0 Pró-Reitoria de Graduação Curso de Direito Trabalho de Conclusão de Curso O RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA NO DIREITO SUCESSÓRIO Autor: Juliana Iara da Silva Orientador: Clarissa Teixeira Karnikowski Brasília - DF 2012 JULIANA IARA DA SILVA O RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA NO DIREITO SUCESSÓRIO Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Direito. Orientador: Karnikowski. Brasília 2012 Clarissa Teixeira Monografia RECONHECIMENTO de autoria DA de UNIÃO Juliana Iara da Silva, HOMOAFETIVA NOS intitulado “O DIREITOS SUCESSÓRIOS”, apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito da Universidade Católica de Brasília, em (data da aprovação), defendido e aprovado pela banca examinadora abaixo assinada: _____________________________________________ Prof. Clarissa Teixeira Karnikowski Orientador Direito – UCB ____________________________________________ Examinador 1 ____________________________________________ Examinador 2 Brasília 2012 Este trabalho é dedicado aos meus pais, Cássio e Cinthia, que sempre me acompanharam, me apoiaram e incentivaram a buscar o meu sucesso. Parte dele está aqui, por isso dedico essa obra a eles que nunca desistiram, e são os responsáveis pela pessoa que sou hoje. AGRADECIMENTO Agradeço a Deus, que torna tudo possível. Aos meus pais, que sempre estiveram presentes; e proporcionaram a realização de toda minha jornada acadêmica e desse trabalho. Agradeço o esforço, dedicação e confiança. Todo o meu caráter, competência e alegria, devo a eles. Aos meus irmãos, que me ajudaram às suas maneiras, em seus papéis de caçulas. Aos meus avós, pelo incentivo e exemplos de pessoas batalhadoras. Ao meu namorado Matheus, pelo apoio incondicional, companheirismo, compreensão, paciência e carinho. Aos amigos que estiveram presentes, principalmente ao Kadmo e a Caroline que acompanharam de perto todos os momentos. A minha orientadora, professora Clarissa, pelo apoio e ajuda; sem ela não teria chegado ao fim. Aos meus professores, por todo o conhecimento transmitido, e pela chance de me tornar um ser humano melhor a cada aprendizado. RESUMO Referência: SILVA, Juliana Iara da. O reconhecimento da união homoafetiva no direito sucessório. 2012. 75 folhas. Trabalho de Conclusão de Curso (Direito) – Universidade Católica de Brasília, Taguatinga, DF, 2012. O objetivo desse trabalho é demonstrar que as uniões homoafetivas têm os mesmos direitos das uniões estáveis entre homem e mulher. Devem ser garantidos aos homossexuais todos direitos fundamentais, patrimoniais e sucessórios. Após o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal, deve ser aplicada a analogia aos casais homoafetivos no reconhecimento de seus direitos, haja vista que as lacunas na lei ainda persistem. Palavras-chave: Concubinato. União estável. União homoafetiva. Princípios constitucionais. Analogia. ABSTRACT The aim of this work is demonstrating that the homoaffective unions have the same rights as the stable unions between a man and a woman. All the fundamental rights, patrimonials and inheritance should be ensured to the homosexuals. After recognition by the Supreme Court, should be applied the analogy to the homoaffective couples in the recognitions of their rights, considering that the gaps on the law still persist. Keywords: Concubinage. Stable union. Homoaffective Unions. Constitutional principles. Analogy. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8 1 UNIÃO ESTÁVEL ................................................................................................... 10 1.1 NOTÍCIA HISTÓRICA ......................................................................................... 10 1.2 REQUISITOS E CARACTERÍSTICAS ................................................................ 14 1.3 DIREITOS E DEVERES ...................................................................................... 17 1.4 CONTRATO DE CONVIVÊNCIA ......................................................................... 18 1.5 CONVERSÃO EM CASAMENTO ....................................................................... 21 2 DIREITO SUCESSÓRIO NA UNIÃO ESTÁVEL..................................................... 23 2.1 EVOLUÇÃO ........................................................................................................ 23 2.2 PRIMEIRA REGULAMENTAÇÃO: LEI 8.971/1994 ............................................. 25 2.3 A SEGUNDA LEI ESPECÍFICA: 9.278/1996 ....................................................... 28 2.4 À LUZ DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 ................................................................... 31 3 A UNIÃO HOMOAFETIVA...................................................................................... 35 3.1 CARACTERÍSTICAS ........................................................................................... 35 3.2 ENTENDIMENTO CONSTITUCIONAL ............................................................... 37 3.3 A FALTA DE LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA .......................................................... 39 3.4 DIREITO COMPARADO ..................................................................................... 43 3.5 DIREITO SUCESSÓRIO NO DIREITO COMPARADO ....................................... 45 3.6 RECONHECIMENTO DO STF ATRAVÉS DO JULGAMENTO DA ADI 4277 E ADPF 132 .................................................................................................................. 48 3.7 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS VIOLADOS .................................................. 53 3.7.1 Princípio da Igualdade e da proibição à discriminação .................................... 54 3.7.2 Princípio da dignidade da pessoa humana....................................................... 57 3.7.3 Princípio do direito à liberdade ......................................................................... 59 3.7.4 Princípio da proteção à segurança jurídica ...................................................... 60 3.8 ENTENDIMENTOS ATUAIS ............................................................................... 61 3.9 O DIREITO SUCESSÓRIO NA UNIÃO HOMOAFETIVA .................................... 65 CONCLUSÃO............................................................................................................ 71 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 74 8 INTRODUÇÃO O presente trabalho quer demonstrar o tratamento, no que tange aos direitos sucessórios, aplicado aos casais homossexuais, após o reconhecimento destas uniões como entidade familiar pelo Supremo Tribunal Federal, em 2011. Tem como objetivo apresentar a evolução da aplicabilidade da analogia entre a união estável heterossexual e as uniões homossexuais (denominadas homoafetiva por Maria Berenice Dias) no que se refere aos direitos a sucessão. Especificamente, objetiva discorrer acerca do comportamento legislativo e jurisprudencial após o reconhecimento como entidade familiar pelo Supremo Tribunal Federal, em 2011, que se deu através do julgamento da ADI 4277 e ADPF 132.1 Demonstra como era o tratamento e garantia dos direitos destas uniões antes do referido julgamento, desde antes da normatização do Código Civil de 1916. A evolução da união entre pessoas do mesmo sexo ao longo do crescimento da sociedade, e a gradual aceitação por parte desta, assim como a jurisprudência quanto ao tema. Entretanto, o tema em questão continua polêmico em diversos aspectos na sociedade atual. A união homoafetiva sempre foi de conhecimento de todos, e deste mesmo modo alvo de discriminação e exclusão, de forma que os homossexuais vivessem a margem da sociedade. Daí infere-se a problemática, a existência da união homoafetiva em si e a omissão tanto legislativa quanto social perante esta. O fato de se tratar de uma união entre duas pessoas do mesmo sexo não a exime de merecimento de respeito e direitos fundamentais, como o patrimonial e sucessório. Isto posto, no decorrer do texto, a intenção é demonstrar a igualdade de direitos entre uma união estável heterossexual e outra união homoafetiva, desde que ambas cumpram os requisitos caracterizadores de uma união estável. Principalmente, após a palavra final da Corte Maior do país. 1 Relator vota pela equiparação da união homoafetiva estável à entidade familiar. 04 maio 2011. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178787. Acesso em: 30 out 2012. 9 Nesse mesmo entendimento, demonstrar a evolução dos juízes de direito, que anteriormente tinham a posição de que uma união homoafetiva não era digna de ser processada em uma Vara de Família, baseado tão somente na omissão legislativa. Toda essa linha traçada tem a contribuição de julgados de diversos Tribunais de Justiça do país, assim como os ensinamentos de ilustres doutrinadores e suas expressivas opiniões acerca do tema. O capítulo primeiro, portanto, retrata a união estável entre heterossexuais, desde o surgimento do concubinato à união estável atual, perpassando pelo Código Civil de 1916 até o presente Código. O segundo capítulo, por sua vez, demonstra os direitos sucessórios garantidos a uma união estável heterossexual, com base nas normas relacionadas (Código Civil de 1916, Lei nº 8.971/94 e Lei nº 9.278/96). Tendo isto, traça uma linha diferencial entre os direitos garantidos pelo Código no que tange aos companheiros e cônjuges. Dispõe, ainda, acerca das duas, já mencionadas leis específicas; e a discussão doutrinária e jurisprudencial quanto a sua revogação ou não com o advento do Novo Código Civil. Por fim, o terceiro e último capítulo trata da união homoafetiva em si e todos seus aspectos. Traça um panorama geral sobre sua “história”, dispõe acerca da falta de legislação específica e a omissão do legislador, explanando acerca do Projeto de Lei nº 1.151/95, proposto pela Deputada Marta Suplicy. Tendo como base essa falta de legislação específica tem-se caracterizado o cerceamento dos direitos pertinentes aos homoafetivos. Este capítulo levanta a discussão da necessidade de uma lei específica que garanta o direito à dignidade da pessoa humana, ao da igualdade, os direitos ao patrimônio e hereditários aos companheiros, ao passo que demonstra um comparativo com alguns países estrangeiros, que já possuem o reconhecimento dos homoafetivos e já colocam em prática seus direitos aplicáveis, desde que cumpridos todos os requisitos. 10 1 UNIÃO ESTÁVEL 1.1 NOTÍCIA HISTÓRICA A união estável, apesar de sua difícil evolução no Brasil, já existia na Roma Antiga. Havia quatro formas de uniões diferentes, quais sejam, o casamento tradicional, o casamento entre peregrinos, a união de fato entre escravos e a união livre2. As duas últimas não eram consideradas casamento. A união livre era a denominada, hoje, união estável; e era constituída de duas pessoas (homem e mulher) solteiras que viviam como casados, não sendo considerada com atentatório a moral. Essa união, todavia, não possuía efeitos jurídicos por não ser reconhecida como um instituto jurídico. Com o advento do período clássico e do Imperador Augusto, originou-se também a legislação matrimonial, a qual estabeleceu impedimentos ao casamento com pessoas de classe inferior. Dessa forma, o número de registro de uniões livres aumentou entre pessoas de classes “superiores” e, ao longo do tempo, os direitos civis dessas uniões passaram a ser garantidos, como o direito a sucessão e à hereditariedade dos filhos. Todavia, no ano de 326 d.C., na era do Imperador Constantino, foram determinadas várias sanções que desestimulavam a união livre ou concubinato, de forma que as concubinas e seus filhos foram prejudicados, principalmente pela proibição de doação àquela. Restou assim o cerceamento dos direitos dos concubinos, até a ascensão do Imperador Justiniano, que ampliou consideravelmente os direitos dos concubinos. Permitiu que a concubina integrasse limitadamente a sucessão do companheiro e determinou requisitos para que a união se tornasse legítima, tornando-a idêntica ao casamento. 2 FERRIANI, Luciana de Paula Assis. Sucessão do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 17. 11 Assim manteve-se até o surgimento do Cristianismo que, por sua vez, não considerava a união livre legítima, haja vista que tão somente o matrimônio tinha status de união abençoada. Dessa forma, a aceitação da união estável tem um histórico difícil, por parte da sociedade e pelo legislador. Este sempre teve a intenção de proteger a família através do casamento, os sagrados laços do matrimônio3. Devido a isso, não previa e/ou protegia as relações extramatrimoniais. Todo esse entendimento é fruto da influência do Direito Canônico, que sempre defendeu o matrimônio como forma legítima de união entre homem e mulher. A Igreja repudiava o concubinato, de forma que a sociedade passou a considerá-la como “errada”. Tais relações extramatrimoniais surgiram com a seguinte classificação, puro ou impuro, estas relações não eram aceitas pela sociedade, haja vista que consistia em adulterinas e/ou incestuosas; aquelas, entretanto, baseavam-se na relação entre duas pessoas solteiras que não oficializaram sua união pelo casamento. Essa distinção entre os tipos de concubinatos não era clara, muitas vezes nem conhecida, de forma que o concubinato em si era considerado uma relação desonrosa e proibida. A expressão concubinato, que em linguagem corrente é sinônima de união livre, à margem da lei e da moral, tem no campo jurídico mais amplo conteúdo. Para os efeitos legais, não apenas são concubinos os que mantêm vida marital sem serem casados, senão também os que contraíram 4 matrimônio não reconhecido legalmente. Desta forma o legislador, mesmo que indiretamente, restou por punir o concubinato, com a intenção de garantir a proteção da família. Segundo Maria Berenice Dias, a vedação de doações, instituição de seguros, favorecimento por testamento em prol da concubina, assim como a impossibilidade do divórcio (em 1977, a única possibilidade de separação era o desquite, que não dissolvia o matrimônio, e nem permitia um novo casamento) são exemplos de punição aos concubinos. 