são ativos nos diferentes contextos da vida e apresentam
maior prejuízo nos aspectos físicos da qualidade de vida
em comparação aos emocionais, assemelhando-se às demais
séries descritas na literatura, embora com média de idade
um pouco menor.
Salientamos a importância epidemiológica do presente
estudo, por se tratar de uma série de 100 pacientes com OA
tratados na atenção básica na região Centro-Oeste do estado
de São Paulo, cujos resultados mostram perfis de atividade
física para manutenção da rotina diária (no trabalho, nas tarefas
domésticas, no transporte e no lazer) e de qualidade de vida
semelhante aos descritos na literatura.
CONCLUSÃO
Na população de pacientes com OA encaminhados das
Unidades Básicas de Saúde para um serviço universitário, a
maioria apresenta piora dos aspectos físicos da qualidade de
vida, mas mantém as atividades físicas cotidianas.
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):539-549
Atividade física e sua associação com qualidade de vida em pacientes com osteoartrite
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem aos Professores Carlos Roberto
Padovani e José Eduardo Corrente pela análise estatística, e
ao Prof. Nicholas Bellamy por permitir o uso do AUSCAN
para finalidades acadêmicas.
REFERENCES
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549
ARTIGO ORIGINAL
Alterações oftalmológicas decorrentes do tratamento
do lúpus eritematoso sistêmico juvenil
Melissa Mariti Fraga1, Claudio Arnaldo Len2, Luciana Peixoto dos Santos Finamor3,
Kimble Teixeira Fonseca Matos3, Cristina Muccioli4,
Maria Odete Esteves Hilário5, Maria Teresa Ramos Ascensão Terreri2
RESUMO
Objetivo: Avaliar retrospectivamente as alterações oftalmológicas de crianças e adolescentes com lúpus eritematoso sistêmico
juvenil (LESJ) em um serviço de reumatologia pediátrica terciário. Métodos: Avaliamos 117 pacientes com LESJ (85,5%
do gênero feminino, 60,7% não caucasoides) com média de idade de 10,4 anos e média de tempo de evolução da doença
de 5,4 anos que preenchiam no mínimo quatro critérios de classificação do LES de acordo com o American College of
Rheumatology de 1997. Aplicamos um protocolo que continha dados clínicos e demográficos, queixas e alterações oftalmológicas, idade do início, tempo de uso e dose cumulativa das medicações. Resultados: Dos 117 pacientes, 24 (20,5%)
apresentaram alterações oftalmológicas. Destes, 16 apresentaram alteração de fundo de olho associada a hipertensão arterial
sistêmica e/ou uso de cloroquina, quatro apresentaram catarata, dois apresentaram glaucoma e dois apresentaram catarata e
glaucoma. A média de idade do aparecimento das alterações oftalmológicas foi de 14,1 anos. Os pacientes com alterações
oftalmológicas receberam, estatisticamente, maiores doses e tempos de pulsoterapia de glicocorticoide em relação aos pacientes sem alterações oftalmológicas [1,5 (0,4–1,6) versus 1 (0,2–1,6) mg/kg, P = 0,003; 25,7 (2–99) versus 17,8 (1–114)
meses, P = 0,0001; respectivamente]. Conclusão: Verificamos alta prevalência de alterações oftalmológicas relacionadas
principalmente ao tratamento do LESJ, o que demonstra a necessidade de avaliações regulares mesmo em pacientes assintomáticos, visando ao diagnóstico e intervenção precoces e à diminuição da morbidade ocular relacionada a essa doença.
Palavras-chave: doenças autoimunes, olho, glicocorticoides, adolescente.
© 2011 Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados.
INTRODUÇÃO
O lúpus eritematoso sistêmico juvenil (LESJ) é uma doença
inflamatória crônica, multissistêmica, de causa desconhecida
e de natureza autoimune, que se inicia antes dos 18 anos. A
doença pode ocorrer em todas as raças. Na infância, meninas
são afetadas 4,5 vezes mais que os meninos.1–4 De todos os
casos de LES, 15%–17% se desenvolvem na infância.5,6 É raro
o aparecimento da doença antes dos 5 anos de idade.
Para o diagnóstico de LES são utilizados os critérios de classificação propostos pelo American College of Rheumatology7
em 1982 e revisados em 1997.8
Diversos medicamentos são utilizados para o tratamento do
LESJ, dos quais os principais são os glicocorticoides, a hidroxicloroquina/difosfato de cloroquina e os imunossupressores
como azatioprina, ciclosporina, ciclofosfamida e micofenolato
mofetila.
Qualquer parte do olho ou do sistema visual pode ser
afetada por processos trombóticos ou inflamatórios. A doença
oftalmológica pode ser assintomática ou levar à cegueira, e
pode não haver relação entre as manifestações oftalmológicas
e atividade da doença. As manifestações oftalmológicas do
LES variam desde acometimento das pálpebras pela doença
mucocutânea até doença vascular retiniana e envolvimento
neuro-oftálmico.9–12 Esclerite, episclerite, uveíte anterior e olho
seco são alguns dos acometimentos oftalmológicos.
As manifestações de fundo de olho do LES consistem,
geralmente, em manchas algodonosas com ou sem hemorragias
intrarretinianas, papiledema, hiperemia e edema retinianos,
os quais podem ocorrer mesmo na ausência de hipertensão
Recebido em 11/01/2011. Aprovado, após revisão, em 30/08/2011. Os autores declaram a inexistência de conflito de interesses. Comitê de Ética: 337749.
Universidade Federal de São Paulo. Setor de Reumatologia Pediátrica. Departamento de Pediatria. Setor de Uveíte. Departamento de Oftalmologia.
1. Reumatologista Pediatra; Pós-graduanda do setor de Reumatologia Pediátrica, Departamento de Pediatria – Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP
2. Reumatologista Pediatra; Professor-Adjunto de Pediatria da UNIFESP
3. Doutor em Oftalmologia; Médico-Assistente de Oftalmologia da UNIFESP
4. Doutora em Oftamologia; Professora-Adjunta de Oftalmologia da UNIFESP
5. Reumatologista Pediatra; Professora-Associada de Pediatria da UNIFESP
Correspondência para: Maria Teresa Terreri. Rua Borges Lagoa, 802 – Vila Mariana. CEP: 04038-001. São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected]
554
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):550-557
Alterações oftalmológicas decorrentes do tratamento do lúpus eritematoso sistêmico juvenil
intracraniana.13 Oclusão das grandes arteríolas por espasmo e
trombose também é descrita e ocorre associada a vasculite.12
Além das manifestações oftalmológicas próprias da doença, existem aquelas decorrentes do uso de medicações ou
de complicações da doença, como a hipertensão arterial ou a
doença tromboembólica.
O objetivo deste estudo foi avaliar as alterações encontradas
no exame oftalmológico de pacientes com LESJ e suas relações
com o tratamento específico da doença.
MATERIAL E MÉTODOS
Foram analisados, através de revisão de prontuários, as características demográficas e clínicas e os dados sobre a terapia de
117 pacientes, acompanhados de 1994 a 2009, com diagnóstico
de LESJ de acordo com os critérios de classificação propostos
pelo American College of Rheumatology em 19827 e revisados
em 1997.8 Como critérios de inclusão foram considerados
todos os pacientes com prontuário completo e disponível e
com tempo de evolução de pelo menos seis meses de doença.
Aplicamos um protocolo com dados clínicos e demográficos, envolvimento sistêmico, doenças associadas, queixas e
alterações oftalmológicas, idade do início, tempo de uso das
medicações e dose cumulativa de glicocorticoide.
A atividade da doença foi medida pelo Systemic Lupus
Erythematosus Disease Activity Index 2000 (SLEDAI-2K).14
O dano cumulativo da doença foi avaliado pelo Systemic Lupus
International Collaborating Clinics/American College of
Rheumatology damage index for systemic lupus erythematosus
(SLICC/ACR- DI).15
Os pacientes deste estudo foram submetidos ao exame oftalmológico, no serviço de oftalmologia da mesma instituição, a
intervalos semestrais. O exame oftalmológico constou de medida
de acuidade visual, biomicroscopia para avaliação da superfície
ocular, tonometria e oftalmoscopia binocular indireta. Em alguns
casos, quando havia indicação, era realizada campimetria.
Foram considerados com hipertensão arterial sistêmica os
pacientes em cujo prontuário médico constava a informação de
pressão arterial com níveis sistólicos e/ou diastólicos maiores
ou iguais a p95 da tabela de níveis de pressão arterial conforme
gênero, altura e idade em três ou mais ocasiões.16 A presença
de anticorpo anticardiolipina foi registrada.
Para avaliar a associação entre as variáveis dicotômicas,
utilizou-se o teste do qui-quadrado. As variáveis contínuas foram
submetidas ao teste de normalidade de Kolmogorov-Smirnov. Para
a comparação entre os dois grupos, utilizou-se o teste t de Student
para as variáveis paramétricas, e o teste de Mann-Whitney para as
não paramétricas. Adotou-se significância menor que 5% (P < 0,05).
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):550-557
O estudo foi aprovado pelo comitê de ética da Universidade
Federal de São Paulo.
RESULTADOS
Dos 117 pacientes avaliados, 85,5% eram do gênero feminino e
60,7% eram não caucasoides. A média de idade na avaliação foi
de 10,4 anos. O tempo médio para o diagnóstico do LESJ foi de
9,9 meses, e o tempo médio de evolução da doença foi de 5,4 anos.
Desses pacientes, 24 (20,5%) apresentaram alteração oftalmológica em algum momento do seguimento clínico: 16 com
alterações em fundo de olho, quatro com catarata subcapsular
posterior, dois com glaucoma e dois com glaucoma e catarata
subcapsular posterior. Destes, 21 (87,5%) pacientes eram do
gênero feminino e 16 (66,7%) não caucasoides; a média de
idade no diagnóstico do LESJ foi de 11,4 anos, e o tempo para
o diagnóstico do LESJ variou de 1 a 22 meses, com média de
4,7 meses. A média de idade dos pacientes no início da alteração
oftalmológica foi de 14,1 anos, com variação entre 5 e 16,2 anos.
No momento do diagnóstico da manifestação oftalmológica, a média do SLEDAI-2K foi de 4,2 (variando de 0 a 23),
e a média do SLICC/ACR-DI foi de 1 (variando de 0 a 3 ).
Os dados clínico-demográficos dos pacientes com e sem
alteração oftalmológica estão representados na Tabela 1.
Tabela 1
Dados clínico-demográficos dos pacientes com LESJ (n = 117)
com ou sem alteração oftalmológica
LESJ
Sem alteração Com alteração
oftalmológica oftalmológica
P
Gênero feminino
79 (84,9%)
21 (87,5%)
NS
Não caucasoide
55 (59,1%)
16 (66,7%)
NS
Idade na alteração oftalmológica
(anos) (mínima-máxima)
—
14,1 (5–16,2)
Tempo de evolução da doença
(anos) (mínima-máxima)
5 (0,2–14)
5,8 (0,6–13,8)
NS
Pacientes em uso de CE
9 (100%)
24 (100%)
Dose máxima de CE (mg/kg)
1 (0,2–1,6)
1,5 (0,4–1,6)
0,003*
Duração do tratamento
com CE (meses)
27,8 (1–107)
29 (3–103)
NS
Pacientes que fizeram uso
de pulsoterapia com CE
74 (79,6%)
20 (83,3%)
NS
Tempo médio de duração
da pulsoterapia (meses)
17,8 (1–114)
25,7 (2–99)
0,000§
Pacientes em uso de cloroquina 93 (100%)
24 (100%)
—
Pacientes em uso de outros
imunossupressores
66 (70,9%)
13 (54%)
NS
Total de pacientes
93
24
—
CE: glicocorticoide; NS: não significante (P > 0,05).
*t de Student (teste estatístico). §Mann-Whitney (teste estatístico).
555
Fraga et al.
Quatro dos 24 pacientes (16,7%) apresentaram queixas
oftalmológicas. Destes, dois pacientes (8,3%) queixavam-se de
hiperemia ocular, um paciente (4,2%) tinha queixa de prurido,
e um paciente (4,2%), de ardência.
Dos 24 pacientes com alteração oftalmológica, sete (29,1%)
apresentavam anticorpo anticardiolipina positiva: dois apresentaram catarata, um evoluiu com glaucoma, um apresentou papiledema, e três apresentaram alteração de mácula. Nenhum desses
pacientes apresentou síndrome do anticorpo antifosfolípide.
A idade do aparecimento da catarata foi de 11 a 17,7 anos
(média de 13,8 anos). A duração do uso de glicocorticoide
nos seis pacientes que apresentaram catarata variou de 10 a
84 meses (média de 45 meses). Esses pacientes receberam
pulsoterapia com metilprednisolona na dose de 30 mg/kg/dia
por três dias em um período que variou de 2 a 99 meses. A
dose cumulativa de glicocorticoide encontrada foi de 35,5 g a
97,3 g. A idade de início do uso de glicocorticoide variou de
7,9 a 14,3 anos, com média de 13,8 anos.
A idade de aparecimento de glaucoma variou de 10,9 a 14,2
anos (média de 12,3 anos). A duração do uso de glicocorticoide
nos pacientes que evoluíram com essa complicação variou de 3 a
53 meses (média de 21 meses). A dose cumulativa de glicocorticoide foi de 5 g a 40,5 g. Um paciente apresentou perda de visão
unilateral irreversível secundária a glaucoma corticogênico.
Os 24 pacientes com alguma alteração ocular estavam
em uso de glicocorticoide e hidroxicloroquina/difosfato de
cloroquina no momento da alteração oftalmológica.
Os pacientes com alterações oftalmológicas receberam
estatisticamente maiores doses e tempos de pulsoterapia com
glicocorticoide em relação aos pacientes sem alterações oftalmológicas [1,5 (0,4–1,6) versus 1 (0,2–1,6) mg/kg, P = 0,003;
25,7 (2–99) versus 17,8 (1–114) meses, P = 0,0001; respectivamente]. Não houve diferença estatística nos outros parâmetros
avaliados (Tabela 1).
Dos 16 pacientes com alteração no fundo de olho, oito
(50%) apresentaram alteração em mácula associada ao uso de
cloroquina (três em uso de hidroxicloroquina, dois em uso de
difosfato de cloroquina e três em uso de difosfato de cloroquina e
posteriormente hidroxicloroquina). Esses pacientes tinham uma
duração média de uso da medicação de 2,7 anos (de 1 a 5 anos).
A média de idade do aparecimento da alteração oftalmológica
relacionada ao uso de hidroxicloroquina/difosfato de cloroquina foi de 14,6 anos. Três pacientes (37,5%) com alteração em
mácula tiveram de suspender o uso da cloroquina (dois em uso
de difosfato de cloroquina e um em uso de hidroxicloroquina).
Doze (50%) dos 24 pacientes apresentavam diagnóstico de
hipertensão arterial sistêmica (HAS); destes, oito faziam uso de
556
um ou mais medicamentos anti-hipertensivos. Dos pacientes
hipertensos, três (25%) apresentaram manchas algodonosas
e papiledema, o que é compatível com a hipertensão arterial.
Não encontramos descrição de vasculite retiniana ou uveíte
em nenhum paciente.
DISCUSSÃO
A maioria dos trabalhos tem descrito alterações oftalmológicas relacionadas ao LES, e mais raramente são descritas
alterações consequentes a medicações ou complicações da
doença. Entretanto, publicações em pediatria são escassas.17
Em um trabalho com 52 pacientes com LESJ, foi observada
uma frequência de 34,6% de alterações oftalmológicas. Destes
pacientes, 61,1% apresentavam um tempo de evolução do LESJ
superior a um ano.17
De acordo com relatos da literatura, a prevalência de alterações retinianas decorrentes do LES varia de 3% a 50% dos
pacientes adultos.18,19 Em nossa casuística, a frequência de
alterações oftalmológicas foi menor (20%).
Descrições na literatura apontam para uma frequência de
cerca de 70% de ceratoconjuntivite seca em pacientes com
LES.20 No exame de biomicroscopia para avaliação da superfície ocular não encontramos essa associação.
A manifestação oftalmológica representou frequentemente
uma manifestação tardia, pois foi decorrente, na maioria das
vezes, de complicações do tratamento, levando a catarata,
glaucoma e alteração de fundo de olho.
Encontramos alterações oftalmológicas exclusivamente
decorrentes do uso de medicações como glicocorticoide ou
cloroquina ou consequentes da hipertensão arterial sistêmica.
A biomicroscopia foi realizada rotineiramente em todos os
pacientes, porém não foi encontrada uveíte. Na literatura, a
uveíte é descrita como achado raro.13
Sabe-se que o glaucoma e a catarata são complicações do
tratamento com glicocorticoides sistêmicos e locais,9 o que
sugere que essa medicação pode estar envolvida na gênese da
alteração oftalmológica.
O acometimento oftalmológico pode evoluir, em casos
graves, para a cegueira legal. Relato de caso em pacientes
com LESJ observou cegueira decorrente de uveíte anterior em
um paciente e vasculite retiniana secundária a infecção ocular
por vírus da varicela-zóster em outro paciente. Os autores
concluem que a atividade da doença e infecções podem levar
a essa sequela oftalmológica grave.21
A cloroquina é descrita como capaz de provocar toxicidade retiniana devido à impregnação em retina. Oito pacientes
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):550-557
Alterações oftalmológicas decorrentes do tratamento do lúpus eritematoso sistêmico juvenil
tiveram alterações em fundo de olho compatíveis com esse
evento adverso. Entretanto, essas alterações são descritas quando o medicamento é usado por mais de cinco anos, o que não
aconteceu com os nossos pacientes, que apresentaram alteração
retiniana mais precoce. Nenhum paciente estava recebendo a
droga em doses superiores às preconizadas. São necessários
exames oftalmológicos regulares a intervalos semestrais, para
que essas alterações possam ser detectadas precocemente.
Três pacientes em uso de cloroquina tiveram necessidade de
suspender essa medicação.
Em um estudo, foi relatado que cerca de 1%–2% dos
pacientes lúpicos apresentavam neurite ou isquemia óptica,
manifestada como perda visual progressiva e palidez de papila.19 Em outro estudo, foram encontradas 5% de alterações
no epitélio pigmentar da retina.22 Não encontramos nenhum
paciente com essas alterações. Pacientes com LES e altos
títulos de anticorpos anticardiolipina têm risco maior de desenvolver doença vascular ocular oclusiva.18 Apesar de termos
encontrado sete pacientes com positividade desse anticorpo,
nenhum apresentou doença tromboembólica.
Serão necessários estudos multicêntricos para avaliar as
alterações oftalmológicas em pacientes com LESJ, de modo
a termos uma população com número mais expressivo de
pacientes. Dessa maneira, será possível estudar eventuais
fatores de risco ou possíveis associações entre a presença
dessas alterações oftalmológicas com dados demográficos,
atividade e gravidade da doença, dano cumulativo, anticorpos
antifosfolípides e tratamento.
Verificou-se neste estudo alta prevalência de alterações de
fundo de olho, relacionadas principalmente ao tratamento do
LES. Concluímos que há necessidade de avaliações periódicas
semestrais mesmo em pacientes assintomáticos ou sem doenças
associadas, visando ao diagnóstico e à intervenção precoces e à diminuição da morbidade oftalmológica relacionada a essa doença.
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557
ARTIGO ORIGINAL
Autoanticorpos na artrite reumatoide
inicial – coorte Brasília – resultados de
uma análise seriada de três anos
Licia Maria Henrique da Mota1, Leopoldo Luiz dos Santos Neto2, Ivânio Alves Pereira3,
Rufus Burlingame4, Henri A. Ménard5, Ieda Maria Magalhães Laurindo6
RESUMO
O valor diagnóstico e prognóstico da análise seriada dos anticorpos como fator reumatoide (FR), anticorpos antipeptídeos
citrulinados cíclicos (anti-CCP) e antivimentina citrulinada (anti-Sa) não está definido nos pacientes com artrite reumatoide
inicial (ERA). Objetivos: Avaliar de forma prospectiva a presença de FR, anti-CCP e anti-Sa em pacientes com ERA.
Pacientes e métodos: Quarenta pacientes da coorte Brasília de ERA (menos de 12 meses) foram avaliados e monitorados
durante três anos. Os dados clínicos e demográficos foram registrados, além dos resultados (ELISA) para FR (IgM, IgG
e IgA), anti-CCP (CCP2, CCP3 e CCP3.1) e anti-Sa na avaliação inicial e aos 3, 6, 12, 18, 24 e 36 meses de acompanhamento. Comparações pelos testes t de Student e t pareado. Resultados: A idade média foi de 45 anos, 90% dos pacientes
do gênero feminino. No momento do diagnóstico, FR foi observado em 50% dos casos (FR IgA 42%, FR IgG 30% e FR
IgM 50%), anti-CCP em 52,5% (não houve diferença entre CCP2, CCP3 e CCP3.1) e anti-Sa em 10%. Após três anos,
não houve diferença na prevalência de FR e anti-CCP, mas a de anti-Sa aumentou para 17,5% (P = 0,001). Conclusão: A
análise repetida do FR e anti-CCP, incluindo aqui diferentes isotipos, durante três anos de acompanhamento, não mostrou
mudanças significativas. A terceira geração do anti-CCP não aumentou o valor diagnóstico dos testes de segunda geração.
Palavras-chave: artrite reumatoide, fator reumatoide, citrulina, vimentina.
© 2011 Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados.
INTRODUÇÃO
A artrite reumatoide (AR) permanece, ainda hoje, como uma
doença crônica, com potencial de danos ósseo e cartilaginoso
irreversíveis, acarretando altos custos para o indivíduo acometido e para a sociedade.
A generalização do conceito de “AR inicial ou precoce”
(ERA) e da existência de uma “janela de oportunidade terapêutica” – período no qual a instituição de terapia adequada para a
doença determinaria melhor evolução clínica – firmou a noção
de que diagnóstico e tratamento precoces podem modificar o
curso da doença.1
Até o momento, os estudos não definiram o valor da
análise seriada dos marcadores sorológicos como o fator
reumatoide (FR), anticorpos antipeptídeos citrulinados cíclicos (anti-CCP) e antivimentina citrulinada (anti-Sa) na
avaliação seriada de pacientes com diagnóstico de ERA.
Estabelecer o comportamento dos marcadores sorológicos ao
longo do tempo, individualmente e em conjunto, é de grande
importância, pois poderia validar ou não a necessidade da
Recebido em 21/01/2011. Aprovado, após revisão, em 30/08/2011. O autor RB trabalha para a INOVA Diagnostics, Inc., onde foram realizados os testes sorológicos. RB não teve acesso aos dados clínicos dos pacientes previamente aos resultados dos exames. Os demais autores declaram a inexistência de conflito
de interesses. Comitê de Ética: CEP-FM 028/2007.
Serviço de Reumatologia, Hospital Universitário de Brasília, Universidade de Brasília – HUB-UnB.
1. Professora-Colaboradora de Clínica Médica e do Serviço de Reumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (FM/UnB); Doutora em
Ciências Médicas pela FM/UnB
2. Doutor em Patologia Clínica pela UnB; Professor-Associado de Clínica Médica e do Serviço de Reumatologia do Hospital Universitário de Brasília – HUB-UnB
3. Doutor em Reumatologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP; Professor da disciplina de Reumatologia da Universidade
Federal de Santa Catarina – UFSC
4. MD, PhD; Sênior da INOVA Diagnostics, Inc., San Diego, Califórnia, EUA
5. MD, PhD; Diretor da Divisão de Reumatologia, McGill University, Montreal, Quebec, Canadá
6. MD, PhD; Professora-Colaboradora do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – HC/FMUSP
Correspondência para: Licia Maria Henrique da Mota. Centro Médico de Brasília. SHLS 716/916 – bloco E, salas 501-502 – Asa Sul. CEP: 71660-020. Brasília,
DF, Brasil. E-mail: [email protected]
564
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):558-571
Autoanticorpos na artrite reumatoide inicial – coorte Brasília – resultados de uma análise seriada de três anos
dosagem rotineira (e repetida durante o acompanhamento)
desses marcadores.
O objetivo deste trabalho foi avaliar prospectivamente o
comportamento dos marcadores sorológicos FR, anti-CCP e
anti-Sa durante o acompanhamento prospectivo por três anos
de uma coorte de pacientes com ERA (menos de 12 meses de
sintomas), a coorte Brasília.
PACIENTES E MÉTODOS
Os dados apresentados fazem parte da coorte Brasília, um estudo prospectivo de coorte incidente em que foram avaliados
40 pacientes consecutivos com o diagnóstico de ERA, acompanhados de forma regular por 36 meses a partir do diagnóstico,
realizado na Clínica de Artrite Reumatoide Inicial do Hospital
Universitário de Brasília – Brasília, DF, Brasil.
Definiu-se AR inicial como a ocorrência de sintomas articulares compatíveis com a doença (dor e edema articulares de
padrão inflamatório, acompanhados ou não de rigidez matinal
ou de outras manifestações sugestivas de doença articular
inflamatória, segundo avaliação por um observador único),
com duração superior a seis semanas e inferior a 12 meses,
independente do preenchimento dos critérios classificatórios do
American College of Rheumatology (ACR)2 – embora, como
será apresentado nos resultados, todos os pacientes tenham
preenchido os critérios classificatórios do ACR.
A titulação dos marcadores sorológicos foi realizada na
avaliação inicial e seriadamente ao longo de 36 meses (avaliações aos 3, 6, 12, 18, 24 e 36 meses).
A pesquisa de FR (IgG, IgM e IgA) foi realizada utilizando os ensaios Quanta LiteTM FR IgA ELISA, Quanta LiteTM
FR IgG ELISA e Quanta LiteTM FR IgM ELISA (INOVA
Diagnostics, CA, EUA), de acordo com o protocolo do fabricante. Foram considerados pontos de corte de positividade
valores superiores a 15 UI/mL (FR IgM e IgA) e 20 UI/mL
(FR IgG).
Anti-CCP foi pesquisado utilizando os ensaios Quanta
LiteTM CCP IgG ELISA, Quanta LiteTM CCP3 IgG ELISA e
Quanta LiteTM CCP3.1 IgG/IgA ELISA (INOVA Diagnostics,
CA, EUA), de acordo com o protocolo do fabricante. O soro
de cada paciente foi diluído inicialmente a 1:100 em amostra
de diluente. Se o resultado de uma amostra fosse superior a
2,5 densidade óptica (OD, do inglês, optical density), ela era
retestada com diluições de 1:500 e 1:2.500, e a unidade de valor
resultante era multiplicada pelo fator de diluição. Os resultados
foram expressos em unidades (U), e foram negativos quando
< 20 U, positivos fracos de 20–39 U, positivos moderados de
40–59 U e positivos fortes quando ≥ 60 U, para todos os ensaios.
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):558-571
O ensaio para detecção de anti-Sa foi realizado nas placas
originais desenvolvidas pelo McGill University Autoimmune
Research Laboratory – ensaio proteína mielina básica (MBP)
bovina ELISA.3 Os resultados, calculados e liberados em unidades, foram negativos quando < 20 U, duvidosos de 21–79 U
e positivos quando ≥ 80 U.
Durante todo o acompanhamento os pacientes receberam o
esquema padrão de tratamento utilizado no serviço, incluindo
drogas modificadoras do curso da doença (DMCD) tradicionais
e/ou terapia modificadora da resposta biológica, de acordo com a
necessidade, mas sempre conforme uma sequência padronizada.
Para a detecção de diferenças entre duas médias, utilizou-se o
teste t de Student ou o teste t pareado para as amostras de distribuição
normal, considerando-se os valores de média e desvio-padrão. Para
as variáveis não paramétricas, aplicou-se o teste de Wilcoxon ou
o de Mann-Whitney, levando-se em conta o valor de mediana e a
amplitude interquartil. Considerou-se o nível de significância de 5%.
O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília.
RESULTADOS
Características da população estudada
As características demográficas e clínicas da coorte Brasília
foram publicadas anteriormente.4
Nesse subgrupo de 40 pacientes acompanhados na coorte
Brasília com o diagnóstico de ERA predominaram o gênero feminino (36 pacientes, 90%), o grupo étnico branco (14 pacientes,
35%), e a idade média foi de 45,3 anos (21–71). O período médio
de duração dos sintomas articulares no momento do diagnóstico
foi de 27 semanas (± 15,6), e 13 pacientes (32,5%) tinham menos
de 12 semanas de sintomas ao diagnóstico. A maioria dos pacientes (34, representando 85%) não havia recebido tratamento
prévio para AR até o momento da avaliação inicial. Todos os
pacientes preencheram os critérios classificatórios do American
College of Rheumatology na avaliação inicial. As características
gerais estão resumidas na Tabela 1.
Os pacientes da coorte Brasília foram acompanhados em
um hospital público, com todas as medicações oferecidas
gratuitamente. Não houve perda de seguimento de nenhum
paciente nos três anos de duração do estudo.
Autoanticorpos
As características laboratoriais basais da coorte Brasília foram
publicadas anteriormente.5 As Tabelas 2 e 3 resumem a frequência dos autoanticorpos testados no período basal e ao longo
de três anos de acompanhamento da coorte.
565
Mota et al.
Tabela 1
Características gerais na avaliação basal dos pacientes com
ERA (n = 40)
Tabela 2
Características sorológicas basais dos pacientes com ERA
(n = 40)
Característica
n
Sorologia
Idade (anos)
45,37 (± 12,01)
FR (qualquer isotipo)
Gênero
Masculino
Feminino
4 (10%)
36 (90%)
Grupo étnico
Branco
Branco/negro
Branco/indígena
Negro
Negro/indígena
14 (35%)
13 (32,5%)
11 (27,5%)
1 (2,5%)
1 (2,5%)
Escolaridade (anos)
7,65 (± 5,02)
Duração da doença (semanas)
27 (± 15,6)
Tabagismo atual ou prévio
5 (12,5%)
DAS 28
6,86 (± 1,07)
HAQ
1,89 (± 0,78)
Erosão radiográfica
21 (52,5%)
n (%)/título (UI/dL) média (± DP)
21(52,5%)
FR IgM
20 (50%)/95 (± 73,2)
FR IgG
12 (30%)/69,1 (± 41,1)
FR IgA
17 (42,5%)/70 (± 54,8)
FR IgM+ IgG+ IgA+
10 (25%)
FR IgA+ IgM+ IgG−
6 (15%)
FR IgM+ IgG− IgA−
3 (7,5%)
FR IgA+ IgM− IgG−
2 (5%)
Anti-CCP (qualquer técnica)
21 (52,5%)
CCP2
19 (47,5%)/533 (± 1.014,7)
CCP3
21 (52,5%)/1.065 (± 1.769,7)
CCP3.1
21 (52,5%)/1.209 (± 1.991,3)
Anti-Sa
4 (10%)/209,16 (± 206,54)
DAS 28: 28 Joint Disease Activity Score; HAQ: Health Assessment Questionnaire.
