Linguagens Bom senso Alfredo José MansurI Unidade Clínica de Ambulatório do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo O bordão “medicina é questão de bom senso” costuma ser invocado em várias circunstâncias para exprimir que o bom senso é necessário para a prática da medicina. Não há originalidade na proverbial declaração, pois é tácito que o bom senso é desejável para a atividade humana, particularmente aquelas que lidam com o bem-estar do próximo. Há, entretanto, o risco de, às vezes, aquilo que se quer significar como “bom senso” possa, além de necessário para a prática da medicina, em sutil deslize, ser também considerado suficiente. Ainda que saibamos que não seja assim, o incauto deslize pode eclipsar conteúdos subjacentes a processos complexos quando o comentário diz respeito à prática clínica. Reducionismo O conceito de bom senso aplicado à atividade clínica pode ser entendido como reducionismo dos amplos requisitos e demandas da prática médica: a) o ambiente no qual a prática se desenvolve; b) os recursos disponibilizados; c) o tempo disponível para cada paciente; d) os aspectos socioculturais de cada paciente; e) a competência clínica para ouvir e examinar pacientes, fazer diagnóstico, indicar a terapêutica; f ) a resolutividade; e g) a evolução dos pacientes no longo prazo. O bom senso é aplicado em geral para a etapa estritamente médica do sistema (exame clínico, diagnóstico, terapêutica) e, ainda assim, reduz o significado das competências complexas mobilizadas: a) conhecimento; b) competência e habilidade na aplicação do conhecimento; c) capacidade de lidar com informação às vezes insuficiente, mesmo que pesquisada de modo competente; d) imprecisões ou incertezas inerentes à biologia e à vida humana;1 e) estudo contínuo da evidência científica disponível; g) atenção às preferências de pacientes.2 Já foi salientado que pessoas sem treinamento científico tendem a supervalorizar etapas individuais dentro de uma cadeia de causalidade. A validação científica de uma hipótese ou a confirmação científica que faz uma hipótese ser aceita como verdadeira (seja um diagnóstico, seja a interpretação de um dado que resultou de uma pesquisa) tem de modo geral uma dependência I quase absoluta de uma cadeia de etapas observacionais, lógicas e de interpretação, frequentemente complexas, que se relacionam entre si. Esse conceito de que mesmo algumas sínteses aparentemente simplórias dependem de um pensamento complexo não é uma noção intuitiva geral.1 Comentários reducionistas podem incidir nesse tipo de inadequação no julgamento e esvaziar os valores e requisitos da atuação clínica. Banalização Tomemos a antiga lição escrita de um pensador nuclear de nossa cultura:3 “O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm”. O fato de o bom senso estar ao alcance de qualquer ser humano implica que treinar para a prática médica seja bem mais do que um treinamento para se ter bom senso. Caso contrário, o ensino, a formação e a prática clínica poderiam ter seu valor banalizado – se bom senso está em toda parte. O treinamento em medicina tem requisitos que o impedem de ser feito em toda (e qualquer) parte. Assim posto o bom senso, é interessante o exercício sobre a distinção entre bom senso e senso comum:4 “o senso comum é o modo de pensar do comum dos homens; coincide com a opinião pública, o chavão, o lugar-comum; é aquilo que se pensa, que se diz, que se ouve nas ruas e nos lugares públicos, enunciado de forma universal, anônima e irresponsável, isto é, sem autoria certa e pessoal”. O senso comum é proverbial. O mesmo autor prossegue “O senso comum não admite dúvida nem contestação; ele faz as cabeças com pressão irresistível e unanimidade compulsiva. Sua legitimidade é maciça, duradoura e inquebrantável como nenhuma outra, pois está lastreada na força das crenças e dos usos sociais que aparecem aos olhos do vulgo como constituindo a própria realidade”. O mesmo autor conclui que ambos os conceitos – bom senso e senso comum – estão interrelacionados e dialogam no âmbito social.4 Livre-docente em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Diretor da Unidade Clínica de Ambulatório do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Diagn Tratamento. 2010;15(4):181-2. 182 Bom senso Para efeito de finalização deste artigo, o bom senso é evidentemente necessário tanto à prática médica quanto a qualquer atividade humana, apesar de sua definição nem sempre ser fácil ou aparente à primeira vista. Entretanto, além do bom senso, praticar a medicina exige mais: circunstâncias apropriadas, competências, evidências, entre outras. É especialmente conveniente evitarmos o risco de contaminar o conceito de bom senso com o conceito de senso comum, que por vezes pode simplificar de modo impróprio fenômenos ou cadeias de causalidade que são complexas. INFORMAÇÕES REFERÊNCIAS 1. Berry CL. Relativism, regulation and the dangers of indifferent science: the Sir Roy Cameron lecture of the Royal College of Pathologists. Toxicology. 2010;267(1-3):7-13. 2. Balla JI, Heneghan C, Glasziou P, Thompson M, Balla ME. A model for reflection for good clinical practice. J Eval Clin Pract. 2009;15(6):964-9. 3. Descartes R. Discurso do método. In: Descartes R. Os pensadores. 2a ed. São Paulo: Abril Cultural; 1979. p. 25-71. 4. Kujawski GM. O elmo de Mambrino. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda; 1999. Data de entrada: 25 de agosto de 2010 Data da última modificação: 30 de setembro de 2010 Data de aceitação: 5 de outubro de 2010 Endereço para correspondência: Unidade Clínica de Ambulatório do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44 São Paulo (SP) CEP 05403-000 Tel. InCor (11) 3069-5237 Consultório: (11) 3289-7020/3289-6889 E-mail: [email protected] Fontes de fomento: nenhuma Conflito de interesse: nenhum Diagn Tratamento. 2010;15(4):181-2.