3 4 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev., atual.e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 163. BITTENCOURT, Edgard Moura. O concubinato no direito. v.1, apud Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil, volume 6: direito de família. 7 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 579. 12 Quanto à legislação, não havia nada que assegurasse os direitos dos concubinos, sejam puros ou impuros; exceto em alguns casos, quando o casal se separava, e a mulher não possuía outra fonte de renda, os julgados passaram a conceder “alimentos”, ou seja, era estabelecida uma espécie de indenização pelos serviços domésticos. O Código Civil de 1916, no que tange aos direitos dos concubinos, não previu nem proibiu a união estável. Luciana de Paula Assis Ferriani (2010) preceitua: O Código Civil de 1916 não regulamentou, tampouco proibiu a união estável. Entretanto, mencionou a concubina de homem casado [...], impondo-lhe diversas restrições, como anulação do ato de doação de bens a ela e também o direito de a esposa reivindicar os bens comuns a ela doados. Ou seja, repetiu as regras anteriores. Dessa forma, não previu qualquer direito sucessório entre companheiros, mas proibiu o testador casado de nomear a concubina sua 5 herdeira ou legatária. Com o evoluir da sociedade, a legislação, quanto às uniões que não fossem o casamento, pouco evoluiu. Segundo Maria Berenice Dias, o legislador sempre manteve certa resistência em tornar tais uniões efetivamente protegidas pela lei. O Código Civil incluiu a união estável no último capitulo do livro do direito das famílias (...). A justificativa do legislador é que o instituto só foi reconhecido pela Constituição quando o Código já estava em elaboração. Porém, inserir a união estável tão distanciadamente do capítulo do casamento revela resistência para reconhecê-las como entidades familiares de igual status. Apesar do desdém do legislador, inexiste hierarquia entre os 6 dois institutos. Quando da Assembleia Constituinte da Constituição Federal de 1988 – CF/88 –, a justiça passou a reconhecer essas uniões como sociedades de fato, como bem demonstra Álvaro Villaça Azevedo: “Houve por bem, o legislador substituir a palavra concubinato pela expressão união estável, [...], respeitando seus direitos e sua sociedade de fado, que sempre existiu”.7 Com a promulgação da CF, foi introduzido o termo “entidade familiar”, assegurando o direito à proteção das famílias, incluindo a união estável. 5 FERRIANI, Luciana de Paula Assis. Sucessão do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 23. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev., atual.e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 166/167. 7 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato: de acordo com o atual Código Civil, Lei nº10.406, de 10-01-2002. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 240. 6 13 No intuito de gerir a “divisão de bens” quando da separação do casal, ou seja, o litígio era levado á Vara Cível, e os companheiros tratados como sócios a fim de comprovar a real participação de cada um na construção do patrimônio. Para ensejar a divisão dos bens adquiridos na constância da união, havia necessidade da prova da efetiva contribuição financeira de cada consorte para a constituição do patrimônio. Ou seja, os companheiros eram considerados sócios, procedendo-se à divisão de “lucros”, a fim de evitar que o acervo adquirido durante a vigência da “sociedade” ficasse 8 somente com um dos “sócios”, em detrimento, normalmente, da mulher. Apesar de previsão constitucional os processos que tratavam de união estável continuaram a tramitar na Vara Cível, embasadas pelo direito das obrigações. A especial proteção constitucional conferida à união estável de nada ou de muito pouco serviu, pois restou sem reflexos na jurisprudência. Apesar de a doutrina ter visto o surgimento de novo sistema jurídico de aplicação imediata, não sendo mais possível falar em sociedade de fato, o mesmo não aconteceu com os tribunais. A relação concubinária, com a denominação legal de união estável, permaneceu sendo tratado no âmbito dos direitos das obrigações. (...). As demandas permaneceram nas varas 9 cíveis, não sendo redistribuídas às varas de família. (grifo nosso). No mesmo período, veio a doutrina esclarecer que a união estável, isto é, o concubinato puro, não incestuoso, não adulterino, sempre encontrou esse apoio institucional, na antiga figura do casamento de fato10, no qual os conviventes sentem-se casados desde o início da convivência, sem quaisquer formalidades e celebrações, tornando-se assim casados de fato. Em seguida, as leis 8.971/94 e 9.278/96 asseguravam, especificamente, os direitos do instituto da união estável. A lei 8.971/94, inicialmente foi considerada como inconstitucional; entretanto a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, pelo Parecer nº 228, de 199211, reconheceu-a como norma “constitucional e jurídica.” Garantiu o direito aos alimentos e à sucessão do (a) companheiro (a). 8 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev., atual.e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 164. 9 Ibid., mesma página. 10 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato: de acordo com o atual Código Civil, Lei nº10.406, de 10-01-2002. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p.241. 11 BRASIL. Senado Federal. Parecer n. 228, de 24 de junho de 1992. In: AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato: de acordo com o atual Código Civil, Lei nº10.406, de 10-01-2002. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p.501. 14 A segunda, lei 9.278/96, trouxe um novo conceito de união estável, qual seja aquela que tenha intuito de formar um lar e convivência duradoura (excluindo o concubinato impuro); assim como reconheceu a união estável (entre homens e mulheres) como entidade familiar. Entre outras regulamentações, a referida lei estabeleceu alguns direitos e deveres aos companheiros; normas quanto a aquisição e assistência material, e estabeleceu a competência para dirimir conflitos advindos de tais relações as varas de família. A segunda revogou a primeira parcialmente, pois as duas conflitam somente no que tange aos alimentos. Atualmente, união estável é garantida na CF em seu artigo 226, §3º 12, o qual reconhece a união estável entre homem e mulher, devendo o Estado facilitar sua conversão em casamento. No Código Civil, a união estável é reconhecida como entidade familiar, e está regulamentada do artigo 1723 ao 1727. Álvaro Villaça Azevedo (2011) conclui: “Em verdade, repita-se, a união estável de hoje nada mais é do que o aludido antigo casamento de fato ou presumido”.13 1.2 REQUISITOS E CARACTERÍSTICAS Diferente do casamento, a união estável não tem a obrigação de cumprir todos os procedimentos solenes, bastando apenas que haja o fato de vida em comum. A configuração da união estável, em suma, tem respaldo no artigo 1.723, do Código Civil, que estabelece: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.” 14 12 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Artigo 226, § 3º, texto original: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.” 13 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato: de acordo com o atual Código Civil, Lei nº10.406, de 10-01-2002. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 241. 14 BRASIL. Novo Código Civil. Artigo 1.723. Senado Federal, Brasília, DF, 2002. 15 O texto da lei traz resumidamente todos os requisitos de união estável, todavia não estabelece tempo de duração da relação, o que gera dúvidas e divergências entre doutrinadores e aplicadores do direito. Muitos autores, como José Roberto Gonçalves, defendem que a determinação do tempo para configuração da união estável deve ficar a cargo da jurisprudência, já que o legislador se omitiu. Luciana de Paula Assis Ferriani opina, neste mesmo sentido, “[...], não havendo a exigência de prazo, na hipótese de dúvida o juiz decidirá conforme as circunstâncias de cada caso, uma vez que relações passageiras não podem ser consideradas como união estável”15. A doutrina classifica os pressupostos da união estável em objetivos e subjetivos. Os pressupostos de ordem subjetiva consistem na convivência more uxório, ânimo de constituir família; e os pressupostos de ordem objetiva, a diversidade dos sexos, notoriedade, estabilidade ou duração prolongada, continuidade, inexistência de impedimentos matrimoniais e relação monogâmica. Vale ressaltar, ainda, que a coabitação não é requisito essencial para a configuração da união estável, apesar de a jurisprudência ser resistente em reconhecer uniões nas quais os companheiros não vivem sob o mesmo teto. Em contrapartida a doutrina defende que uma das características da união estável é a ausência de formalismo para sua constituição.16 Ocorre que, é possível que seja reconhecida a união estável a casais que não vivem sob o mesmo teto, como afirma Carlos Roberto Gonçalves: Pode acontecer, todavia, que os companheiros, excepcionalmente, não convivam sob o mesmo teto por motivo justificável (...). Nesse caso, desde que, apesar do distanciamento físico, haja entre eles o affectio societatis, efetiva convivência, representada por encontros frequentes, mútua assistência e vida social, não há como se negar a 17 existência da entidade familiar. 15 FERRIANI, Luciana de Paula Assis. Sucessão do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 37. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil, volume 6: direito de família. 7.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 587. 17 GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 590. 16 16 O Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 38218, de modo a apoiar o entendimento citado acima. Entretanto, muitos defendem ser difícil que um casal que more em casas separadas tenha animus de constituir uma família. Em muitos julgados, o entendimento desta Súmula foi afastado por entenderse que tal súmula foi editada há 40 anos, destinando-se tão somente aos concubinos não abrangendo a união estável. Nesse entendimento, segue o voto do Des. Luiz Felipe Brasil Santos, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, não favorável ao reconhecimento da união estável em que companheiros não tenham moradia em comum: Para caracterizar uniões estáveis não basta que as relações sejam públicas, contínuas e duradouras. É fundamental - e aqui repousa a distinção entre os namoros com maior intimidade e prolongada duração - a presença do objetivo de constituição de família. Na feliz concepção de Ortega y Gasset, o indivíduo compõe-se por suas circunstâncias existenciais. Ninguém é uma ilha fora do tempo, do espaço e das relações interpessoais. Assim, se duas pessoas não assumem integralmente as circunstâncias de vida uma da outra não se caracteriza a entidade familiar denominada união estável. Morando cada um, ao longo de vários anos, em residências separadas, sem que haja justificativa razoável para tanto, descaracteriza-se o intuito de formar família, que se faz presente na convivência diária, no partilhar dos bons e maus momentos, na 19 solidariedade cotidiana . Pode ocorrer, porém, muitos casais que vivam em casas separadas por diversos motivos e que assumam seus papéis dentro de uma relação estável, como demonstra Carlos Roberto Gonçalves: Efetivamente, acarreta insegurança ao meio social atribuir a uma relação entre duas pessoas que vivam sob tetos diferentes, sem justificativa plausível para esse procedimento, a natureza de união estável, com todos os direitos que esta proporciona. Mas, por outro lado, não se pode ignorar o comportamento de muitos casais, que assumem ostensivamente a posição de cônjuges, de companheiro e companheira, mas em casas separadas. Nem por isso se pode afirmar que não estão casados ou não vivem em 20 união estável. 18 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n. 382: “A vida em comum sob o mesmo teto, ‘more uxorio’, não é indispensável à caracterização do concubinato”. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=382.NUME.%20NAO%20S.F LSV.&base=baseSumulas> Acesso em: 27 set 2012. 19 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70007711815, da 7ª Câmara Cível. Relator Des. Luiz Felipe Brasil Santos. Data do julgamento: 19-05-2004. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/consulta_processo.php?nome_comarca=Tribunal+de+Just i%E7a&versao=&versao_fonetica=1&tipo=1&id_comarca=700&num_processo_mask=70007711815 &num_processo=70007711815&codEmenta=845057> Acesso em 07 out. 2012. 20 GONÇAVES, Carlos Roberto. Direito Civil, volume 6: direito de família. 7.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. p.590. 17 Nesse mesmo entendimento, segue o Superior Tribunal de Justiça – STJ –, afirmando que a coabitação não está expressa na lei específica, de modo que não pode ser afastada, de plano, a existência do instituto da união estável para casais que vivam separadamente por qualquer motivo. 