Tabela 3
Análise seriada dos títulos de FR, anti-CCP e anti-Sa no período basal e ao longo de três anos de seguimento
FR IgM
FR IgG
FR IgA
CCP2
CCP3
CCP3.1
Anti-Sa
Basal
20 (50%)/96
12 (30%)/69,1
17 (42,5%)/70
19 (47,5%)/533
21 (52,5%)/1065
21 (52,5%)/1209
4 (10%)/209,16
3m
19 (45%)/94,6
9 (22,5%)/62,4
17 (42,5%)/66,5
19 (45%)/567,68
21 (52,5%)/1093,33 21 (52,5%)/1153,47 3 (7,5%)/319
6m
17 (42,5%)/98,9
8 (20%)/66,25
16 (40%)/73,56
20 (50%)/637,9
21 (52,5%)/1233
12 m
18 (45%)/104,5
9 (22,5%)/72,44
15 (37,5%)/65,26
18 (45%)/721,5
20 (50%)/1393,75
18 m
17 (42,5%)/101,94 9 (22,5%)/63,44
15 (37,5%)/100
15 (37,5%)/559,73 20 (50%)/1029,4
24 m
17 (42,5%)/120,9
19 (47,5%)/1165,73 18 (45%)/1593,9
4 (10%)/359
36 m
17 (42,5%)/114,29 12 (30%)/62,91
15 (37,5%)/108,86 18 (45%)/583,72
20 (50%)/1207,63
20 (50%)/1413,2
7 (17,5%)/274,14
P > 0,05
P > 0,05
P > 0,05
P > 0,05
P = 0,01
Teste t
pareado
(basal vs.
36 m)
13 (32,5%)/60,53 17 (42,5%)/86,05
P > 0,05
16 (40%)/649,25
P > 0,05
Fator reumatoide
Na primeira avaliação, dos 40 pacientes, 21 (52,5%) foram
positivos para pelo menos um dos sorotipos de FR; desse
total, 17 pacientes (42,5%) foram positivos para FR IgA, 12
(30%) para FR IgG, e 20 (50%) para FR IgM, respectivamente.
Entre aqueles com sorologia positiva para FR, a média dos
títulos de FR IgA na avaliação inicial foi de 70 UI/dL (± 54,81),
a de FR IgG foi de 69,1 UI/mL (± 41,09), e a de FR IgM foi
de 95 UI/mL (± 73,22).
Dezesseis pacientes (40% do total da amostra e 76,19%
daqueles positivos para pelo menos um dos sorotipos de FR)
566
22 (55%)/1308,31
5 (12,5%)/197,4
21 (52,55)/1436,9
6 (15%)/242,8
20 (50%)/1109,8
4 (10%)/358,5
foram positivos para mais de um sorotipo. Dez pacientes
(25% do total da amostra e 47,61% daqueles positivos para
pelo menos um dos sorotipos de FR) foram positivos para os
três sorotipos de FR. Dois pacientes (5% do total da amostra
e 9,52% daqueles positivos para pelo menos um dos sorotipos
de FR) foram positivos apenas para FR IgA. Nenhum paciente
apresentou resultados positivos exclusivamente para FR IgG.
Após três anos de acompanhamento, não houve mudanças
significativas no perfil de positividade para o FR entre os 40
pacientes analisados prospectivamente. Vinte indivíduos (50%)
continuavam positivos para pelo menos um dos sorotipos de
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):558-571
Autoanticorpos na artrite reumatoide inicial – coorte Brasília – resultados de uma análise seriada de três anos
FR, 15 pacientes (37,5%) foram positivos para FR IgA, 12
(30%) para FR IgG e 17 (42,5%) para FR IgM, respectivamente
(P > 0,05 para todos, teste t, em relação à avaliação inicial).
Entre aqueles com sorologia positiva para FR, a média
dos títulos de FR IgA na avaliação após três anos de acompanhamento foi de 108,86 UI/dL (± 78,54), a de FR IgG foi
de 62,91 UI/mL (± 55,09), e a de FR IgM foi de 114,29 UI/mL
(± 67,93). Os títulos de FR IgA e FR IgM foram significativamente mais elevados após três anos de acompanhamento em
relação à avaliação basal (P = 0,002 para FR IgA e P = 0,003
para FR IgM, teste t pareado). Não houve mudança significativa em relação aos títulos de FR IgG (P > 0,05, teste t pareado).
Treze pacientes (32,5% do total da amostra e 65% daqueles positivos para pelo menos um dos sorotipos de FR)
foram positivos para mais de um sorotipo. Onze pacientes
(27,5% do total da amostra e 55% daqueles positivos para
pelo menos um dos sorotipos de FR) foram positivos para
os três sorotipos de FR. Três pacientes (7,5% do total da
amostra e 15% daqueles positivos para pelo menos um dos
sorotipos de FR) foram positivos apenas para FR IgA, e
quatro pacientes (10% do total da amostra e 20% daqueles
positivos para pelo menos um dos sorotipos de FR) foram
positivos apenas para FR IgM e negativos para os demais
sorotipos. Nenhum paciente apresentou resultado positivo
exclusivamente para FR IgG.
Um indivíduo (2,5% da amostra total e 5% daqueles positivos para pelo menos um sorotipo de FR) foi positivo para FR
IgG e IgM, mas negativo para FR IgA, e outro indivíduo foi
positivo para FR IgA e IgM e negativo para FR IgG. Nenhum
paciente foi positivo para FR IgA e IgG e negativo para IgM.
Em relação às mudanças ocorridas no perfil de positividade
para os diferentes sorotipos durante os três anos de acompanhamento, quatro pacientes que eram positivos para FR IgA
tornaram-se negativos, enquanto dois que eram negativos
positivaram a sorologia. Um indivíduo que era positivo para
FR IgG tornou-se negativo, e três que eram negativos apresentaram resultados positivos após três anos de seguimento.
Três pacientes que eram positivos para FR IgM tornaram-se
negativos, enquanto um que era negativo positivou a sorologia.
Anticorpos antipeptídeos citrulinados
cíclicos (anti-CCP)
Quanto aos anticorpos anti-CCP, na avaliação basal dos 40
pacientes, 21 (52,5% do total) foram positivos para pelo menos
uma das técnicas utilizadas na averiguação (CCP2, CCP3 ou
CCP3.1). Utilizando-se a técnica ELISA 2 (CCP2), 21 pacientes (52,5% da população total avaliada) foram negativos,
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):558-571
quatro (10%) foram positivos fracos e 15 (37,5%) foram positivos fortes. Quando se utilizou a técnica ELISA 3 (CCP3), 19
pacientes (47,5%) foram negativos, dois (5%) foram positivos
fracos, três (7,5%) foram positivos moderados e 16 (40%)
foram positivos fortes. Pela técnica ELISA 3.1 (CCP 3.1), 19
pacientes (47,5%) foram negativos, dois (5%) foram positivos
fracos, dois (5%) foram positivos moderados e 17 (42,5%)
foram positivos fortes.
Entre aqueles com sorologia positiva para anti-CCP, a
média dos valores obtidos pela técnica CCP2 na avaliação
inicial foi de 533 UI/dL (± 1.014,67), por CCP3 foi de
1.065 UI/mL (± 1.769,73) e por CCP3.1 foi de 1.209 UI/mL
(± 1.991,28) (P > 0,05).
Os 20 pacientes positivos para anti-CCP o foram por mais
de uma técnica, e 18 pacientes (45% do total e 90% daqueles
positivos) foram positivos para as três técnicas utilizadas.
Dois pacientes (5% do total e 10% dentre os positivos) foram
positivos para anti-CCP3 e anti-CCP3.1 e negativos para
CCP2 (resultado positivo fraco para CCP3 e CCP3.1). Após
três anos de acompanhamento, não houve mudanças significativas no perfil de positividade para o anti-CCP. Vinte e um
indivíduos (52,5%) continuavam positivos por pelo menos
uma das técnicas utilizadas. Utilizando-se a técnica CCP2,
22 pacientes (55% da população total avaliada) apresentaram
resultados negativos, dois (5%) foram positivos fracos, um
(2,5%) foi positivo moderado e 15 (37,5%) foram positivos
fortes. Quando se utilizou a técnica CCP3, 20 pacientes (50%)
foram negativos, um (2,5%) foi positivo fraco, três (7,5%)
foram positivos moderados e 16 (40%) foram positivos fortes.
Pela técnica CCP3.1, 20 pacientes (50%) foram negativos, um
(2,5%) foi positivo fraco, dois (5%) foram positivos moderados
e 17 (42,5%) foram positivos fortes.
Entre aqueles com sorologia positiva para anti-CCP, a média
dos valores obtidos pela técnica CCP2 na avaliação após três anos
foi de 583,72 UI/dL (± 717,68), por CCP3 foi de 1.207,63 UI/mL
(± 1.768,31), e por CCP3.1 foi de 1.413,2 UI/mL (± 2.156,69).
Não houve diferença significativa em relação aos títulos
de anti-CCP pelas três técnicas utilizadas (P > 0,05; teste t
pareado).
Os 21 pacientes positivos para anti-CCP o foram por mais
de uma técnica, e 17 pacientes (42,5% do total e 80,95% daqueles positivos) foram positivos para as três técnicas utilizadas.
Três pacientes (7,5% do total e 14,28% dentre os positivos)
foram positivos para anti-CCP3 e anti-CCP3.1 e negativos
para CCP2 (resultado positivo fraco para CCP3 e CCP3.1), e
um indivíduo (2,5% do total e 4,76% dentre os positivos) foi
positivo para CCP2 e CCP3.1 (em baixos títulos) e negativo
para CCP3.
567
Mota et al.
Em relação às mudanças ocorridas no perfil de positividade
para os diferentes sorotipos durante os três anos de acompanhamento, para a técnica CCP2, um paciente com sorologia
negativa tornou-se positivo fraco, dois pacientes positivos (um
positivo fraco e um positivo forte) negativaram seus resultados,
um indivíduo com resultado positivo fraco passou a positivo
moderado, e outro passou a positivo forte. Pela técnica CCP3,
dois pacientes com títulos positivos fracos negativaram seus
resultados, um indivíduo com resultado positivo fraco e outro
positivo moderado passaram a positivo forte, enquanto dois
indivíduos com resultado positivo forte passaram a positivo
moderado e fraco. Utilizando-se a técnica CCP3.1, um paciente
inicialmente negativo tornou-se positivo moderado, dois pacientes (um positivo fraco e um positivo moderado) negativaram seus resultados, um indivíduo com resultado inicialmente
positivo fraco tornou-se positivo forte, e outro com sorologia
positivo forte na avaliação basal passou a positivo fraco após
três anos de acompanhamento.
Antivimentina citrulinada (anti-Sa)
Quanto aos anticorpos anti-Sa, na avaliação basal dos 40 pacientes acompanhados prospectivamente na coorte Brasília, 34
(85%) eram negativos para anti-Sa, dois (5%) apresentaram
resultado duvidoso e quatro (10%) foram positivos.
Entre aqueles com sorologia positiva, a média dos títulos
obtidos na avaliação basal foi de 209,16 UI/dL (± 206,54).
Após três anos de acompanhamento, 32 indivíduos (80%)
eram negativos para anti-Sa, um (2,5%) teve resultado duvidoso e sete (17,5%) eram positivos. A positividade para anti-Sa
após três anos foi significantemente superior em relação à
avaliação basal (P = 0,01; teste t pareado).
Entre aqueles com sorologia positiva após três anos de
acompanhamento, a média dos valores de anti-Sa obtidos foi
de 274,14 UI/dL (± 215,57). Não houve diferença significativa
em relação à avaliação basal (P > 0,05; teste t pareado).
Em relação às mudanças ocorridas no perfil de positividade
para o anti-Sa durante os três anos de acompanhamento, três
pacientes com sorologia negativa tornaram-se positivos, um
paciente positivo negativou seus resultados, e um indivíduo
com sorologia duvidosa passou a positivo.
Todos os pacientes positivos para anti-Sa também o eram
para anti-CCP ou FR.
DISCUSSÃO
Este é um importante estudo que demonstra que a pesquisa simultânea e seriada de diversos autoanticorpos e seus diferentes
568
isotipos em artrite inicial não se altera de forma significativa
em um seguimento de três anos em uma população com considerável diversidade étnica e com baixos índices de tabagismo.
Na primeira avaliação, cerca de 50% dos pacientes de nossa
coorte foram positivos para pelo menos um dos sorotipos de
FR, semelhante a outros trabalhos que utilizaram ELISA,6,7
incluindo os resultados da metanálise de Nishimura et al.8
Embora haja controvérsia, tem sido sugerido que tanto FR
IgM quanto FR IgA e IgG estão significativamente associados
ao diagnóstico de AR.9 Em nosso estudo, encontramos FR IgM
em cerca de 50%, IgA em 42% e IgG em 30% dos pacientes
com diagnóstico de AR e menos de 12 meses de duração de
sintomas. Essas taxas são similares às referidas em outros
trabalhos, como o de Vittecoq et al.,10 que descreveram a presença de FR IgM em 51%, FR IgA em 36% e FR IgG em 32%
de pacientes com diagnóstico de AR de menos de dois anos
de duração. A positividade dos isotipos parece ser variável de
acordo com a população estudada.10,11
O FR IgM é um marcador útil para discriminar pacientes
com poliartrite que evoluirão ou não para AR.10,12–17 Já as propriedades diagnósticas do FR IgA e IgG são questionáveis.10,17,18
Em nosso estudo, a pesquisa dos sorotipos FR IgA e FR IgG
não aumentou a frequência de positividade do FR, e, portanto,
não contribui para o diagnóstico de AR.
Após três anos de acompanhamento, a positividade para
os três sorotipos pesquisados de FR, bem como seus títulos,
manteve-se semelhante aos valores iniciais, o que é condizente
com outros trabalhos,8,19 confirmando o pouco valor da repetição desses testes.
Metade dos pacientes de nossa coorte foram positivos para
pelo menos uma das técnicas utilizadas na averiguação (CCP2,
CCP3 ou CCP3.1), e a maioria foi positiva forte pelas três técnicas. A porcentagem de positividade para anti-CCP em nosso
estudo foi semelhante à relatada por diversos outros estudos
envolvendo pacientes com ERA. Em uma revisão sistemática da
literatura, a análise combinada de publicações referentes a mais
de 2.000 pacientes com artrite indiferenciada inicial mostrou
uma prevalência de 23% de anticorpos anti-CCP (ELISA segunda geração). Essa prevalência aumentou para 51% em mais de
1.000 pacientes que preencheram critérios de classificação para
AR, após um período médio de acompanhamento de 18 meses.20
Em nossa coorte, a prevalência de anti-CCP foi aproximadamente a mesma (considerando-se CCP positivo por qualquer
uma das três técnicas analisadas) do FR, o que foi semelhante a
outros estudos publicados sobre o tema.21,22 Conforme relatado
por diversos autores, o CCP2 parece ser tão sensível quanto o
FR IgM, e mais específico. Sua vantagem estaria na detecção
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):558-571
Autoanticorpos na artrite reumatoide inicial – coorte Brasília – resultados de uma análise seriada de três anos
de anticorpos em aproximadamente 15% dos pacientes com AR
que são negativos para FR.23–31 Já Nishimura et al.,8 em sua
metanálise de estudos publicados sobre a acurácia de anti-CCP
e FR para AR, concluíram que a positividade para o anti-CCP
isoladamente é mais específica que a positividade isolada para
FR IgM no diagnóstico de AR.
É importante ressaltar, no entanto, que quando testamos
isoladamente cada uma das técnicas, a prevalência de anti-CCP
foi aproximadamente a mesma pelas três técnicas (40%,
aumentando para 50% quando utilizamos as três técnicas conjugadas). Isoladamente, portanto, CCP2, CCP3 e
CCP3.1 apresentaram, em nosso estudo, uma prevalência
inferior à de FR IgM e similar à de FR IgA, o que difere dos
diversos estudos relatados anteriormente.23–31 A diferença
de sensibilidade, especificidade e custo-benefício entre as
três técnicas para detecção de anti-CCP é ainda assunto
controverso na literatura, e são necessários trabalhos em
diferentes populações.32
Em 2005, uma terceira geração de anti-CCP (CCP3)
tornou-se disponível para o diagnóstico laboratorial de AR.
Relatou-se que esses ensaios reconheceriam epítopos citrulinados adicionais, que não seriam identificados pelos ensaios
de segunda geração (CCP2), com sensibilidade 5% maior que
CCP2, mantendo a especificidade.33 O teste CCP3 foi avaliado
por Santiago et al.34 e Wu et al.35 e considerado mais sensível
que o CCP2, mantendo a especificidade. Anjos et al.32 relataram
em uma população de 70 pacientes com AR do Sul do Brasil
que tanto CCP2 quanto CCP3 apresentaram boa performance
diagnóstica, em que o CCP3 foi 4,3% mais sensível que o
CCP2, mantendo a especificidade. No entanto, outros autores
relataram performance diagnóstica muito similar entre os
ensaios CCP2 e CCP3.36,37
O CCP3.1 avaliado em nosso estudo (INOVA) utiliza um
conjugado que detecta anticorpos IgA, além dos anticorpos IgG
habituais, o que teoricamente melhoraria a sensibilidade do
método, já que alguns pacientes com AR apresentam anticorpos
IgA contra o CCP3, na ausência de anticorpos IgG.38 Bizzaro et
al.,39 no entanto, comparando 11 técnicas laboratoriais diversas
para a detecção de CCP, observaram uma discreta diferença
de resultados entre CCP2 e CCP3 da INOVA (sensibilidade
de 64% e 67%, respectivamente) e nenhuma diferença entre
CCP3 e CCP3.1, sugerindo que a combinação de anticorpos
IgA e IgG não melhoraria a performance do teste, semelhante
ao que foi observado em nossa coorte.
Chibnik et al.40 relataram que os títulos de anti-CCP e
sua flutuação são importantes na fase pré-desenvolvimento
da AR – quanto maiores os títulos, menor o intervalo para o
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):558-571
surgimento da doença. Os títulos de anti-CCP aumentaram
gradualmente até a abertura dos sintomas típicos de AR, e então
se estabilizaram. Rantapää-Dahlqvist et al.41 já haviam sugerido
que os títulos de anti-CCP sofrem um aumento antes do início
da doença. Bos et al.,42 em sua coorte de 188 pacientes consecutivos com diagnóstico de AR tratados com adalimumabe,
estudaram as mudanças relativas nos níveis de anti-CCP e não
observaram modificações substanciais entre a positividade do
anti-CCP nas avaliações inicial e final, de forma semelhante ao
observado em nossa coorte. Como esses autores, nosso dados
apontam para a possibilidade de que anticorpos anti-CCP são
marcadores de AR qualitativamente estáveis, não associados
à atividade da doença.42
Na coorte Brasília, menos de 15% dos pacientes apresentaram anticorpos anti-Sa na avaliação inicial, valor inferior ao
relatado por Boire3 – 28% de sua coorte de 165 pacientes com
poliartrite inicial – e por Vossenaar et al.43 – 40% de 87 soros
de pacientes com AR estabelecida. Entretanto, a porcentagem
de positividade para anti-Sa passou de 10% para 18% ao final
do seguimento, diferença estatisticamente significante e talvez
associada à doença mais estabelecida.
Os títulos médios de anti-Sa encontrados em nossa coorte
variaram de 200 a 300 UI/dL, valor semelhante ao encontrado
por outros autores,3,44 embora existam poucas publicações sobre
o tema. Variações dos títulos de anti-Sa foram demonstradas
nos trabalhos de Innala et al.44 e Ménard45 de acordo com a
atividade da doença e a resposta ao tratamento, enquanto em
nossa coorte elas mantiveram-se estáveis ao longo do seguimento de três anos.
CONCLUSÕES
É possível concluir que a pesquisa de diferentes isotipos
de FR não aumenta a frequência de positividade do FR em
artrite inicial, e, assim, sua pesquisa não contribui para o
diagnóstico.
A estabilidade observada do FR ao longo do tempo não justifica solicitações repetidas do FR durante a evolução da ERA.
A porcentagem de pacientes que apresentam anti-CCP positivo,
bem como seus títulos, manteve-se estável ao longo do tempo, o
que também não justifica a solicitação de dosagens seriadas de
anti-CCP. Não houve diferença entre as técnicas analisadas para
a detecção do anti-CCP (CCP2, CCP3 e CCP3.1), sugerindo
que os ensaios de terceira geração não trouxeram contribuição
para o diagnóstico e o acompanhamento da ERA. A pesquisa
de anti-Sa não foi útil para o diagnóstico da ERA em relação
ao FR e ao anti-CCP.
569
Mota et al.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos aos Drs. Francisco Aires Corrêa Lima, Rodrigo
Aires Corrêa Lima e Ana Patrícia de Paula, ao Professor Cezar
Kozak Simaan, aos Drs. José Antonio Braga da Silva, Hermes
Matos Filho, Regina Alice von Kirschheim, Luciana Alves
Almeida, Talita Yokoy Souza, Jamille Nascimento Carneiro e
Francieli Sousa Rabelo, pelo encaminhamento dos pacientes
avaliados, e ao Dr. Paulo Sérgio Mendlovitz, pela realização
dos exames radiológicos.
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571
ARTIGO ORIGINAL
Anticorpos antipeptídeos citrulinados e fator
reumatoide em pacientes sudaneses com
infecção por Leishmania donovani
Erik Ahlin, PhD1, Amir Elshafei2, Musa Nur3,
Sayda Hassan El Safi4, Ronnelid Johan5, Gehad Elghazali6
RESUMO
Objetivo: Este estudo avaliou a presença de anticorpos antipeptídeos citrulinados cíclicos (anti-CCP), fator reumatoide (FR)
e imunocomplexos circulantes (ICC) em pacientes sudaneses infectados por Leishmania donovani. Pacientes e métodos: Os
soros foram coletados de pacientes infectados por Leishmania (n = 116) e de sudaneses saudáveis (n = 93). Dezenove pacientes
sudaneses com artrite reumatoide (AR) e anti-CCP+ foram incluídos como controles positivos. Os níveis de ICC e anti-CCP
foram medidos por ELISA. Para avaliar a reatividade citrulina-específica foi usada a placa-controle com peptídeos-controle
cíclicos contendo arginina em vez de citrulina. Resultados: Entre os pacientes infectados por Leishmania e os pacientes
com AR e anti-CCP+, a maioria (86%) era positiva para FR, enquanto a frequência de positividade para ICC foi maior entre
pacientes com leishmaniose visceral (LV) (LV 38%; AR e anti-CCP+ 24%). Quando foi analisada a reatividade anti-CCP,
12% dos pacientes com LV foram positivos. Os níveis de anti-CCP entre os pacientes com LV correlacionaram-se bem com
os níveis de ICC encontrados (r = 0,65; P < 0,0001). No grupo de AR não foi encontrada associação entre ICC e anti-CCP.
A possibilidade de que a positividade para anti-CCP se deva a reações cruzadas com ICC foi descartada experimentalmente.
Ao contrário do que foi visto no soro dos sudaneses com AR, a reatividade anti-CCP não se restringiu à citrulina, mas houve
reação igual com os peptídeos-controle com arginina. Conclusão: O fato de a reatividade CCP não se ter restringido à citrulina
comprova tratar-se mais de um efeito de inflamação extensa e ativação imune do que de um sinal de características patogênicas
compartilhadas com artrite anti-CCP. Nossos achados ressaltam a importância de se interpretar um teste CCP positivo com
cuidado ao se avaliar condições não reumáticas ou em áreas onde tais infecções predominam.
Palavras-chave: fator reumatoide, Leishmania donovani, complexo antígeno-anticorpo.
© 2011 Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados.
INTRODUÇÃO
A leishmaniose é uma doença parasitária causada pelo parasita Leishmania e tem diferentes tipos: leishmaniose visceral
(LV), leishmaniose cutânea pós-calazar (LCPC), leishmaniose
cutânea, leishmaniose mucocutânea e leishmaniose viscerotrópica. A LV ou calazar é causada pelo parasita Leishmania
donovani e está associada à imunopatologia caracterizada por
forte resposta imune humoral com alta produção de anticorpos
antileishmânia, imunocomplexos circulantes (ICC) e ativação
policlonal de linfócitos B.
A LCPC é uma complicação da LV, caracterizada por erupções cutâneas graves principalmente em pacientes jovens que se
recuperaram de LV e que, exceto por isso, estão bem. A artrite
reumatoide (AR) é uma doença sistêmica autoimune comum que
afeta principalmente mulheres entre 40 e 60 anos. O sintoma
mais importante é a inflamação articular crônica, embora manifestações extra-articulares também estejam presentes.
Recebido em 09/04/2011. Aprovado, após revisão, em 30/08/2011. Os autores declaram a inexistência de conflito de interesses. Suporte financeiro: Institucional (Universidade).
1. Mestre em Imunobiologia pela Unidade de Imunologia Clínica, Uppsala University, Uppsala, Suécia
2. Médico Hematologista, Laboratório de Patologia e Microbiologia, Alribat Hospital, Cartum, Sudão
3. Consultor, Reumatologista da Unidade de Reumatologia, Alribat University Hospital, Cartum, Sudão
4. Consultor, Professor de Imunologia, Departamento de Microbiologia e Parasitologia, Faculdade de Medicina, University of Khartoum, Sudão
5. Consultor, Professor-Associado de Imunologia, Unidade de Imunologia Clínica, Uppsala University, Uppsala, Suécia
6. Consultor Sênior, Professor de Imunologia, University of Shendi, Shendi, Sudão; e King Fahad Medical City, Riyadh, Arábia Saudita
Correspondência para: Gehad Elghazali. King Fahad Medical City, Riyadh 11525, Arábia Saudita. E-mail: [email protected]
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):572-586
579
Ahlin et al.
O fator reumatoide (FR) é um anticorpo que reage com
a porção Fc da IgG. O FR clássico é um anticorpo IgM que
reage contra IgG-Fc, mas também podem ser encontrados
FRs IgA e IgG. Os FRs são detectados no soro da maioria dos
pacientes com AR.1 Embora a presença de FR em pacientes
com AR esteja correlacionada a maior atividade da doença,
o FR tem baixa especificidade como marcador de AR quando comparado a controles com outras doenças reumáticas e
infecciosas.2–5
Os imunocomplexos (IC) desempenham funções centrais
na inflamação da AR por meio da estimulação da produção
de citocinas mediada por monócitos/macrófagos nas doenças
reumáticas, estando também envolvidos na indução de FR na
AR.6 A associação entre IC e FR também foi demonstrada em
outras doenças reumáticas e infecciosas.7,8 A produção de FR
na LV foi relatada alguns anos atrás,9 e a elevação nos níveis
de ICC também foi observada na leishmaniose crônica e em
muitas outras doenças parasitárias tropicais.10–15 Já demonstramos anteriormente que IC isolados de pacientes infectados
com Leishmania induzem citocinas tanto pró-inflamatórias
quanto imunossupressoras. Além disso, os níveis séricos de
IC que se ligam a C1q correlacionaram-se a níveis de citocina
induzida por IC.16
Os anticorpos antipeptídeos citrulinados (ACPA) mostraram-se marcadores sorológicos específicos para AR, com
maior especificidade diagnóstica para AR, mas com sensibilidade semelhante à do FR, tendo a dosagem do primeiro sido
claramente superior em cenários específicos. A citrulinação
de proteínas e peptídeos ocorre naturalmente durante a inflamação, e é uma modificação pós-translacional da arginina por
desaminação.17 Anticorpos contra várias proteínas citrulinadas
diferentes foram associados à AR, e pacientes com AR positivos para anti-CCP desenvolvem manifestações clínicas mais
graves que pacientes negativos para anti-CCP.18,19 A reatividade
anti-CCP em pacientes com AR foi associada a vários fatores
genéticos predisponentes, em especial alelos HLA do “epítopo compartilhado”, mas também a fatores ambientais, como
tabagismo.20 A presença de anti-CCP também foi demonstrada
em várias doenças infecciosas, como tuberculose pulmonar,
hepatite C e hepatite autoimune tipo 1.21–25 Importante ressaltar que a positividade anti-CCP vista em soros de doença não
AR parece nem sempre ser dependente de citrulina, como
demonstrado por Vannini et al.24 Devido ao nosso interesse
na resposta ACPA na AR18,26,27 e aos nossos estudos prévios
sobre inflamação mediada por IC em pacientes infectados
por Leishmania,16 este estudo teve por objetivo investigar a
presença de ACPA, FR e ICC em pacientes africanos também
infectados por L. donovani.
580
PACIENTES E MÉTODOS
Pacientes e amostra
Amostras de soro foram coletadas de 74 pacientes com LV (idade média 23 anos, variação 3–73, razão feminino/masculino
25/48), 42 pacientes com LCPC (idade média 11 anos, variação
4–27, razão feminino/masculino 14/25) e 93 controles sudaneses saudáveis (idade média 23 anos, variação 3–54, razão
feminino/masculino 26/67). Os pacientes com LV e LCPC eram
originários do hospital rural Tabarakalla, no estado de Gadarif,
ao longo do baixo rio Atbara, na província de Gallab, Sudão
Oriental. Essa área está localizada 70 km a sudeste da cidade
de Gadarif, e é endêmica para L. donovani, cujo principal
vetor é o Phlebotomus orientalis.28 Os pacientes arrolados no
estudo vieram principalmente dos povoados de Tabarakalla e
Barbar Elfogara, áreas endêmicas com alta prevalência tanto
de LV quanto de LCPC. Foi obtida história clínica detalhada,
que incluiu tribo, residência, ocupação, estado civil, tratamento medicamentoso, dor abdominal, vômitos, náusea, história
prévia de tendência a sangramento, infecção do trato urinário
e de picadas de insetos e história familiar de LV, hipertensão
arterial ou diabetes mellitus. Deu-se ênfase especial a qualquer
forma prévia de leishmaniose. A origem étnica e geográfica
dos sujeitos foi investigada, e os mesmos foram examinados
à procura de manifestações clínicas de LV. Nenhum paciente
relatou história familiar ou qualquer histórico de doença que
se saiba associada à AR ou a outras doenças autoimunes sistêmicas. Realizou-se exame clínico geral, com atenção especial
à hepatosplenomegalia, adenomegalia e febre recorrente por
mais de um mês. O tamanho do fígado foi medido na linha
hemiclavicular a partir da margem costal. O tamanho do baço
foi avaliado pela medida da distância entre a margem costal
na linha axilar anterior e a ponta do baço. A linfadenopatia foi
classificada em “localizada” se encontrada em apenas um local,
e “generalizada” se presente em dois ou mais locais. As membranas mucosas oral e nasal foram examinadas em busca de
evidência de leishmaniose mucosa. Examinaram-se o esfregaço
sanguíneo fino e a gota espessa para detecção de Plasmodium
em todos os indivíduos com febre ou esplenomegalia ou que
pareciam doentes, tendo-se excluído aqueles com esfregaços
sanguíneos positivos para malária. Realizou-se aspiração de
linfonodo inguinal naqueles com suspeita clínica de LV (isto é,
todos os indivíduos com febre por mais de dois meses, dor no
quadrante superior esquerdo, linfadenopatia, esplenomegalia
ou definhamento). Aqueles com resultado negativo foram submetidos à aspiração de medula óssea da crista ilíaca superior
posterior. Os esfregaços foram fixados em metanol, corados
por Giemsa e examinados com lentes de imersão em óleo. A
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):572-586
Anticorpos antipeptídeos citrulinados e fator reumatoide em pacientes sudaneses com infecção por Leishmania donovani
LCPC foi diagnosticada em bases clínicas, de acordo com o
aparecimento e a distribuição de erupção cutânea após o tratamento em pacientes com diagnóstico prévio de LV. Não há
testes laboratoriais para o diagnóstico de LCPC.