1.3 DIREITOS E DEVERES Quando se fala de direitos e deveres em uma união estável, logo se remete aos direitos e deveres do casamento. Todavia, inexiste relação entre ambos, apesar dos institutos apresentarem similaridade em alguns aspectos. Em comum, no que tange a obrigações, entre a união estável e o casamento somente os deveres de guarda, sustento e educação dos filhos. O artigo 1724 do CC enumera tão somente os deveres dos companheiros, quais sejam: “As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência e de guarda, sustento e educação dos filhos".21 Os deveres de lealdade, respeito e assistência são recíprocos entre os companheiros. Consistem, em suma, nos deveres de companheirismo, ou seja, o respeito à individualidade do companheiro e à assistência em todos os âmbitos. Já os deveres a guarda, sustento e educação dos filhos são semelhantes aos dos cônjuges, no casamento, e seguem as mesmas regras. Tem-se, como direitos fundamentais presentes na união estável, o direito a alimentos, a meação e a herança. Quanto aos alimentos, estes são regidos, por analogia, pela mesma norma nos casos de casamento, isto é, em casos de separação, o companheiro pode receber ou pagar alimentos, provisórios ou não, ao outro ou aos filhos, se houver. No caso dos alimentos provisórios é necessário que haja prova préconstituída do parentesco, casamento ou companheirismo, devendo-se observar a importância do contrato de convivência, já que é possível a produção de provas por todos os meios admitidos. 21 BRASIL. Novo Código Civil. Artigo 1.724. Senado Federal, Brasília, DF, 2002. 18 Em caso de não haver contrato escrito, aplicar-se-á à união estável o regime de comunhão parcial de bens. No que tange a herança na união estável, tal assunto será especificamente abordado em capítulo posterior. 1.4 CONTRATO DE CONVIVÊNCIA A qualquer tempo, seja antes, durante ou depois da união, podem os companheiros pactuar um contrato de convivência, com o intuito de regular todas as questões no que se refere a união, seja de ordem patrimonial e/ou imobiliária. Os companheiros tem total liberdade de estipular disposições, podendo também conferir efeito retroativo a essas disposições. Basta, entretanto, que haja a expressa manifestação volitiva de ambos. O contrato de convivência consiste em um documento que tem como objetivo regulamentar todos os reflexos advindos da relação de união estável, principalmente no que tange ao regime de bens. Geralmente, o referido contrato é firmado para estabelecer o regime de bens que está por reger a união, muitas vezes para excluir o regime da comunhão parcial e estabelecer novas regras. Ressalta-se, entretanto, que em casos omissos no contrato, será aplicado o regime da comunhão parcial de bens. No tocante ao conteúdo do contrato de convivência, está ele circunscrito os limites das disposições patrimoniais sobre os bens havidos pelos companheiros ou por serem adquiridos durante o tempo de vida em comum, bem como, eventualmente, à administração desses bens. A convenção não pode abranger os bens anteriores ao inicio da convivência, uma vez que o mero contrato escrito não equivale ao pacto antenupcial da comunhão geral de bens de pessoas casadas. Somente mediante escritura pública de doação, em se tratando de bens imóveis ou de bens móveis de 22 grande valor, poderá haver a comunhão nesses bens. 22 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro. Direito de família. v.6. 7.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. p.615. 19 Tem semelhanças com o pacto antenupcial, no que se refere a proibição de adição de cláusula que seja contra disposição absoluta de lei, tornando, assim, o contrato nulo. O contrato não constitui a união em si, pois para que seja caracterizada a união estável são necessários que estejam presentes os requisitos do artigo 1723, do CC. Tal contrato é um mero indício de existência da união, de forma que a união pode ser contestada judicialmente. O voto do Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, demonstra que a existência do contrato de convivência, em forma de escritura pública, não é prova inquestionável da existência de união estável, Se restou comprovado através dos depoimentos prestados pelo Tabelião titular e por seu substituto que a escritura pública de declaração de união estável impugnada foi assinada pelo de cujus e que expressou a sua vontade naquele momento, então não merece qualquer reparo a sentença que reconheceu a sua autenticidade, sendo que a sentença produz efeitos apenas nos estreitos limites do incidente de falsidade. 3. O fato de não ser reconhecida a falsidade documental não implica reconhecer a veracidade do que foi declarado, pois se tratava de pessoa idosa e debilitada, sendo que a união estável é fato e deve ser comprovado por todos os meios de prova, não sendo suficiente a mera declaração, ainda que constante em 23 escritura pública. O contrato de convivência, conforme o artigo 1.725 do CC/02,24 deve respeitar o requisito essencial, qual seja deve ser apresentado na forma escrita, já que é um negócio jurídico. Pode ser formalizado através de escritura pública ou particular, podendo ou não ser registrado em cartório de registro civil. “Em sentindo contrário, no que tange ao registro do contrato de união estável no Cartório de Registro de Imóveis, entendemos que há total impossibilidade para tanto, por falta de previsão legal e, sendo instituto autônomo em relação ao casamento, com características próprias, 23 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n.70049376825, da 7ª Câmara Cível. Relator Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Data de julgamento: 29-08-2012. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/consulta_processo.php?nome_comarca=Tribunal+de+Just i%E7a&versao=&versao_fonetica=1&tipo=1&id_comarca=700&num_processo_mask=70049376825 &num_processo=70049376825&codEmenta=4878266 > Acesso em: 07 out. 2012. 24 BRASIL. Novo Código Civil. Artigo 1.725, texto original: “Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”. Brasília, DF, Senado Federal, 2002. 20 não há que se valer o interprete da aplicação analógica dos arts. 167, I, e 178, V, 244, da Lei de Registros Públicos, que se referem ao casamento, à união estável”.25 Contudo, Maria Berenice Dias versa sobre a importância da publicidade de tal contrato, principalmente em relação a terceiros. Mas a necessidade do registro é evidente para resguardar direitos de terceiros. Determinado o registro do pacto antenupcial, cuja averbação se dá no Registro de Imóveis, não é necessário grande esforço para reconhecer que o contrato de convivência, que traz disposições sobre bens imóveis, também deve ser averbado, para gerar efeitos publicísticos. De qualquer modo, cabe averbá-lo, pois se trata de circunstância que, de qualquer modo, tem influência no registro ou nas pessoas nele interessadas. É preciso preservar a fé pública de que gozam os registros imobiliários, bem como a boa-fé dos terceiros que precisam saber da 26 existência dessa união. (grifo do autor) Uma característica importante é a possibilidade de retroatividade do contrato, exceto quanto aos bens particulares adquiridos antes da união, assim como os negócios realizados com terceiros. Devido a sua informalidade, o contrato pode ser modificado a qualquer tempo, assim como ser revogado, seja durante a união ou após o seu término, desde que esteja expressa a vontade dos companheiros. Considerando ainda essa informalidade, tem-se que tal contrato não necessita de qualquer distrato, haja vista que a união estável é uma união de fato,27 de maneira que seu termino também se dá por fato, isto é, o mero rompimento da convivência. 25 IVANOV, Simone Orodeschi. União estável: regime patrimonial e direito intertemporal. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2007. p.82. 26 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7.ed. rev., atual.e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 181. 27 IVANOV, Simone Orodeschi. União estável: regime patrimonial e direito intertemporal. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2007. p.83. 21 1.5 CONVERSÃO EM CASAMENTO A conversão da união estável para o casamento já estava prevista no art. 8º, da Lei 9.278/9628, o texto deste artigo aduz que o pedido devia ser feito diretamente ao Oficial do Registro Civil. Com o advento do Código Civil, em 2002, a conversão passou a ser regulamentada pelo artigo 1.726, que alterou seu procedimento. O artigo 1726, do CC29, dita que para a realização da conversão para o casamento, os companheiros deverão enviar um pedido ao juiz para, posteriormente, realizar o registro civil. Ao ditar tal artigo, o legislador teve a intenção de facilitar esta conversão. Todavia, parte doutrina, representada, principalmente, por Maria Berenice Dias e Carlos Roberto Gonçalves, concorda que o dispositivo legal não cumpre seu objetivo, isto é, facilitar a conversão da união estável em casamento. Exigir interferência judicial não é facilitar, é burocratizar, é onerar. Deixa a lei de atender à determinação constitucional ao determinar que o pedido seja dirigido ao juiz, para ser posteriormente levado ao registro 30 civil. Segundo os respectivos doutrinadores, realizar, tão somente, o assento no registro civil, de modo que não fosse preciso recorrer ao judiciário, seria realmente “facilitar” a conversão. A burocracia para tal medida é tamanha que tais juristas aconselham ao casal a buscar outros meios para realizar a conversão, tais como realizar o casamento direto, sem ter que recorrer a justiça para tal. Todavia, contrariando esta parte da doutrina, há os que defendem a razoabilidade imposta no referido artigo, ou seja, o legislador foi bastante cauteloso. 28 BRASIL. Lei 9.278, de 10 de maio de 1996. Regula o § 3° do art. 226 da Constituição Federal. Art. 8º, texto original: “Os conviventes poderão, de comum acordo e a qualquer tempo, requerer a conversão da união estável em casamento, por requerimento ao Oficial do Registro Civil da Circunscrição do seu domicílio”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9278.htm> Acesso em: 17 set 2012. 29 BRASIL. Novo Código Civil. Artigo 1.725, texto original: “Art. 1.726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil”. Brasília, DF, Senado Federal, 2002. 30 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7.ed. rev., atual.e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p.184. 22 Muitos consideram que, recorrer à Justiça para realizar a conversão da união estável em casamento garante a segurança jurídica deste instituto. É que, custa-nos aceitar que, deliberadamente, possa algum Juiz de Direito criar qualquer dificuldade ou embaraço injustificado ao pedido de conversão da união estável em casamento. Ao contrário, certamente zelará o magistrado pela segurança jurídica do procedimento de conversão, o que, presume-se, seja de interesse dos conviventes. Não ignoramos, entretanto, que haja certa demora – justificada – do Poder Judiciário em julgar as questões que lhe são submetidas à apreciação, mas isso jamais poderá ser entendido como "embaraço" à concessão da conversão, nem mesmo fator 31 "dificultador" da aplicação do comando constitucional Apesar desta divergência doutrinária, o procedimento em nada tem sido alterado. De forma que, esta discussão sirva somente para reflexão e, a depender do legislador mudanças futuras. Quanto à competência, tal matéria também passou por grande período de divergências; atualmente, porém, é matéria pacificada na Lei 9.278/96, em seu artigo 9º, que versa: “toda a matéria relativa a união estável é de competência do juízo da Vara de Família, assegurado o segredo de justiça”.32 31 PEREIRA, Tarlei Lemos. Análise acerca dos efeitos da conversão da união estável em casamento. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2927, 7 jul. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/19488>. Acesso em: 2 out. 2012. 32 BRASIL. Lei n. 9.278, de 10 de maio de 1996. Regula o §3º da Constituição Federal. Artigo 9º. Brasília, DF, Senado Federal, 1996. 23 2 DIREITO SUCESSÓRIO NA UNIÃO ESTÁVEL 2.1 EVOLUÇÃO O Código Civil de 1916 – CC/16 – não previa qualquer direito e/ou proteção à união de duas pessoas que não fossem casadas, ou seja, que constituíssem união estável. Quando se referia aos casais “livres” tinha o objetivo, tão somente, de proibir direitos. Dessa forma, não há que se falar, de forma alguma, de qualquer tipo de proteção à sucessão no que tange aos companheiros. Como já visto, os direitos “sucessórios” dos companheiros eram regidos pelo Direito Obrigacional, de forma que o CC/16 não incluía o companheiro sobrevivente na ordem de vocação hereditária, presente no artigo 1.603 do já antigo Código: Art. 1.603. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I - Aos descendentes. II - Aos ascendentes. III - Ao cônjuge sobrevivente. IV - Aos colaterais. V - Aos Estados, ao Distrito Federal ou a União. 33 V - aos Municípios, ao Distrito Federal ou à União. Todavia, mesmo diante da negativa do Código em regulamentar os direitos das referidas uniões, os Tribunais, inicialmente o de São Paulo, passaram a reconhecer alguns efeitos jurídicos quando estas uniões se desfaziam, geralmente pela morte do companheiro. Quando do falecimento do companheiro, as viúvas muitas vezes ficavam sem qualquer tipo de ajuda para sobreviver. Nesse sentido, os Tribunais reconheciam a sociedade de fato e a contribuição, mesmo que indireta, da companheira para a construção do patrimônio do de cujus. Nesse mesmo período, o Supremo Tribunal Federal – STF –, editou a Súmula 380, que aduz “comprovada a existência da sociedade de fato entre concubinos, é 33 BRASIL. Código Civil. Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Artigo 1.603. Brasília, DF, Senado Federal, 1916. 24 cabível a sua dissolução judicial, com partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”.34 A presente Súmula gerou discussões e divergências quanto ao conceito de “esforço comum”, entretanto os julgados continuaram a ser favoráveis às viúvas, que acabavam por ter reconhecido o direito ao reconhecimento da sociedade de fato e à partilha proporcional do patrimônio que, direta ou indiretamente, ajudaram a construir. É o que demonstra parte do voto do Ministro Relator Eduardo Ribeiro, que reconhece como contribuição indireta por parte da companheira, o trabalho doméstico por ela prestado, de forma a legitimar o direito de partilha quando da dissolução da união estável. Dessa forma, ao concluir o Tribunal Estadual, com base nos fatos e provas apresentados no processo, que a recorrida contribuiu, mesmo que de forma indireta, para a formação do patrimônio adquirido a título oneroso na constância da sociedade de fato, forçoso se mostra a partilha desse acervo patrimonial, nos exatos moldes em que estabelecido no acórdão impugnado. Não é outra a visão do STJ a respeito do tema: ‘O concubinato, só por si, não gera direito a partilha. Necessário que exista patrimônio constituído pelo esforço comum. Daí não se segue, entretanto, que indispensável seja direta essa contribuição para formar o patrimônio. A indireta, ainda que eventualmente restrita ao trabalho doméstico, poderá ser 35 o bastante’. Com a promulgação da Constituição Federal, em 1988, a união estável (união entre um homem e uma mulher que não fossem casados) foi reconhecida como entidade familiar, e passou a ter status de família constitucionalmente. Tal reconhecimento permitiu que os direitos referentes à união estável fossem discutidos e assegurados. 34 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n. 380. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm>. Acesso em: 10 out 2012. 35 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.648/RJ, Relator Ministro Eduardo Ribeiro. Brasília, DF, 16 de abril de 1990. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/jsp/ita/abreDocumento.jsp?num_registro=198900125397&dt_publica cao=16-04-1990&cod_tipo_documento=3>. Acesso em: 15 out 2012. 25 2.2 PRIMEIRA REGULAMENTAÇÃO: LEI 8.971/1994 A lei em questão surgiu, principalmente, para regulamentar a união estável, conforme o § 3º, do artigo 226, da Constituição Federal. Foi a primeira regulamentação específica acerca da união estável, quanto à sucessão. É composta, em suma, de três artigos. In verbis: Art. 1º A companheira comprovada de um homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo, que com ele viva há mais de cinco anos, ou dele tenha prole, poderá valer‑se do disposto na Lei no 36 5.478, de 25 de julho de 1968 , enquanto não constituir nova união e desde que prove a necessidade. Parágrafo único. Igual direito e nas mesmas condições é reconhecido ao companheiro de mulher solteira, separada judicialmente, divorciada ou viúva. Art. 2º As pessoas referidas no artigo anterior participarão da sucessão do (a) companheiro (a) nas seguintes condições: I – o (a) companheiro (a) sobrevivente terá direito enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujus, se houver filhos deste ou comuns; II – o (a) companheiro (a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto da metade dos bens do de cujus, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes; III – na falta de descendentes e de ascendentes, o (a) companheiro (a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança. Art. 3º Quando os bens deixados pelo (a) autor(a) da herança resultarem de atividades em que haja colaboração do(a) companheiro(a), terá o sobrevivente direito à metade dos bens. À época, a Lei trazia como exigência para caracterização da união estável a convivência, entre os companheiros, por período maior ou igual a cinco anos; ou filhos comuns, devendo ainda, que os companheiros fossem viúvos, divorciados ou solteiros. Álvaro Villaça Azevedo preceitua, no que se refere a lei 8.971/94, que “concede, especificamente, a esses casais direitos recíprocos a alimentos, a quem deles necessitar, e sucessórios (...)”.37 36 BRASIL. Lei 5.478, de 25 de julho de 1968. Dispõe sobre ação de alimentos e dá outras providências. Brasília, DF, Senado Federal, 1968. 37 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato: de acordo com o atual Código Civil, Lei nº 10.406, de 10-01-2002. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 294. 26 Ao interpretar o artigo 1º nota-se que a lei concedeu o direito aos alimentos, desde que cumpridos os requisitos configuradores da união estável, e que fosse provado a necessidade do companheiro. Tal questão demonstrou como consequência grandes controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, exemplo é demonstrado por Álvaro Azevedo que defende a concessão de alimento tão somente aos companheiros que firmaram contrato escrito acerca do tema. Após a regulamentação pela CF, a jurisprudência mostrou-se tendenciosa à concessão de alimentos aos companheiros. Com o advento da referida lei, a doutrina considerou que foram concedidos aos companheiros os mesmos direitos e deveres que os cônjuges, gerando discussões sobre a correta aplicabilidade do artigo 1º. Apesar das divergências levantadas, restou entendido a possibilidade de concessão aos alimentos, desde que comprovado o tempo de convivência entre os companheiros, não podendo ser inferior a cinco anos. A grande dificuldade encontra-se justamente neste quesito, isto é, a comprovação da união. Por se tratar de uma união fática e de difícil comprovação por documentos. Desta forma, tem-se como prova todo e qualquer documento que demonstre a efetiva união, como demonstra Álvaro Villaça Azevedo. Havendo prole, o casal concubinário consta da certidão de nascimento, como pais da criança. Na ausência de filhos, é possível que exista prova documental da união estável, como a certidão de seu casamento religioso, sem efeitos civis. Os documentos indicadores dessa união são, por exemplo, contrato escrito de concubinato, contrato de locação, contrato de sociedade, anotação na carteira de trabalho, carta, fotografia, nota fiscal com endereço do casal, requerimento em juízo ou em 38 repartições públicas, etc. Ressalta-se, ainda, que a extinção do benefício pode se dar em caso de má conduta do companheiro, hipótese prevista pela doutrina e jurisprudência, já que o dispositivo é omisso; em caso de constituição nova união, também, é possível a extinção do benefício. O referido dispositivo legal não retroagiu nos casos anteriores, quanto aos requerimentos de concessão de alimentos em união estável. 38 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato: de acordo com o atual Código Civil, Lei nº 10.406, de 10-01-2002. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 301. 27 À luz da respectiva lei, conforme artigo 2º e seus incisos, o (a) companheiro (a), em caso de falecimento do outro, teria direito à sucessão. Seria o companheiro herdeiro único em caso de não haver descendentes e ascendentes. Em caso de ascendentes, teria direito ao usufruto da metade dos bens, desde que não constituísse nova união. Ao passo que, quando concorria com descendentes (fossem comuns ou não), seu usufruto seria de um quarto da herança. Parte da doutrina defende que conceder o usufruto dos bens do de cujus ao companheiro supérstite cerceia o direito dos herdeiros, devendo nesse caso o companheiro concorrer com os herdeiros, e cada um receberia sua cota parte, assegurando o direito de todos. Vale ressaltar, mais uma vez, que o Princípio da Saisine deve sempre ser seguido, de forma que se o companheiro falecesse antes da vigência da Lei 8.971/94, o companheiro supérstite nada teria a receber de direito, pois não havia legislação anterior, CC/16, que o regulamentasse. O artigo 3º teve como base a Súmula 380/STF, devido ao fato de levantar a importância da verificação da colaboração do companheiro para a aquisição dos bens, objetos de partilha. O artigo em questão não traz o companheiro como meeiro do falecido, de forma que se constatado que não houve qualquer tipo de colaboração, não haveria o que falar em partilha de bens. Assim, é relevante notar que não foi introduzido, com a lei ora comentada, regime idêntico ao da comunhão parcial de bens, como existe no matrimônio. O elemento contribuição para aquisição do patrimônio era o 39 diferenciados na questão patrimonial entre companheiros . O legislador foi omisso, ainda, quanto ao tipo de colaboração seria considerada para que houvesse a partilha. Tendo isso, a jurisprudência se manifestou no sentido de que deveria ser considerada tanto a contribuição direta quanto a indireta, “caso contrário além de ser um retrocesso, estar-se-ia inclinando contra a Constituição Federal vigente”. 40 39 IVANOV, Simone Orodeschi. União estável: regime patrimonial e direito intertemporal. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 27. 40 Ibid., mesma página. 28 2.3 A SEGUNDA LEI ESPECÍFICA: 9.278/1996 A lei 9.278/96 tem o intuito de regulamentar o § 3º, do artigo 226, da CF; e de reconhecer, em seu artigo 1º, “como familiar, como união estável ou concubinária propriamente, a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família”.41 A respectiva lei, ainda, não reconheceu, todavia, a como familiar a união formada por pessoas do mesmo sexo, ou seja, o texto do artigo 1º é claro quando se refere a uniões formadas por homens e mulheres. O quesito “tempo” para determinação de união foi alterado, em contrapartida não foi estabelecido nenhum outro prazo para sua comprovação. Logo, a demonstração da existência da união de fato varia de caso para caso. Tendo em vista que a principal característica para configuração da união estável é a intenção de constituir família, pressupõe-se que o artigo 1º não se refere as relações concubinárias impuras, conforme versa Álvaro Villaça Azevedo: É certo que o § 3º do art. 226 da Constituição Federal, também, não especifica nesse sentido; contudo, ambos os dispositivos legais apontam o objetivo de constituição familiar, o que impede que existe concubinato impuro (contra o casamento preexistente de um dos concubinos ou em situação incestuosa) ou concubinato desleal (em 42 concorrência com outro concubinato puro). Os direitos e deveres dos companheiros também são matérias tratadas na lei em questão, apresentados nos incisos do artigo 2º, quais sejam, o respeito e a consideração mútua (inciso I), a assistência moral e material recíproca (inciso II), e a guarda, sustento e educação dos filhos (inciso III). Os artigos 3º e 4º foram vetados. Regulamentavam o contrato de convivência e sua respectiva averbação, que pode ser realizado a qualquer tempo da união estável. Quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união, sejam móveis ou imóveis, eram considerados frutos da colaboração de ambos os 41 AZEVEDO, Álvaro Villaça Estatuto da família de fato: de acordo com o atual Código Civil, Lei nº 10.406, de 10-01-2002. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 311. 42 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Op. cit., p. 312. 29 companheiros, desde que não houvesse disposição contratual contrária, sendo esta a regra geral. Em casos excepcionais, poder-se-ia discutir tal disposição judicialmente. Maria Berenice Dias preceitua que a união estável acarreta na perda da disponibilidade dos bens, já que a anuência do companheiro é necessária para realização de qualquer ato que dispõe do bem. Constituída a união estável, instala-se a cotitularidade patrimonial, ainda que somente um dos conviventes tenha adquirido o bem. O direito de propriedade resta fracionado em decorrência do condomínio que exsurge ex vi legis. Logo, o titular nominal do domínio não pode aliená-lo, pois se trata 43 de bem comum. É necessária concordância do companheiro. No que tange a sucessões a lei não inovou os direitos das uniões estáveis, mas apenas acrescentou o direito real de habitação para o companheiro supérstite, em seu artigo 7º, Paragrafo Único: “Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado a residência da família.”44 Logo, o companheiro sobrevivente teria o direito de continuar coabitando a residência da família, enquanto não constituísse outra união ou casamento, este direito, por sua vez, antes era somente concedido aos unidos pelo matrimônio. Assim preceitua lição de Álvaro Villaça Azevedo: Entretanto, se a união estável for dissolvido por morte de um dos conviventes (parágrafo único), o sobrevivente terá direito real de habitação do imóvel destinado à residência da família, enquanto viver ou não constituir 45 nova união ou casamento. Tal dispositivo demonstrava, claramente, a intenção do legislador em conceder maiores direitos aos companheiros, de forma que a união estável não se tornasse uma entidade familiar completamente fora da realidade, e que somente o casamento figurasse como a forma de unir duas pessoas. 43 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7. ed. rev., atual.e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 176. 44 BRASIL. Lei n. 9.278, de 10 de maio de 1996. Regula o § 3° do art. 226 da Constituição Federal. Artigo 7º, parágrafo único. Brasília, DF, Senado Federal, 1996. 45 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato: de acordo com o atual Código Civil, Lei nº 10.406, de 10-01-2002. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 325. 