Dezenove pacientes com AR (idade média 45 anos, variação 22–60, razão feminino/masculino 17/2) foram extraídos
de uma coorte de AR da Unidade de Reumatologia do Alribat
University Hospital, onde foram diagnosticados por um reumatologista de acordo com os critérios do American College of
Rheumatology (ACR) de 1987.29 Os pacientes com AR foram
escolhidos primeiramente como controles positivos na investigação da especificidade de anti-CCP – logo, foram incluídos
apenas pacientes anti-CCP+. Controles sudaneses saudáveis
foram obtidos tanto da área rural de Tabarakalla quanto do
Alribat University Hospital. Para as análises de anti-CCP e FR,
100 controles suecos saudáveis foram usados para validar os
valores de referência definidos pelo fabricante, enquanto um
grupo-controle sueco menor (n = 20) foi utilizado para verificar
o ponto de corte para o ELISA de ICC que se liga a C1q. Os
soros foram separados por centrifugação em até duas horas
após a coleta. As amostras foram separadas e congeladas em nitrogênio líquido (interior) ou em congelador a -70°C (Cartum,
capital) em até duas horas após a amostragem, armazenadas
congeladas a -70°C e transportadas em gelo seco para Uppsala,
na Suécia. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do
Alribat University Hospital, pela Faculdade de Medicina da
University of Khartoum, pelo Ministério da Saúde de Gadarif
e pelo Comitê de Ética da Uppsala University. Todos os adultos
que participaram deste estudo assinaram o consentimento livre
e informado. No caso de crianças pequenas, o documento foi
fornecido pelos pais.
Medida dos níveis de ICC, anti-CCP e FR
obter também valores abaixo de 25 U/mL (variação estendida
3,126–1600 U/mL). Aos valores que excederam a variação da
curva-padrão foi atribuído o valor de 1600 U/mL.
Uma placa-controle de ELISA com peptídeos cíclicos contendo arginina em vez de citrulina nas posições de peptídeos
relevantes foi gentilmente cedida por Jörgen Wieslander, da
Euro-Diagnostica, e utilizada para avaliar reatividade específica para citrulina. O valor de corte para o controle de arginina foi
determinado arbitrariamente pela absorbância correspondente
a 25 U/mL na curva-padrão para a variante de citrulina (CCP).
Os resultados foram então calculados como índice de cut-off
(COI): arginina OD450 observada/citrulina OD450 de corte, de
acordo com Vannini et al.24
A fim de testar se os ICC presentes nas amostras investigadas influenciavam a reatividade anti-CCP, adsorveram-se IC
que se ligam a C1q do soro e avaliou-se a reatividade anti-CCP.
Foram testados pacientes positivos para anti-CCP, a saber: oito
com LV, quatro com LCPC e seis com AR. Os soros foram
diluídos a 1:50 e incubados por duas horas em placas revestidas por C1q (Bindazyme C1q binding kit; Binding Site). Logo
após a incubação, as amostras foram transferidas para a placa
CCP e realizou-se a pesquisa para anti-CCP, de acordo com o
fabricante do kit de teste anti-CCP.
Fator reumatoide
O FR foi medido por nefelometria (Immage, Beckman Coulter)
e expresso em unidades internacionais/mL (UI/mL); valores
> 20 UI/mL foram considerados positivos. A análise foi padronizada utilizando-se o soro de referência NIBSC 64/002.
O nefelômetro não expressa dados quantitativos inferiores a
20 UI/mL, e às amostras negativas para FR atribuiu-se o valor
0 UI/mL na comparação entre os diferentes grupos.
Ensaio de ligação a C1q para ICC
Análise estatística
Os níveis de ICC foram medidos pelo ensaio de C1q em fase
sólida (Bindazyme C1q binding kit; Binding Site, Birmingham,
Reino Unido). De acordo com o fabricante, níveis superiores a
10,8 Eq/mL são considerados positivos. A variação do ensaio
é de 1,23–100 Eq/mL.
O teste de Mann-Whitney foi usado para comparar os grupos.
Para correlações entre grupos utilizou-se o teste de correlação
de Pearson. Foram considerados significativos P < 0,05.
Anti-CCP
Fator reumatoide
O anticorpo anti-CCP foi medido por ensaio Immunoscan RA
Mark 2 (Euro-Diagnostica, Malmö, Suécia). A positividade
para anti-CCP foi determinada de acordo com as instruções do
fabricante, com 25 U/mL usados como ponto de corte. O ensaio
não fornece dados quantitativos abaixo do ponto de corte definido pelo fabricante. Assim, estendemos a curva-padrão para
Entre os pacientes com LV, 86% (64/74) foram positivos para
o FR, com média de 71 UI/mL entre os sujeitos positivos e variação de 20–1440 UI/mL. Entre os pacientes com LCPC, 69%
(29/42) foram positivos para o FR (média 34 UI/mL, variação
20–165 UI/mL). No grupo de AR positivo para anti-CCP, 84%
(16/19) foram positivos para FR (média 239 UI/mL, variação
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):572-586
RESULTADOS
581
Ahlin et al.
P < 0,0001
1.000
ns
P < 0,0001
800
P < 0,001
600
P = 0,0004
400
FR (UI/mL)
69–3470 UI/mL). Entre os controles sudaneses, 11% (10/93)
apresentavam níveis de FR superiores a 20 UI/mL (média
23 UI/mL, variação 20–96 UI/mL). Em uma coorte de 100
controles suecos saudáveis, dois mostraram positividade fraca
para FR (20,4 e 21,6 UI/mL).
O grupo com LV apresentou níveis mais elevados de FR
quando comparado a pacientes com LCPC (P < 0,0001).
Não houve diferença significativa entre pacientes com AR e
anti-CCP+ e pacientes com LV. Entretanto, pacientes com AR
tinham níveis mais elevados quando comparados a pacientes
com LCPC (P = 0,0004). Todos os três grupos de doença apresentaram níveis de FR significativamente maiores que os controles
sudaneses saudáveis. Tais resultados são mostrados na Figura 1.
200
200
150
100
Imunocomplexos circulantes
Reatividade anti-CCP
Entre os pacientes com LV, 12% (9/74) apresentaram positividade para anti-CCP (média 30,86 U/mL, variação 25–148).
A reatividade anti-CCP também foi encontrada em 4,2% dos
pacientes com LCPC (2/42; 34 e 95 U/mL). Entre os pacientes sudaneses com AR e anti-CCP+, os níveis de anti-CCP
foram muito mais elevados (média 1265 U/mL, variação
50–>1600 U/mL). No grupo-controle sudanês saudável foi
encontrado um indivíduo positivo para anti-CCP (51 U/mL).
No grupo-controle sueco, 3/100 foram positivos, dois dos quais
na região limite (30, 42 e 1643 U/mL). Observamos que os
pacientes com LV e LCPC exibiram reatividade anti-CCP em
níveis entre o limite inferior de detecção do ensaio (3,126 U/mL)
e o ponto de corte de 25 U/mL. Para os pacientes com LV e
negativos para anti-CCP o nível mediano foi 6,7 U/mL, enquanto para os pacientes com LCPC e negativos para anti-CCP
o nível mediano foi 7,9 U/mL. Esses resultados divergiram
582
50
0
LV
LCPC
AR
Controles
saudáveis
sudaneses
Controles
saudáveis
suecos
Figura 1
Níveis de FR nos diferentes grupos. A linha tracejada representa
o valor de corte (20 UI/mL) para o nefelômetro. Linhas contínuas
mostram a média em cada grupo.
P < 0,0001
P < 0,0001
115
P < 0,0001
95
P < 0,0001
75
IC que se liga a C1q (Eq/mL)
Os níveis de ICC foram determinados em pacientes com LV,
LCPC e AR positivos para anti-CCP, indivíduos sudaneses
saudáveis e em uma coorte-controle sueca (Figura 2). Entre
os pacientes com LV, 23/74 (31%) tinham níveis elevados de
IC (média 7 Eq/mL, variação 0,0–100,6 Eq/mL), enquanto
entre os pacientes com LCPC, apenas 2/42 (7%) apresentavam níveis elevados de IC (média 2,0 Eq/mL, variação
0–21 Eq/mL). Um de 20 pacientes com AR e positivos para
anti-CCP tinha nível de IC acima de 10,8 Eq/mL (média
1,5 Eq/mL, variação 0–10,8). No grupo-controle sudanês,
2/93 foram positivos para ICC. No grupo-controle sueco,
todos os indivíduos foram negativos para ICC. Os pacientes
com LV apresentaram níveis significativamente mais altos
de IC que os outros grupos investigados (P < 0,0001 para
todas as comparações).
55
ns
35
15
15
10
5
0
LV
LCPC
AR
Controles
saudáveis
sudaneses
Controles
saudáveis
suecos
Figura 2
Níveis de ICC nos diferentes grupos. A linha tracejada representa o valor de corte (10,8 Eq/mL), como recomendado pelo
fabricante. Linhas contínuas mostram a média em cada grupo.
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):572-586
Anticorpos antipeptídeos citrulinados e fator reumatoide em pacientes sudaneses com infecção por Leishmania donovani
daqueles do grupo-controle sudanês saudável, cujas amostras
foram mais claramente ou positivas ou negativas, como visto
na Figura 3, em que a média para os sujeitos negativos para
anti-CCP foi 5,1 U/mL.
Os níveis de anti-CCP entre pacientes com LV apresentaram
boa correlação com os níveis de IC (r = 0,6586; P < 0,0001 –
Tabela 1). No grupo de AR com positividade para anti-CCP não
se observou associação entre os níveis de IC e os de anti-CCP. Para
descartar a possibilidade de que a positividade para anti-CCP
se devesse a reações cruzadas com IC, ou que a reatividade
anti-CCP pudesse estar primariamente ligada ao IC, realizou-se
a adsorção de IC que se ligam a C1q de soros e avaliou-se a
P < 0,0001
P < 0,0001
2.000
P < 0,0001
1.500
1.000
anti-CCP (U/mL)
DISCUSSÃO
Neste estudo, descobrimos que os soros de pacientes infectados por Leishmania foram frequentemente positivos para
FR e tinham níveis elevados de ICC, e que uma substancial
quantidade (11,4%) mostrou reatividade anti-CCP. Entretanto,
ao contrário do observado nos soros de sudaneses com AR,
a reatividade anti-CCP não estava restrita aos peptídeos que
continham citrulina, pois houve igual reatividade contra os
peptídeos-controle contendo arginina cíclica tanto nos pacientes com a forma aguda de LV quanto naqueles com a forma de
LCPC após tratamento.
Um pequeno estudo demonstrou reatividade anti-CCP2
em um grupo de 10 brasileiros infectados com o parasita
Leishmania major.30 Entretanto, a dependência de citrulina dos
soros com reatividade anti-CCP não foi avaliada nesse estudo.
Agora ampliamos tais estudos para englobar uma coorte maior
de pacientes sudaneses infectados com L. donovani, tanto na
P < 0,0001
ns
anti-CCP no grupo com LV não houve diferença quanto à
reatividade anti-CCP e ao peptídeo-controle não citrulinado
(Figura 4A). Foi encontrado o mesmo padrão para os dois
pacientes com LCPC positivos para anti-CCP (Figura 4B).
Essa reatividade não citrulina-específica contrastou com a
dos pacientes sudaneses com AR e positivos para anti-CCP,
que apresentaram reatividade anti-CCP específi ca para
CCP e muito baixa reatividade com os peptídeos-controle
contendo arginina (P < 0,0001; Figura 4C).
500
50
40
30
20
10
0
LV
LCPC
AR
Controles
saudáveis
sudaneses
Controles
saudáveis
suecos
Figura 3
Níveis de anti-CCP nos diferentes grupos. As linhas tracejadas
representam o valor de corte (25 Eq/mL) conforme descrito pelo
fabricante. Linhas contínuas mostram a média em cada grupo.
reatividade anti-CCP. Esse procedimento não diminuiu a reatividade anti-CCP no grupo com LV nem nos pacientes com AR
e positivos para anti-CCP. A média da reatividade anti-CCP que
restou após a adsorção ao IC foi de 97% em todos os grupos
[variação: LV 61%–175%, AR 77%–107%, LCPC 85%–102%
(dados não mostrados)].
Analisou-se então a especificidade da citrulina entre os
pacientes positivos para anti-CCP por meio de uma placa-controle contendo peptídeos cíclicos não citrulinados como
antígenos-alvo (Figura 4). Entre as amostras positivas para
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):572-586
Tabela 1
Correlações entre os níveis de FR, anti-CCP e ICC nos
diferentes grupos investigados
FR vs. IC
FR vs. anti-CCP
IC vs. anti-CCP
LV + LCPC
(n = 116)
0,1985
(P = 0,0327)
-0,0087
(P = 0,9260)
0,5598
(P < 0,0001)
LV (n = 74)
0,1225
(P = 0,2983)
-0,0394
(P = 0,7388)
0,6586
(P < 0,0001)
LCPC (n = 42)
0,1055
(P = 0,5061)
0,0133
(P = 0,9334)
0,0687
(P = 0,6655)
Pacientes
com AR
CCP-positivos
(n = 19)
0,6398
(P = 0,0032)
0,2638
(P = 0,2751)
0,3395
(P = 0,1550)
Controles
sudaneses
saudáveis
(n = 93)
-0,0735
(P = 0,4836)
-0,0031
(P = 0,9766)
-0,0204
(P = 0,9766)
Todos os
grupos
(n = 228)
0,1966
(P = 0,0029)
0,3008
(P < 0,0001)
-0,0153
(P = 0,8183)
583
Ahlin et al.
15
10
Figura 4A
80
Figura 4B
Figura 4C
10
ns
5
0
6
4
2
0
LV citrulina
LV arginina
índice de cut-off (COI)
índice de cut-off (COI)
índice de cut-off (COI)
8
LCPC citrulina
LCPC arginina
60
P < 0,0001
40
20
0
anti-CCP pós-AR Cit
anti-CCP pós-AR Arg
Figura 4
Especificidade pela citrulina entre pacientes positivos para anti-CCP: (A) LV; (B) LCPC; e (C) pacientes sudaneses com AR. Os
resultados foram calculados como o índice de cut-off (COI): arginina OD450 observada/citrulina OD450 de corte.
forma de LV aguda quanto na forma de LCPC após tratamento,
que não têm ocorrência na América do Sul. Demonstramos
que pacientes com ambos diagnósticos podem apresentar
reatividade contra CCP2, que é direcionada à espinha
dorsal peptídica cíclica sem necessidade de citrulinação
de resíduos de arginina. Isso contrasta com os pacientes
sudaneses com AR, que apresentam dependência estrita
de citrulinação dos resíduos de arginina para fornecer alta
reatividade anti-CCP2.
Além do nosso estudo, apenas dois relatos de reatividade ACPA em condições não reumáticas investigaram o
soro usando poços ELISA de controle contendo arginina. O
estudo de Vannini et al.24 sobre pacientes com hepatite autoimune tipo I usou controles adequados tanto para ensaios
de CCP2 comercial e patenteado, que não teve a composição
do peptídeo divulgada para a comunidade científica, quanto
para o peptídeo CCP1, descrito publicamente.5 Esses autores
mostraram que, embora a maioria (87%) dos soros positivos
para CCP de pacientes reumáticos com diagnósticos outros
que não AR fosse citrulina-específica, isso acontecia apenas
com metade dos soros investigados para hepatite. No estudo
de Kakumanu et al.21 sobre tuberculose, a reatividade contra
o peptídeo CCP1 mostrou-se citrulina-específica em 94% dos
soros de AR e em 22% dos soros de pacientes com tuberculose pulmonar. Os autores também mostraram que o peptídeo
solúvel CCP1 inibiu a reatividade com soros de AR, mas não
de tuberculose. Tal investigação não pôde ser reproduzida
com os agentes CCP2 patenteados.
Embora o teste CCP2 seja o mais comumente usado para
diagnóstico clínico, a natureza de propriedade particular e
584
protegida do antígeno CCP2 representa um óbvio obstáculo
em estudos de condições não reumáticas, tais como hepatite
autoimune 24 e tuberculose, 21 nas quais o uso de controles
adequados mostrou que as reatividades contra CCP são
muito menos citrulina-dependentes que em estudos paralelos de pacientes com AR. A dependência de citrulina da
reatividade ACPA foi inequivocamente comprovada em
numerosos estudos de pacientes com AR. O fato de que
apenas uma pequena minoria de testes ACPA comerciais
é projetada com poços-controle adequados com antígenos
não citrulinados não é, portanto, um grande problema
na prática clínica. Quando se demonstra a presença de
ACPA em condições não reumáticas, deve-se investigar a
citrulina-dependência da reatividade.
Nosso achado de que a reatividade CCP em pacientes LV
não ficou restrita à citrulina favorece o argumento de que a
reatividade anti-CCP seja mais um efeito da inflamação extensa
e ativação imune do que um sinal de características patogênicas
compartilhadas com a artrite positiva para anti-CCP. Na AR,
a reatividade anti-CCP apresenta uma distribuição bimodal
com níveis ou totalmente negativos ou positivos muito altos,
em que o grupo de pacientes positivos para anti-CCP é definido por certas características genéticas e impacto de gatilhos
ambientais, em especial o tabagismo. 31 No presente
estudo, a reatividade média anti-CCP entre sujeitos positivos
foi 49 U/mL, representando 1,96 vez o valor de corte, dados
sobre a baixa reatividade anti-CCP condizentes com os achados
em leishmaniose brasileira.30 Isso contrasta com os pacientes
suecos com AR e positivos para anti-CCP, que apresentam
um nível médio de 1128 U/mL (45,1 vezes o valor de corte)
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):572-586
Anticorpos antipeptídeos citrulinados e fator reumatoide em pacientes sudaneses com infecção por Leishmania donovani
usando-se o mesmo teste anti-CCP.18 Tal hipótese acha-se
também fundamentada pelo fato de que a reatividade CCP2
em pacientes com LV e LCPC mostrou um continuum entre
soro positivo para anti-CCP2 e o intervalo “negativo” abaixo
do valor de corte, enquanto controles sudaneses negativos para
anti-CCP apresentaram menor reatividade (Figura 3). Isso está
também de acordo com nossa experiência de pacientes suecos
com AR, entre os quais os sujeitos negativos para anti-CCP
apresentam, em sua maioria, reatividade muito baixa dentro da
área negativa (observações não publicadas). Embora pareça que
algumas infecções possam apresentar resultados falsamente
positivos para anti-CCP, é possível que elas realmente estejam
associadas ao aparecimento de ACPA, e que a especificidade
pela citrulina da resposta ACPA possa se desenvolver com o
tempo. Um exemplo é a imunidade à bactéria Porphyromonas
gingivalis, associada à periodontite. A P. gingivalis mostrou-se
capaz de citrulinar proteínas, sugerindo que a citrulinação
mediada por ela fornece um mecanismo molecular para
gerar antígenos que direcionam a resposta autoimune contra
ACPA na AR.32,33
Um achado intrigante foi que dois grupos de infecções, em
que se relatou resposta ACPA não citrulina-específica e não associada à artrite, representam agentes localizados intracelularmente
em macrófagos dos tecidos. Tanto os parasitas Leishmania30
quanto a tuberculose21,25 representam infecções intracelulares
em macrófagos tissulares. Os achados de respostas ACPA na
hepatite C,22,23,34 em que a infecção reside primariamente nos
hepatócitos, podem não parecer concordar com tal hipótese.
No entanto, deve-se lembrar do atual debate sobre se os macrófagos, além dos hepatócitos, são infectados pelo vírus
da hepatite C, como revisado por Heydtmann.35 Além disso,
a hepatite autoimune tipo 1, em que se demonstrou reatividade
ACPA artrite-independente,24 associa-se à ativação de macrófagos tanto no estágio precoce36 quanto no fibrótico mais tardio.37
Este estudo mostrou que pacientes sudaneses infectados com L. donovani apresentam semelhanças sorológicas com pacientes com AR do Sudão e de outros locais.
Além de níveis elevados de ICC e FR, pela primeira vez
demonstramos reatividade para o alvo ACPA CCP2, um
achado comumente considerado altamente específico de
AR. Essa reatividade ACPA, ao contrário do que ocorre
com pacientes com AR, não depende de citrulinação do
antígeno-alvo, e pode estar associada à intensa ativação do
sistema macrofágico. Nossos resultados, assim como os
resultados prévios,21,24 reforçam a importância da inclusão
apropriada de ensaios-controle quando da definição de reatividades ACPA em novos grupos de pacientes, especialmente
em coortes de pacientes não reumáticos.
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):572-586
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Rev Bras Reumatol 2011;51(6):572-586
ARTIGO ORIGINAL
Influência da interação entre qualidade
ambiental e o SNP T102C do gene HTR2A
sobre a suscetibilidade à fibromialgia
Michelle Mergener1, Roze Mary Ribas Becker2, Adriana Freitag dos Santos3,
Geraldine Alves dos Santos4, Fabiana Michelsen de Andrade5
RESUMO
Objetivo: Investigar a influência genética da variante T102C do gene do receptor 2A de serotonina (HTR2A) e sua interação
com aspectos do meio ambiente, como exposição a ruídos, trânsito, clima, oportunidades de adquirir novas informações,
segurança física e proteção, dentre outras, como possíveis fatores de risco para o desenvolvimento da síndrome da fibromialgia (SFM). Métodos: Foram avaliados 41 pacientes com SFM e 49 indivíduos-controle. Os fatores ambientais foram
avaliados pela aplicação do domínio V do questionário WHOQOL-100 (OMS). Solicitou-se aos pacientes que as respostas
representassem os momentos antes do surgimento dos sintomas. A variante T102C do gene do receptor 2A de serotonina
(HTR2A) foi determinada por PCR-RFLP. Resultados: Na amostra de pacientes, o número de portadores do alelo 102C
foi maior do que o encontrado na amostra controle (76,5% vs. 50%; P = 0,028). Os escores do domínio V foram menores
em pacientes quando comparados aos controles (P < 0,001). O fator “falta de oportunidades de adquirir novas informações e habilidades” elevou em quase 14 vezes a chance de desenvolvimento da síndrome (P = 0,009). “Baixa qualidade
de cuidados sociais e de saúde", somada à presença do alelo 102C, elevou em mais de 90 vezes (P = 0,005). Contudo,
indivíduos portadores desse mesmo alelo que possuem alta qualidade de cuidados sociais e de saúde não se encontram sob
risco de desenvolver a SFM. Conclusões: Esses dados sugerem que tais fatores podem predispor à SFM, especialmente
em portadores do alelo 102C. Entretanto, são necessárias investigações com amostras maiores.
Palavras-chave: qualidade de vida, meio ambiente, serotonina, polimorfismo genético, fibromialgia.
© 2011 Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados.
INTRODUÇÃO
A síndrome da fibromialgia (SFM) representa um conjunto de
sintomas e sinais de origem idiopática caracterizado por dor
musculoesquelética generalizada longa e duradoura. Além
disso, apresenta uma relação significativa com diversos outros
sintomas que variam desde síndrome do intestino irritável,
cansaço, enxaqueca até distúrbios cognitivos e psicológicos.1–3
Considerando que a SFM pode ser confundida com outras
doenças, uma vez que muitos sintomas podem ser encontrados
em outras patologias, o American College of Rheumatology
(ACR), em 1990, estabeleceu critérios de identificação da
SFM, os quais consideram a presença de dor generalizada em
conjunto com a identificação de dor sob pressão em ao menos
11 de um total de 18 pontos específicos, denominados tender
points.1,4,5
Recebido em 15/04/2011. Aprovado, após revisão, em 30/08/2011. Os autores declaram a inexistência de conflito de interesses. Suporte Financeiro: Universidade Feevale. Comitê de Ética: 2.02.02.06.346.
1. Biomédica; Mestre em Qualidade Ambiental pela Universidade Feevale; Doutoranda em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Ciências da Saúde
de Porto Alegre – UFCSPA; Professora-Adjunta da Univates
2. Fisioterapeuta; Mestre em Qualidade Ambiental pela Universidade Feevale
3. Graduando em Psicologia pela Universidade Feevale
4. Psicóloga; Mestre e Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS; Professora Titular do curso de Psicologia;
Mestrado em Acessibilidade e Inclusão Social da Universidade Feevale
5. Bióloga; Mestre e Doutora em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS; Professora Titular dos cursos de
Psicologia e Biomedicina; Mestrado em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale
Correspondência para: Fabiana Michelsen de Andrade. Universidade Feevale – Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação – PROPI. RS 239, nº 2755, sala 201 F – Vila
Nova. CEP: 93352-000. Novo Hamburgo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]
594
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):587-602
Influência da interação entre qualidade ambiental e o SNP T102C do gene HTR2A sobre a suscetibilidade à fibromialgia
A etiologia da SFM permanece incerta. Alguns autores
sugerem que ela possa ter origem após traumatismos físicos,
intervenções cirúrgicas, doenças infecciosas, estresse emocional,
eventos traumáticos na infância, violência psicofísica, abuso
sexual, abandono, guerras, estresse ocupacional ou estilo de vida
hiperativo.2,6–11 Fatores genéticos também podem desempenhar papel importante na transmissão ou modulação da dor, principalmente
quando influenciados por estímulos ambientais e familiares.12–14
A serotonina (5-hidroxitriptamina, 5-HT) é um neurotransmissor com papel fundamental no sono, no limiar da dor, na
constrição e dilatação vasculares, nas dinâmicas da fome/
saciedade e da libido, na depressão, ansiedade e possivelmente
nos transtornos obsessivo-compulsivos.15–17 Sugere-se uma
possível contribuição da 5-HT na etiologia da SFM, não somente devido à eficácia da reposição de inibidores de recaptação
de 5-HT no manejo da dor crônica, mas também em achados
biológicos, como baixos níveis de 5-HT em pacientes com dor
idiopática.18,19 Assim, a possível associação dos polimorfismos
de nucleotídeo simples (SNP) nos genes de receptores de 5-HT
tem sido frequentemente apoiada por muitos pesquisadores em
estudos com pacientes portadores da SFM, dentre os quais se
destaca o gene do receptor 2A de serotonina (HTR2A).
O ambiente também influencia a saúde humana, de forma que o grupo conhecido por WHOQOL (World Health
Organization Quality of Life) considera que a definição de
qualidade de vida deve levar em conta a percepção do indivíduo e suas relações com o meio ambiente. Por isso, o grupo
desenvolveu um instrumento capaz de mensurar a qualidade de
vida a partir de 100 questões – o WHOQOL-10020 –, já validado no Brasil por Fleck.21 Entretanto, até o presente momento
nenhum estudo aplicou o WHOQOL-100, ou suas facetas de
forma separada, com a intenção de identificar possíveis fatores
ambientais predisponentes ao surgimento da SFM.
Tentando relacionar a etiologia da SFM a um fator fisiológico, estudos concentram seus esforços não só nos componentes do sistema serotoninérgico, mas também em fatores
que envolvem a predisposição genética, o comportamento e
a qualidade do meio ambiente. No entanto, nenhum trabalho
destacando a interação gene × ambiente foi realizado até o
momento. Assim, este trabalho teve por objetivo avaliar a
interação entre a variabilidade do gene HTR2A e a percepção
da qualidade ambiental sobre a suscetibilidade à SFM.
colonização de origem alemã. A amostra de pacientes foi constituída de 41 indivíduos eurodescendentes do gênero feminino,
com média etária de 47,93 ± 11,21 anos e diagnóstico clínico
da SFM confirmado por exame médico, segundo os critérios
do ACR.5 Pacientes com déficit cognitivo e com incapacidade
motora foram excluídos da amostra.
A amostra de controles foi constituída de 49 mulheres eurodescendentes que não se enquadraram nos critérios do ACR
para o diagnóstico clínico da SFM. Todas foram voluntárias e
passaram pela avaliação de sintomas clínicos e exame de palpação de tender points por uma fisioterapeuta. A idade média
da amostra-controle foi de 41,48 ± 10,78 anos. A investigação
foi aprovada pelo comitê de ética da Universidade Feevale.
Avaliação da qualidade de vida
relativa ao meio ambiente
Solicitou-se a todas as pacientes que respondessem as questões
do domínio V do questionário WHOQOL-100 de maneira
retrospectiva, tomando como base o período anterior ao início dos sintomas. Todos os componentes do grupo-controle
responderam o questionário sobre a percepção da qualidade
do meio ambiente. Entretanto, enfatizou-se ao grupo que suas
respostas deveriam refletir o tempo presente.
O instrumento WHOQOL-100 foi validado no Brasil em
1999,21 e proporciona uma avaliação minuciosa de 25 facetas,
uma das quais corresponde às questões gerais de qualidade
de vida; as demais correspondem a 24 aspectos que estão
distribuídos entre seis domínios: físico, psicológico, nível de
independência, relações sociais, aspectos do meio ambiente e
espiritualidade/religião/crenças pessoais (representados por
facetas). O domínio V do WHOQOL-100 diz respeito às questões ambientais, com 32 questões divididas em oito domínios
(ou facetas) que abrangem assuntos sobre: Segurança física e
proteção; Ambiente no lar; Recursos financeiros; Cuidados de
saúde e sociais: disponibilidade e qualidade; Oportunidades
de adquirir novas informações e habilidades; Participação e
oportunidades de recreação ou lazer; Ambiente físico: poluição,
ruídos, trânsito, clima; e Transporte. As respostas são dadas
em uma escala tipo Likert, cujos valores variam de 0 a 5. A
pontuação final do domínio foi feita pela média das facetas. Os
escores foram pontuados revertendo algumas questões, quando
necessário. Para realizar os cálculos, utilizou-se a sintaxe de
acordo com as especificações da OMS.
PACIENTES E MÉTODOS
Pacientes
Métodos de genotipagem
Os indivíduos pesquisados pertencem à comunidade de
Novo Hamburgo, RS, caracterizada pela predominância da
Todos os participantes doaram 5 mL de sangue periférico, e
o DNA foi extraído a partir dos linfócitos utilizando a técnica
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):587-602
595
Mergener et al.
Métodos estatísticos
A diferença de escores do domínio V do WHOQOL-100 entre
pacientes e controles foi avaliada pelo teste de Mann-Whitney.
Para detectar a correlação entre o escore total do domínio V do
WHOQOL-100 e o escore de cada faceta, utilizou-se a correlação não paramétrica de Spearman. Essa análise foi realizada
para detectar qual das facetas contribuiria mais para o escore
total do domínio. O teste de qui-quadrado (χ2) foi utilizado
para avaliar a diferença de frequências genotípicas do gene
HTR2A entre pacientes e controles, e para testar o equilíbrio de
Hardy-Weinberg nos dois grupos e na amostra total. A diferença
de frequências alélicas entre grupos foi verificada pelo teste
exato de Fisher, por meio do programa InStat, versão 3.06.