30 Os últimos artigos (8º e 9º) da lei tratam de institutos já abordados anteriormente, quais sejam a conversão da união estável em casamento e, a competência das Varas de Família para regerem assuntos atinentes à união estável. Após o advento da lei 9.278/1996, restou como dúvida a possível revogação da lei 8.971/1994 por aquela. Alguns juízos, como do Estado do Rio de Janeiro, por meio do Enunciado 137/96, defenderam ter sido a lei 8.971/94 completamente revogada: O Desembargador PAULO ROBERTO DE AZEVEDO FREITAS, Juízes do Estado firmaram Enunciados em torno da Lei, divulgados no Aviso nº 137/96, da Corregedoria-Geral da Justiça. No tocante à temática da exposição, destaquem-se os seguintes: nº 1: "A Lei nº 8.971/94 está ab-rogada pela Lei nº 9.278/96, tendo em vista que regulou inteiramente toda a matéria tratada na lei anterior (art. 46 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil) (maioria)." Todavia, o STJ entendeu de forma contrária, por via do julgamento do recurso contra a Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que, na ação de reconhecimento de união estável aliada a uma petição de herança, afirmou inexistir a qualidade de herdeira para companheira. A decisão foi unânime, da Terceira Turma do referido Tribunal Superior: Para o relator do processo no STJ, ministro Carlos Alberto Menezes Direito, entende que a Lei 9278 não contém dispositivo expresso de revogação da lei anterior, limitando-se ao genérico revogam-se as disposições em contrário. A lei anterior regulou o direito dos companheiros a alimentos e sucessão, e a posterior regulou o parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição, tratando, também, dos alimentos e do direito real de habitação em caso de morte de um deles. Acredita o ministro que, se não houve revogação expressa da parte relativa à sucessão, isto é, do direito da companheira ou companheiro à herança, não há razão para considerar que houve regulação diversa na lei posterior a provocar a incidência da última parte do artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil(...) Com esses argumentos, a conclusão do relator é no sentido de que permanece em vigor o artigo 2º da Lei 8971/94, que disciplina o direito dos 47 companheiros à herança, não o revogando o surgimento da Lei 9278/96. 46 RIO DE JANEIRO. Corregedoria Geral da Justiça. Enunciado n. 1. p. 2. Disponível em: <http://www.gontijo-familia.adv.br/2008/artigos_pdf/Luiz_Roldao/Novalei.pdf> Acesso em: 07 out 2012. 47 Amaral, Regina Célia. STJ: Reconhecida A União Estável, Companheira Tem Direito À Herança. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=71523> Acesso em: 07 Out 2012. 31 Esta posição é a adotada pela maioria da doutrina e jurisprudência, tendo em vista que a lei 9.278/96 não regula toda a matéria tratada na lei 8971/94, de modo que ambas podem ser aplicadas a depender do caso concreto. 2.4 À LUZ DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 Com a evolução da legislação civil, o Código Civil de 2002 – CC/02 – reconheceu o direito do companheiro de suceder, todavia não recepcionou nenhum dispositivo das leis anteriores, leis 8.971/94 e 9.278/96. Por não ter recepcionado nenhum dispositivo das leis anteriores, o CC/02 estabeleceu regras diferentes, e muitas vezes, prejudiciais aos companheiros. O tratamento, no que se refere aos direitos sucessórios, entre o cônjuge supérstite e o companheiro supérstite se distanciou indo no caminho contrário ao antes traçado com a aplicação das leis 8.971/94 e 9.278/96. O Código não incluiu a sucessão do companheiro no Titulo de Sucessão Legítima, e sim no artigo 1.790, isoladamente. Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar‑ lhe‑á a metade do que couber a cada um daqueles; III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da 48 herança. Grande parte da doutrina concorda que houve um retrocesso no que se refere a sucessão dos companheiros, com a nova regulamentação do CC/02. Alguns ainda afirmam que tal tratamento é abertamente discriminatório. O companheiro não tem o mesmo tratamento que o cônjuge, haja vista que aquele não figura sequer como herdeiro legítimo, e sim como herdeiro facultativo. O cônjuge, conforme a vocação hereditária, é o terceiro na linha sucessória. O 48 BRASIL. Novo Código Civil. Artigo 1.790. Brasília, DF, Senado Federal, 2002. 32 companheiro, por sua vez, concorre com os colaterais, qualquer que seja o grau de parentesco. Isto significa que o de cujus pode dispor de todo seu patrimônio, se assim desejar, ficando o companheiro sobrevivente sem qualquer tipo de proteção legal. Alguns autores, a exemplo de Maria Berenice Dias e Carlos Roberto Gonçalves, concordam que o companheiro não teve seus direitos completamente defendidos, haja vista que o legislador considerou necessário tão somente o artigo 1.790 do CC capaz de regular todo o direito sucessório do companheiro. Neste raciocínio, percebe-se tal diferenciação nas condições impostas pelo artigo 1.790, CC/02, p. ex., o companheiro somente tem direito aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável; não faz jus a quarta parte (cota mínima) da herança quando concorre com descendentes, nem ao direito real de habitação. No que tange ao direito real de habitação, o STJ considera direito sim do companheiro supérstite, haja vista que tal instituto não foi expressamente excluído pelo código, como demonstra o Enunciado 117 CJF/STJ, da I Jornada de Direito Civil: o direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei n. 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo art. 6º, caput, da 49 CF/88. Nesse mesmo sentido entende Maria Berenice Dias, que “o silêncio do CC sobre o direito real de habitação na união estável não inibe o seu reconhecimento. Permanece existindo por força do dispositivo legal que não foi revogado (...)"50 No intento de delimitar a partilha do patrimônio destinado ao companheiro, o legislador restringiu aquele de participar da partilha de qualquer bem que tenha sido adquirido onerosamente antes da união estável ou de forma gratuita antes ou durante a união. Ocorre, todavia, que se não houver herdeiros, seja ascendente, descendentes ou colaterais, e o de cujus possuir tão somente bens adquiridos de forma gratuita, 49 TARTUCE, Flávio. Da sucessão do companheiro: o polêmico art. 1.790 do CC e suas controvérsias principais. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2681, 3 nov. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/17751>. Acesso 7 out. 2012. 50 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7.ed. rev., atual.e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p.179. 33 resta o companheiro sem qualquer tipo de partilha ou direito a sucessão, e os bens todos para o Estado. Tal situação é muito discutida no âmbito doutrinário e jurisprudencial, no qual percebe-se que o legislador ao regulamentar o artigo 1.790, fez exatamente o contrário do que se pretendia nas leis 8.971/94 e 9.278/96. Apesar, do Código regular a sucessão dos companheiros de forma restrita, a jurisprudência não se baseou tão somente ao Código. Em muitos casos, os juízes tem considerado, principalmente, a lei 9.278/96 para decidir acerca dos direitos do companheiro supérstite. Exemplo é o agravo de instrumento interposto ao Tribunal de Justiça de São Paulo, no intuito de afastar os colaterais da sucessão, de modo que toda a herança do de cujus se destinasse somente ao companheiro sobrevivente, já que não havia ascendentes e descendentes: ARROLAMENTO - Reconhecimento de união estável - falecimento do companheiro que não deixou descendentes ou ascendentes pretensão de se afastar a concorrência dos colaterais (art. 1790, III, CC) - Aplicação da Lei 9.728/96, que não revogou o artigo 2º da Lei 8.791/94, que assegurou ao companheiro sobrevivente o mesmo status hereditário do cônjuge supérstite. Prevalência da norma especial sobre a geral. Recurso provido. “[...] em atenção ao princípio da especialidade, o critério aplicável à espécie é o da prevalência da norma especial sobre a geral (Iex specialis derogat legi generali), ante a maior relevância jurídica dos elementos nela contidos, visando a adaptação da justiça às articulações da realidade social. Assim, acolhe-se a pretensão do agravante para reconhecer o seu direito de receber a totalidade da herança deixada pela companheira, que faleceu sem deixar descendentes ou ascendentes, exatamente como se estabelece 51 em favor do cônjuge sobrevivente . Nesse entendimento, as leis específicas não foram revogadas, podendo ser aplicadas em matéria não regulada pelo Código. Todavia, há divergências quanto a revogação ou não destas leis. Doutrinariamente, há correntes que defendem a total revogação de ambas as leis, restando somente ao Código reger todas as matérias referentes aos companheiros. Outra parte da doutrina, assim como a jurisprudência, seguem a contramão deste pensamento, vez que (como já demonstrado) admite a aplicação das leis em questão para regular matérias omissas pelo CC. 51 São Paulo. Comarca de Araraquara. Agravo de Instrumento n. 522.361-4/8-00. voto n. 2778. Relator Paulo Alcides. São Paulo, 07 de outubro de 2007. Disponível em: <http://www.ligiera.com.br/jurisprudencia/juris01/Agravo_de_Instrumento_522.361-4.pdf> Acesso em 07 out 2012. 34 Ressalta-se, ainda, que as leis 8.971/94 e 9.278/96 não foram expressamente revogadas. Logo, é de se considerar que o Código Civil veio como mais uma norma para reger a união estável e seus direitos da melhor forma possível. O direito real de habitação é um exemplo de omissão pelo Código, e diante disso a jurisprudência adota a lei 9.278/96, artigo 7º para apreciar os pedidos levados a esfera judicial. Vejamos a ementa de apelação cível interposta perante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: Ementa: UNIÃO ESTÁVEL. PROVA. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. 1. A parte tem o direito de permanecer morando no imóvel que servia de morada familiar, quando reconhecida a sua condição de companheira e restou inequívoco que ela coabitava com o de cujus no imóvel. Inteligência do art. 7º, parágrafo único, da Lei nº 9.278/96. 2. O direito real de habitação é deferido ao companheiro independentemente de qualquer condição pessoal, social ou econômica, pois a única limitação legal para o exercício desse direito é que poderá ser exercido apenas "enquanto durar a viuvez". 3. É irrelevante para o reconhecimento desse direito questionar a que título o de cujus adquiriu o imóvel ou se esse bem foi ou não partilhado quando da anterior dissolução da sociedade conjugal entretida pelo falecido, pois somente a ex-mulher dele é que teria legitimidade para se opor a esse direito real postulado pela companheira. 52 Recurso provido. Por fim, conclui-se que houve a revogação somente de alguns artigos, os quais tiveram suas matérias reguladas pelo CC. No que tange ao restante, continuam a ser aplicados, de modo a proporcionar a igualdade de direitos entre cônjuges e companheiros. Neste entendimento, cabe aos aplicadores do direito decidir a melhor aplicabilidade das normas para que seja assegurado os direitos sucessórios do companheiro, os quais não foram normatizados de forma devida pelo legislador. 52 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70046074522, da 7ª Câmara Cível. Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Data do julgamento em 27/06/2012. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/consulta_processo.php?nome_comarca=Tribunal+de+Just i%E7a&versao=&versao_fonetica=1&tipo=1&id_comarca=700&num_processo_mask=70046074522 &num_processo=70046074522&codEmenta=4783597&temIntTeor=true>. Acesso em: 29 set 2012. 35 3 A UNIÃO HOMOAFETIVA 3.1 CARACTERÍSTICAS A homossexualidade está presente nas sociedades desde o início de Roma e Grécia antigas, locais onde surgiram as primeiras manifestações homossexuais; sua existência era conhecida e aceita, entretanto sua externalização era altamente reprimida. Em outros tempos, era considerada distúrbio mental, e chegou a ser elencada no Código Internacional de Doenças – CID –, em seu artigo 302. Todavia em 1985, o sufixo “ismo” foi substituído pelo sufixo “dade”, deixando, assim, de ser classificada como doença sendo denominada uma característica inerente à determinada pessoa. A homossexualidade é analisada de diversas óticas, da psicologia, cientifica e religiosa, entretanto, exceto na ótica religiosa, as outras tratam a homossexualidade como algo involuntário, haja vista que se origina do determinismo psíquico primitivo ou da organização dos genes no cérebro, respectivamente. Desta forma, tem-se que a homossexualidade não é um vício, crime, pecado, doença ou qualquer mal contagioso; logo, tais indivíduos não podem ser alvos de reprovabilidade social e/ou jurídica. A união homoafetiva, obviamente, acompanha a homossexualidade, em si, e existe desde os primórdios da humanidade, fato este que não a exime de discriminação. Ou seja, em face do repúdio social, fruto da rejeição de origem religiosa, as uniões de pessoas do mesmo sexo receberam, ao longo da história, inúmeras rotulações pejorativas e discriminatórias. 53 A religião sempre impulsionou a discriminação destas uniões, classificando-as como uma aberração da natureza, gerando um repúdio social. A concepção religiosa defende a relação sexual tão somente para a procriação, objetivo este que não é possível em uma relação homoafetiva. Assim explica Maria Berenice Dias: 53 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7.ed. rev., atual.e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p.192. 36 A Igreja Católica, ao pregar que sexo se destina fundamentalmente à procriação, considera a realação [sic] homossexual uma aberração da natureza, uma transgressão à ordem natural, verdadeira perversão, baseada na filosofia natural de São Tomás de Aquino. Daí serem consideradas antinaturais a masturbação, a homossexualidade e o sexo 54 sem procriação. A religião pregava que toda relação sexual deveria dirigir-se à procriação. Daí a condenação do homossexualismo masculino por haver perda de sêmen, enquanto que o feminino era considerado mera lascívia.55 Com o evoluir da sociedade e da aceitação da união homoafetiva, a partir de 1991, a Anistia Internacional passou a considerar a proibição da homossexualidade uma violação aos direitos humanos56. A proibição da homossexualidade pode gerar problemas psíquicos, já que o indivíduo homossexual assume uma conduta de dupla personalidade, tendo em vista a não aceitação da sociedade. Observando os efeitos da discriminação da sociedade perante o homoafetivo, Maria Berenice Dias classificou em dois os caminhos a conduta do indivíduo homossexual, aqueles que se escondem e aqueles assumidos. Em face da proibição e discriminação imposta pela sociedade o indivíduo se esconde e, passa a impressão, de se adequar aos “padrões” sociais, todavia tenta manter sua orientação, “levando outra vida”, muitas vezes promíscua. Há, também, aqueles que se impõem perante a sociedade, muitas vezes desde criança, e acabam por se unir aos parceiros, assumindo a união; são os classificados como feminóides ou assumidos.57 Contudo, esta é somente uma classificação doutrinária para melhor entendimento, haja vista que cientificamente e/ou psicologicamente a homossexualidade não é classificada, já que não existem modalidades de uma característica intrínseca a pessoa. No que tange ao conceito, não há como conceituar união homoafetiva, e muitos doutrinadores não adentram nesse mérito, de modo a não parecer que se buscam causas para a homossexualidade. 