Para os testes de χ2 que forneceram resultados significantes
foi realizada a análise de resíduos, a fim de determinar quais
grupos contribuíram mais fortemente para a diferença encontrada. Essa análise foi realizada com a utilização do programa
WinPepi, versão 6.9.
A influência da interação entre o gene HTR2A e os escores
do domínio V do WHOQOL-100 sobre o risco de desenvolver fibromialgia foi testada por meio de regressão logística
múltipla, na qual as variáveis independentes testadas foram
WHOQOL-100 (escores do domínio V transformados em
duas categorias de acordo com o percentil 50: escores altos
e escores baixos), SNP no gene HTR2A (transformados em
portadores e não portadores do alelo 102C) e a variável de
interação entre ambos. O método de modelagem utilizado foi
o stepwise backward. A interação entre o gene HTR2A e os
escores das diferentes facetas também foi testada, inserindo
oito variáveis correspondentes aos escores das oito facetas,
a variante do gene HTR2A e todas as variáveis de interação,
totalizando 17 variáveis testadas inicialmente. O método utilizado também foi o stepwise backward, e a modelagem pode
ser consultada na Tabela 1. O programa estatístico Statistical
Package for Social Sciences SPSS®, versão 16.0, foi utilizado
para análise dos dados.
596
Implicações éticas
O presente estudo segue todos os princípios éticos designados
pelo Código de Nuremberg e pela Declaração de Helsinque,
além das Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas
Envolvendo Seres Humanos do Conselho Nacional de Saúde
(CNS 196/96). Assim, foi aprovado pelo Comitê de Ética da
Universidade Feevale, sob o parecer de número 2.02.02.06.346.
As coletas das amostras foram iniciadas somente após essa
aprovação, e todos os sujeitos participaram de forma voluntária,
receberam instruções sobre o desenvolvimento do trabalho
e assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido
(TCLE).
RESULTADOS
Considerando os dados obtidos do cálculo das médias de todas
as facetas de pacientes e de indivíduos-controle através do
domínio V do questionário WHOQOL-100, pode-se observar
que as pacientes com SFM relataram condições ambientais no
período prévio à doença como significativamente piores que as
mulheres do grupo-controle (P < 0,001; Figura 1).
Com relação às oito facetas do domínio V do WHOQOL-100,
todas foram avaliadas pelas pacientes com SFM de forma significativamente pior em comparação aos controles, à exceção
da primeira, faceta 16, que diz respeito à segurança física e
22
P = 0,001
20
18
Escore Domínio V
descrita por Lahiri e Nurnberger.22 O SNP T102C do gene
do receptor de serotonina HTR2A (rs6313) foi avaliado por
meio de PCR-RFLP, descrita por Warren et al.,23 utilizando
a enzima Msp I. Os genótipos foram determinados pela separação dos fragmentos após eletroforese em gel de agarose,
corado com brometo de etídeo e visualizado em luz UV. Os
indivíduos foram classificados de acordo com o padrão de
bandas encontradas: o alelo 102T correspondeu a uma única
banda de 342 pb, enquanto o 102C apresentou duas bandas de
216 pb e 126 pb. A determinação genotípica foi possível em
34 pacientes e 36 controles.
16
14
12
10
8
6
N=
49
41
Controle
Paciente
Figura 1
Escores do domínio V do questionário WHOQOL-100 em
pacientes com SFM (11,48 ± 2,15) e controles (14,43 ± 1,96),
calculado a partir das médias de todas as facetas.
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):587-602
Influência da interação entre qualidade ambiental e o SNP T102C do gene HTR2A sobre a suscetibilidade à fibromialgia
Figura 2
Gráfico dos escores obtidos em cada
faceta, comparando pacientes com SFM
e indivíduos-controle.
25
Escore médio das facetas
20
**
*
Controles
*P = 0,229; **P = 0,008; demais, P = 0,001.
Pacientes
Nas ordem da esquerda para a direita: faceta
16 – Segurança física e proteção; faceta 17
– Ambiente no lar; faceta 18 – Recursos
financeiros; faceta 19 – Cuidados de saúde
e sociais: disponibilidade e qualidade; faceta
20 – Oportunidades de adquirir novas informações e habilidades; faceta 21 – Participação
e oportunidades de recreação e lazer; faceta
22 – Ambiente físico; faceta 23 – Transporte.
15
10
5
0
16
17
18
19
20
Facetas
21
22
23
Tabela 1
Análise de regressão logística múltipla: modelagem através do método backward
-2 log
probabilidade
Modelo Modelo
1
2
Modelo
3
Modelo Modelo Modelo Modelo Modelo Modelo Modelo
4
5
6
7
8
9
10
Modelo
11
Modelo
12
Modelo
13
Modelo
14
24,6
25,2
28,3
32,8
33,0
33,7
37,2
24,6
29,2
29,8
30,3
31,4
31,8
32,0
X2
55,8
55,8
55,2
52,2
51,3
50,6
50,1
49,0
48,7
48,4
47,6
47,4
46,7
43,2
R2x100
82,2
82,2
81,6
78,9
78,0
77,4
76,9
75,8
75,5
75,2
74,4
74,2
73,5
69,8
0,0
0,0
0,0
0,002
0,05
0,13
0,30
0,12
0,16
0,21
0,22
0,19
0,196
0,343
Faceta 16 0,076
0,076
0,059
1,72
1,0
1,71
3,67
3,81
3,02
3,32
1,56
VE
VE
VE
Faceta 17 201,9
201,9
202,8
10,53
21,4
17,8
11,21
3,44
4,20
4,49
5,66
6,59
5,93
VE
Faceta 18 6,0
6,03
6,3
0,07
0,14
0,08
0,10
0,10
0,16
0,26
VE
VE
VE
VE
Faceta 19 0,007
0,007
0,003
0,128
0,13
0,17
0,37
0,87
0,88
0,90
0,45
0,37
0,31
0,57
OR
HTR2Aa
Faceta 20 15,6
15,6
67,5
45,5
14,5
13,73
9,8
6,94
5,12
5,08
5,64
5,78
10,06
13,73
Faceta 21 13,4
13,4
11,6
5,21
4,3
6,59
4,99
2,74
2,0
VE
VE
VE
VE
VE
Faceta 22 0,59
0,59
0,86
3,38
1,27
4,68
3,56
2,00
VE
VE
VE
VE
VE
VE
Faceta 23 1,54
1,54
0,79
3,69
11,06
9,32
7,31
6,62
6,0
4,96
2,34
2,39
VE
VE
3,307
× 103
66,44
13,6
5,76
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
HTR2A × 6 × 10
Faceta 16
8
5 × 10
9
HTR2A × 0,0
Faceta 17
0,0
0,0
0,006
0,013
0,023
0,069
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
HTR2A × 0,001
Faceta 18
0,0
0,0
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
HTR2A × 5 × 1010 5 × 1011
Faceta 19
6 × 108
11.055,6 2.349,9 1.462,4 478,8
288,97
220,2
214,7
306,2
345,28
547,15
261,14
HTR2A × 436,7
Faceta 20
4.148,9
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
HTR2A × 0,002
Faceta 21
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
17,0
8,8
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
319.104,4 31,3
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
VE
HTR2A × 19.639,5 185.301,9 144,9
Faceta 22
HTR2A × 3 × 107
Faceta 23
2 × 108
VE: variável excluída do modelo.a Genótipos foram codificados como “0” (genótipo TT) e “1” (portadores do alelo C).b Escores das facetas foram codificados como “0” e “1” de acordo com o percentil 50 de
cada faceta.
Valores de OR em negrito são significantes (P < 0,05).
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):587-602
597
Mergener et al.
Tabela 2
Frequências genotípicas e alélicas do SNP T102C do gene
HTR2A na amostra total, pacientes com SFM e controles
Genótipos
Amostra total
(n = 70)
Pacientes
(n = 34)
Controles
(n = 36)
TT
37,1% (26)
23,5% (08)1
TC
42,9% (30)
56,0% (19)
1
CC
20,0% (14)
20,5% (07)
19,4% (07)
TT
37,1% (26)
23,5% (08)
50% (18)
C+
62,9% (44)
76,5% (26)
50% (18)
102T
59,0%
51,5%
65,3 %
102C
41,0%
48,5%
34,7%
P
50,0% (18)
30,5% (11)
0,052
0,028
Alelos2
0,12
1
Análise de resíduos: P < 0,05.
2
Teste exato de Fisher.
à proteção. Nesse caso, pode-se observar que, apesar de as
pacientes apresentarem piores índices de segurança física e proteção que os indivíduos do grupo-controle, a preocupação com
esses fatores é comum a toda a amostra estudada (Figura 2).
A correlação não paramétrica de Spearman entre o escore
total do domínio V do WHOQOL-100 e o escore de cada faceta
e pergunta demonstrou que aquelas que influenciaram de forma
muito forte a pontuação total do domínio V do WHOQOL-100,
entre todos os participantes, foram, nesta ordem: faceta 20 –
oportunidades de adquirir novas informações e habilidades
(rho = 0,845; P < 0,001); faceta 18 – recursos financeiros
(rho = 0,828; P < 0,001); e faceta 21 – participação e oportunidades de recreação e lazer (rho = 0,782; P < 0,001). Aquelas
que menos influenciaram foram a faceta 16, sobre segurança
física e proteção (rho = 0,642; P < 0,001), e a faceta 22, sobre
ambiente físico (rho = 0,490; P < 0,001).
A Tabela 2 demonstra as frequências alélicas e genotípicas
das amostras investigadas pela técnica de genotipagem do
SNP T102C (rs6313) do gene HTR2A. A comparação das
frequências genotípicas demonstra que homozigotos para o
alelo 102T são significativamente mais raros em pacientes com
SFM que em controles (P < 0,05), enquanto heterozigotos são
mais comuns nesses pacientes (P < 0,05). Além disso, quando
agrupados de acordo com a presença do alelo em homozigose e
heterozigose, os portadores do alelo 102C apresentam-se com
maior frequência entre os pacientes com SFM, em comparação
aos controles (P = 0,028).
A análise de regressão múltipla (Tabela 3) possibilitou
testar a presença de interações entre os escores do domínio V
do WHOQOL e o polimorfismo no gene HTR2A. Foi possível
perceber que mulheres com escores menores que 13 na faceta
20 (“oportunidades de adquirir novas informações e habilidades”) possuem chance 13,7 vezes maior de desenvolver SFM
em relação àquelas com escores superiores (P = 0,009). Além
disso, foi detectada interação significativa entre a variante
genética e escores da faceta 19 (“cuidados de saúde e sociais:
disponibilidade e qualidade”) (P = 0,005), demonstrando que
a influência do polimorfismo é muito mais forte em mulheres
com escores baixos da faceta 19.
A interpretação dessa interação foi feita utilizando os
parâmetros da regressão logística (Tabela 3) e a equação de
regressão, e esses cálculos renderam um OR de 90,02 para as
mulheres que, além de portadoras do alelo 102C, ainda possuem baixos escores na faceta 19. Por outro lado, no grupo de
Tabela 3
Regressão logística múltipla avaliando as influências conjuntas sobre a SFM
OR (IC de 95%)
P
Beta
0,34 (0,037–3,21)
0,35
-1,07
Faceta 19 – Cuidados de saúde e sociais: disponibilidade e qualidade
0,57 (0,05–6,14)
0,65
-0,56
Faceta 203 – Oportunidades de adquirir novas informações e habilidades
13,7 (1,92–97,9)
0,009
2,62
Faceta 19 × HTR2A
261,14 (5,24–13.021,5)
1
HTR2A
2
0,005
5,57
Interpretação da interação faceta 19 × HTR2A
Beta calculado
OR calculado
Portadores do alelo 102C (beta HTR2A = 1) e com BAIXOS escores na faceta 19 (beta HTR2A
× faceta 19 = 1) = (-1,07) + 5,57
4,5
90,02
Portadores do alelo 102C (beta HTR2A = 1) e com ALTOS escores na faceta 19 (beta HTR2A
× faceta 19 = 0) = -1,07
-1,07
0,34
1
Codificados como 0 (genótipo TT) e 1 (portadores do alelo C).
2
Codificados de acordo com o percentil 50 em 0 (escores maiores que 12) e 1 (escores menores que 12).
3
Codificados de acordo com o percentil 50 em 0 (escores maiores que 13) e 1 (escores menores que 13).
598
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):587-602
Influência da interação entre qualidade ambiental e o SNP T102C do gene HTR2A sobre a suscetibilidade à fibromialgia
mesmo genótipo, mas com valores altos na faceta 19, o OR
calculado foi de 0,34, indicando proteção para as mulheres que
possuem o genótipo de risco mas têm escores altos da faceta 19.
DISCUSSÃO
A avaliação da qualidade de vida vem crescendo em importância como medida de análise de resultados de tratamentos
na medicina.21 De fato, parece que os pacientes com SFM
experimentam baixa qualidade de vida em comparação com a
população em geral, envolvendo aspectos pessoais, familiares
e sociais, correlacionando-se fortemente com intensidade da
dor, fadiga e decréscimo da capacidade funcional. Burckhardt
et al.24 exploraram a qualidade de vida de mulheres com SFM
e compararam esses dados aos de mulheres com artrite reumatoide, osteoartrite, doença pulmonar obstrutiva crônica,
diabetes mellitus dependente de insulina, e controles saudáveis.
Seus resultados mostraram que as pacientes com SFM apresentaram índices de qualidade de vida entre os mais baixos.
Outros estudos com pacientes com SFM apontam que a dor é
o pior aspecto relacionado à baixa qualidade de vida relatada
pelos pacientes.25–27
Tais estudos procuraram apenas verificar o quanto a doença ou o tratamento aplicado a ela influenciam a qualidade
de vida dos pacientes, associando os resultados aos aspectos
clínicos ou em comparação com indivíduos sadios ou, ainda,
portadores de outras doenças. Todas essas abordagens concluíram que a utilização do WHOQOL-100 como instrumento
de acompanhamento clínico é bastante interessante para a
avaliação dos sintomas. Até o presente momento, contudo,
não existem registros da utilização desse questionário como
ferramenta de avaliação de fatores de predisposição, ou seja,
de maneira que tente responder como a qualidade de vida
poderia influenciar o surgimento da SFM e/ou seus sintomas,
como abordado neste trabalho. Com a intenção de avaliar
quais fatores ambientais poderiam influenciar o desenvolvimento dos sintomas nos pacientes com SFM, utilizou-se
o domínio V do questionário WHOQOL-100, que abrange
questões sobre os aspectos ambientais e a percepção do indivíduo sobre o mundo à sua volta.
Problemas financeiros, poucas oportunidades de atividades
de recreação, de lazer e de adquirir novas informações foram
os fatores que mais influenciaram a pontuação do questionário
entre as pacientes com SFM, mesmo antes de desenvolverem
a síndrome. Esse dado foi observado tanto pela diferença estatisticamente significante entre pacientes com SFM e controles
quanto pela correlação das questões com o escore total do domínio V do WHOQOL-100. Da mesma forma, Valeikiene et al.28
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):587-602
encontraram correlação na faceta 21 (“participação e oportunidades em atividades de recreação e lazer”) entre pacientes
com doença de Parkinson e osteoartrite. Assim, esses resultados
sugerem que as preocupações individuais com as dificuldades
financeiras e, principalmente, a falta de atividades de lazer e
de oportunidades de aprendizado podem ser fatores relacionados ao desenvolvimento de síndromes crônicas como a SFM.
Infelizmente, apenas essa comparação sobre a influência de
cada faceta separadamente pode ser realizada, já que nenhum
outro trabalho publicado até o momento avaliou a relação entre
cada faceta do domínio V e alguma patologia.
Na Índia, Khanna et al.,29 com o questionário WHOQOL-100,
foram capazes de observar que os fatores físicos e psicológicos
são muito prejudicados nos pacientes com lúpus eritematoso
sistêmico (LES). Entretanto, os domínios abordando fatores
sociais e ambientais não puderam ser correlacionados significativamente com o estado de doença ativo nos pacientes
com LES. Em comparação com esses dados, os pacientes
com SFM apresentaram valor médio de escore do domínio V
do questionário WHOQOL-100 de 11,48 ± 2,15, enquanto os
pacientes com LES apresentaram média superior (14,1), o que
aparentemente demonstra maior influência do ambiente sobre
a SFM. Van Houdenhove et al.30 sugerem que o estilo de vida
muito ativo possa ser um dos fatores que tornam as pessoas
mais vulneráveis ao desenvolvimento da SFM, e que também
contribua para o início e a perpetuação da doença. Esses autores
explicam que pessoas com estilo de vida mais ativo correm
maiores riscos de sobrecarregar fisicamente o corpo, devido a
atitudes negligentes envolvendo o desgaste musculoesquelético
e à privação do sono. Certas características de personalidade,
como transtorno obsessivo-compulsivo, perfeccionismo, trabalho demasiado e tendências de autossacrifício, parecem estar
relacionadas a esse estilo de vida hiperativo. Dessa maneira,
nossos dados, em conjunto com alguns trabalhos publicados
nesse sentido, parecem indicar que baixa qualidade do ambiente influencia no surgimento da SFM.
Além da influência ambiental, outro mecanismo subjacente à SFM é sua relação com distúrbios no metabolismo
e transmissão da 5-HT. Essa hipótese é baseada em estudos
que mostram que níveis de 5-HT estão diminuídos em pacientes com SFM quando comparados a sujeitos-controle.
Além disso, baixos níveis de 5-HT foram inversamente
correlacionados a medidas clínicas de percepção da dor.17,31
A 5-HT desempenha importante papel em muitos transtornos
neuropsiquiátricos pela regulação das vias serotoninérgicas,
influenciando o limiar da dor por meio da interação com
a substância P, potencializando os efeitos endógenos da
endorfina. Baixos níveis de 5-HT diminuem os limiares de
599
Mergener et al.
dor, permitindo que mais dor seja sentida no sistema nervoso
central e perturbando o processo reparador do sono profundo,17,32 características comumente encontradas em pacientes
com SFM. Além disso, muitos autores sugerem que fatores
genéticos provavelmente estejam envolvidos na etiologia da
SFM.33–35 Tais estudos, porém, ainda são poucos e conflitantes, mas devido às questões fisiológicas envolvidas, genes
relacionados à 5-HT são bons candidatos a estudo.
Gürsoy et al.33 conseguiram relacionar o genótipo 102TT
do gene HTR2A aos sintomas psiquiátricos da SFM, mas não
à própria síndrome, em uma população da Turquia. Tander et
al.34 também não encontraram diferenças significativas entre
pacientes e indivíduos sadios turcos para essa variante. Por
outro lado, Bondy et al.35 detectaram uma frequência genotípica
diminuída de homozigotos 102TT e aumentada de portadores
do alelo 102C entre pacientes com SFM de origem alemã, uma
população com composição étnica similar à população-alvo
do presente trabalho, e para a qual, portanto, o alelo de risco
para SFM seria o mesmo que o detectado em nossos dados.
No entanto, um dado aparentemente controverso é o de que,
nesta investigação da população alemã, a severidade da dor foi
significativamente maior no genótipo 102TT do SNP T102C do
gene do receptor HTR2A em pacientes com SFM, em comparação aos controles.35 O único estudo desenvolvido no Brasil
investigou uma população do centro do país, e não detectou
qualquer relação significativa desse SNP com a fibromialgia.
Uma vez que há a possibilidade de múltiplas interações de
diversos sistemas e vias de neurotransmissores estarem envolvidas no processo de suscetibilidade à fibromialgia, além de
interações poligênicas e da influência de fatores ambientais,36
é importante que esse tipo de análise seja realizado em cada
população de origem étnica distinta.
O polimorfismo T102C não altera a expressão ou a
estrutura do receptor HTR2A, o que significa que seu envolvimento com SFM é indireto. Uma possibilidade é que
exista desequilíbrio de ligação com a variante funcional verdadeira, a qual talvez faça parte da região promotora ou outras
regiões regulatórias do gene. Evidências recentes indicam
que tanto os níveis totais de RNAm do gene HTR2A quanto
de receptores são mais baixos em indivíduos saudáveis com
o genótipo 102CC que naqueles com o genótipo 102TT.16,37
Uma vez que os dados sobre o risco relacionado à SFM e
às suas diferentes manifestações psiquiátricas e sintomas de
dor são controversos, mais investigações são necessárias para
confirmar a associação do alelo 102C com SFM encontrada
no presente trabalho para a população do Sul do Brasil, e
também para averiguar se essa relação existe em diferentes
grupos populacionais.
600
Considerando a etiologia multifatorial da SFM, existe a
possibilidade de as influências investigadas no presente trabalho apresentarem alguma interação entre si. Os dados obtidos
a partir de análises multivariadas (Tabela 3) permitiram reconhecer que baixos escores na faceta 19 (“cuidados de saúde
e sociais: disponibilidade e qualidade”) aumentam muito as
chances do desenvolvimento da SFM, especialmente quando
em interação com o gene investigado. Assim, observa-se, na
amostra estudada, que os indivíduos que possuem o alelo 102C
do gene HTR2A e que também apresentam baixos escores
na faceta 19 detêm maiores chances de desenvolvimento da
patologia; esses valores variam de 90 a quase 150 vezes mais
chance de desenvolver SFM, de acordo com o genótipo do gene
HTR2A. Em contrapartida, caso apenas uma dessas variáveis
seja alterada, isto é, possua o genótipo 102TT para esse gene,
ou se não houver muita preocupação com esses fatores, é
conferida uma proteção.
Contudo, esses dados, a princípio relativos ao período
anterior ao desenvolvimento da patologia, podem estar sofrendo influências da avaliação subjetiva de cada indivíduo
estudado e não fazer jus ao verdadeiro estado do ambiente
a que o sujeito estava inserido nesse período. Segundo
alguns especialistas, há a hipótese de que os pacientes
que sofrem de doenças não objetivas como a SFM possam
idealizar seu estilo de vida pré-mórbido quando comparado
ao estilo de vida atual.30 No entanto, se esse fosse o caso,
era de se esperar que as pacientes demonstrassem escores
aumentados no domínio V do WHOQOL. Nesse mesmo
contexto, há a possibilidade de outras comorbidades estarem
influenciando esses resultados, como é o caso da depressão.
Entre os pacientes com SFM, os transtornos depressivos são
as comorbidades psiquiátricas mais frequentes, atingindo
uma prevalência de 20% a 80%. Assim, seria também
possível que pacientes com maiores escores de depressão
respondessem sobre seu ambiente de maneira pior que a
realidade, levando à diminuição nesses escores. Uma vez
que o gene HTR2A provavelmente está também relacionado
à depressão nessas pacientes, essa pode ser uma explicação
para a interação detectada.
Infelizmente, até o momento, esse tipo de interação não foi
testado na literatura mundial com relação à SFM, e, portanto,
não é possível comparar nossos dados. Deve ficar claro, no
entanto, que o presente trabalho possui limitação significativa, que reside em nosso pequeno tamanho amostral. Isso
é percebido especialmente quando se avalia a magnitude de
intervalos de confiança desses OR, demonstrados da Tabela 3.
Assim, embora não devam ser negligenciados devido a essa
limitação, nossos dados devem servir apenas como base para
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):587-602
Influência da interação entre qualidade ambiental e o SNP T102C do gene HTR2A sobre a suscetibilidade à fibromialgia
uma hipótese de interação entre gene e ambiente, que deve ser
posteriormente testada.
Finalmente, sugere-se que a SFM reúna uma coleção de
características que refletem uma heterogeneidade de causas.
Devido à alta frequência de agregação a transtornos psiquiátricos, as vias que conduzem à exacerbação da dor na SFM podem
envolver aspectos tanto psicológicos quanto fisiológicos. Além
disso, deve-se ainda considerar a possibilidade de fatores
ambientais e comportamentais e a predisposição genética
desempenharem papéis muito significativos no surgimento
dos sintomas dessa síndrome. Como acontece para qualquer
característica multifatorial, o SNP T102C no gene do receptor
HTR2A provavelmente tem pequeno efeito no metabolismo
da 5-HT, quando avaliado isoladamente, sugerindo que outros
genes certamente também podem estar envolvidos na etiopatogênese da SFM. Novos estudos seguindo essas linhas devem
criar perspectivas para melhor compreensão dos mecanismos
de promoção e perpetuação da doença. Esses desafios representam um elemento-chave para melhor conhecimento dessa
síndrome complexa, podendo servir como base para prevenção
e melhor manejo terapêutico da dor nessas pacientes.
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ARTIGO ORIGINAL
Incidência de infecções em artroplastias
de quadril e joelho em pacientes com
artrite reumatoide e osteoartrite
Bernardo Matos da Cunha1, Sandro Barbosa de Oliveira2, Leopoldo Santos-Neto3
RESUMO
Introdução: A artrite reumatoide (AR) é uma das principais indicações de artroplastia total do quadril (ATQ) ou joelho
(ATJ). Estudos internacionais indicam a AR como fator de risco para infecções de prótese. Objetivos: Comparação entre
pacientes com AR e osteoartrite (OA) de outras etiologias em relação à incidência de infecções de prótese, infecções
incisionais e outras infecções sistêmicas pós-operatórias em ATQ e ATJ. Métodos: Coorte retrospectiva, comparativa,
de pacientes acompanhados após a realização de ATQ ou ATJ no Hospital SARAH-Brasília, no período entre 1996 e
2007. Resultados: Setenta e cinco artroplastias em pacientes com AR foram identificadas, das quais 28 ATJ e 47 ATQ.
Como controles, foram selecionadas 131 cirurgias em pacientes com OA, das quais 56 ATJ e 75 ATQ, de maneira aleatória e estratificada pela cirurgia e pelo gênero. Não houve diferenças significativas entre os grupos de AR e OA no
que diz respeito às taxas de infecções de prótese (respectivamente, ATJ 7,1% vs. 0% e ATQ 2,1% vs. 0%, ambos com
P > 0,1), infecção incisional (ATJ 14,3 vs. 3,3% e ATQ 4,3 vs. 1,3%, ambos com P > 0,1) e infecção sistêmica (ATJ 7,1
vs. 3,6%, P = 0,92 e ATQ 4,3 vs. 10,7%, P > 0,1). Após regressão logística múltipla, não houve alteração dos resultados.
Conclusões: A presença de AR não foi identificada como fator de risco para infecções perioperatórias em ATQ e ATJ
em casuística do Hospital SARAH-Brasília, em comparação com o grupo de pacientes com OA primária ou secundária
a doenças não inflamatórias. A baixa incidência de infecções em ambos os grupos pode explicar os nossos achados.
Palavras-chave: artrite reumatoide, artroplastia, infecção, osteoartrite.
© 2011 Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados.
INTRODUÇÃO
A artrite reumatoide (AR) acomete entre 0,2% e 1% da população brasileira.1 Caracteriza-se por poliartrite periférica,
simétrica, que leva à deformidade e à destruição das articulações por erosão do osso e da cartilagem. Muitos pacientes
evoluem com osteoartrite (OA) secundária, representando uma
das indicações mais frequentes de artroplastia total, juntamente
com a osteoartrite e as lesões traumáticas.
Os pacientes acometidos pela AR têm um perfil diferente
dos portadores de OA de outras etiologias. A OA incide geralmente em pacientes acima de 50 anos, enquanto a AR pode
acometer pacientes mais jovens.2 Além disso, pacientes com
AR apresentam inflamação sistêmica crônica, em geral fazem
uso de drogas imunomoduladoras e corticoides e apresentam
com mais frequência outras comorbidades, como osteoporose,3
outras doenças autoimunes4 e aterosclerose precoce.5 Podem
estar mais sujeitos a complicações como infecções cirúrgicas,
deiscência de sutura, fraturas periprotéticas e menor durabilidade da prótese, que têm grande impacto na morbimortalidade
e na qualidade de vida.
Os primeiros estudos comparativos não evidenciaram menor
durabilidade das próteses em pacientes com AR,6,7 enquanto
outros mostraram que tais pacientes apresentam benefícios importantes com o tratamento cirúrgico no que diz respeito a dor e
função articular.8,9 Entretanto, dois estudos, incluindo uma coorte
retrospectiva publicada recentemente, evidenciaram pequeno
aumento do número de revisões por infecção em pacientes com
Recebido em 02/05/2011. Aprovado, após revisão, em 30/08/2011. Os autores declaram a inexistência de conflito de interesses. Comitê de Ética: 748.
Hospital SARAH Brasília, Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação.
1. Médico Reumatologista da equipe de Clínica Médica do Hospital SARAH Brasília
2. Estatístico; Liderança do controle de qualidade da Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação
3. Professor-Associado de Clínica Médica da Universidade de Brasília – UnB
Correspondência para: Bernardo Matos da Cunha. Hospital SARAH Brasília. SMHS, Quadra 301, bloco A. CEP: 70335-901. Brasília, DF, Brasil.
E-mail: [email protected]
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):603-615
609
Cunha et al.
AR.10,11 Estudos caso-controle realizados com grande número
de pacientes submetidos a artroplastias indicaram a AR12–17 e o
uso de corticosteroides18 como fatores de risco para infecções.
O objetivo deste estudo é comparar pacientes com AR e OA de
outras etiologias em relação à incidência de infecções de prótese,
infecção incisional e outras infecções sistêmicas pós-operatórias
em artroplastias totais de quadril (ATQ) e de joelho (ATJ).
MATERIAIS E MÉTODOS
Desenho do estudo
Estudo retrospectivo, comparativo, de pacientes com AR e OA
de outras etiologias submetidos a ATQ e ATJ.
Critérios de inclusão e exclusão
Os participantes do estudo tinham idade maior ou igual a 18
anos. Foram incluídos pacientes acompanhados pelo programa
de ortopedia após a realização de ATQ ou ATJ, com a primeira
artroplastia da articulação em questão no Hospital SARAHBrasília, no período entre 1996 e 2007.
O grupo de pacientes com AR teve seu diagnóstico definido a partir dos critérios de 1987 do American College of
Rheumatology (ACR).19 O grupo-controle foi constituído de
pacientes com OA primária ou secundária a outras etiologias,
cujo diagnóstico foi definido a partir dos critérios clínico-radiográficos do ACR,20–22 utilizando os dados clínicos, laboratoriais e
radiológicos que tivessem sua data mais próxima da realização
da cirurgia. Se possível, seriam contabilizados dois pacientes
com OA para cada paciente com AR, selecionados aleatoriamente dentro do universo de pacientes operados no mesmo período,
mesmo se já tivessem sido submetidos previamente a outras
cirurgias articulares que não a artroplastia (como a osteotomia).
A amostra foi equilibrada por gênero e por articulação operada.
Foram excluídos da análise os pacientes portadores de AR
com indicação de artroplastia por necrose óssea avascular ou
fratura de colo de fêmur, os portadores de OA secundária a
outras doenças autoimunes (como espondilite anquilosante),
os portadores de artrite idiopática juvenil e os pacientes submetidos à hemiartroplastia.
Desfechos
A principal variável avaliada foi infecção de prótese, definida
como disfunção da prótese, com dor e/ou perda de função da
articulação, iniciada no primeiro ano de pós-operatório, que
motivasse a troca ou a retirada dos componentes da prótese,
com preenchimento de um dos seguintes critérios, baseados nos
critérios do Centers of Diseases Control (CDC):23 a) duas ou mais
610
culturas de biópsia óssea ou do material cirúrgico ou de líquido
sinovial com crescimento do mesmo microrganismo; b) líquido
sinovial purulento visto pelo cirurgião; c) sinais de inflamação
no exame histopatológico de tecido periprotético; d) presença de
fístula cutânea em comunicação direta com a prótese.
Infecção incisional superficial foi identificada no caso de
acometimento superficial da ferida operatória, ou seja, da pele e/
ou subcutâneo, de aparecimento até 30 dias da data da cirurgia,
preenchendo um dos três critérios, baseados nos critérios do CDC
e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA):24–27 a)
alterações inflamatórias superficiais da ferida operatória, ou seja,
da pele e subcutâneo (calor, rubor, dor, edema, saída de secreção)
em que o cirurgião-assistente tenha julgado necessário drenagem
e/ou uso de antibiótico sistêmico para tratamento, exceto em caso
de cultura negativa; b) saída de secreção purulenta da ferida operatória; c) cultura positiva de tecido da ferida operatória.
Infecção incisional profunda foi identificada em caso de
acometimento profundo da ferida operatória, ou seja, de fáscia
ou músculo, de aparecimento até um ano após a data da cirurgia,
preenchendo um dos três critérios:24–26 a) drenagem purulenta
da incisão profunda, mas não de órgão/cavidade; b) deiscência
parcial ou total da cicatriz cirúrgica ou abertura da ferida pelo
cirurgião, no caso de o paciente ter apresentado pelo menos um
dos seguintes sinais ou sintomas: temperatura axilar ≥ 37,8ºC,
dor ou aumento da sensibilidade local, exceto em caso de cultura
negativa; presença de abscesso ou outra evidência de que a infecção envolvesse os planos profundos da ferida, identificada em
reoperação, exames clínico, histocitopatológico ou de imagem.
Infecção sistêmica foi definida no caso da ocorrência de
outro quadro infeccioso, em qualquer órgão ou sistema, para
o qual tenha sido indicado uso de antibioticoterapia oral ou
venosa pela equipe assistente, tendo ou não comprovação
microbiológica, durante o período de internação.
Coleta de dados
A coleta de dados foi realizada a partir do prontuário eletrônico
da Rede SARAH. Foram selecionados os portadores de AR e OA
submetidos a artroplastias de quadril ou joelho por meio de busca
automática. Os casos foram contabilizados por procedimento
realizado. Foram computados os dados a seguir: a) em relação
aos procedimentos cirúrgicos: procedimento cirúrgico realizado;
data da primeira artroplastia; data da cirurgia de revisão ou data
da última consulta ou data do óbito do paciente; documentação
da infecção, incluindo o sítio, a data, o tipo de cultura positiva
e o germe causador, quando disponível; classificação de estado
físico da American Society of Anestesiology (ASA) e tempo
cirúrgico, que são fatores relacionados à infecção de prótese em
pelo menos três estudos;15,27,28 b) dados dos pacientes com AR:
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):603-615
Incidência de infecções em artroplastias de quadril e joelho em pacientes com artrite reumatoide e osteoartrite
idade, gênero, escolaridade; drogas modificadoras de atividade
reumática (DMARDs) e/ou corticoides em uso, com descrição
da dose no momento da cirurgia; fator reumatoide: positividade
e dosagem; c) dados dos pacientes com OA: idade, gênero,
escolaridade; etiologia da OA.
Análise estatística
Foram realizadas análises descritiva e exploratória dos dados.
As variáveis contínuas foram analisadas por testes de comparação de médias utilizando ANOVA. As variáveis qualitativas
foram analisadas pelo teste qui-quadrado de Pearson e/ou teste
exato de Fisher. Foi realizada análise por meio de regressão
logística múltipla para afastar a influência de possíveis variáveis de confundimento. Valores de P menores que 0,05 foram
considerados estatisticamente significantes. O software utilizado para análise foi o SPSS® 13 para Windows.
RESULTADOS
Casuística
No período estudado, foram identificadas 160 cirurgias em
pacientes classificados como portadores de AR. Após exclusão
dos casos que não se encaixavam nos critérios apontados anteriormente, 75 artroplastias em pacientes com AR confirmada
foram identificadas, das quais 28 ATJ e 47 ATQ (Figura 1).
Seleção atomática de pacientes com AR
× ATQ e ATJ em prontuário eletrônico
160 cirurgias
Como controles, foram selecionadas aleatoriamente, dentro
da disponibilidade de casos, 131 cirurgias em pacientes com
OA, das quais 56 ATJ e 75 ATQ.
Todas as ATJ foram realizadas por apenas um cirurgião
ortopedista sênior, e as ATQ foram realizadas somente por dois
cirurgiões seniores. Todos os cirurgiões seniores tinham larga
experiência com os procedimentos, e dois deles trabalham na
instituição há mais de 30 anos.
Características gerais dos pacientes
Os dados gerais estão resumidos nas Tabelas 1 e 2. A diferença
significativa na distribuição da classificação da ASA pode ser
explicada pelo fato de que a presença de AR já eleva a classificação para, no mínimo, ASA 2. No grupo de pacientes com
AR, o fator reumatoide estava disponível em 65 pacientes,
estando positivo em 73,2% dos pacientes no grupo de ATQ e em
87,5% dos pacientes no grupo de ATJ. O título médio do fator
reumatoide foi de 266,97 (± 378,3) U/mL no grupo de ATQ e
de 188,79 (± 164,1) U/mL no grupo de ATJ. Os DMARDs em
uso pelos pacientes com AR e suas respectivas doses médias
estão expostos na Tabela 3.
Infecções
Os resultados da comparação de incidências estão dispostos
nas Figuras 2 e 3. Devido ao pequeno número de infecções, as
Tabela 1
Características gerais dos casos do grupo de ATQ
Grupo ATQ
AR
OA
Gênero (%)
Exclusões:
Casos redundantes: 58
Outras doenças: 18
Artroplastia em outro serviço: 3
Diagnóstico inconclusivo: 17
Outras cirurgias: 5
Artroplastia prévia a 1996: 5
75 cirurgias para análise
Figura 1
Seleção dos pacientes com AR que realizaram cirurgia.
AR: artrite reumatoide; ATQ: artroplastia total do quadril; ATJ: artroplastia
total do joelho.
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):603-615
0,276
Feminino
41 (87,2)
61 (81,3)
Masculino
8 (12,8)
14 (18,7)
50,6 (11,7)
63,46 (11,3)
Idade média (DP)
ASA (%)
0 (0)
23 (30,7)
2
46 (97,9)
47 (62,7)
1 (2,1)
5 (6,7)
142,09 (36,61)
136 (28,36)
3
<0,001
<0,001
1
Tempo cirúrgico
médio em min (DP)
P
Escolaridade
(n = 113) (%)
0,307
0,001
Analfabeto
1 (2,3)
3 (4,3)
Fundamental
16 (36,4)
48 (69,6)
Médio
15 (34,1)
13 (18,8)
Superior
12 (27,3)
5 (7,2)
AR: artrite reumatoide; OA: osteoartrite; ASA: classificação de estado físico da American Society
of Anestesiology.
611
Cunha et al.
Tabela 3
DMARDs em uso pelos pacientes com AR
Tabela 2
Características gerais dos casos do grupo de ATJ
Grupo ATJ
AR
OA
P
20 (71,4)
42 (75,0)
Gênero (%)
0,46
Feminino
Masculino
8 (28,6)
14 (25,0)
54,91 (11,34)
70,97 (7,12)
1
0 (0)
6 (10,7)
2
27 (96,4)
48 (85,7)
3
1 (3,6)
2 (3,6)
102,86 (39,62)
142,09 (25,84)
Idade média (DP)
ASA (%)
Tempo cirúrgico
médio em min (DP)
Escolaridade
(n=113) (%)
0 (0)
8 (17,0)
Fundamental
8 (34,8)
34 (72,3)
Médio
12 (52,2)
4 (8,5)
Superior
3 (13,0)
1 (2,1)
ATJ
37,0 (78,7)
24,0 (85,7)
MTX
28,0 (78,7)
16,0 (85,7)
LFN
9,0 (19,1)
5,0 (17,9)
< 0,001
SSZ
4,0 (8,5)
5,0 (17,9)
0,200
Antimalárico
13,0 (28,0)
7,0 (25,0)
Anti-TNF
1,0 (2,1)
2,0 (7,1)
Corticoide
30,0 (63,8)
18,0 (64,3)
0,129
< 0,001
Analfabeto
DMARD (%)
ATQ
AR: artrite reumatoide; OA: osteoartrite; ASA: classificação de estado físico da American Society
of Anestesiology.
Dose média DMARDs
em mg (DP)
MTX
10,7 (4,0)
9,3 (2,9)
LFN
20,0 (0,0)
20,0 (0,0)
SSZ
1000,0 (0,0)
1200,0 (273,9)
CQN
250,0 (0,0)
204,6 (65,6)
HCQN
200,0 (0,0)
400,0 (0,0)
Equivalente de prednisona
6,9 (4,0)
10,2 (6,5)
ATQ: artroplastia total do quadril; ATJ: artroplastia total do joelho; DMARD: droga modificadora
de atividade de doença reumática; MTX: metotrexato; LFN: leflunomida; SSZ: sulfassalazina;
CQN: cloroquina; HCQN: hidroxicloroquina.
4/28
(14,3%)
8/75
(10,7%)
2/28
(7,1%)
2/47
(4,3%)
2/28
(7,1%)
2/47
(4,3%)
2/56
(3,6%)
1/47
(2,1%)
1/75
(1,3%)
0/75
(0%)
Infecções de prótese
Infecções incisionais
AR
2/56
(3,6%)
0/56
(0%)
Infecções sistêmicas
OA
Infecções de prótese
Infecções incisionais
AR
Infecções sistêmicas
OA
Figura 2
Incidência de infecções de prótese no ano subsequente à cirurgia,
infecções incisionais no mês subsequente à cirurgia e infecções
sistêmicas durante a internação no grupo de artroplastia total do
quadril (fração e porcentagem).
Figura 3
Incidência de infecções de prótese no ano subsequente à cirurgia,
infecções incisionais no mês subsequente à cirurgia e infecções
sistêmicas durante a internação no grupo de artroplastia total
do joelho.
AR: artrite reumatoide; OA: osteoartrite.
AR: artrite reumatoide; OA: osteoartrite.
612
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):603-615
Incidência de infecções em artroplastias de quadril e joelho em pacientes com artrite reumatoide e osteoartrite
infecções incisionais superficiais e profundas foram agrupadas
como infecção incisional.
No grupo de ATQ houve uma infecção de prótese entre os
pacientes com AR e nenhuma entre os pacientes com OA. No
grupo de ATJ houve dois casos entre os pacientes com AR e
nenhum caso entre pacientes com OA. Em dois casos, o germe
causador da infecção foi Staphylococcus aureus sensível à
oxacilina, e no terceiro caso a cultura não estava disponível.
Em relação às infecções incisionais, no grupo de ATQ
ocorreram dois casos entre pacientes com AR e um caso entre
pacientes com OA. No grupo de ATJ, houve quatro casos entre
pacientes com AR e dois casos entre pacientes com OA. Em
nenhum dos casos estava disponível documentação microbiológica da infecção.
Em relação às infecções sistêmicas, no grupo de ATQ
ocorreram dois casos entre pacientes com AR, dos quais
uma infecção de vias respiratórias superiores e uma celulite
no mesmo membro operado, mas distante do sítio cirúrgico.
Entre os pacientes com OA, ocorreram duas pneumonias, quatro infecções do trato urinário (ITU), uma sepse secundária
à infecção de cateter e uma celulite. No grupo de ATJ, entre
os pacientes com AR houve uma sepse secundária à artrite
séptica do joelho contralateral, causada por S. aureus sensível à oxacilina, e uma celulite; entre os pacientes com OA,
houve duas ITU. Em quatro casos de ITU o germe causador
foi Escherichia coli, e no quinto não havia cultura disponível. Nos casos de pneumonia nenhum germe foi isolado, e
na infecção por cateter foi isolada Klebsiella pneumoniae
em hemocultura.
Na análise univariada não houve diferenças significativas
entre os grupos no que diz respeito às taxas de infecção de
prótese (ambos com P > 0,1), infecção incisional (ambos com
P > 0,1) e infecção sistêmica (ATJ, P = 0,92 e ATQ, P > 0,1).
Foi realizada regressão logística múltipla, incluindo as
seguintes variáveis: gênero, idade, escolaridade, classificação
da ASA e tempo cirúrgico. Foi utilizado o método de seleção
automática stepwise backward com critério de seleção P < 0,10.
Para a avaliação dos níveis de escolaridade foi utilizada a
classificação “analfabeto” como referência para comparação
com os outros níveis de escolaridade. No caso da classificação
do ASA, foi adotada a classificação “ASA 1” como referência.
Devido ao reduzido número de casos de infecção observado,
as variáveis escolaridade e ASA apresentaram coeficientes e
valores de P extremos, sem relevância estatística. As demais
variáveis também se mostraram não significantes no modelo
ajustado (P > 0,10), ou seja, sem associação significativa
entre os grupos em relação às infecções de prótese, incisional
e sistêmica.
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):603-615
DISCUSSÃO
As artroplastias de quadril ou joelho em pacientes portadores
de AR são procedimentos relativamente seguros no que diz
respeito à incidência de infecções após um ano, a despeito
do uso de corticoide e outras medicações imunomoduladoras,
uma vez que não foi evidenciado aumento da ocorrência de
infecções de prótese, incisional e sistêmica. Em princípio,
não há motivos para deixar de oferecer tal modalidade terapêutica para pacientes com AR, para alívio da dor secundária
às sequelas articulares da doença, que por vezes são bastante
graves.
Como se trata de grupos com faixas etárias distintas, pois
os pacientes com AR são geralmente mais jovens, houve diferenças significativas em relação à escolaridade, que podem ser
explicadas pela melhora progressiva do nível socioeconômico
da população brasileira durante o século XX. Tais diferenças
podem ter reduzido o efeito da presença de AR como fator de
risco, uma vez que o baixo nível socioeconômico foi identificado como fator de risco para infecções de prótese em dois
estudos retrospectivos de grande porte.28,29
Dentre as qualidades deste estudo, é possível destacar a
qualidade da coleta de dados, uma vez que foi realizada em
prontuário eletrônico. Além disso, foram utilizados critérios
bem-definidos para o diagnóstico de OA e AR, evitando a
inclusão de pacientes com outras doenças correlatas. Não temos conhecimento de estudos nacionais que tenham avaliado
comparativamente, de forma mais específica, a incidência de
infecções incisionais e infecções sistêmicas nesse contexto.
Em relação às limitações do estudo, destacamos que nossa
casuística, mesmo aproveitando todos os casos disponíveis,
pode não ter sido numerosa o suficiente para conseguir
demonstrar diferenças entre os grupos: o poder estatístico
calculado post hoc foi de 52% para o grupo de ATQ e de 24%
para o grupo de ATJ. Um dos trabalhos relatados anteriormente10 mostrou diferença de 0,4% na sobrevida das ATJ, e
não houve diferença na sobrevida das ATQ em cinco anos.
Tal diferença é muito pequena e só pôde ser evidenciada
porque se tratava de estudo retrospectivo multicêntrico, de
um país inteiro, incluindo 108.786 cirurgias. Analisando
as incidências de infecções de prótese e infecções incisionais em ATJ, por exemplo, observamos tendência a maior
número de eventos em pacientes com AR, mas que não foi
estatisticamente significante. Por outro lado, a taxa geral
de infecções nosocomiais é muito baixa em nosso hospital,
tendo sido de 0,63% em 2010. Isso pode ter sido um viés para
determinar diferenças entre os grupos. Outro ponto é que o
grupo-controle foi bastante heterogêneo, com pacientes com
613
Cunha et al.
OA de diversas etiologias, incluindo algumas causas raras
secundárias a doenças sistêmicas, que podem ter prognósticos
pós-operatórios diferentes entre si.
Em resumo, a presença de AR não foi identificada como
fator de risco para infecções perioperatórias em ATQ e ATJ em
casuística do Hospital SARAH-Brasília, em comparação ao
grupo de pacientes com OA primária ou secundária a doenças
não inflamatórias. A baixa incidência de infecções em ambos
os grupos pode explicar nossos achados. Um estudo multicêntrico brasileiro poderia esclarecer a questão de maneira
mais definitiva.
AGRADECIMENTOS
Paulo Sérgio Siebra Beraldo, coordenador do Programa de
Pós-graduação em Ciências da Reabilitação do Centro SARAH
de Formação e Pesquisa, pelo seu esforço em viabilizar a
realização do estudo.
REFERENCES
REFERÊNCIAS
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615
ARTIGO DE REVISÃO
Influência de elementos meteorológicos na dor de
pacientes com osteoartrite: revisão da literatura
Evânia Claudino Queiroga de Figueiredo1, Giovannini Cesar Figueiredo2, Renilson Targino Dantas3
RESUMO
Apesar de frequente a afirmação de que as condições do tempo modificam a intensidade da dor na osteoartrite (OA),
essa influência é controversa e de difícil mensuração. Esta revisão tem como objetivo analisar os artigos relacionados
à influência de elementos meteorológicos na dor da OA. A revisão da literatura foi realizada com um levantamento
bibliográfico junto aos bancos de dados MEDLINE e LILACS, e por busca ativa em lista de referências bibliográficas
dos artigos e revisões recuperados. Os critérios de inclusão para esta análise foram estudos prospectivos que avaliaram
a presença da dor em pacientes com OA relacionada a alguma variável meteorológica. Os artigos foram publicados em
português, inglês e espanhol. Do total de 247 resumos analisados, foram incluídos oito (3,2%) artigos, provenientes
dos bancos de dados eletrônicos consultados (n = 7) e da busca ativa (n = 1). Em cinco dos estudos incluídos, pressão
atmosférica foi a variável que apresentou influência na dor de pacientes com OA com mais frequência, enquanto precipitação foi a que menos apresentou relação com os sintomas de OA; vento foi pouco analisado. Apesar da diversidade
metodológica e dos vieses dos estudos analisados, existe uma tendência à confirmação da influência das condições do
tempo na intensidade da dor em pacientes com OA, em especial nas publicações mais recentes. Ainda são necessários
mais estudos para se ter uma boa evidência do efeito dos elementos meteorológicos na dor dos pacientes com OA e para
avaliar sua interferência na realização das atividades diárias e na qualidade de vida.
Palavras-chave: osteoartrite, artralgia, pressão atmosférica, tempo (meteorologia).
© 2011 Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados.
INTRODUÇÃO
A osteoartrite (OA), doença reumática caracterizada por
insuficiência da cartilagem articular, apresenta dor e rigidez
nas articulações como principais manifestações clínicas.
Apesar de difícil mensuração, alguns estudos procuram
avaliar a influência das alterações meteorológicas na dor de
pacientes com OA, com base na afirmação frequente desses
pacientes de que condições relacionadas ao tempo modificam
a intensidade da dor. Um estudo envolvendo pacientes com
doenças reumáticas mostrou que entre um e dois terços desses
pacientes acreditavam que seus sintomas eram sensíveis aos
elementos meteorológicos.1
Mais recentemente, a relação da percepção da dor com as alterações do tempo foi avaliada utilizando-se um questionário autoaplicado, por meio da Escala Visual Analógica (EVA), no qual
os autores observaram que 70% dos entrevistados acreditavam
que sua doença era influenciada pelo tempo, e 40% afirmaram
ser grande essa influência. Os pacientes consideraram o outono
e o inverno as estações do ano associadas à maior intensidade da
dor. Em relação às variáveis meteorológicas, umidade relativa do
ar (67%) e baixa temperatura (59%) foram as mais referidas. Os
autores concluíram que um número elevado de pacientes tinha
a percepção de que as variações atmosféricas influenciavam a
dor e, consequentemente, sua doença.2 Contudo, a relação consistente entre dor articular e fatores do tempo tem sido difícil de
Recebido em 22/04/2010. Aprovado, após revisão, em 30/08/2011. Os autores declaram a inexistência de conflito de interesses.
Universidade Federal de Campina Grande – UFCG.
1. Mestre em Medicina e Saúde pela Universidade Federal da Bahia – UFBA; Professora da Unidade Acadêmica de Medicina da Universidade Federal de
Campina Grande – UFCG
2. Mestre e Doutor em Medicina e Saúde pela UFBA; Médico Ortopedista Professor da Unidade Acadêmica de Medicina da UFCG
3. Doutorado em Agronomia; Professor da Unidade Acadêmica de Ciências Atmosféricas da UFCG
Correspondência para: Profª Evânia Claudino Queiroga de Figueiredo. Rua José Bonifácio, 67/601 – Centro. CEP: 58400-250. Campina Grande, PB, Brasil.
E-mail: [email protected]
622
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):616-628
Influência de elementos meteorológicos na dor de pacientes com osteoartrite: revisão da literatura
comprovar – em uma revisão de 16 artigos envolvendo diversas
doenças reumáticas não foi possível observar um consenso com
relação a esse efeito.3–7
Este estudo tem como objetivo avaliar a influência dos
elementos meteorológicos na dor da OA.
MATERIAL E MÉTODO
A revisão narrativa da literatura foi realizada após levantamento
bibliográfico junto aos bancos de dados Medical Literature
Analysis and Retrieval System online (MEDLINE) e Literatura
Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS),
e por busca ativa em lista de referências bibliográficas dos artigos
e revisões selecionados até janeiro de 2010. Como estratégia
para identificação dos estudos, foram utilizados os termos de
pesquisa relevantes para esta revisão, descritos no Quadro 1.
Os critérios de inclusão foram os estudos prospectivos que
avaliaram a resposta da dor em pacientes com OA relacionada
a alguma variável meteorológica, em artigos publicados em
português, inglês e espanhol.
RESULTADOS
Dos 247 resumos recuperados e analisados, 16 (6,5%) faziam
referência ao assunto. Desses, oito foram recusados por não
preencherem os critérios da análise (Figura 1); em um deles
não foi possível identificar o número dos pacientes com OA e
artrite reumatoide (AR).8 Restaram incluídos oito (3,2%) artigos, provenientes dos bancos de dados eletrônicos consultados
(n = 7) e da busca ativa (n = 1).
As publicações ocorreram de forma esparsa desde a década
de 1960, com quatro publicações identificadas nos últimos oito
anos (Tabela 1). Os estudos foram realizados na América do
Norte (EUA [3/4] e Canadá [1/4]), na Europa (Reino Unido e
247 resumos recuperados
16 com referência ao assunto
Quadro 1
Descritores utilizados para a identificação dos estudos.
OR
231 sem referência ao
assunto ou escritos em
idioma de exclusão
OR
climate[Title]
8 artigos excluídos
2 sem doença reumática
definida4,5
weather[Title]
osteoarthrit*[Title]
2 avaliação da percepção1,2
temperature[Title]
pain[Title]
AND
1 editorial6
8 artigos incluídos9–16
humidity[Title]
rheumatic[Title]
precipitation[Title]
1 revisão da literatura3
arthrit*[Title]
wind speed[Title]
1 variação sazonal
de atendimento7
forecast[Title]
1 não distingue entre OA e AR8
meteorolog*[Title]
Figura 1
Organograma do resultado do levantamento bibliográfico.
Tabela 1
Artigos relacionados à OA e elementos meteorológicos
Ano
Autor(es)
País
9
Tempo de seguimento
Pacientes (n)
Variáveis meteorológicas
T
UR
PA
P
VV
1963
Hollander & Yeostros
EUA
14 dias
4
–
+*
+*
NA
NA
1985
Sibley10
Canadá
1 mês
35
–
–
–
–
–
Israel
1 mês
24
+
–
+
+
NA
Reino Unido
2 meses
53
–
–
–
NA
NA
1990
Guedj & Weinberger
1991
Clarke & Nicholl12
13
11
2002
Strusber et al.
Argentina
12 meses
52
+
+
–
NA
NA
2003
Wilder et al.14
EUA
23 meses
154
–
NA
+
–
NA
2004
15
Vergés et al.
Espanha
1 mês
80
–
–
+
NA
NA
2007
McAlindon et al.16
EUA
3 meses
200
+
–
+
–
NA
T: temperatura; UR: umidade relativa do ar; PA: pressão atmosférica; P: precipitação atmosférica; VV: velocidade do vento.; +: correlação presente; –: correlação ausente; NA: não avaliado.
*Aumentando a UR e diminuindo a PA simultaneamente.
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):616-628
623
Figueiredo et al.
Espanha), na Ásia (Israel) e na América do Sul (Argentina). O
tempo de seguimento variou de 14 dias a 23 meses, com apenas
dois estudos envolvendo as quatro estações do ano. O número
de pacientes estudados também variou muito, de quatro a 200.
Em todos os trabalhos os pesquisadores utilizaram questionários, a maioria de autoavaliação, que foram respondidos pelos
pacientes em dias e horários predeterminados.
Em cinco dos oito estudos incluídos, dentre os sete elementos relacionados às condições meteorológicas, pressão
atmosférica foi o que apresentou influência na dor dos pacientes
com OA com mais frequência, e precipitação foi o que menos
apresentou relação com os sintomas da OA; a variável vento
foi pouco analisada.
O estudo duplo-cego conduzido por Hollander e Yeostros,9
em que quatro participantes com OA e oito com AR permaneceram por duas semanas em sala climatizada com controle
da pressão atmosférica, da temperatura e da umidade do ar,
observou, além da influência dessas variáveis isoladamente,
o efeito da variação simultânea da umidade relativa do ar e da
pressão nos sinais e sintomas da artrite. O diagnóstico desses
pacientes foi realizado pela presença de sinais físicos característicos da OA, sem referência às articulações analisadas ou
às alterações radiográficas. Para a quantificação da atividade
do acometimento articular, utilizou-se o índice de Lansbury,
que inclui cinco parâmetros relacionados à duração da rigidez,
ao número de analgésicos necessários para o alívio da dor, à
força de preensão da mão, ao tempo de caminhada e ao número
de articulações acometidas. Em 73% das exposições, todos
os pacientes pioraram objetivamente quando submetidos ao
aumento da umidade com queda de pressão barométrica.
Para avaliar se alguma variável climática influenciava os
sintomas da artrite, e para determinar a acurácia da autoavaliação dos pacientes, Sibley10 realizou um estudo duplo-cego
durante 30 dias, em que utilizou, pioneiramente, a Escala Visual
Analógica (EVA), por considerá-la confiável e reprodutível.
Para conhecimento dos participantes, a pesquisa tinha como
objetivo determinar como a artrite afetou a vida do paciente.
O diagnóstico da OA foi realizado pela presença de sintomas
típicos de OA periférica, com evidência radiológica de estreitamento do espaço articular e presença de osteófitos, na ausência
de alterações laboratoriais. A articulação acometida e a gravidade radiológica não foram determinadas. Dos 35 pacientes
incluídos, um apresentou diagnóstico de polimialgia reumática
fazendo uso de prednisona, na dose de 9 mg/dia. Além das
médias das variáveis meteorológicas, a análise incluiu uma
combinação de elementos meteorológicos, como mudança da
pressão atmosférica associada à umidade relativa do ar, temperatura associada à umidade relativa do ar e temperatura do ar
624
associada à pressão atmosférica, envolvendo, no total, médias
de 13 variáveis. Seus resultados não mostraram evidência de
correlação dessas variáveis com os sintomas da OA.
Pacientes com OA diagnosticada pela presença de sintomas característicos e evidência radiológica de diminuição
do espaço articular com osteófitos, sem especificação da
articulação acometida, foram acompanhados durante 30 dias
por Guedj e Weiberger,11 em uma região de Israel onde a temperatura e a umidade relativa do ar variaram, respectivamente,
de 8 ºC a 27 ºC e de 39% a 96%. Durante quatro semanas os
participantes responderam a um questionário para avaliação
da dor e edema articular, além do nível de habilidade diária,
em uma escala de 0 a 2. A dor foi influenciada pela temperatura do ar, pela precipitação e pela pressão atmosférica.
Clarke e Nicholl12 apresentaram seus resultados, em breve
carta ao editor, envolvendo pacientes com OA acentuada com
indicação de artroplastia, analisados durante 30 dias do inverno
e do verão. Eles compararam a pressão atmosférica e a umidade
com as sensações de dor e de rigidez articular registradas em
uma escala de avaliação utilizada a cada dia, e não encontraram
correlação entre essas variáveis.
Em um estudo com grupo-controle sadio, Strusberg et al.13
avaliaram os relatos de dor, durante 12 meses, utilizando a
EVA e a escala verbal de Likert em pacientes com OA, AR e
fibromialgia (FM), diagnosticados por meio dos critérios do
American College of Rheumatology (ACR). Dos relatos de dor
registrados, 37,94% foram de pacientes com OA, correlacionada à baixa temperatura e alta umidade do ar.
Para avaliar a associação de pressão atmosférica, precipitação e temperatura do ar ao escore da dor da EVA nos pacientes
com OA de coluna cervical, mão, ombro, joelho e pé, Wilder
et al.14 realizaram um estudo no qual os participantes ignoravam o objetivo, com média de seguimento de 19 a 23 meses.
A evidência de OA foi percebida pela presença de alteração
radiológica de grau 2, de acordo com os critérios de Kellgren
e Lawrence. Os autores observaram que dor maior foi significativamente associada à diminuição da pressão atmosférica
em mulheres com OA de mãos.
Vergés et al.,15 em um estudo com pacientes com OA, AR
e com grupo-controle para avaliar a dor articular, utilizaram a
EVA e incluíram a avaliação da capacidade funcional utilizando
o Questionário de Avaliação da Saúde (HAQ). Os pacientes
realizaram o registro diário durante 30 dias consecutivos, e seus
dados demonstraram que, das três variáveis meteorológicas
analisadas, baixa pressão atmosférica era a que exacerbava a
dor articular. Não foram definidos as articulações envolvidas,
os critérios diagnósticos, o grau radiológico do acometimento
e a gravidade do quadro de dor articular.
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):616-628
Influência de elementos meteorológicos na dor de pacientes com osteoartrite: revisão da literatura
Mais recentemente, para determinar se parâmetros meteorológicos influenciavam a artralgia de joelhos com OA, classificados segundo os critérios do ACR, McAlindon et al.16 realizaram
uma análise longitudinal envolvendo 200 participantes. Com
a preocupação de eliminar o viés relacionado à distribuição
geográfica, foram selecionados pacientes de várias regiões dos
Estados Unidos, só informados da hipótese do estudo após a
conclusão da coleta de dados. Os autores utilizaram o índice
WOMAC (Western Ontario and McMaster Universities) para
OA.17 Os resultados evidenciaram que o aumento da pressão
atmosférica e a diminuição da temperatura do ar influenciaram
a intensidade da dor no joelho.