54 DIAS, Maria Berenice. União homossexual. Aspectos sociais e jurídicos. Disponível em: <http://www.mariaberenice.com.br/uploads/5_-_uni%E3o_homossexual__aspectos_sociais_e_jur%EDdicos.pdf>. Acesso em: 8 out 2012. p. 2. 55 DIAS, Maria Berenice. Ibid. 56 TAVARES, Fernando Horta et al. União homossexual no estado democrático de direito, breves apontamentos. Consulex, Brasília. Ano XIV, n. 329, p. 52-55. out 2010. 57 DIAS, Maria Berenice. Op. cit., p.3. 37 No campo do Direito, por sua vez, o legislador apresenta certa resistência em normatizar as referidas relações por diversos motivos, seja tabu ou má aceitação do eleitorado, ensejando uma omissão legal de difícil resolução pelos magistrados, quando questões dessa natureza se apresentam judicialmente. A indiferença dos legisladores perante o assunto de tal relevância acarreta no prejuízo dos casais em sede judicial, conforme apresenta Maria Berenice Dias: [...] A omissão legal leva à resistência nos juízes de reconhecer juridicidade às uniões homossexuais. Interpretam a falta de lei como correspondendo à vontade do Estado em não querer lhes conceder direitos, 58 quando a motivação é bem outra: o preconceito. Nesse sentindo, deve haver um maior compromisso com a justiça respeitando as diferenças dos indivíduos, de modo a garantir a ordem jurídica. Ressalve-se, ainda, o compromisso com o bem de todos e o respeito à diferença, consectários da nova ordem jurídica, que não devem sucumbir a juízos retrógrados de natureza moral e religiosa, não compatíveis com os princípios conformadores do Estado Democrático de 59 Direito.” O CC/02, apesar de todas suas atualizações, não conseguiu acompanhar a evolução da sociedade no que tange ao direito das famílias. De forma que contrariou o artigo 226, da CF. O Código Civil não reconheceu as outras modalidades de família, p. ex., família monoparental ou anaparental, e nesse mesmo raciocínio a família homoafetiva. 3.2 ENTENDIMENTO CONSTITUCIONAL O artigo 226, da Constituição Federal é o mais importante no que se trata de Família, criança e adolescente, e idoso. In verbis: 58 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7ed. rev., atual.e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 196. 59 TAVARES, Fernando Horta et al. União homossexual no estado democrático de direito, breves apontamentos. Consulex, Brasília. Ano XIV, n. 329, p. 52-55. out 2010. 38 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no 60 âmbito de suas relações. O reconhecimento da união estável e da família monoparental ( §§ 3º e 4º), considerou o afeto a unificação dos membros de uma família, ou seja, o afeto recebeu valor jurídica, capaz de ser elemento de suma importância para a criação de uma entidade familiar. Fábio de Oliveira Vargas, desta forma conclui: Se o afeto dá azo ao reconhecimento da natureza familiar tanto à união estável quanto à família monoparental, segue-se, por lógico, que outros núcleos sociais fundados no amor, em laços de parentesco, em como aquela fundada pelos irmãos que continuam habitando juntos, em função da morte ou ausência dos pais, e aquela fundada por pessoas do mesmo sexo, que se assemelham bastante ao casal matrimonializado ou 61 unido estavelmente. Nesse entendimento, o artigo 226, da CF é considerado cláusula geral de inclusão, isto é, havendo relacionamentos que preencham os requisitos do vínculo afetivo não podem ser excluídos. Logo, havendo a presença dos requisitos e a comprovação do vínculo afetivo merece tal relacionamento, a tutela e proteção legal. De forma a garantir os princípios da igualdade e liberdade, previstos na Carta Magna. Assim postula Maria Berenice Dias: 60 BRASIL. Constituição (1988), artigo 226. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, Senado Federal, 1988. 61 VARGAS, Fábio de Oliveira. União homoafetiva: direito sucessório e novos direitos. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 85. 39 O compromisso do Estado para com o cidadão sustenta-se no primado da igualdade e da liberdade, estampado já no seu preâmbulo. Ao conceder proteção a todos, veda discriminação e preconceitos por motivo de origem, raça, sexo ou idade e assegura o exercício dos direitos sociais e individuais e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, 62 pluralista e sem preconceitos. O Direito Civil tem recebido grande influência do Direito Constitucional, visto que o princípio da igualdade tem feito “varreduras” nas discriminações presentes, principalmente, na legislação que trata do Direito Familiar. Os princípios da igualdade e liberdade são as principais colunas da Constituição Federal/88, e estão presentes incisivamente no Direito de Família de modo a assegurar os direitos civis dos indivíduos. É possível perceber o princípio da igualdade presente na equalização dos direitos e obrigações entre o homem e a mulher, nos quais ambos tem direito a orientação sexual, sem sofrer qualquer tipo de discriminação sexual, ao exercer sua liberdade de direcionar seu interesse a uma pessoa do mesmo sexo. Tendo isto, a doutrina concorda que a Constituição Federal deve considerar os fatos sociais que exigem regulamentação, haja vista que estão presentes inegavelmente na sociedade, de forma a cumprir um Estado Democrático de Direito, que prime pela inclusão das diferenças e pela tutela dos grupos mais vulneráveis. 63 3.3 A FALTA DE LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA Como demonstrado anteriormente, o legislador apresenta resistência em apreciar e colocar em pauta todo e qualquer projeto que tenha como objetivo resguardar os direitos dos homossexuais. Tal resistência tem explicação no mero interesse eleitoral, haja vista que defender os direitos da minoria pode não agradar grande parte de seu eleitorado, de forma a prejudicar sua posição política. 62 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7.ed. rev., atual.e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 194. 63 VARGAS, Fábio de Oliveira. União homoafetiva: direito sucessório e novos direitos. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 89. 40 Existem diversos projetos “engavetados” no Congresso Nacional, com o objetivo de garantir maior proteção aos homossexuais, são exemplos a PEC 139/95, PL 1.151/95, PLC 122/06 e PL 2.285/07.64 Esta omissão legal gera grandes dúvidas e dificuldades entre os magistrados, pois estes interpretam a falta de legislação como a vontade do Estado em não reconhecer o instituto da união homoafetiva. Neste raciocínio, Liliane Cristina da Silva Souza e Lourival José de Oliveira iniciam seu texto trazendo o questionamento, que motivo teria o Direito, de não amparar as relações afetivas de pessoas de mesmo sexo, ou seja, da lei não normatizar a união homossexual como um instituto ‘sui generis’ do direito de família65. A seguir, concordam que não há uma resposta certa e definitiva, já que alguns Estados brasileiros têm reconhecido uniões homoafetivas como união estável ou de fato. Exemplo foi a sentença proferida pelo Juiz Federal Rogério Tobias de Carvalho, quanto ao reconhecimento de união estável homoafetiva post mortem: (...) Evidencia-se que, embora não haja no brasil legislação específica tratando da matéria, tanto os tribunais superiores, quanto os tribunais regionais federais, vem reconhecendo a possibilidade de se estender benefícios previdenciários aos parceiros homossexuais conviventes. Assim, em principio, longe de se ignorar ou repudiar a realidade existente, deve-se conceder a pensão por morte, desde que reste provada a qualidade de segurada da falecida e a convivência afetiva e duradoura entre esta e a autora. A inicial foi muito bem instruída. (...) Logo, há, não só forte verossimilhança nas alegações da autora, 66 bem como robusta e inequívoca prova nesse sentido. 64 PEC 139/95 – é proposta a emenda constitucional para inserir entre os objetivos fundamentais do Estado, o de promover o bem de todos sem preconceito de orientação sexual. PL 1.151/95 – projeto da parceria civil. PLC 122/06 – visa criminalizar a homofobia. PL 2.285/07 – INSTITUI O ESTATUTO DAS FAMÍLIAS 65 SOUZA, Liliane Cristina da Silva; OLIVEIRA, Lourival José de. União homoafetiva no âmbito jurídico do direito brasileiro: a travessia que não se completou. Revista De Direito Público, Londrina, v. 3, n. 2, p. 235-253, mai/ago 2008. p.1. Disponível em: <http://biblioteca.planejamento.gov.br/biblioteca-tematica-1/textos/direitos-da-cidadania/texto-190uniao-homoafetiva-no-ambito-juridico-do-direito-brasileiro-a-travessia-que-nao-se-completou.pdf>. Acesso em: 8 out 2012. 66 Rio de janeiro. 1ª Vara Federal de Niterói. Ação Ordinária n. 2010.51.02.002084-6. Juiz federal Rogério Tobias de Carvalho. Data do julgamento: 08/09/2010. P. 6-8. Disponível em:<http://www.direitohomoafetivo.com.br/anexos/juris/715%281%29.pdf>. Acesso em: 10 out 2012. 41 Entretanto, julgados como o acima citado são minorias, pois a maioria dos magistrados quando se deparam com um pedido de reconhecimento de união estável entre homossexuais, tratam como se uma sociedade de fato fosse, ou seja, a união estável homoafetiva não tem guarda nas Varas de Família. A jurisprudência, em sua maioria, não entende ser a Vara de Família a competente para julgar respectivo conflito justamente pelo fato de não haver legislação específica, de modo que todos os conflitos dessa mesma natureza são transferidos para as Varas Cíveis, todavia, como preceitua Maria Berenice Dias, Os resultados são desastrosos. Chamar as uniões de pessoas do mesmo sexo de sociedade de fato, e não de união estável, leva à sua inserção no direito obrigacional, com consequente alijamento do manto protetivo do direito das famílias, o que acaba por afastar os direitos 67 sucessórios. É clara a diferença de tratamento entre pedidos de reconhecimentos de um casal heterossexual para um casal homossexual. Além da Vara competente, ao casal heterossexual são assegurados todos os direitos pertinentes à união estável. Quando se trata, todavia, de uma união homoafetiva, é possível que a ação seja extinta baseada, segundo o magistrado, na impossibilidade jurídica do pedido. Quando a ação é recebida, é remetida ao direito obrigacional, mesmo que comprovada todos os requisitos necessários para a configuração da união estável. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PROCESSO CONSTITUCIONAL. CIVIL. PROCESSO CIVIL. 1. Desacordo entre os juízos da vara cível e da vara de família quanto à competência para processar e julgar demandas que envolvam a tutela concreta de interesses decorrentes de uniões homossexuais. A definição do juízo a que legalmente compete apreciar tais situações fáticas conflitivas, também chamadas de "uniões homoafetivas", é exigência do princípio do juiz natural e constitui garantia inafastável do processo constitucional. 2. Ausente regra jurídica expressa definidora do juízo responsável concretamente para conhecer relação jurídica controvertida decorrente de união entre pessoas do mesmo sexo, resta constatada a existência de lacuna do direito, o que torna premente a necessidade de integração do sistema normativo em vigor. Nos termos do que reza o artigo 4º da lei de introdução ao código civil, a analogia é primeiro, entre os meios supletivos de lacuna, a que deve recorrer o magistrado. [...] 4. A semelhança há de ser substancial, verdadeira, real. Não justificam o emprego da analogia meras semelhanças aparentes, afinidades formais ou identidades relativas a pontos secundários. [...] 67 DIAS, Maria berenice. Manual de direito das famílias. 7ed. rev., atual.e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 196. 42 6. As entidades familiares, decorram de casamento ou de união estável ou se constituam em famílias monoparentais, têm como requisito de existência a diversidade de sexos. Logo, entre tais institutos, que se baseiam em união heterossexual, e as uniões homossexuais sobreleva profunda e fundamental diferença. A distinção existente quanto a elementos estruturais afasta a possibilidade de integração analógica que possibilite regulamentar a união homossexual com base em normas que integram o direito de família. 7. As uniões homossexuais, considerando os requisitos de existência que a caracterizam e que permitem identificá-las como parcerias civis, guardam similaridade com as sociedades de fato. Há entre elas elementos de identidade que se destacam e que justificam a aplicação da analogia. 8. Entre parcerias civis e entidades familiares há fator de desigualação que, em atenção ao princípio da igualdade substancial, torna constitucional, legal e legítima a definição do juízo cível como competente para processar e julgar demandas relativas a uniões homossexuais, que sujeitas estão ao conjunto das normas que integram o direito das obrigações. 