DISCUSSÃO
Nesta revisão, a influência de uma ou mais variáveis meteorológicas foi significativamente frequente nos sintomas da OA, a
despeito das distintas metodologias dos trabalhos e da diversa
quantidade de pacientes envolvidos. Por exemplo, uma mesma
variável apresentou resultados conflitantes nos sintomas da OA,
como a pressão atmosférica elevada com influência positiva
na dor articular11,16 e a condição de baixa pressão promovendo
piora da dor.14,15 Enquanto em alguns trabalhos a baixa temperatura do ar foi associada a dor de maior intensidade,13,16 em
outro, de forma inversa, foi a temperatura elevada que piorou
os sintomas articulares.11
O marco inicial na pesquisa envolvendo variáveis meteorológicas e sintomas da OA foi o estudo de Hollander e Yeostros,9
que avaliou os escores de cada participante de forma isolada. A
quantidade reduzida de pacientes seria um viés que, associado
ao curto período de observação, limitou a validação externa dos
resultados. O aspecto financeiro foi um obstáculo à construção
de um ambiente espaçoso que acomodasse mais participantes
por maior período de tempo e à montagem de um equipamento
maior de climatização que regulasse as condições propícias ao
estudo. Seu custo de manutenção e as necessidades diárias dos
participantes, como alimentação e higiene, também ficaram
prejudicados.
Esse estudo confirmou um anterior, realizado por
Edström,5 em um ambiente constantemente quente e seco,
onde os pacientes apresentaram melhora dos sinais e sintomas da artrite. Além do pequeno número de participantes,
envolvendo apenas 10 pacientes com AR, não foram feitas
tentativas para controlar a pressão do ar ou para estudar
efeitos das variações das condições. Esses dois estudos em
ambientes controlados apresentaram resultados semelhantes,
favoráveis à influência dos elementos meteorológicos na dor
tanto da OA como da AR.
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):616-628
Todos os outros trabalhos identificados foram realizados
com os pacientes em seus ambientes naturais. Em um deles,
comparou-se a percepção da influência dos fatores meteorológicos na dor da OA entre moradores do centro urbano de
Chicago, cujo ambiente atmosférico era extremamente modificado pela ação antrópica, e moradores de uma região rural,
que apresentava condições ambientais com menor interferência
humana. Os resultados sugeriram que a distinta característica
climática urbana seria propícia à geração de dor articular.1
Um aspecto importante em relação à avaliação dos registros
nos quais os pacientes das pesquisas quantificaram sua percepção
em relação à dor (em escalas na maioria das vezes numéricas)
é que a pontuação de sensações é algo subjetivo e individual.
Diante dessa subjetividade, é possível que ocorra grande dispersão dos valores obtidos, bem como no desvio-padrão de cada
participante. Para não subestimar as características individuais, esse cuidado foi observado em três estudos envolvendo
pacientes com OA,9,10,16 dois dos quais apresentaram influência
de algumas das variáveis meteorológicas.
A avaliação dos escores de forma individualizada confrontada com os elementos meteorológicos foi realizada também
por Gorin et al.18 e Smedslund et al.19 Seus estudos envolveram
pacientes com AR e consideraram a resposta da dor às condições climáticas um fenômeno altamente individualizado. Gorin
et al.18 referiram que, embora a sensibilidade climática tenha
sido observada, esse efeito não foi clinicamente significante,
enquanto Smedslund et al.19 observaram em sua amostra que
em alguns pacientes a dor foi significativamente associada a
elementos meteorológicos. No entanto, é possível que em estudos precedentes os resultados conflitantes nessa área estejam
relacionados ao fato de a análise estatística ter sido realizada
apenas com os valores médios do grupo analisado. É importante, assim, observar as diferenças individuais.
Em um estudo realizado na Austrália, com dados coletados
durante 30 dias em cada período de estação, os resultados
evidenciaram que, dentre as variáveis meteorológicas, baixa
temperatura e elevada umidade relativa do ar foram as mais associadas ao aumento da dor e da rigidez articular nos pacientes
com artrite.8 Porém, considerou-se que uma pesquisa realizada
em 12 meses possivelmente apresentaria resultados mais sensíveis, e que variáveis confundidoras, como atividade física,
outras doenças associadas, uso de medicamentos, mudanças
hormonais, massagem, estresse e estilo de vida, deveriam ser
eliminadas em um estudo subsequente.
Israel é uma região com outono e inverno frios e úmidos
e primavera e verão quentes e secos. Naquela região, em um
estudo realizado durante 30 dias, com a temperatura variando
de 8 ºC a 27 ºC, os participantes com OA foram sensíveis à
625
Figueiredo et al.
temperatura do ar e à pressão atmosférica, com piora da dor
articular. Dentre os trabalhos revisados, esse foi o único que
apresentou relação entre intensidade da dor e precipitação.11
No continente sul-americano, na cidade argentina de
Córdoba, os resultados de Strusberg et al.13 apoiaram a crença
da influência de fatores meteorológicos nas dores reumáticas,
porém com intensidades diferentes e com as variáveis meteorológicas exercendo maior ou menor influência de acordo com o
diagnóstico. Baixa temperatura e elevadas pressão atmosférica
e umidade relativa do ar foram correlacionadas de forma significativa à dor na AR. Na OA, os autores encontraram correlação
positiva com baixa temperatura e alta umidade, enquanto na
FM ocorreu correlação com baixa temperatura e alta pressão
atmosférica. Não houve razão para assegurar o fator preditor
da dor para mudança do tempo. Na seleção dos participantes,
foram excluídos os que se ausentaram da cidade durante o estudo e os que apresentaram piora da doença devido a problemas
psicológicos, excesso de atividade física, traumatismo, doença
concomitante ou mudanças no tratamento. Os autores também
utilizaram um grupo-controle de pessoas saudáveis que não
apresentaram correlação.
Ao avaliar a influência de fatores meteorológicos na dor,
com o registro da intensidade por região acometida pela OA,
Wilder et al.14 observaram que, dentre as associações avaliadas,
a OA de mãos apresentou maior intensidade de dor nos dias
com pressão atmosférica elevada, com significância estatística, enquanto nos dias com pressão atmosférica constante
ou em queda não foi observada influência na intensidade
da dor articular. Os demais segmentos com OA analisados
não apresentaram alterações, sugerindo pouca relação, em
sua totalidade, entre dor na OA e variáveis meteorológicas.
Diferentemente da maioria dos estudos, os autores tiveram o
cuidado de deixar explícitas a localização da OA e a influência
do tempo por segmentos.
Pacientes residentes na área metropolitana da cidade
espanhola de Barcelona, caracterizada por clima tipicamente
mediterrâneo, apresentaram aumento na dor articular em resposta à diminuição da pressão atmosférica, indicando, de forma
contraditória aos relatos publicados, que a pressão atmosférica
exacerba a dor articular.15 Os autores desse estudo consideraram satisfatório o número de pacientes envolvidos, tornando
seus resultados mais confiáveis – porém, por ter sido realizado
durante um período muito curto, não deu oportunidade para
que os participantes experimentassem mudanças de estações.
Dois estudos não identificaram, ao contrário do que a
maioria dos pacientes com OA e AR afirmam, mudanças
significativas nos sintomas da OA relacionadas aos elementos
meteorológicos.10,12 Sibley,10 analisando pacientes com AR e
626
OA, não mostrou correlação entre os sintomas dos pacientes,
individualmente ou em grupo, em nenhuma das 13 combinações das variáveis meteorológicas. Clarke e Nicholl,12 em
pacientes com indicação de artroplastia, também não encontraram correlação entre os sintomas de dor e rigidez e pressão
atmosférica e umidade relativa do ar. Porém, ressaltaram as
limitações de seu estudo, como curto tempo de seguimento,
utilização de poucas variáveis meteorológicas e gravidade do
quadro clínico de seus pacientes.
De forma genérica, podemos considerar, assim como
Quick,3 que alguns fatores complicam a coleta e o registro
de dados sobre a dor articular nos seres humanos, já que
esta só pode ser medida por avaliação subjetiva, mesmo
que utilizando escala contínua. Além disso, os indivíduos
têm limites amplos e imprecisos no limiar e na sensibilidade à dor. Para qualquer indivíduo, a sensibilidade à dor
pode mudar em curto período de tempo, e a percepção da
dor depende de variáveis de difícil controle, como humor
e atividade mental.
Uma maneira de enfrentar a variabilidade na dor seria estudar um grande número de casos, de modo que as diferenças
entre os indivíduos “fora da média” pudessem ser anuladas em
uma população como um todo. Contudo, a maioria dos estudos,
listados na Tabela 1, inclui relativamente poucos participantes.
Nenhum dos estudos revisados mencionou, em sua descrição
metodológica, como foi realizado o cálculo amostral, que
deveria considerar a população da comunidade e a estimativa
de prevalência da OA. Em um estudo, a construção de um
ambiente espaçoso que acomodasse mais participantes por
maior período de tempo, segundo o próprio autor, esbarrou
na cobertura financeira insuficiente para montar um equipamento maior de climatização que regulasse as condições
propícias ao estudo, como também seu custo de manutenção
e as necessidades diárias dos participantes, como alimentação
e higiene. Nos outros estudos, fica claro que a amostra é de
pura conveniência, requisitada pela assistência em serviços
especializados. Diante da limitação de se poder utilizar uma
amostra de tamanho significativo, a solução seria considerar,
no modelo estatístico, a avaliação dos escores da dor da OA
de forma individualizada, como o fizeram três dos oito estudos.9,10,16 Dequeker e Wuestenraed20 também avaliaram cada
um dos 19 pacientes internados com AR, isoladamente. Destes,
69% foram sensíveis a alguma das variáveis meteorológicas
(temperatura, umidade relativa do ar e nebulosidade).
A mensuração das variáveis meteorológicas é muito mais
objetiva e menos complicada que a da dor. Elas incluem basicamente pressão atmosférica, temperatura e umidade relativa
do ar. Por exemplo, as estatísticas referem-se ao tempo no
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):616-628
Influência de elementos meteorológicos na dor de pacientes com osteoartrite: revisão da literatura
ambiente externo, que pode exercer sobre a pele de um sujeito
influência diferente da de um ambiente interno, enviesando os
resultados. Praticamente todos os dados relativos ao tempo e à
dor nas articulações vieram de indivíduos que viviam dentro
de casa e se mantinham protegidos pelo vestuário. Quando
esses mesmos indivíduos, ocasionalmente, se aventuravam
em ambientes externos, apenas as articulações das mãos ficavam expostas ao tempo, embora somente um estudo tenha
feito referência às articulações das mãos. Nenhum estudou
considerou a variação de temperatura em ambientes interno
e externo, nem o tempo de exposição nesses ambientes. Na
tentativa de controlar as variáveis temperatura, umidade, pressão atmosférica e fluxo de ar, outros autores idealizaram um
ambiente climatizado onde dois participantes passavam duas
semanas confinados registrando sua “contagem articular”, com
cada articulação verificada em relação a sensibilidade, edema
e dor aos movimentos.
Na busca de correlações entre os episódios de dor nas
articulações e os padrões climáticos, novas investigações
deveriam incluir uma variedade maior de parâmetros. Com
relação à dor, quase todos os estudos publicados até hoje têm
se referido a pacientes com AR, OA e FM. Essas doenças de
fato são mais comumente relacionadas a pacientes sensíveis
ao clima, e a escala de dor é bastante variável. Com relação
ao clima, entretanto, seis dos oito estudos foram realizados
em período de até três meses, insuficiente para incluir toda a
gama de variações sazonais do tempo.
A metade dos estudos não incluiu sequer uma população-controle, e apenas dois estudos apresentaram uma
população-controle específica de indivíduos sem evidência
clínica de doença reumática.13,15 Os demais foram controlados
internamente com doenças reumáticas diversas, como AR,
FM, lúpus eritematoso sistêmico, Behçet e outras artropatias
inflamatórias. Os pesquisadores, então, poderiam assumir
que os indivíduos que não apresentassem alguma patologia
reumática crônica não experimentariam dor articular relacionada ao clima?
Na literatura visitada, o maior erro no desenho do estudo,
além do tamanho amostral, foi a impossibilidade de manter
os indivíduos participantes desinformados sobre as variações
meteorológicas do período em que deveriam responder ao questionário. Presume-se que os indivíduos, em algum momento,
tenham tomado conhecimento das condições e previsões do
tempo pelos meios de comunicação. Essa informação poderia
ter se refletido inconscientemente na propensão a relatar a
dor da OA. Apenas o estudo de Hollander e Yeostros9 anulou
a influência das previsões meteorológicas, pois os indivíduos
permaneceram isolados em ambiente climatizado, onde os
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):616-628
pesquisadores controlavam as variáveis meteorológicas independentemente das condições do ambiente externo. Embora
esse estudo, de quase 50 anos, esteja entre os mais rigidamente
controlados e tenha produzido um resultado de influência
positiva, os trabalhos subsequentes continuaram a mostrar
resultados conflitantes (Tabela 1).
Apesar da diversidade metodológica e dos vieses dos
estudos analisados, existe uma frequência de resultados significantes em relação à confirmação da influência do tempo
na intensidade da dor em pacientes com OA, em especial
nas publicações mais recentes. Entretanto, os trabalhos que
concluíram por uma relação entre piora da dor articular e as
mudanças nas variáveis meteorológicas não pesquisaram sua
relação com a intensidade da dor, ou seja, se ela interferiria na
qualidade de vida dos pacientes.
Assim, são necessários estudos nos quais além da verificação do efeito do tempo na dor dos pacientes com OA, seja
mensurada a intensidade desse efeito na interferência da realização das atividades diárias e se ocorre prejuízo na qualidade
de vida desses indivíduos.
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ARTIGO DE REVISÃO
Imagens de ressonância magnética
na artrite reumatoide
Wilson Campos Tavares Junior1, Renata Rolim2, Adriana Maria Kakehasi3
RESUMO
A artrite reumatoide (AR) é uma poliartrite inflamatória crônica que frequentemente causa progressiva destruição
articular. O tratamento e o manejo da AR têm se baseado na identificação e na intervenção precoce da doença com
medicamentos modificadores da doença (DMARDs). As alterações no tratamento têm resultado em melhora significativa
para os pacientes, incluindo redução dos sintomas e dos sinais da doença, preservação articular e redução da progressão
de lesões. Métodos de avaliação de resposta ao tratamento e predição do curso da doença são necessários. Em relação
ao diagnóstico precoce da AR, estudos longitudinais demonstraram que a imagem por ressonância magnética (IRM) é
mais sensível que a radiografia (RX) para demonstrar presença e progressão de erosões ósseas. Por outro lado, muitos
fatores de pior prognóstico têm sido relacionados à AR, incluindo fatores demográficos, genéticos, clínicos, imunológicos e radiográficos. Este artigo apresenta a IRM na AR em relação ao seu valor no diagnóstico, no monitoramento e no
prognóstico da doença.
Palavras-chave: artrite reumatoide, artrite, imagem por ressonância magnética.
© 2011 Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados.
IMPORTÂNCIA DA IMAGEM POR RESSONÂNCIA
MAGNÉTICA NA ARTRITE REUMATOIDE
A artrite reumatoide (AR) é uma poliartrite inflamatória
crônica que frequentemente leva à destruição e incapacidade
articular progressiva. Em relação ao diagnóstico precoce de
AR, estudos longitudinais têm demonstrado que a imagem
por ressonância magnética (IRM) é mais sensível que a radiografia (RX) na demonstração de danos articulares erosivos
progressivos.1 A IRM é uma importante técnica que fornece
imagens de múltiplos planos e pode visualizar uma gama de
estruturas articulares, incluindo membrana sinovial, tendões,
ligamentos, osso e cartilagem. Não usa radiação, por isso
pode ser repetida quantas vezes forem necessárias, e permite avaliação longitudinal. Com os avanços do software de
análise de sequência e menores custos, a IRM pode tornar-se
mais acessível.
A IRM é reconhecida como a tecnologia de imagem favorita
para visualização da membrana sinovial inflamada e edema ósseo.2
Além disso, mostrou-se que a IRM é um método sensível e não
invasivo para detecção e quantificação das erosões ósseas.3 As
erosões são visíveis na IRM em média dois anos antes de estarem
visíveis nas RX, e podem tornar-se consistentemente visualizadas
em RX das articulações metacarpofalangeanas (MCP) somente
quando 20%–30% do osso estiver com erosão na IRM.1
Para avaliar e quantificar manifestação da doença na AR,
grau de inflamação sinovial (sinovite), edema na medula óssea,
erosões e tenossinovite, diversos sistemas de pontuação foram
sugeridos. Os mais estudados e usados na prática clínica são as
Medidas dos Resultados em Ensaios Clínicos de Artrite Reumatoide
(OMERACT, do inglês, Outcome Measures in RheumatoidArthritis Clinical Trials) e o Sistema de Pontuação da Imagem por
Ressonância Magnética de Artrite Reumatoide (RAMRIS, do inglês, Rheumatoid Arthritis Magnetic Resonance Image Scoring).1,4
Recebido em 25/12/2010. Aprovado, após revisão, em 30/08/2011. Os autores declaram a inexistência de conflito de interesses.
Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais – HC/UFMG.
1. Médico-Assistente da Radiologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais – HC/UFMG; Médico Radiologista da Ecoar Medicina
Diagnóstica
2. Médica Residente do HC/UFMG
3. Professora Doutora de Reumatologia na Faculdade de Medicina da UFMG
Correspondência para: Wilson Campos Tavares Junior. Rua Gonçalves Dias, 750/1803 – Funcionários. CEP: 30140-091. Belo Horizonte, MG, Brasil.
E-mail: [email protected]
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):629-641
635
Tavares Junior et al.
O ultrassom (US) é comumente usado para avaliar doença do tecido mole ou detectar acúmulo de fluido articular.
Os transdutores US de alta frequência permitem avaliação
ultrassonográfica de articulações pequenas. Pode também ser
usado para visualizar outras estruturas, tais como cartilagem
e superfície óssea, e pode detectar problemas corticais, espessamento da bainha do tendão extensor e proliferação sinovial.
Contudo, o diagnóstico por US não fornece informações úteis
sobre patologias intraósseas. Habilidade técnica adequada dos
operadores de US é outro requisito para esse método.
Alguns estudos têm investigado o valor diagnóstico diferencial da IRM, com resultados divergentes. O uso de IRM para
detecção de sinovite em mãos e pulsos mostrou alguma melhoria
na precisão diagnóstica (94% versus 83%) em pacientes de artrite
indiferenciada precoce.5 Em um estudo de pacientes com AR,
lúpus eritematoso sistêmico e síndrome de Sjögren primária
com poliartralgia envolvendo a mão, a presença de edema ósseo
nas articulações MCP foi mais comum em pacientes com AR.6
Dentre os 41 pacientes com poliartrite desclassificados apesar
de exames clínicos, bioquímicos e radiográficos, a classificação
correta pela IRM como AR ou não AR foi mostrada em 39 pacientes, quando foi feita uma revisão após dois anos, usando os
critérios de 1987 do American College of Rheumatology (ACR).7
Os resultados de uma análise sistemática recente evidenciaram que os anticorpos antipeptídeos citrulinados cíclicos
(anti-CCP2) em pacientes com AR por menos de dois anos
mostraram sensibilidade quase idêntica para fator reumatoide
(56% versus 58%), embora com especificidade consideravelmente mais alta. Em AR precoce, um teste de anti-CCP2 positivo mostrou um raio de probabilidade positivo de 12,7, mas
a sensibilidade foi mais alta em estudos de AR estabelecida. A
sensibilidade para previsão de AR antes do início dos sintomas
parece mais baixa, embora a especificidade continue alta.8
frequentemente no punho – e na segunda à quinta articulações
MCP. Consequentemente, a IRM pode reduzir o tamanho
da amostra de articulações e o tempo de acompanhamento
nos exames, devido a maior sensibilidade na distinção entre
respondentes e não respondentes, conforme corroborado em
ensaios clínicos.10,11 A interpretação básica de mudanças de
AR na IRM dentre os leitores é relativamente consistente.12
O grupo OMERACT recomenda o início com uma sequência
STIR coronal ou uma sequência T2 com saturação de gordura
(somente disponível em escâneres de alto alcance > 0,6 T) no
punho e nas juntas MCP para detecção de edema de medula óssea,
seguidos por uma sequência de gradiente eco T1-w isotrópica 3D;
ou uma sequência T1 na superfície plana coronal e axial e após
contraste de gadolínio, para detecção de erosões ósseas e sinovite.
O contraste intravenoso é necessário para estimar o grau de inflamação sinovial e para diferenciar o realce da membrana sinovial
dos tecidos circundantes. A sinovite tende a ser superestimada se
for pontuada com base nas imagens STIR e T2 com saturação de
gordura, pois a efusão da articulação não pode ser diferenciada da
sinovite no momento da utilização das sequências T2.1,13
Antes que a pontuação RAMRIS fosse desenvolvida, a
medição manual do volume de realce da membrana sinovial foi
usada como medida da resposta de tratamento e foi reconhecida
como forte preditor do avanço da doença futura.1 A Tabela 1
mostra o padrão principal da IRM na AR.
ACHADOS NA IRM
Sinovite
O espessamento do tecido sinovial causado pelo processo inflamatório reumatoide pode ser identificado na IRM. A sinovite tem
Tabela 1
Padrão principal de IRM em AR
Características
TÉCNICA DE IRM
Em AR precoce, o envolvimento de punhos e mãos normalmente
é bilateral. Alguns autores executam IRM bilateral dos punhos ou
mãos, mas o estudo do punho mais dominante ou mais dolorido é
rotineiramente usado, supondo-se que o envolvimento das articulações nesse punho será mais alto que no outro punho e mão. O uso
de IRM em uma única mão reduz tempo, custo e desconforto para
o paciente. As áreas de interesse são punhos, articulações MCP
e articulações interfalangeanas proximais. O rádio e ulna distais,
os ossos carpais e as articulações MCP podem ser visualizados
juntos dentro do Campo de Visão de 120–160 mm.9
Os estudos de IRM de pacientes com AR normalmente
têm focado em uma ou duas regiões de articulações – mais
636
Especificações
Regiões de articulações examinadas Punho e da segunda à quinta
MCP unilaterais, a mais dolorida
Sinais de danos à IRM
Edema, sinovite, erosão,
tenossinovite
Tipo de equipamento magnético
A recomendação de campo
magnético é 1,5 Tesla
Contraste
Gadolínio
Sequência
Coronal T1, axial T1, coronal
T2 com saturação de gordura,
axial com contraste realçado e T1
coronal com saturação de gordura
Monitoramento de resposta
terapia (pontuação)
OMERACT/RAMRIS, medição
do volume sinovial, dinâmica
pontuação com contraste realçado
OMERACT/RAMRIS: Medição dos Resultados de Ensaios Clínicos de Artrite Reumatoide/Sistema de
Pontuação de Imagem de Ressonância Magnética de Artrite Reumatoide.
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):629-641
Imagens de ressonância magnética na artrite reumatoide
intensidade de sinal de intermediária a baixa nas imagens ponderadas em T1, e alta nas imagens ponderadas em T2 (devido ao
aumento do teor de água).2 Os sinais de sinovite na IRM incluem
aumento do volume sinovial, aumento de teor de água e realce de
contraste (aumento da intensidade de sinal após a injeção intravenosa de material de contraste com base em gadolínio) (Figura 1).2
A IRM é mais sensível que o exame clínico na detecção de
sinovite na artrite inflamatória, e mostra inflamação sinovial em
AR precoce.14,15 Na AR, a membrana sinovial ativa hipertrópica
pode invadir e causar erosão no osso contíguo e na cartilagem.
A imagem ponderada em T1 com realce de contraste é
considerada muito sensível e específica para avaliação de
sinovite aguda, conforme relatado em um artigo de Ostendorf
et al.16 Quando examinada a segunda articulação MCP usando
miniartroscópio e IRM, ela mostra realce pós-contraste em
86% dos pacientes com sinovite.16 McQueen et al.17 descobriram que 93% de uma coorte de 42 pacientes com AR tinha
evidência de sinovite IRM no punho dentro de 6 meses do
início dos sintomas. Mostrou-se que a sinovite realça rápida
e intensamente após a administração intravenosa de material
de contraste com base em gadolínio, diferente do derrame
articular, que não realça na fase inicial. Essa fase inicial dura
aproximadamente 5 minutos após injeção. Imagens obtidas a
partir de 10 minutos após a injeção podem não delinear corretamente a extensão da sinovite, já que o gadolínio pode ser
excretado no líquido sinovial articular.
Pannus fibrótico, normalmente presente no estágio final da
AR, parece relativamente hipovascular após a administração
intravenosa de gadolínio. Além disso, com sequências ponderadas em T2, pannus fibrótico com intensidade de sinal de
intermediária a baixa pode ser distinguido da sinovite aguda
e do fluido de articulação.2,18,19
Acq ir
A
B
(COI)
201
Acq Tm
2
Figura 1
Sinovite em homem de 36 anos de idade com AR precoce do
punho (oito meses de duração) e exame radiográfico normal.
(A) IRM ponderada em T1 coronal mostra sinovite radiocarpal
como intensidade de sinal baixo (seta). (B) IRM ponderada
coronal em T1 com supressão de gordura realçada por gadolínio
mostra acentuação intensa da sinovite radiocarpal.
5 (COI)
Edema de medula óssea
Embora o edema de medula óssea seja não específico e tenha
sido bem documentado em processos ósseos traumáticos, neoplásticos e degenerativos, é um importante achado da IRM
em pacientes com AR, especialmente em fases mais precoces
da doença.
O edema ósseo refere-se a uma única anormalidade detectada pela IRM com alta intensidade de sinal nas sequências
de IRM com supressão de gordura, e poderia realçar após
administração de contraste (Figura 2).
O OMERACT define edema ósseo como lesão dentro do osso
trabecular com margens mal definidas e características de sinal
de teor aumentado de água.20 Quando presente, correlaciona-se
com a severidade da sinovite adjacente e parece ser um preditor
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):629-641
Figura 2
Edema de medula óssea em homem de 37 anos de idade com AR
precoce do punho. IRM ponderada em T2 coronal mostra edema
ósseo piramidal representado pela alta intensidade de sinal (seta).
637
Tavares Junior et al.
independente de desenvolvimento de erosão.21 Um estudo de
imagens do punho em AR precoce descobriu que o edema ósseo é
um aspecto preditivo forte do desenvolvimento de erosões de RX
convencional e também prevê resultado funcional seis anos depois.22
A
Erosões
A detecção de erosões na IRM é importante porque contribui
para diagnóstico e prognóstico em pacientes com AR.23 A IRM
pode fornecer um diagnóstico precoce de AR ao revelar erosões, cuja presença constitui um dos critérios de diagnóstico do
ACR 1987. Mostrou-se que as erosões na IRM são preditivas
do avanço posterior em coortes seguidas até seis anos.24
As definições de erosões nas imagens ponderadas em T1
são perdas de intensidade de sinal baixo e normal do osso cortical e perdas da intensidade de sinal alto e normal da cavidade
da medula óssea, com realce após a administração de material
de contraste com base em gadolínio, e alta intensidade de sinal
nas imagens ponderadas em T2 e STIR (Figura 3).13
B
A
Figura 4
Tenossinovite em mulher de 53 anos de idade com AR precoce
do punho (16 meses de duração) e exame radiográfico normal.
(A) RM ponderada em T1 coronal. (B) IRM T1 coronal com
supressão de gordura e realce com gadolínio mostra tenossinovite flexora com acentuação intensa (seta) e tenossinovite
extensora mínima com acentuação moderada (ponta da seta).
B
Figura 3
Erosões em mulher de 54 anos de idade com AR precoce do punho
(12 meses de duração). (A) RM ponderada em T1 coronal não
realçada e IRM ponderada axial e coronal em T1 com supressão de
gordura e acentuação com gadolínio. (B) Erosão no osso piramidal
realçada após gadolínio (seta). A sinovite é vista no punho(*).
638
A acentuação de contraste de erosões implica na presença
de membrana sinovial inflamada, e é útil na diferenciação
entre erosões e lesões císticas preenchidas com fluido.2 Nos
ossos carpais, o forame nutrício pode ser mostrado em algumas
sequências e pode ser confundido com pequenas erosões. De
forma similar, as inserções de ligamentos interósseos no aspecto volar dos ossos carpais podem simular erosões.
Nesse caso é necessária alguma atenção, visto que lesões
pequenas parecidas com erosão foram identificadas em dois
planos de corte em cerca de 2% dos ossos metacarpais e do
punho de pessoas saudáveis, sem realce nessas lesões após a
administração de material de contraste com base em gadolínio
e sem associação a edema ósseo.25
Tenossinovite
Os sinais de IRM da tenossinovite incluem fluido na bainha
do tendão, espessamento aumentado e realce de contraste da
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):629-641
Imagens de ressonância magnética na artrite reumatoide
membrana sinovial da bainha do tendão (Figura 4). Pequenas
quantidades de fluido são normalmente vistas nas bainhas do
tendão do punho de pessoas saudáveis, especialmente nos
compartimentos extensores. Quando o diâmetro do fluido na
bainha do tendão é menor que o diâmetro do tendão correspondente, o fluido pode ser considerado normal.
A acentuação de contraste da membrana sinovial da bainha
do tendão é considerada um sinal específico de tenossinovite.
A tenossinovite é clinicamente significativa em AR precoce, pois a sinovite articular e a tenossinovite representam o
mesmo processo, e, em alguns pacientes com AR precoce, a
tenossinovite pode predominar sobre a sinovite articular.26 A
tenossinovite dorsal do punho é associada à ruptura de tendão,
descrita como a invasão do tendão pela membrana sinovial
da bainha e a fricção do tendão contra as margens ósseas com
erosão.27
Preditores da progressão de imagem
Esforços substanciais foram exercidos para identificar pacientes com prognóstico precário no momento do diagnóstico,
e diversos indicadores promissores de prognósticos foram
encontrados.13,27
As pontuações de erosão e de edema de medula óssea por
IRM foram significativa e independentemente associadas à
progressão radiográfica após dois anos. O principal achado foi
que o edema de medula óssea na IRM na apresentação era o
preditor mais forte de progressão radiográfica dois anos mais
tarde, em pacientes com AR precoce.1
O edema de medula óssea é considerado um indicador
precoce de inflamação, visto que sua presença é correlacionada
a níveis aumentados de reagentes de fase aguda (velocidade
de hemossedimentação e proteína C-reativa) e escalas para
avaliação clínica de atividade de doença.28,29
O edema de medula óssea na IRM pode representar infiltração inflamatória na medula óssea do paciente com AR, e essas
lesões afetam uma porcentagem mais alta de ossos em doença
estabelecida do que em doença precoce.30 Em contraste com
erosões radiográficas, que refletem danos ósseos que já ocorreram, o edema de medula óssea, portanto, pode representar
uma parte importante do desenvolvimento imunopatológico
precoce em AR, e pode ser revertido se for introduzido o
tratamento recomendado.31,32
Estudos metodológicos reportaram que a sensibilidade
para detecção de edema de medula óssea pode variar dentro
de diferentes tipos de unidades de IRM.7 A IRM regional pode
ser uma preditora de progressão radiográfica em outras regiões
anatômicas, de acordo com estudos prévios.33
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):629-641
Monitoramento de atividade e dano de doença
Diversos estudos prospectivos de imagem de acompanhamento
executados para comparar achados de RX, US e IRM demonstram que a US e a IRM são mais sensíveis para visualização
de alterações inflamatórias e destrutivas em articulações e têm
maior potencial para exame melhorado, quando comparadas
ao RX. Tanto a US quanto a IRM estão em conformidade com
os achados clínicos.34,35 Sistemas de pontuação tradicionais
desenvolvidos para RX não são diretamente concebidos para
IRM e US; eles são predominantemente qualitativos e baseados
na avaliação visual de dados com classificação adicional, de
acordo com uma escala específica. A extração de medições
quantitativas não é trivial. Diversos sistemas de pontuação
para IRM e US foram sugeridos com o passar dos anos. O
objetivo dos novos sistemas é contra-atacar os limites de avaliação tradicional, que é propensa a custos altos com pessoal
e a erros humanos.