9. Conflito conhecido. Definida como pertencente ao juízo cível a competência para conhecer de conflitos relativos a uniões homossexuais 68 "parcerias civis. Como já dito, tal posicionamento do magistrado decorre, na maioria das vezes, da não regulamentação da união homoafetiva. Em se tratando da união heterossexual, muitas vezes essa é provada por meio de contrato de convivência. Registrar um contrato de convivência entre companheiros homoafetivos seria de grande valia, já que, quando o pedido de reconhecimento é aceito, sua comprovação fica a cargo tão somente de provas testemunhais ou documentais sem qualquer fé pública. Ocorre que, registrar um contrato em cartório para formalizar uma união homoafetiva, na maioria das vezes, não é possível, tornando assim, a comprovação desta união mais difícil. Todavia, há uma exceção, constante no parágrafo único, do artigo 245 da Consolidação Normativa Notarial Registral do Rio Grande do Sul, que foi acrescido pelo Provimento 06, da Corregedoria-Geral de Justiça do TJ do Rio Grande do Sul, o qual pacificou o entendimento da possibilidade de registro contratual por casal homoafetivo para regular sua convivência estável. Art. 245 – no registro de títulos e documentos proceder-se-á ao registro: (...) 68 Brasil. Tribunal de justiça do distrito federal e territórios. Acórdão n. 291471, 20070020104323ccp, da 1ª Câmara Cível. Relator(a) Diva Lucy de Faria Pereira. Data do julgamento em 12/11/200. p.954. Disponível em: <http://tjdf19.tjdft.jus.br/cgibin/tjcgi1?docnum=6&pgatu=1&l=20&id=62760,78492,31829&mgwlpn=servidor1&nxtpgm=jrhtm03& opt=&origem=inter&pq1=uni%e3o%20homossexual> acesso em: 16 out 2012. 43 Parágrafo único – as pessoas plenamente capazes, independente da identidade ou oposição de sexo, que vivam uma relação de fato duradoura, em comunhão afetiva, com ou sem compromisso patrimonial, poderão registrar documentos que digam respeito a tal relação. As pessoas que pretendam constituir uma união afetiva na forma anteriormente referida 69 também poderão registrar os documentos que a isso digam respeito. Esse reconhecimento não se trata de casamento ou união estável, permite tão somente o registro de um casal, seja hetero ou homossexual, que tenha convivência duradoura, e que deseja registrar sua união civil para que seus direitos sejam regulados contratualmente, salvo o direito sucessório, que não pode ser regulado enquanto o autor da herança estiver vivo (CC, artigo 426).70 Quando se trata de separação entre os conviventes, é possível perceber uma decisão um tanto mais justa para ambos, haja vista que depois de reconhecida a sociedade de fato, geralmente, é deferida a metade do patrimônio, amealhado durante a união, para cada parte. Tendo em vista, a grande dificuldade dos casais homoafetivos de garantirem seus direitos, seja patrimonial, alimentício ou sucessório, em julho de 2009 foi ajuizada pelo Procurador-Geral da República uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) perante o STF, que o recebeu como ADIN 1723, requerendo o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, igualando-a a união estável heterossexual. Assunto a ser demonstrado nos próximos tópicos. 3.4 DIREITO COMPARADO A união homoafetiva é realidade inegável em qualquer lugar. O Brasil apresenta dificuldades em acompanhar os Estados estrangeiros, no que tange a proteção e reconhecimento dos homoafetivos. 69 RIO GRANDE DO SUL. Corregedoria - Geral da Justiça. Consolidação Normativa Notarial e Registral. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/export/legislacao/estadual/doc/CNNR_CGJ_Outubro_2012_Prov_17_2012.pd f>Acesso em 12 out 2012. 70 BRASIL. Novo Código Civil. Art. 426, texto original: “Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva”. Brasília, DF, Senado Federal, 2002. 44 Maria Berenice Dias classifica em quatro, os tipos de modelos de ordenamentos jurídicos quanto a reconhecimento da homossexualidade. O primeiro é denominado “modelo expandido”, que consiste na adoção de políticas não discriminatórias, e na instituição de ações que apoiam organizações homossexuais, apesar de cada país possuir sua legislação específica, isto é, cada país estabelece suas normas proibitivas e autorizativas. Esse modelo está presente em países como a Holanda, Dinamarca, Suécia, Noruega, Groelândia, Islândia e África do Sul. O segundo modelo é o intermediário, no qual países como a França, Austrália e alguns estados norte-americanos, não adotam medidas positivas, de modo que somente garantem a não discriminação dos homossexuais. O penúltimo modelo, característico do ordenamento brasileiro, engloba os ordenamentos que não adotam medidas positivas, nem medidas protetivas, ou seja, somente impedem a criminalização. Por fim, há aqueles ordenamentos em que a homossexualidade é considerada crime, podendo ser punido até com a pena de morte. É o caso, p. ex., dos países islâmicos.71 O primeiro país que permitiu a união civil entre homossexuais foi a Dinarmarca, em 1989, por meio da Lei nº 372 do mesmo ano. A referida lei regulamentou os direitos habitacionais e sucessórios dos companheiros. Em seguida, em 1993, a Noruega admitiu as uniões homoafetivas. E, em 1996, a Islândia acompanhou o país pioneiro no mesmo sentido. Em 1991, a Holanda passou a aceitar a união civil entre pessoas do mesmo sexo, e em 2002, o casamento ou a sua conversão entre estes já era possível, desde que um dos companheiros fosse holandês ou residisse no país. Em 2004, a Corte do estado norte-americano de Massachussets legalizou o casamento homossexual, ao decidir pela inconstitucionalidade da permissão de casamento tão somente aos heterossexuais. Nesse mesmo ano e país, o estado da Califórnia realizou plebiscito quanto ao reconhecimento da união homoafetiva ou não, questão essa que foi rejeitada pela população; desta forma, o estado decidiu pela não permissão de novas uniões, tendo garantia somente as já realizadas. 71 DIAS, Maria Berenice. União homossexual. Aspectos sociais e jurídicos. p.6. Disponível em: <http://www.mariaberenice.com.br/uploads/5_-_uni%E3o_homossexual__aspectos_sociais_e_jur%EDdicos.pdf>. Acesso em: 8 out 2012. 45 No ano de 2005, a Inglaterra e o Canadá (primeiro país da América a reconhecer tal união) decidiram por permitir a união civil entre homossexuais, ressaltando-se, todavia, que não se trata de casamento. A Espanha, por sua vez, autorizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, contrariando a Igreja Católica, garantindo aos homoafetivos os direitos à herança, adoção e à pensão previdenciária. Fábio Oliveira Vargas traz, ainda, rol de países que no ano de 2005 restaram por permitir o matrimônio entre homoafetivos, quais sejam a África do Sul, Noruega, Suécia, Portugal, Cidade do México, e alguns estados norte-americanos. Em 2010, a Argentina foi o primeiro país da América Latina a permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Alterou também os direitos a estes matrimônios, isto é, legalizando o recebimento total da herança, no caso de morte de um dos cônjuges, permissão para adoção de crianças (...), uso de sobrenome comum para crianças adotadas ou para filhos naturais de um dos parceiros, e direito, para o casal, de receber pensão, pagar impostos e pedir crédito.72 No Brasil não é permitido a realização de casamento de pessoas do mesmo sexo, mesmo que estas sejam oriundas de países, nos quais já é permitido o referido instituto. Nem mesmo o consulado do respectivo país pode realizar o casamento, visto que de acordo com Convenção de Viena sobre Relações Consulares (Decreto 61.078/67), do qual o Brasil é signatário, aqueles devem respeitar a lei do país receptor, no que tange as funções notariais. 3.5 DIREITO SUCESSÓRIO NO DIREITO COMPARADO Como visto vários países já permitem o matrimônio entre pessoas de mesmo sexo, e alguns outros a possibilidade de registrar contratos para regular tal união. Tendo isto, resta saber se estes contratos firmados no exterior têm seus respectivos efeitos sucessórios reconhecidos perante o ordenamento do Brasil. 72 Salatiel, José Renato. Casamento gay: argentina é o primeiro país latino-americano a oficializar união. Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/disciplinas/atualidades/casamentogay-argentina-e-o-primeiro-pais-latino-americano-a-oficializar-uniao.htm>. Acesso em: 16 out 2012. 46 No que tange ao casamento, o artigo 7º, § 4º73, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/42) dita que a lei que determina as regras é a lei do domicílio dos nubentes. Já o artigo 9º74 dispõe sobre os contratos, os quais devem ser regidos pelas leis do país onde foram constituídos. Deste modo, os contratos que reconhecem uma união homoafetiva em qualquer país estrangeiro, são válidos também dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Ou seja, tais uniões também são aqui reconhecidas. Todavia, quanto aos efeitos decorrentes de tal contrato, como o direito a sucessão, os doutrinadores levantam o artigo 17, do já citado Decreto-Lei, que dita: “Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes”.75 Assim, entende a doutrina que não podem ser reconhecidos institutos inexistentes no Brasil, o caso do direito a sucessão entre companheiros homoafetivos. Pode o magistrado aplicar a analogia, quando deparado com instituto desconhecido, em relação aos institutos pátrios, todavia caso não haja procedimento análogo, tornando impossível a aplicação da analogia, o juiz pode se recusar a tutelar determinada situação jurídica. Como é o caso de casal que seja casado em país estrangeiro, situação que não é possível tendo em vista que o casamento entre pessoas do mesmo sexo no Brasil não é permitido, conforme julgado abaixo: RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. CASAMENTO NO ESTRANGEIRO. FALTA DE INTERESSE DE AGIR. 1 - Reconhecida a união homoafetiva como entidade familiar - desde a decisão proferida na ADPF n. 132 e ADI n. 4277, a qual conferiu-se efeito vinculante e eficácia erga omnes - não há razão para não conferir igual proteção legal ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, legalmente realizado no estrangeiro, sobretudo para efeitos de comprovação de relacionamento afetivo com a finalidade de obtenção de visto permanente do cônjuge estrangeiro. 2 - Se os autores são legalmente casados no estrangeiro não têm interesse 73 BRASIL. Lei de introdução a normas do direito brasileiro. Art. 7º, § 4º, texto original: “o regime de bens, legal ou convencional, obedece a lei do país em que tiverem os nubentes domicilio, e, se este for diverso, a do primeiro domicilio conjugal”. Brasília, Senado Federal, 1942. 74 BRASIL. Lei de introdução a normas do direito brasileiro. Art 9º, texto original: “para qualifica e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituem”. Brasília, Senado Federal, 1942. 75 BRASIL. Lei de introdução a normas do direito brasileiro. Art. 17. Brasília, Senado Federal, 1942. 47 de agir para o reconhecimento 76 3 - Apelação não provida. de união estável homoafetiva. O relator do referido julgado, Jair Soares, em seu voto, expõe que não é possível a procedência da demanda pelos respectivos autores: Os autores, por sua vez, alegam que o interesse de agir se faz presente, na medida em que a relação que mantém é passível de dúvidas quanto à proteção estatal como entidade familiar. E, conquanto sejam casados no estrangeiro, no Brasil, referido casamento não pode ser reconhecido como tal, vez que inexiste lei que permita o casamento entre 77 pessoas do mesmo sexo. Logo, pelo fato de o ordenamento jurídico brasileiro entender que a sucessão do companheiro homoafetivo é instituto desconhecido e desprovido de procedimento passível de analogia, restam que tais efeitos decorrentes de contratos civis firmados no exterior não serão aplicados. Há, ainda, outro ponto que justifica a falta de amparo jurídico desses efeitos é o fato de alguns doutrinadores acreditarem que garantir o direito a sucessão aos companheiros homossexuais seguem a contramão dos bons costumes e ordem pública do país. Observa-se, nesta situação, o exemplo de um casal, unidos seja pelo matrimônio ou contrato, no qual um dos companheiros seja brasileiro, e vem reclamar seus direitos sucessórios no Brasil. Fábio de Oliveira Vargas expõe sua lição acerca da situação exemplificativa: Seguindo parâmetros legais (...), em atenção aos superiores princípios constitucionais da igualdade, da liberdade e da dignidade da pessoa humana, entendemos que, segundo o art. 10 da lindb, pode ser aplicada a lei do domicílio do de cujus para disciplinar sua sucessão de acordo com o casamento ou o contrato validamente celebrado. Se o cônjuge sobrevivo for brasileiro, aplique-se a lei sucessória brasileira 78 relativa ao estado de casado, salvo se a lei estrangeira for mais favorável. 76 BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Acórdão n. 578792, 20110111948032APC, da 6ª Turma Cível. Relator Jair Soares. Data do julgamento em 11/04/2012, p. 243. Disponível em: <http://tjdf19.tjdft.jus.br/cgibin/tjcgi1?DOCNUM=3&PGATU=1&l=20&ID=62747,59383,17193&MGWLPN=SERVIDOR1&NXTP GM=jrhtm03&OPT=&ORIGEM=INTER&pq1=uni%E3o%20homoafetiva> Acesso em: 16 out 2012. 77 BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Acórdão n. 578792, 20110111948032APC, Relator Jair Soares, 6ª Turma Cível, julgado em 11/04/2012, p. 243. Disponível em: <http://tjdf19.tjdft.jus.br/cgibin/tjcgi1?DOCNUM=3&PGATU=1&l=20&ID=62747,59383,17193&MGWLPN=SERVIDOR1&NXTP GM=jrhtm03&OPT=&ORIGEM=INTER&pq1=uni%E3o%20homoafetiva> Acesso em: 16 out 2012. 78 VARGAS, Fábio de Oliveira. União homoafetiva: direito sucessório e novos direitos. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2011. p.130-131. 