Diversos autores têm usado análises quantitativas e semiquantitativas do volume sinovial, ligando isso de forma mais
ou menos efetiva à atividade da doença.36 Medições de volume
são frequentemente feitas diretamente, ao delinear de modo
direto a membrana sinovial inflamada ou erosões, o que é uma
operação que consome muito tempo.37
O teste OMERACT 2001 do acordo entre leitores de sinovite em articulações de AR usando a IRM demonstrou um nível
moderado de acordo.38 O grupo OMERACT 6 (2003) descobriu
alto acordo intraleitores para um leitor treinado.39 Um estudo
longitudinal que avaliou confiabilidade intra e interleitores
mostra boa correlação intraleitores.40
Sinovite, edema ósseo e erosões na IRM foram definidos pela Força-Tarefa IRM Medidas de Resultados em
Reumatologia (OMERACT), e um sistema de pontuação,
chamado de pontuação de IRM de AR (RAMRIS), e foram
validados e avaliados quanto à sensibilidade para mudança em
uma configuração longitudinal. Contudo, o sistema RAMRIS
não inclui um sistema de pontuação para tendões ou uma
pontuação para perda de cartilagem; isso está relacionado à
resolução de imagem não adequada de cartilagem em articulações pequenas.
Recentemente, Haarvardsholm et al.41 publicaram um
sistema de pontuação para tenossinovite com base na
pontuação semiquantitativa (0–3) de tenossinovite flexora
e extensora no punho em 10 áreas anatômicas. A largura
máxima de realce pós-contraste dentro de cada área anatômica nas imagens axiais ponderadas em T1 foi pontuada,
resultando uma pontuação máxima potencial de 30. Esse
sistema também foi testado quanto à confi abilidade em
639
Tavares Junior et al.
uma configuração longitudinal e fornece um complemento
útil para o RAMRIS convencional. No entanto, a avaliação
das mudanças de cartilagem na IRM continua a ser meta
importante de pesquisa.
A pontuação de sinovite OMERACT é sensível à mudança
da membrana sinovial inflamada com o decorrer das semanas,
bem como dos meses.2 A IRM está sendo cada vez mais usada
quando o tratamento é associado a agentes biológicos para
medir mudanças em sinovite. A IRM é mais sensível que o
RX para monitoramento de progressão erosiva em regiões de
articulações individuais.42
A pontuação de cada sinovite, erosões ósseas e edema de
medula óssea é feita a partir de articulações individuais; a
sinovite é pontuada em 0–3 em cada uma das articulações radioulnares distais radiocarpais, intercarpais-carpometacarpais
e da segunda à quinta articulações MCP. Mudanças ósseas são
pontuadas em cada um dos ossos carpais, rádio distal, ulna
distal e bases metacarpais. Erosões são pontuadas em 0–10 e
o edema em 0–3, como uma fração do osso envolvido dentro
de 1 cm da linha de articulação.4,6,43
Embora o sistema RAMRIS seja específico para articulações de punho e MCP, ele foi modificado para uso nos pés, e
há alguma evidência que sugere que, assim como com o RX,
a IRM dos pés pode ser mais sensível, revelando mudanças
nos pés mesmo se as mãos não estiverem envolvidas. A pontuação dos pés pode, portanto, ser útil em doença precoce, e
os parâmetros são os mesmos usados para as mãos.
REFERENCES
REFERÊNCIAS
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CONCLUSÃO
Os critérios de classificação para AR publicados pelo ACR
em 1987 são úteis para garantir uma população uniforme de
pacientes quando se comparam a experiência e os resultados de tratamentos clínicos entre países, mas não são úteis
para diagnóstico precoce de AR. Em 2010, novos critérios
de classifi cação foram apresentados com o objetivo de
facilitar o estudo de pacientes em estágios anteriores da
doença.26 A IRM tem importância na detecção de danos
ósseos, particularmente quando os resultados das RX são
normais, contribuindo com essa ferramenta emergente para
o diagnóstico. Com o advento de estratégias mais poderosas de tratamento, o diagnóstico preciso é o tópico central
relacionado à habilidade de selecionar e iniciar programas
terapêuticos, bem como à habilidade para diferenciar entre
pacientes respondentes e não respondentes. Com certeza, as
características da IRM podem dar suporte em muitos desses
aspectos de gestão de AR.
640
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641
RELATO DE CASO
Associação de osteomielite tibial e
pneumonite por tuberculose miliar em
paciente com lúpus eritematoso sistêmico
Vitor Emer Egypto Rosa1, Daniel Martin1, André Marun Lyrio2,
Maria Aparecida Barone Teixeira3, José Roberto Provenza4
RESUMO
O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença autoimune multissistêmica na qual há grande prevalência e manifestações incomuns de doenças infecciosas oportunistas, principalmente pelas múltiplas anormalidades no sistema imunológico
e pelo efeito imunossupressor das medicações utilizadas em seu tratamento. Pacientes com LES têm incidência aumentada
de tuberculose, e o acometimento osteoarticular ocorre em 1%–3% desses casos. Manifesta-se com dor, diminuição da
mobilidade e aumento do volume osteoarticular, e os achados radiográficos costumam ser inespecíficos. A ressonância
magnética nuclear (RMN) é exame útil para definir o grau de acometimento ósseo; entretanto, o diagnóstico etiológico
é dado apenas pela cultura de líquido sinovial, pela cultura óssea ou pela histologia dessas regiões. Devido à inespecificidade dos achados, geralmente há atraso diagnóstico, em média de 11 meses. Relata-se o caso de uma paciente do
gênero feminino com LES apresentando fatores predisponentes para a infecção/reativação da tuberculose. A RMN foi
importante para definir o acometimento ósseo, e o diagnóstico etiológico foi dado pela biópsia óssea. A paciente também
apresentava acometimento pulmonar devido à tuberculose, em sua forma miliar, demonstrado pela radiografia simples
de tórax e pela tomografia computadorizada e confirmado pela cultura do bacilo de Koch no escarro. Houve demora de
1,5 mês para o início da terapêutica, tempo considerado curto em relação à literatura. Conclui-se dessa maneira que a
tuberculose óssea, apesar de rara, deve sempre ser lembrada como diagnóstico diferencial nos pacientes lúpicos com
osteomielite, principalmente naqueles com antecedente de tuberculose pulmonar.
Palavras-chave: osteomielite, tuberculose, lúpus eritematoso sistêmico, tuberculose osteoarticular.
© 2011 Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados.
INTRODUÇÃO
O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença autoimune
multissistêmica com grande prevalência e manifestações incomuns de doenças infecciosas oportunistas, principalmente
pelas múltiplas anormalidades no sistema imunológico dessa
enfermidade e pelo efeito imunossupressor das medicações utilizadas em seu tratamento.1–5 Pacientes com LES têm incidência
aumentada de tuberculose, aproximadamente sete vezes maior
que a população geral, e o acometimento osteoarticular ocorre
em 1%–3% desses casos, principalmente na coluna, nos ossos
longos e, menos comumente, nas articulações periféricas.1
Os fatores de risco e mecanismos desse acometimento
são incertos, porém a associação entre infecção e inflamação
osteoarticular prévia é descrita, aparentemente com predileção
do Mycobacterium tuberculosis por essas áreas, por meio de
macrófagos que previamente fagocitaram o bacilo de Koch.1,6
A apresentação costuma ser de dor, diminuição da mobilidade e aumento do volume osteoarticular, e os achados radiográficos em geral são inespecíficos. A ressonância magnética
Recebido em 28/09/2010. Aprovado, após revisão, em 30/8/2011. Os autores declaram a inexistência de conflito de interesses.
Departamento de Clínica Médica e Departamento de Reumatologia da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas.
1. Médico Residente do Departamento de Clínica Médica – PUC-Campinas
2. Médico Residente do Departamento de Reumatologia – PUC-Campinas
3. Professora Titular do Departamento de Clínica Médica – PUC-Campinas
4. Professor Titular do Departamento de Reumatologia – PUC-Campinas
Correspondência para: Vitor Emer Egypto Rosa. Rua Jorge Neme, O-405 – Jardim Alvorada. CEP: 17280-000. Pederneiras, SP, Brasil. E-mail: [email protected]
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):642-647
645
Rosa et al.
nuclear (RMN) é exame útil para definir o grau de acometimento ósseo e identificar a extensão extra-articular da doença.
O diagnóstico etiológico, porém, é dado apenas pela cultura de
líquido sinovial, pela cultura óssea ou pela histologia dessas
regiões.7 Alterações na radiografia pulmonar ocorrem em cerca
de 50% dos pacientes com tuberculose osteoarticular, porém a
atividade da doença nesse sítio é incomum, havendo descrição
de associação entre tuberculose osteoarticular e tuberculose
miliar em 10% dos casos.7
Devido à inespecificidade dos achados, geralmente há
atraso diagnóstico (em média de 11 meses), o que contribui
significativamente para o aumento da morbidade e da mortalidade nesses pacientes.1
O interesse no caso relatado se deve à abordagem diagnóstica da tuberculose, patologia de grande prevalência em
nosso meio, em uma paciente com LES, doença que apresenta
predisposição a essa infecção e que pode mimetizar o acometimento osteoarticular e pulmonar da tuberculose. Representa,
portanto, um alerta para essa associação.
A
B
C
D
Figura 1
(A) Fotomicrografia (FMG) demonstrando trabécula óssea e
área de necrose caseosa. Aumento original 40x, Ziehl-Neelsen.
(B) FMG confirmando a presença de bacilos de Koch. Aumento
original 1.000x, Ziehl-Neelsen. (C e D) Tomografia computadorizada de tórax demonstrando infiltrado pulmonar intersticial
reticulomicronodular.
RELATO DE CASO
APSC, 44 anos, natural do Paraná, procedente de Santo
Antônio do Jardim – MG, trabalhadora do lar, casada e católica.
Referia história de tuberculose pulmonar tratada há 35 anos,
inicialmente com o diagnóstico de lúpus cutâneo há 20 anos,
tratada com prednisona 40 mg/dia e cloroquina 250 mg/dia.
Apresentou resolução do quadro e parada do uso das medicações há 10 anos.
Há um mês iniciou quadro de aumento progressivo de
volume na perna direita, próximo ao joelho, acompanhado de
dor e calor local, além de febre baixa, vespertina, voltando
desde então a fazer uso de prednisona 40 mg/dia e cloroquina
250 mg/dia. O quadro evoluiu de forma lenta e progressiva até
ser diagnosticado com abscesso da região, sem melhora após
drenagem e antibioticoterapia com amoxicilina-clavulanato
por sete dias; a paciente foi então internada devido a sepse.
Ao exame físico, apresentava abscesso de aproximadamente
6 × 6 cm em tíbia proximal à direita, em região anterior, com
drenagem de grande quantidade de secreção amarelo-amarronzada à expressão, através de pertuito com cerca de 1 cm, com
hiperemia e aumento da temperatura local. Presença de áreas
de alopecia em couro cabeludo com até 4 cm de diâmetro. O
exame dos pulmões evidenciou apenas estertores crepitantes
do tipo velcro em ambas as bases.
Naquele momento, a paciente apresentava critérios
de atividade e comprometimento sistêmico do lúpus, tais
como úlceras orais, fotossensibilidade, anemia hemolítica
646
(hemoglobina: 10,6 g/dL e teste de Coombs direto positivo), plaquetopenia (74.000 mm3), FAN homogêneo 1/1280,
anti-DNA reagente 1/20, linfocitopenia (362 mm3), consumo
de C4 = 0,7 mg/dL (9–36 mg/dL), anticoagulante lúpico
reagente (2,54) e anticardiolipina IgM reagente (11,2). Na
investigação para comprometimento ósseo infeccioso foi
solicitada radiografia simples de joelho, que se encontrava
normal. A radiografia foi complementada com RMN, que
apresentou edema da medula óssea da tíbia compatível com
processo infeccioso mediante correlação clínica.
A paciente foi então abordada cirurgicamente, sem achado
de secreções no procedimento – apenas estrutura óssea frágil. O
estudo anatomopatológico do fragmento ósseo demonstrou granuloma com necrose caseosa, e a coloração de Ziehl-Neelsen
confirmou a presença de bacilos de Koch (Figura 1 A e B). A
avaliação pulmonar com radiografia simples de tórax revelou
infiltrado pulmonar intersticial reticulomicronodular, confirmado pela tomografia computadorizada de tórax (Figura 1 C
e D). Foi solicitada baciloscopia do escarro, cujo resultado foi
negativo. Optou-se então pela broncoscopia com lavado broncoalveolar, que revelou cultura positiva para bacilo de Koch.
A paciente foi tratada com oxacilina durante 35 dias, para
crescimento de Staphylococus aureus oxacilina-sensível na
cultura do material de biópsia do abscesso da tíbia (infecção
secundária), além de esquema quádruplo para tuberculose
(isoniazida, pirazinamida, rifampicina e etambutol) após
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):642-647
Associação de osteomielite tibial e pneumonite por tuberculose miliar em paciente com lúpus eritematoso sistêmico
confirmação diagnóstica (no 14º dia de internação) e aumento
da dose da prednisona para 60 mg/dia, com o intuito de conter
as manifestações sistêmicas do LES, principalmente a plaquetopenia. A paciente apresentou boa evolução ambulatorial, com
ganho de peso, controle da tuberculose e das manifestações
sistêmicas do LES, com exceção da plaquetopenia. Iniciou-se
a redução da prednisona para 40 mg/dia após quatro meses de
tratamento e a programação de uso do esquema terapêutico da
tuberculose por pelo menos um ano.
DISCUSSÃO
A prevalência de tuberculose em pacientes lúpicos é descrita
em 3,6%–11,6% dos casos.2 De acordo com Hodkinson et al.,1
o acometimento osteoarticular ocorre em 32,1% dos pacientes
com doença extrapulmonar; em 10% destes foi encontrada
tuberculose miliar, assim como no caso aqui relatado.1 Já no
estudo de Mok et al.,5 a osteomielite foi descrita em 8,3%
desses pacientes, com taxa de recorrência da infecção por M.
tuberculosis de 1,66%, independentemente de profilaxia com
isoniazida, e, diferente do caso em questão, a tuberculose pulmonar não recorreu usualmente como doença extrapulmonar.5
Wu et al.,6 em sua série de 11 pacientes lúpicos com osteomielite, encontraram o bacilo de Koch como agente etiológico
em 9,09% deles.
Neste relato a paciente apresentava, como fatores predisponentes para a infecção/reativação da tuberculose, uso crônico
de prednisona e atividade do LES (pancitopenia, redução do
C4 e anti-DNA positivo).2–5 Assim como descrito na literatura,
a RMN foi importante apenas para definir o acometimento
ósseo, não encontrado na radiografia simples, e o diagnóstico
etiológico foi dado pela biópsia óssea.7
O quadro clínico frustro e os achados inespecíficos, do
ponto de vista etiológico, nos exames de imagem fizeram com
que houvesse demora de 1,5 mês para o início da terapêutica,
tempo considerado curto em relação à literatura, que descreve
média de 11 meses,1 o que pode ser justificado, neste relato de
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):642-647
caso, pela forte suspeita de infecção por M. tuberculosis devido ao antecedente de infecção da paciente e pelas alterações
encontradas nos exames de imagem dos pulmões. Além disso,
infecção concomitante por S. aureus corrobora a hipótese de
tropismo do M. tuberculosis por sítios previamente lesionados,1,6 indicando que nos portadores de LES essa etiologia deve
ser pesquisada mesmo quando outro agente já foi isolado nos
meios de cultura. Alguns autores1 postulam que os macrófagos
que fagocitam o bacilo de Koch no sítio primário da infecção
(geralmente os pulmões) migram por quimiotaxia para o local
lesionado, justificando tal tropismo.1
Conclui-se assim que a tuberculose óssea, apesar de rara,
deve ser sempre lembrada como diagnóstico diferencial em
pacientes lúpicos com osteomielite. Além disso, a RMN tibial
foi útil para a indicação do tratamento invasivo nessa região,
e a forte suspeição clínica fez com que houvesse redução do
tempo entre o início dos sintomas, o diagnóstico e a terapêutica
adequada.
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647
RELATO DE CASO
Amiloidose-mieloma múltiplo
apresentando-se como pseudomiopatia
Mário Sérgio F. Santos1, Bianca Soares2, Osvaldo Mendes3,
Cintia Moura Carvalho4, Rossana Fonseca Casimiro4
RESUMO
Amiloidose é uma designação genérica para se referir à deposição de fibrilas amiloides nos tecidos corporais. Ela
apresenta-se, frequentemente, após os 40 anos de idade, com envolvimento localizado ou sistêmico, associada a mieloma
múltiplo ou a doenças inflamatórias crônicas, podendo mimetizar diferentes síndromes reumatológicas. Relata-se o caso
de uma paciente com amiloidose associada a mieloma múltiplo cuja apresentação inicial simulava miopatia.
Palavras-chave: miosite, mieloma múltiplo, amiloidose.
© 2011 Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados.
INTRODUÇÃO
Amiloidose é uma designação genérica para deposição de fibrilas amiloides nos tecidos corporais. Na amiloidose de cadeia
leve (amiloidose AL), seja primária ou associada ao mieloma
múltiplo (MM), ocorre produção e deposição excessiva de
fragmentos de imunoglobulina monoclonal de cadeia leve ou
fragmentos contendo a região variável da cadeia leve.1 Essa
deposição forma as fibrilas amiloides, que podem ser identificadas pela coloração com o vermelho Congo.
A classificação da amiloidose leva em conta as diferentes
proteínas fibrilares, bem como seus diferentes precursores.2
Na amiloidose primária, a proteína fibrilar foi nomeada AL, e
seus precursores são imunoglobulinas de cadeia leve, kappa
(κ) e lambda (λ).3
A amiloidose AL usualmente manifesta-se após os 40
anos de idade, e apresenta envolvimento multissistêmico, com
características de rápida progressão e redução da sobrevida.4
Embora o envolvimento multissistêmico de órgãos como
coração e rins seja determinante do prognóstico e da sobrevida desses pacientes, a amiloidose AL chama a atenção do
reumatologista quando seus sinais e sintomas mimetizam uma
série de condições reumatológicas: infiltração amiloide da pele,
cujo espessamento simula esclerodermia;5 infiltração amiloide
nos tecidos periarticular e sinovial, produzindo rigidez e poliartrite, sugerindo artrite reumatoide;6 e deposição amiloide
nas glândulas salivares produzindo xerostomia, mimetizando
síndrome de Sjögren,7–9 mimetismo esse que pode conduzir a
diagnósticos de pseudo-hipertrofia muscular10 ou de pseudomiopatia, como na paciente que descrevemos a seguir.
RELATO DE CASO
MCC, gênero feminino, 35 anos, estava bem há três meses,
quando surgiram dores nos membros superiores (MMSS)
e inferiores (MMII). As dores eram constantes e predominavam nos segmentos proximais dos MMII, incluindo
a região glútea bilateralmente. Encaminhou-se a paciente
para a ortopedia, onde recebeu o diagnóstico de bursite
trocantérica bilateral.
Cerca de um mês depois, a paciente notou inchaço na língua, sensação de dormência nas mãos, nódulos nos braços e
Recebido em 12/12/2010. Aprovado, após revisão, em 30/08/2011. Os autores declaram a inexistência de conflito de interesses.
Clínica de Reumatologia e Eletroneuromiografia.
1. Médico Reumatologista Doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo – USP
2. Médica Hematologista pela USP
3. Ortopedista; Professor-Adjunto da Universidade Federal do Piauí – UFPI; Mestre em Ciências Médicas pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP
4. Acadêmica de Medicina pela Faculdade Integral Diferencial – FACID
Correspondência para: Mário Sérgio F. Santos. Avenida Kennedy, 4560 – Morros. CEP: 64062-100. Teresina, PI, Brasil. E-mail: [email protected]
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):648-654
651
Santos et al.
A
B
Figura 2
Mielograma com excesso de plasmócito: células de núcleo arredondado e excêntrico; citoplasma de contornos irregulares e
azulados; núcleo aumentado em relação ao citoplasma.
652
Figura 1
Ressonância nuclear magnética. (A) Alteração de
sinal em T1 e T2 acometendo as cabeças/colos,
trocanteres maiores e metáfise/diáfise proximais
dos fêmures. (B) Distensão
líquida da bursa do glúteo
médio à esquerda.
nas pernas. Após consulta com neurologista, foi diagnosticada
com síndrome do túnel do carpo (STC), que motivou descompressão cirúrgica bilateral. Os sintomas não melhoraram – ao
contrário, a sintomatologia dolorosa intensificou-se, agora de
forma mais difusa, em todo o corpo, acompanhada de dores no
ouvido bilateralmente e dificuldade para caminhar. Passou a
experimentar limitações para as atividades da vida diária, como
tomar banho, pentear os cabelos, vestir-se, sentar e levantar de
uma cadeira. Relata perda de 5 kg desde o início da doença.
Ao exame físico, apresentava pressão arterial de 100/70 mmHg,
pulso de 86 bpm, pulmões limpos, macroglossia, edema e equimose periorbital bilateral, edema de MMII +/4+, manobra de
Mingazinni positiva para MMII. Na avaliação laboratorial,
hemograma, VHS, glicemia, transaminases, CPK, FAN, eletroforese de proteínas séricas, testes de funções tireoidiana e
renal, sumário de urina e raio-x de tórax normais. PPD não
reator. A ressonância nuclear magnética (RNM) da cintura
pélvica revelou bursite trocantérica bilateral com edema nos
planos lipomatosos intermusculares supra-adjacentes; bursite
isquiática bilateral; bursite subglúteo médio esquerda; alterações de sinal difusas na medula óssea dos colos femorais,
metáfise/diáfise proximais dos fêmures, ossos da bacia e do
sacro de aspecto inespecífico (Figura 1). O tecido obtido por
biópsia da bursa trocantérica à direita revelou birrefringência
positiva à luz polarizada na coloração com vermelho Congo. O
aspirado de medula óssea revelou 73% de plasmócitos (Figura 2).
A imunofixação sérica revelou padrão biclonal IgG κ/IgA κ.
O raio-x de calota craniana demonstrou lesões líticas difusas.
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):648-654
Amiloidose-mieloma múltiplo apresentando-se como pseudomiopatia
Função renal e calcemia normais. Concluiu-se pelo diagnóstico
de amiloidose associada a MM.
Iniciou-se terapia com dexametasona em altas doses
(40 mg/dia nos dias 1–4, 9–12 e 17–20), associada a inibidor de
osteólise (pamidronato 90 mg/mensais), com desaparecimento
dos sintomas dolorosos e melhora da disfonia e da plenitude
pós-prandial. Duas semanas depois surgiram tosse, falta de ar
e piora do edema de MMII. O raio-x de tórax revelou derrame
pleural bilateral. O eletrocardiograma foi compatível com
bloqueio do ramo esquerdo. O ecocardiograma demonstrou
hipertrofia ventricular esquerda moderada, com alteração de
relaxamento diastólico. Iniciou-se furosemida, com melhora
dos sintomas de descompensação cardíaca. A paciente está
sendo preparada para o transplante autólogo de célula-tronco.
DISCUSSÃO
Dois aspectos atípicos chamam a atenção nessa apresentação
incomum de amiloidose associada a MM: a idade da paciente,
35 anos, e a forma de apresentação como pseudomiopatia de
cinturas proximais. A RNM da cintura pélvica com infiltração
tecidual multifocal ao lado de enzimas musculares e eletroneuromiografia normais tornaram menos provável o diagnóstico
de miopatia. A STC bilateral, para a qual recebera tratamento
cirúrgico dois meses antes, poderia ser atribuída à deposição
amiloide, embora estudo histopatológico não tenha sido
realizado. A avaliação sistêmica demonstrou envolvimento
cardíaco, mas não envolvimento renal ou de outros órgãos,
exceto, talvez, sistema nervoso periférico na forma de STC.
A associação com MM foi assegurada a partir do estudo da
medula óssea com 73% de plasmócitos, ao lado da imunofixação sérica com padrão biclonal IgG κ/IgA κ e lesões líticas
no raio-x de crânio.11
A amiloidose AL está sempre associada a discrasia de
células plasmáticas. Início insidioso, sintomatologia vaga e
diversidade de manifestações clínicas dificultam o diagnóstico.
Infiltração amiloide nas articulações, estruturas periarticulares,
partes moles e ossos vêm ganhando destaque, surgindo às
vezes como formas iniciais de apresentação.5–10 Isso explica
a presença do reumatologista na investigação, bem como nos
cuidados clínicos oferecidos a esses pacientes. Deve-se atentar
para o fato de que esses pacientes apresentam, via de regra,
provas de fase aguda, VHS e PCR dentro da normalidade,
além de ausência de fator reumatoide e anti-CCP. Artrite reumatoide,6 esclerodermia,5 síndrome de Sjögren8,9 e polimialgia
reumática12 podem aparecer como diagnósticos antes da definição como amiloidose AL. Em uma série de 191 pacientes
com amiloidose AL, 82 (42,9%) apresentaram evidências de
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):648-654
envolvimento ósseo e de partes moles. Esse envolvimento
tende a ocorrer no contexto do acometimento de múltiplos
órgãos.1 No grupo de pacientes com amiloidose AL associada
ao MM, o envolvimento de partes moles tem aparecido com
maior frequência sob a forma de STC,13 macroglossia,13 artropatia14 e miopatia.7
Os órgãos mais frequentemente acometidos na amiloidose
AL são os rins e o coração. Proteinúria nefrótica e falência renal
são eventos bem-documentados. Envolvimento cardíaco esteve
presente em 83% dos pacientes.15 Nossa paciente apresentou
vários dos achados clássicos da amiloidose cardíaca, como
bloqueio do ramo esquerdo, hipertrofia ventricular esquerda
com alteração do relaxamento diastólico e insuficiência cardíaca congestiva.
O diagnóstico de amiloidose é feito por biópsia tecidual. A
aspiração da gordura abdominal é um método menos invasivo
e apresenta sensibilidade de 80% em uma única aspiração. A
especificidade do método é de 98%, e o valor preditivo negativo é de 76%.15 Os exames de imagem podem ser de grande
utilidade. A RNM da paciente foi capaz de excluir doença
intrínseca do músculo e de identificar o envolvimento multifocal na pelve, além de permitir a seleção adequada do tecido
a ser biopsiado, enquanto o raio-x simples do crânio permitiu
visualizar as lesões líticas na calota craniana.
Instituiu-se terapêutica com dexametasona, furosemida,
além do inibidor de osteólise, pamidronato. Os sintomas dolorosos desapareceram, e houve regressão dos sinais e sintomas
de descompensação cardíaca. A paciente está sendo preparada
para o transplante autólogo de célula-tronco.
CONCLUSÃO
A apresentação clínica da amiloidose AL pode mimetizar diferentes síndromes reumatológicas. Dessa forma, pacientes com
sintomas e sinais clínicos decorrentes de processos infiltrativos
de partes moles, articulações, tecidos periarticulares e ossos
devem ser submetidos a uma pesquisa para amiloidose AL,
após afastada uma patologia reumatológica.
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Rev Bras Reumatol 2011;51(6):648-654
RELATO DE CASO
Gangrena de pavilhão auricular como
primeira manifestação de síndrome
do anticorpo antifosfolípide
Erika Bettini de Sá1, Adson da Silva Passos2, Mariana Cecconi2,
Maria Lourdes Peris Barbo3, José Eduardo Martinez4, Gilberto Santos Novaes4
RESUMO
A síndrome do anticorpo antifosfolípide (SAF), mais comum em mulheres, manifesta-se clinicamente como trombose e/ou
abortamentos de repetição. Anemia hemolítica autoimune e manifestações neurológicas, cardíacas e cutâneas são comuns.
Relata-se o caso de um paciente do gênero masculino cuja manifestação inicial da doença foi gangrena em pavilhão auricular, e o diagnóstico de SAF se deu por meio de biópsia de pele do membro inferior, que mostrava vasculopatia trombótica,
sem evidência de vasculite. Esse resultado é um dos dois critérios maiores que, associados a um critério menor, fecham
o diagnóstico dessa doença. Discutem-se neste caso os possíveis diagnósticos diferenciais e como eles se diferenciam da
doença em foco, além da importância que a biópsia teve no diagnóstico de SAF nesse indivíduo.
Palavras-chave: anticorpos antifosfolípides, trombose, anticorpos anticardiolipina, lúpus eritematoso sistêmico.
© 2011 Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados.
INTRODUÇÃO
A síndrome do anticorpo antifosfolípide (SAF) é a trombofilia
adquirida mais comum. As manifestações clínicas são heterogêneas e refletem a presença de trombose em vasos arteriais ou
venosos de qualquer calibre e em qualquer órgão ou sistema,
desenvolvendo-se abrupta ou insidiosamente.
O diagnóstico é realizado por meio de um critério clínico
associado a um critério laboratorial. Os critérios clínicos são
trombose (arterial, venosa ou vasculopatia) ou história de
morbidade ou mortalidade obstétrica (três ou mais perdas fetais
no primeiro trimestre, uma ou mais mortes fetais ou parto prematuro por insuficiência placentária). Os critérios laboratoriais
são anticoagulante lúpico positivo, títulos moderados a altos
para anticardiolipina IgG ou IgM e títulos moderados a altos
de β2-glicoproteína I.1,2
O quadro clínico é diverso, podendo ocorrer alterações
hematológicas, renais, neurológicas, cardiológicas e dermatológicas, e até um quadro de pior prognóstico – SAF
catastrófica.2,3 É mais comum no gênero feminino e associada
a doenças autoimunes. Neste relato apresentaremos um caso
de SAF primária com sintoma inicial de gangrena auricular.
RELATO DE CASO
PRF, gênero masculino, 28 anos de idade, portador de doença de Graves e em uso de propiltiouracil há três anos,
mantendo-se estável. Chegou ao pronto-socorro com queixa
de cianose e dor em nariz e pavilhões auriculares há um dia.
Ao exame físico apresentava petéquias em língua, palato
e membros, acompanhadas de cianose nasal e em orelha
externa. Após 12 horas, as áreas cianóticas evoluíram para
Recebido em 21/12/2010. Aprovado, após revisão, em 30/8/2011. Os autores declaram a inexistência de conflito de interesses.
Pontíficia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP Sorocaba.
1. Residente em Reumatologia
2. Residente em Clínica Médica (R1) pela PUC-SP
3. Professora-Associada do Departamento de Morfologia e Patologia da PUC-SP
4. Professor Titular do Departamento de Medicina da PUC-SP
Correspondência para: Erika Bettini de Sá. Praça Dr. José Ermírio de Moraes, 290 – Jardim Vergueiro. CEP: 18030-095. Sorocaba, SP, Brasil.
E-mail: [email protected]
658
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):655-661
Gangrena de pavilhão auricular como primeira manifestação de síndrome do anticorpo antifosfolípide
gangrena (Figura 1). O paciente manteve-se normotenso e
sem alterações neurológicas. Excluídas as hipóteses de meningococcemia e endocardite, foi suspenso o propiltiouracil
e iniciada a pulsoterapia com metilprednisolona 1 g/dia por
três dias consecutivos, com estabilização das lesões cutâneas.
Na sequência, foram mantidas prednisona 60 mg/dia via oral
e solução de lugol tópica.
Foram realizados hemograma (Hb 11,5; Ht 33,9; leucócitos 4.500, plaquetas 44.000), urina I (proteinúria negativa,
leucócitos 1.000, hemácias 1.000), sorologia para hepatite B,
hepatite C e HIV negativa; ALT, AST, fibrinogênio, C3, C4 e
CH50 dentro da normalidade; C-ANCA e P-ANCA negativos,
crioglobulinas negativas; anti-Ro negativo; fator antinúcleo e
fator reumatoide negativos. Devido à dificuldade diagnóstica,
foi realizada biópsia de pele em área de máculas eritematosas
em membro inferior direito, com o resultado de vasculopatia
trombótica, achado este sugestivo de SAF (Figura 2).
A hipótese diagnóstica de SAF teve sua confirmação com os
resultados positivos para anticardiolipina IgM (55 MPL UI/mL),
anticardiolipina IgG negativa e anticoagulante lúpico positivo.
Feito o diagnóstico, foram introduzidos difosfato de cloroquina
4 mg/kg/dia, heparina de baixo peso molecular em dose anticoagulante, via subcutânea, e AAS 100 mg/dia, via oral.
O paciente apresentou melhora da lesão cutânea do nariz
e pavilhão auricular esquerdo. Porém, persistiu pequena área
de gangrena em pavilhão auricular direito, com perda parcial
da cartilagem (Figura 1).
Figura 1
Imagem da orelha direita antes e após o tratamento, com perda
parcial da cartilagem.
DISCUSSÃO
Durante a internação, foram aventadas várias hipóteses diagnósticas, dentre as quais: vasculite induzida por propiltiouracil,
granulomatose de Wegener, policondrite recidivante e síndrome do anticorpo antifosfolípide.
A vasculite induzida pelo propiltiouracil pode ocorrer a
qualquer tempo durante seu uso.4 É descrita como lesões de
pele, até alterações renais e pulmonares.5 A maioria dos casos
de vasculite induzida por propiltiouracil apresenta ANCA
positivo.5 É sugerido que o acúmulo de metabólitos do propiltiouracil em neutrófilos possa tornar a mieloperoxidase imunogênica, como também outras enzimas presentes nos grânulos
dos neutrófilos. A partir daí, ocorreria a ativação de outros
neutrófilos, provocando a liberação de enzimas e a produção
de radicais livres e citocinas, resultando em dano vascular.6,7
A granulomatose de Wegener é definida como uma vasculite com formação de granulomas inflamatórios e necrose
de vasos de médio e pequeno calibres.8 A forma completa
atinge face, pulmões e rins.4 Apresenta C-ANCA positivo
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):655-661
Figura 2
Biópsia de pele mostrando vasos trombosados (seta) e ausência
de infiltrado inflamatório perivascular.
em 80% a 90% dos casos. A histopatologia mostra vasculite
leucocitoclástica com necrose e granuloma inflamatório
perivascular.
O quadro clínico apresenta perfuração de septo nasal, nariz
em sela, perda auditiva, estenose subglótica, pseudotumor
ocular, esclerite, episclerite e uveíte. Nos pulmões, infiltrado
nodular ou lesão cavitada, que pode levar à hemoptise.8 Os rins
são acometidos por glomerulonefrite rapidamente progressiva.
Mais de 75% dos pacientes terão lesão renal durante o curso
da doença, que inicialmente se manifesta por proteinúria e
hematúria.4 Na pele pode haver nódulos, púrpura palpável,
lesões vesicobolhosas, pápulas, úlceras e infartos digitais.8
659
Bettini de Sá et al.
A policondrite recidivante é uma doença mediada pelo
sistema imune associada à inflamação de estruturas cartilaginosas e de outros tecidos conjuntivos como orelha, nariz,
articulação, trato respiratório etc. O quadro clínico pode
incluir condrite auricular, audição reduzida, condrite nasal,
deformidades do nariz, acometimento laringotraqueal, inflamação ocular, artrite, acometimento de pele e vasculites.
Não existe alteração laboratorial específica. O diagnóstico é
feito pelo quadro clínico, e raramente é necessária biópsia
tecidual. O tratamento é realizado com corticoides, podendo-se
associar metotrexato.9
A SAF, também conhecida como síndrome de Hughes,
foi definida no final da década de 1980.4 Ocorre em 1% a 6%
da população. A trombose é a principal manifestação e pode
ocorrer mesmo em pacientes com trombocitopenia (40%–50%
dos pacientes). As tromboses tendem a ocorrer principalmente
na circulação venosa dos membros inferiores e na circulação
arterial cerebral.
A manifestação cutânea pode ser a primeira em 41%
dos casos, e a lesão mais frequente é o livedo reticular.
Este se apresenta de forma persistente, como uma lesão
reticular ou mosqueada de coloração violácea, vermelha
ou azulada. É irreversível com o reaquecimento, e pode
envolver tronco, braços ou pernas. 10 Outras lesões associadas a SAF são gangrena digital, úlceras de membros
inferiores, pseudovasculite, necrose cutânea com lesões
purpúricas dolorosas evoluindo para placas enegrecidas
bolhosas localizadas em membros, cabeça (nariz, orelhas)
ou nádegas.11
A vasculite livedoide é uma doença rara, descrita em 1967
por Bard e Winkelmann. Caracteriza-se por lesões purpúricas
dolorosas localizadas em membros inferiores que, frequentemente, ulceram. As úlceras apresentam curso crônico e recorrente, com exacerbações no verão e no inverno. Podem deixar
cicatrizes atróficas, brancas e irregulares, com telangiectasias
e hiperpigmentação livedoide de hemossiderina perilesional.
A patogênese ainda é desconhecida, mas em alguns casos
apresenta associação a alteração da coagulação ou doenças
inflamatórias.12
O diagnóstico da SAF é realizado pela presença de um critério clínico associado a um critério laboratorial.8 O tratamento
envolve medidas profiláticas e anticoagulação. A anticoagulação pode ser feita com varfarina ou heparina, frequentemente
associadas ao AAS.
Em pacientes com plaquetas abaixo de 50.000 é contraindicado o uso de AAS ou de anticoagulantes, podendo ser usadas
prednisona ou imunoglobulinas, até a normalização da série
plaquetária. A cloroquina e a hidroxicloroquina têm efeito
660
antiplaquetário e antitrombótico comprovado em pacientes
com lúpus eritematoso sistêmico, com provável papel preventivo também em pacientes com SAF.4
Dentre os diagnósticos diferenciais apresentados, a policondrite recidivante foi descartada como hipótese diagnóstica
devido ao quadro de gangrena auricular. A granulomatose de
Wegener e a vasculite induzida pelo propiltiouracil foram desconsideradas como causadoras da vasculopatia, principalmente
após o resultado da biópsia de pele, que não mostrou presença
de vasculite e leucocitoclasia.
A evolução do paciente foi bastante inesperada, com
dramática melhora das lesões cutâneas após pulso de metilprednisolona seguido de prednisona 60 mg/dia associada
a difosfato de cloroquina e heparina. AAS não foi utilizado
durante a fase inicial da internação devido à plaquetopenia.
O propiltiouracil foi retirado, tendo sido feita programação
para tireoidectomia.
CONCLUSÃO
A biópsia de pele foi fundamental para a realização do diagnóstico. Os achados clínicos e a vasculopatia trombótica encontrada no estudo anatomopatológico, associados a altos títulos de
anticardiolipina e à presença de anticoagulante lúpico, selam
o diagnóstico de SAF.
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661
CARTA AOS EDITORES
Opinião de uma amostra de reumatologistas
brasileiros sobre biossimilares
© 2011 Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados.
evido às recentes expirações de patentes de alguns
medicamentos biológicos, são esperados estudos para
a produção de versões alternativas dos mesmos, as
quais chamamos biossimilares. Os fabricantes de biossimilares
não terão acesso aos processos de fabricação dos biológicos inovadores, porque tais conhecimentos são propriedade exclusiva das
empresas inovadoras. Assim, é impossível a replicação precisa de
qualquer proteína, ao contrário do que ocorre com a produção de
medicamentos genéricos, cujas pequenas moléculas químicas são
idênticas às moléculas dos medicamentos originais, e cujos requisitos de análise baseiam-se apenas em sua composição química.
No Brasil, como já ocorre em outros países, surgirá nos
próximos meses a oportunidade para a entrada de biossimilares
do ENBREL® (etanercepte; Pfizer-Wyeth) e, na sequência, do
MABTHERA® (rituximabe; Roche), duas conhecidas medicações
que fazem parte do arsenal terapêutico da reumatologia e de outras
especialidades clínicas.1 Como todos os medicamentos biológicos,
o principal problema relacionado à segurança de um biossimilar
é sua imunogenicidade. A imunogenicidade e a eficácia de um
produto biossimilar só podem ser adequadamente avaliadas a
partir de rigorosos ensaios clínicos realizados antes de sua aprovação, e por um sistema de farmacovigilância estabelecido após
a comercialização do produto. A entrada no mercado brasileiro de
biossimilares das atuais moléculas prescritas por reumatologistas,
conhecidas como proteínas biológicas de terceira geração, requer
nossa apropriada educação e a disseminação de informações de
forma transparente e não viciada, a fim de que se estabeleçam as
decisões corretas para a prescrição desses medicamentos.
Buscando avaliar de forma objetiva o conhecimento básico sobre os principais aspectos médicos relacionados aos
biossimilares, foi aplicado um questionário a cerca de 200
reumatologistas (médicos e médicos residentes) durante o
XXVIII Congresso Brasileiro de Reumatologia, realizado em
Porto Alegre de 18 a 22 de setembro de 2010. Tal questionário
consistia em sete perguntas de múltipla escolha sobre definição
e aspectos biotecnológicos da produção de biossimilares e condução de ensaios clínicos relacionados a biocomparabilidade,
D
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):662-671
imunogenicidade, farmacovigilância e aspectos regulatórios
nacionais. O questionário foi aplicado por dois acadêmicos de
Medicina da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e o prazo
de preenchimento para cada profissional foi de três minutos
(cerca de 25 segundos para cada questão). Os profissionais
foram entrevistados nos diversos corredores do evento durante
os intervalos entre as sessões acadêmicas, e na maioria das
vezes responderam as questões em pé. O tamanho da amostra
foi definido de forma aleatória, considerando que pudesse ser o
mais representativo possível de um universo de mais de 1.000
inscritos no evento. Não foi dada aos entrevistados qualquer
orientação para preenchimento além da especificação do limite
de tempo e sobre a possibilidade de escolha de mais de um item
em cada questão.
Dos 200 questionários aplicados, 95% foram respondidos e
5% não foram devolvidos pelos entrevistados, totalizando 189
Tabela 1
Questionário sobre biossimilares
1
2
Você sabe o que são biossimilares?
SIM
67%
(114)
NÃO
33%
(56)
Caso sua resposta tenha sido positiva, escolha um item
que se ajuste ao seu conceito sobre biossimilares:
Biológico que demonstra bioequivalência com
o fármaco original e possui todos os ensaios
pré-clínicos e clínicos iguais aos já realizados.
Além disso, por ocasião de sua aprovação, sua
imunogenicidade já está bem-estabelecida
34%
(45)
Biológico que demonstra bioequivalência de
um biofármaco original e que não necessita
de ensaios clínicos para sua comercialização
27%
(35)
Molécula igual à molécula de um fármaco
original com menor custo de produção
20%
(27)
Tentativa de cópia de um biofármaco
inovador que nunca poderá ser igual a ele
11%
(14)
8%
(11)
Biológico genérico de um já comercializado
Continua
667
CARTA AOS EDITORES
Tabela 1
Questionário sobre biossimilares (Cont.)
3
4
5
Você concorda com a informação de que já existem biossimilares
no mercado brasileiro?
NÃO
64%
(107)
SIM
36%
(60)
NÃO
95%
(145)
SIM
5%
(8)
Você conhece a RDC 315?
Quais são, na sua opinião, os principais problemas relativos à aprovação
de biossimilares em nosso país? Pode marcar mais de um item.
Testes de bioequivalência
19%
(125)
Segurança
18%
(118)
Bioeficácia
16%
(108)
Garantia de que ensaios clínicos de fase III sejam
realizados em amostra de população brasileira
10%
(65)
Boas práticas de fabricação e alto conceito do
fabricante
10%
(64)
9%
(58)
Existência de manutenção de adequado sistema
nacional de farmacovigilância específico para o
biossimilar
Clareza por parte do sistema regulatório brasileiro
9%
(58)
Imunogenicidade
7%
(49)
Nome do biossimilar igual ao do biológico inovador
3%
(18)
6
Identifique os principais problemas após a comercialização de um
biossimilar.
Manutenção de adequado sistema nacional de
farmacovigilância específico ao similar
24%
(77)
Falha terapêutica
23%
(74)
Eficácia
23%
(72)
Intercambialidade entre o biológico inovador
e o similar
17%
(55)
Imunogenicidade
12%
(39)
7
Em sua opinião, quais as vantagens de um biossimilar?
Preço menor
67%
(130)
Comercialização aprovada com indicação inicial
que inclui todas as doenças previamente aprovadas
para uso do biofármaco inovador
16%
(32)
Via de administração diferente à do original
3%
(6)
Dose menor
1%
(2)
13%
(25)
Não há vantagens
questionários para análise posterior (Tabela 1). Dos entrevistados, 89 eram mulheres e 111 eram homens. Responderam ao
questionário 36 médicos residentes (18%). Cento e quatorze
(60%) afirmaram saber o que são biossimilares, 56 (30%) negaram conhecer o assunto e 19 (10%) deixaram a questão em
668
branco (Figura 1). Apesar de responder negativamente ou de
deixar essa primeira questão em branco, ainda que houvesse a
ressalva de continuar com o questionário apenas se a primeira
resposta fosse positiva, a maioria dos entrevistados (78%) continuou a responder o questionário.
Apenas 70% dos entrevistados responderam sobre a
definição do conceito mais apropriado do que seria um biossimilar. Dos que responderam a essa questão, 34% optaram
pelo item que definia um biossimilar como um biológico que
demonstra bioequivalência e que possui todos os ensaios
pré-clínicos e clínicos iguais aos já realizados com o biofármaco original, e que, quando de sua aprovação, já tem a
imunogenicidade bem estabelecida; 27% responderam que
um biossimilar é um biológico que demonstra bioequivalência
com um biofármaco original e que não necessita de ensaios
clínicos para sua comercialização; 20% responderam que o
biossimilar é uma molécula igual à molécula de um fármaco
original, e de menor custo de produção. Somente 11% responderam que biossimilares são uma tentativa de cópia de
biofármacos inovadores e que nunca poderão ser iguais a eles,
enquanto cerca de 8% dos entrevistados responderam que
um biossimilar é um biológico genérico de um biofármaco
já comercializado (Figura 1).
Cerca de 1/3 dos entrevistados (32%) concordou que já
existem biossimilares no mercado brasileiro, enquanto mais
da metade (56%) não concordou com essa afirmação; 12% dos
entrevistados deixaram essa questão em branco. Perguntados
sobre o conhecimento sobre a RDC 135, apenas 4% responderam afirmativamente; 77% responderam que não a conheciam,
e 19% deixaram a questão em branco.
Os entrevistados ainda deveriam apontar quais os principais
problemas relacionados à aprovação de biossimilares no Brasil
(etapa anterior à comercialização), podendo escolher mais de
uma alternativa. A maioria (19%) apontou a limitação de testes
de bioequivalência como principal problema; 18% apontaram
a questão da segurança; 16% indicaram o estabelecimento de
bioeficácia; 10% indicaram as boas práticas de fabricação e o
alto conceito do fabricante como pré-requisitos fundamentais;
10% apontaram a garantia de que ensaios clínicos de fase III
sejam realizados em amostra de população brasileira; somente
9% indicaram como problema a falta de clareza no processo
de aprovação de biossimilares pelo sistema regulatório brasileiro; 9% indicaram a importância da manutenção de um
adequado sistema nacional de farmacovigilância específico
aos biossimilares; 7% apontaram o problema da imunogenicidade, e 3% indicaram como principal problema o fato de
um biossimilar ter nome igual ao de um biológico inovador
(Figura 2).
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):662-671
CARTA AOS EDITORES
Biológico que demonstra bioequivalência com o biofármaco original e possui todos os ensaios pré-clínicos e clínicos iguais aos já realizados, com
imunogenicidade bem-estabelecida no momento da aprovação;
Biológico que demonstra bioequivalência de um biofármaco original e que
não necessita de ensaios clínicos para sua comercialização;
Molécula igual à molécula de um fármaco original com menor custo de
produção;
Tentativa de cópia de um biofármaco inovador que nunca poderá ser igual
ao mesmo;
Biológico genérico de um já comercializado.
Figura 1
Conceitos sobre biossimilares.
Testes de bioequivalência;
Segurança;
Bioeficiência;
Garantida de que ensaios clínicos de fase III sejam realizados em amostra
de população brasileira;
Boas práticas de fabricação e alto conceito por parte do fabricante;
Existência de manutenção de adequado sistema nacional de farmacovigilância
específico ao biossimilar;
Clareza por parte do sistema regulatório brasileiro;
Imunogenicidade;
Nome do biossimilar igual ao do biológico inovador.
Figura 2
Principais problemas relacionados à aprovação de biossimilares no Brasil.
Existênca de manutenção de adequado sistema nacional de farmacovigilância
específico ao similar;
Falha terapêutica;
Eficácia;
Intercambialidade entre o biológico inovador e o similar;
Imunogenicidade.
Figura 3
Principais problemas pós-comercialização de biossimilares.
Diante das questões relacionadas aos principais problemas
após a comercialização de biossimilares, 24% dos entrevistados
selecionaram como fundamentais a criação e a manutenção de
um adequado sistema nacional de farmacovigilância específico
aos biossimilares; 23% escolheram o problema da eficácia, e
outros 23% escolheram o item que indicava o problema da falha
terapêutica; 17% indicaram o problema da intercambialidade
entre o biológico inovador e o biossimilar; e 12% escolheram
o problema da imunogenicidade (Figura 3).
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):662-671
Com relação às vantagens proporcionadas pela entrada de
biossimilares no mercado nacional, questão na qual mais de
uma alternativa poderia ser apontada, em primeiro lugar foi
identificada o menor preço, com 67% das respostas; 16% dos
entrevistados apontaram como vantagem o fato de a comercialização ser aprovada com indicação inicial, o que inclui todas
as doenças previamente aprovadas para uso do biofármaco
inovador; 3% escolheram como vantagem o fato de o biossimilar ter uma via de administração diferente da do original;
669
CARTA AOS EDITORES
Preço menor;
Comercialização aprovada com indicação inicial que inclui todas as doenças
previamente aprovadas para uso do biofármaco inovador;
Via de administração diferente do original;
Dose menor;
Não há vantagens.
Figura 4
Vantagens da entrada de biossimilares no mercado brasileiro.
1% escolheu o fato de o biossimilar ter dose terapêutica menor. Finalmente, 13% dos entrevistados, ao escolher o último
item, acreditam não haver vantagens na comercialização de
biossimilares (Figura 4).
Inicialmente, entendemos que a elaboração de questionários
simples e facilmente aplicáveis, como o que foi proposto, pode
contribuir para o mapeamento do estágio atual de conhecimento
de reumatologistas e outros profissionais médicos sobre as
principais questões envolvidas nos processos de aprovação de
biossimilares para uso no tratamento de doenças autoimunes,
além de incentivar outras produções sobre essa temática em
outros países.
Um terço dos profissionais afirmou desconhecer o que
são biossimilares, o que nos pareceu aceitável, pois embora
já existam biossimilares no mercado brasileiro, especialmente
insulinas e eritropoetinas, o assunto é relativamente novo para
médicos reumatologistas.
A perda de patentes de biológicos usados para o tratamento
de doenças reumáticas no Brasil terá início ainda este ano. O
Sistema Único de Saúde (SUS) é o principal comprador dessas
moléculas, e os protocolos de Diretrizes Clínicas e Terapêuticas
do Ministério da Saúde incluem todos os agentes anti-TNF
para o tratamento de portadores de artrite reumatoide, artrite
psoriásica e espondilite anquilosante.
Boa parte dos entrevistados que afirmaram saber o que são
biossimilares respondeu que a imunogenicidade de tais moléculas é perfeitamente conhecida por ocasião de sua aprovação,
e, destes, somente um pequeno número elencou a questão
da imunogenicidade como um dos principais problemas relacionados à sua aprovação. Além disso, a maioria apontou
o baixo preço como inegável vantagem dos biossimilares.
De fato, diversos autores afirmam que produtos biológicos
similares possibilitam uma prescrição médica mais barata,
o que pode, por sua vez, resultar em redução nos custos de
saúde.2,3 Também argumentam que essas moléculas podem
oferecer à população maior acesso a terapias inovadoras não
670
convencionais, devido a seu baixo valor agregado e menor
custo em relação aos biofármacos inovadores. Contudo, é
preciso enfatizar que essa promessa pode cair por terra caso
não haja total transparência de todos os atores envolvidos no
processo de regulamentação e aprovação dessas terapias. Sabese que, tendo em vista a complexidade das biomoléculas e seu
intrincado processo de fabricação, a estrutura de biossimilares
não será idêntica à do biológico original, e, portanto, o perfil
de eficácia e segurança desses produtos deve ser amplamente
discutido entre os médicos prescritores. Além disso, os reumatologistas devem reconhecer que são imprescindíveis medidas
de farmacovigilância que garantam equivalência na segurança
dos biossimilares em relação ao original, a fim de proteger o
paciente, objeto de seus cuidados.
Os processos envolvidos na fabricação de medicamentos
biológicos deixam facilmente transparecer a complexidade
na produção dessas proteínas-alvo a partir de células vivas,
pois qualquer alteração na manufatura poderá acarretar, por
exemplo, quantidades errôneas de ácido-base e aparecimento
de variantes de glicosilação, causando mudanças conformacionais nas proteínas em questão, depreciando sua funcionalidade
final.4 O início ocorre pela clonagem do DNA por meio de um
vetor (plasmídeo, entre outros) e pela transferência desse DNA
clonado para uma célula que posteriormente expressará a proteína desejada. Depois dessa etapa básica ocorrerão a produção,
a purificação e a validação da proteína. Os anticorpos monoclonais e as proteínas de fusão são reconhecidos como biológicos
de terceira geração; a primeira geração é representada pelos
biológicos que eram cópias idênticas das proteínas produzidas
pelo organismo humano, ou seja, proteínas de reposição (p.
ex., insulina recombinante e fatores sanguíneos), e a segunda,
por biológicos desenvolvidos como proteínas modificadas ou
análogos (p. ex., zeta e alfa eritropoetinas).
Diferente dos medicamentos genéricos, os biossimilares
não podem entrar na mesma classificação – duas linhas celulares independentes usadas em sua produção não podem ser
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):662-671
CARTA AOS EDITORES
consideradas idênticas.5 Há diversos exemplos demonstrando
que pequenas alterações no processo de manufatura de biológicos podem levar a graves problemas para a saúde dos pacientes.6,7 Além disso, é notório que, apesar de estarem em franco
desenvolvimento, os métodos analíticos atualmente empregados
para verificação da similaridade entre moléculas de grande complexidade e peso molecular, como as dos anticorpos monoclonais
e de certas proteínas de fusão, ainda são bastante limitados.4
Apenas 4% dos entrevistados que responderam saber o que
são os biossimilares afirmaram também conhecer a RDC 135,
a principal norma regulamentadora para aprovação e comercialização de produtos biológicos, em vigor desde 2005.8 A
ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) estabeleceu
ainda, em 2010, uma consulta pública na qual todos os setores
da sociedade civil organizada puderam manifestar-se sobre o
tema. A revisão dessa resolução foi concluída, e a atualização
(RDC55/10) foi publicada no final do mesmo ano. É importante que os médicos prescritores conheçam pelo menos os
principais aspectos dessa resolução, que estabelece condições
para o registro desses produtos biológicos e a forma pela qual
sua comercialização será acompanhada no mercado nacional.
Poucos profissionais julgaram importante para a aprovação de
um biossimilar que a nomenclatura seja distinta daquela empregada para os seus modelos (biológicos inovadores). Entretanto,
esse tem sido motivo de acalorado debate na comunidade científica internacional, porque a nomenclatura internacional (INN –
International Nonproprietary Name) é utilizada apropriadamente
para moléculas pequenas e facilmente caracterizáveis, mas tem sua
validade bastante limitada para uso em moléculas mais complexas.
Além disso, diferenças bem-estabelecidas nessa nomenclatura poderão distinguir facilmente biossimilares de biológicos inovadores
para efeitos na permuta de prescrições e para o acompanhamento
de farmacovigilância.9–11
O fato de poucos profissionais terem citado como vantagem
adicional dos biossimilares a via de administração e/ou dosagem
diferentes demonstra claramente total desconhecimento sobre o
tema. A maioria das medicações sintéticas é ingerida oralmente,
enquanto quase todos os biológicos são injetados por via subcutânea ou endovenosa ou até mesmo inalados, já que, como proteínas,
eles também são muito sensíveis à degradação enzimática no
trato gastrintestinal.12 O conceito de um biossimilar inclui sua
utilização com dosagens nas mesmas quantidades às do produto
inovador nos testes de eficácia, bem como a administração pela
mesma via de introdução no organismo.
É notório que os médicos só podem tomar decisões sobre
prescrições de biossimilares se estiverem suficientemente informados a respeito das diferenças fundamentais entre essas
moléculas-cópias e as moléculas originais e inovadoras. Toda
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):662-671
e qualquer decisão não informada poderá afetar o tratamento
de seus pacientes. Ao considerarmos biossimilares como novos
medicamentos com estrutura diferente da dos biofármacos
inovadores, nos parece óbvio que se possam esperar resultados
terapêuticos e efeitos adversos diferentes.
De maneira geral, esta pesquisa demonstrou que há carência
de informações sobre o tema e que discussões sistemáticas
devem ser incentivadas no Brasil e em outros países, especialmente entre os reumatologistas, pois são prescritores de
moléculas biológicas de terceira geração. Embora não tenham
sido realizadas junto a especialistas de outras áreas em que
também há prescrição de biológicos, acreditamos que essas
discussões deveriam ser conduzidas, particularmente entre
dermatologistas, oncologistas, neurologistas, nefrologistas,
endocrinologistas e gastroenterologistas.
Valderilio Feijó Azevedo
Mestre em Reumatologia pela Universidade Federal do Paraná – UFPR;
Doutorando em Ciências da Saúde pela – PUC-PR;
Professor-Assistente de Reumatologia
Lúcio Ricardo Felippe
Acadêmico de Medicina da UFPR
Denise Magalhães Machado
Acadêmica de Medicina da UFPR
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671
CARTA AOS EDITORES
Colesterol e cloroquina
© 2011 Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados.
Aos Editores da Revista Brasileira de Reumatologia
O efeito das medicações da prática reumatológica no metabolismo de lipoproteínas, inclusive dos antimaláricos, é um
tema atual que merece interesse por parte dos pesquisadores.
Contempla esse tópico o trabalho de Rossoni et al.,1 publicado
na edição de julho-agosto de 2011 da Revista Brasileira de
Reumatologia, que avalia o efeito da cloroquina sobre o colesterol total e HDL de pacientes com lúpus eritematoso sistêmico
(LES) e, após ajuste de uso de estatina e corticosteroides por
análise multivariada, constata que esses níveis séricos são
semelhantes nos pacientes com e sem antimaláricos.
A avaliação completa do perfil lipídico, independentemente
da terapêutica utilizada, deve ser realmente uma rotina no
seguimento desses pacientes. Importante saber que menores
níveis séricos da HDL são detectados no LES, e estes são
inversamente relacionados com o processo inflamatório.2 De
fato, os níveis de lipoproteínas variam durante o curso da doença, como recentemente demonstrado no estudo prospectivo
do grupo de Toronto,3 que envolveu a avaliação de colesterol
de 1.260 pacientes com LES, em um total de 26.267 dosagens
ao longo de 9,3 ± 8,5 anos. A conclusão relevante desse estudo
é que quase dois terços daqueles pacientes (64,7%) apresentam aumento do colesterol total ao longo do tempo, e que a
variação dos seus níveis estava diretamente relacionada com
idade, atividade da doença e uso de corticosteroides, além da
utilização ou não de hipolipemiantes. O outro dado igualmente
importante desse grande estudo longitudinal foi identificar que
o uso de antimaláricos correlacionou-se negativamente aos
níveis de colesterol total (P < 0,0001).3
Além desse trabalho, revisão recente de literatura4 identificou outros sete estudos (de coorte e prospectivos) que concluem que a terapia com antimaláricos no LES determina uma
redução significativa dos níveis de lipídios, incluindo colesterol
total e LDL, quando comparada a outras sem essas medicações.
Dos sete estudos, três tinham como objetivo verificar o efeito
dos antimaláricos em pacientes com LES sob corticoterapia, e
também identificaram redução de LDL e colesterol total, além
de aumento dos níveis de HDL, quando comparados aos dos
pacientes em uso exclusivo de corticosteroides.4 Por outro lado,
Rev Bras Reumatol 2011;51(6):672-673
apenas dois outros estudos (chinês e iraniano) não detectaram
alterações significativas do perfil lipídico com o uso de cloroquina no LES,4 conforme informado no presente trabalho.3
O mecanismo do efeito dos antimaláricos sobre o metabolismo de lipoproteínas5 foi o objeto de estudo de um dos
trabalhos do nosso grupo sobre esse tema. A avaliação in vivo
do metabolismo de LDL em pacientes com LES, em uso ou não
de cloroquina, comparando com controles saudáveis, foi feita
com a utilização de uma nanoemulsão de LDE (LDL marcada
com radioisótopo). Essa metodologia permitiu identificar que
os antimaláricos realmente interferem na função do receptor de
LDL, aumentando a remoção plasmática dessa lipoproteína e
levando a uma redução dos níveis séricos e, consequentemente,
do colesterol total.5
De fato, estudos complementares que comprovem esse
mecanismo de ação sobre o metabolismo de lipoproteínas são
necessários para demonstrar mais esse efeito benéfico dos
antimaláricos no LES.
Eduardo Ferreira Borba
Professor-Associado da Disciplina de Reumatologia da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo – USP
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RBR 51(6) - Book.indb - Sociedade Brasileira de Reumatologia