48 3.6 RECONHECIMENTO DO STF ATRAVÉS DO JULGAMENTO DA ADI 4277 E ADPF 132 O governador do estado do Rio de Janeiro ajuizou Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF (nº 132/08), em conexão processual com a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade – ADI (nº 4277/09), movida pela ProcuradoraGeral da República, em 2009. A ADPF tinha como objetivo atacar os artigos 19, II e IV, e 33, I a X, ambos do Decreto-Lei nº 220/1975 (Estatuto dos Servidores Civis do Estado Do Rio de Janeiro), ou seja, o Governador do Estado afirmava que a interpretação dos referidos artigos contrariava os princípios basilares da Carta Magna, e feria os direitos dos servidores homossexuais, pelo fato de não reconhecer a equiparação entre união estável heterossexual e homossexual. Nesse mesmo raciocínio, a Procuradoria-Geral da República, através da ADPF, que foi recebida na forma de ADI, tinha como objetivo requerer que as uniões estáveis homoafetivas tivessem mesmo tratamento, direitos e deveres de uma união estável entre pessoas de sexo diverso. A petição inicial foi instruída com pareceres de Gustavo Tepedino, Luís Roberto Barroso e do Grupo de Trabalho de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. A PGR alegou que diversos princípios constitucionais são violados quando o reconhecimento de uma união homoafetiva é indeferido. São exemplos, o princípio da dignidade da pessoa humana (CF, 1º, III), da proibição de discriminações odiosas (CF, 3º IV), da igualdade (CF, 5º, caput), da liberdade (CF, 5º, caput) e da proteção a segurança jurídica A inicial, em suma, apresenta os seguintes pedidos: Em face do exposto, espera a Requerente seja julgada procedente a presente Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental para: a) Declarar a obrigatoriedade do reconhecimento, como entidade familiar, da união entre pessoas do mesmo sexo, desde que 49 atendidos os mesmos requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher; e b) Declarar que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis estendem-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. 79 (...). Ou seja, como a união estável homoafetiva não tem legislação regulamentadora específica, o deferimento da ADI em questão, permitira que fosse aplicada a analogia aos direitos das uniões estáveis entre heterossexuais automaticamente, de modo que a aplicação dos princípios constitucionais fosse imediata. No referido julgamento, em 2011, o Ministro Relator Ayres Britto votou pela procedência das ações, reconhecendo a união homoafetiva como entidade familiar, arguindo que não pode haver tratamento diferenciado baseado tão somente no sexo das pessoas: Prossigo para ajuizar que esse primeiro trato normativo da matéria já antecipa que o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. É como dizer: o que se tem no dispositivo constitucional aqui reproduzido em nota de rodapé (inciso IV do art 3º) é a explícita vedação de tratamento discriminatório ou preconceituoso em razão do sexo dos seres humanos. Tratamento discriminatório ou desigualitário sem causa que, se intentado pelo comum das pessoas ou pelo próprio Estado, passa a colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos” (este o explícito objetivo que se lê no 80 inciso em foco). (grifo do autor). No mesmo entendimento, alega a clara violação do principio da dignidade da pessoa humana, quando a preferencia sexual do individuo é alvo de discriminação, Óbvio que, nessa altaneira posição de direito fundamental e bem de personalidade, a preferência sexual se põe como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana” (inciso III do art. 1º da CF), e, assim, poderoso fator de afirmação e elevação pessoal. De auto-estima no mais elevado ponto da consciência. Auto-estima, de sua parte, a aplainar o mais abrangente caminho da felicidade, tal como positivamente normada desde a primeira declaração norte-americana de direitos humanos 79 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição inicial do julgamento da ADI 4277 e ADPF 132. 05 maio 2012.p.120. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/geral/verpdfpaginado.asp?Id=400547&tipo=tp&descricao=adi%2f4277>. Acesso em: 20 out 2012. 80 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Julgamento da ADI 4277 e ADPF 132. Voto do Ministro Ayres Britto. p.10-11. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adi4277revisado.pdf>. Acesso em: 20 out 2012. 50 (Declaração de Direitos do Estado da Virgínia, de 16 de junho de 17768) e até hoje perpassante das declarações constitucionais do gênero. Afinal, se as pessoas de preferência heterossexual só podem se realizar ou ser felizes heterossexualmente, as de preferência homossexual seguem na mesma toada: só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente. Ou “homoafetivamente”, como hoje em dia mais e mais se fala, talvez para retratar o relevante fato de que o século XXI já se marca pela 81 preponderância da afetividade sobre a biologicidade. (...) (grifo do autor). Por fim, concluiu de forma positiva acerca da interpretação do artigo 1.723, do Código Civil conforme a Constituição Federal, para que não haja qualquer cláusula de exclusão no referido artigo: Assim interpretando por forma não-reducionista o conceito de família, penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico. Quando o certo − data vênia de opinião divergente - é extrair do sistema de comandos da Constituição os encadeados juízos que precedentemente verbalizamos, agora arrematados com a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Entendida esta, no âmbito das duas tipologias de sujeitos jurídicos, como um núcleo domésticoindependente de qualquer outro e constituído, em regra, com as mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade. Pena de se consagrar uma liberdade homoafetiva pela metade ou condenada a encontros tão 82 ocasionais quanto clandestinos ou subterrâneos. (...) (grifo do autor). Dando por suficiente a presente análise da Constituição, julgo, em caráter preliminar, parcialmente prejudicada a ADPF nº 132-RJ, e, na parte remanescente, dela conheço como ação direta de inconstitucionalidade. No mérito, julgo procedentes as duas ações em causa. Pelo que dou ao art. 1.723 do Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as 83 mesmas conseqüências da união estável heteroafetiva. 81 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Julgamento da ADI 4277 e ADPF 132. Voto do Ministro Ayres Britto.p. 20-21. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adi4277revisado.pdf>. Acesso em: 20 ou 2012. 82 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Julgamento da ADI 4277 e ADPF 132. Voto do Ministro Ayres Britto. P. 38-39. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adi4277revisado.pdf>. Acesso em: 20 ou 2012. 83 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Julgamento da ADI 4277 e ADPF 132. Voto do Minstro Ayres Britto. P.49. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adi4277revisado.pdf>. Acesso em: 20 out 2012. 51 Importante ressaltar colocação feita pela Ministra Cármen Lúcia, que também votou pela procedência da ação, e restou por afirmar que o fato do § 3º, do artigo 226, da CF/88, especificar “homem e mulher” não exclui a possibilidade do artigo abarcar os homossexuais. Mas é exato que a referência expressa a homem e mulher garante a eles, às expressas, o reconhecimento da união estável como entidade familiar, com os consectários jurídicos próprios. Não significa, a meu ver, contudo, que se não for um homem e uma mulher, a união não possa vir a ser também fonte de iguais direitos. Bem ao contrário, o que se extrai dos princípios constitucionais é que todos, homens e mulheres, qualquer que seja a escolha do seu modo de vida, têm os seus direitos fundamentais à liberdade, a ser tratado com igualdade em sua humanidade, ao respeito, à 84 intimidade devidamente garantidos. No presente julgamento, todos os ministros seguiram o Relator, todavia o Ministro Ricardo Lewandowiski, apesar de votar com o Relator, apresentou um ponto de vista diferente quanto ao reconhecimento das uniões homoafetivas. Não há, aqui, penso eu, com o devido respeito pelas opiniões divergentes, como cogitar-se de uma de mutação constitucional ou mesmo de proceder-se a uma interpretação extensiva do dispositivo em foco, diante dos limites formais e materiais que a própria Lei Maior estabelece no tocante a tais procedimentos, a começar pelo que se contém no art. 60, § 4º, III, o qual erige a “separação dos Poderes” à dignidade de “cláusula 85 pétrea”, que sequer pode ser alterada por meio de emenda constitucional. Ora, embora essa relação não se caracterize como uma união estável, penso que se está diante de outra forma de entidade familiar, um quarto gênero, não previsto no rol encartado no art. 226 da Carta Magna, a qual pode ser deduzida a partir de uma leitura sistemática do texto constitucional e, sobretudo, diante da necessidade de dar-se concreção aos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da preservação da intimidade e da não-discriminação por orientação sexual 86 aplicáveis às situações sob análise. (grifo nosso). Ou seja, ilustre Ministro não entende que a união homoafetiva deva ser equiparada a união estável entre pessoas de sexo diferentes, haja vista que o Poder Judiciário não tem como função principal legislar. 84 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Julgamento da ADI 4277 e ADPF 132. Voto da Ministra Carmen Lúcia. P. 6. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adi4277cl.pdf>. Acesso em: 20 out 2012. 85 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Julgamento da ADI 4277 e ADPF 132. Voto do Ministro Ricardo Lewandowiski. P.6. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adi4277rl.pdf>. Acesso em: 21 out 2012. 86 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Julgamento da ADI 4277 e ADPF 132. Voto do Ministro Ricardo Lewandowiski. P.8. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adi4277rl.pdf>. Acesso em: 21 out 2012. 52 Desse modo, se vale da integração analógica para melhor regulamentar a união homoafetiva: Para conceituar-se, juridicamente, a relação duradoura e ostensiva entre pessoas do mesmo sexo, já que não há previsão normativa expressa a ampará-la, seja na Constituição, seja na legislação ordinária, cumpre que 87 se lance mão da integração analógica. Não há, ademais, penso eu, como escapar da evidência de que a união homossexual, em nossos dias, é uma realidade de elementar constatação empírica, a qual está a exigir o devido enquadramento jurídico, visto que dela resultam direitos e obrigações que não podem colocar-se à margem da proteção do Estado, ainda que não haja norma específica a 88 assegurá-los . O fato, todavia, de classificar a união homoafetiva como uma nova modalidade de entidade familiar, e que não está prevista na CF, não exclui a necessidade de regulação normativa, para que seja protegida e tutelada legalmente. Assim, muito embora o texto constitucional tenha sido taxativo ao dispor que a união estável é aquela formada por pessoas de sexos diversos, tal ressalva não significa que a união homoafetiva pública, continuada e duradoura não possa ser identificada como entidade familiar apta a merecer proteção estatal, diante do rol meramente exemplificativo do art. 226, quando mais não seja em homenagem aos valores e princípios 89 basilares do texto constitucional. Em suma, reconhecida a união homoafetiva como entidade familiar aplicam-se a ela as regras do instituto que lhe é mais próximo, qual seja, a união estável heterossexual, mas apenas nos aspectos em que são assemelhados, descartando-se aqueles que são próprios da relação entre pessoas de sexo distinto, segundo a vetusta máxima ubi eadem ratio ibi 90 idem jus, que fundamenta o emprego da analogia no âmbito jurídico. Ressalta-se, ainda que tal reconhecimento tem efeitos erga omnes e vinculante. 87 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Julgamento da ADI 4277 e ADPF 132. Voto do Ministro Ricardo Lewandowiski. P.8. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adi4277rl.pdf>. Acesso em: 21 out 2012. 88 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Julgamento da ADI 4277 e ADPF 132. Voto do Ministro Ricardo Lewandowiski. P.11. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adi4277rl.pdf>. Acesso em 21 out 2012. 89 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Julgamento da ADI 4277 e ADPF 132. Voto do Ministro Ricardo Lewandowiski. P.12. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adi4277rl.pdf>. Acesso em 23 out 2012. 90 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Julgamento da ADI 4277 e ADPF 132. Voto do Ministro Ricardo Lewandowiski. P.14. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adi4277rl.pdf>. Acesso em 23 out 2012. 53 Fábio de Oliveira Vargas conclui que o STF agiu por bem em reconhecer a união homoafetiva, e que tal decisão sedimentou o posicionamento da doutrina e jurisprudência, por todo o país91. Complementa ainda que a decisão da Suprema Corte não delimitou os direitos resguardados pelas uniões homoafetivas, matéria que deverá ser regulada por lei específica. 3.7 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS VIOLADOS A Constituição Federal é a carta de princípios, os quais determinam eficácia jurídica a todas as normas e regras do ordenamento. Princípios são as ideias fundamentais que constituem o arcabouço do ordenamento jurídico, são os valores básicos da sociedade que se 92 constituem em princípios jurídicos. Os princípios constitucionais são a base do direito brasileiro, ou seja, “os princípios constitucionais – considerados leis das leis – deixaram de servir apenas de orientação ao sistema jurídico infraconstitucional, desprovidos de força normativa”93. Conforme afirma Maria Berenice Dias, atualmente deixaram de ser considerados mera força supletiva, e passaram a possuir eficácia imediata. Desta forma, não podem os princípios ser descumpridos ensejando o prejuízo no que tange aos direitos civis de determinado grupo social, como os homoafetivos. Maria Berenice Dias complementa acerca do assunto: Devem ter conteúdo de validade universal. Consagram valores generalizantes e servem para balizar todas as regras, as quais não podem afrontar diretrizes contidas nos princípios. Princípio é, por definição, 94 mandamento nuclear de um sistema. 91 VARGAS, Fábio de Oliveira. União homoafetiva: direito sucessório e novos direitos. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2011. 2011, p. 96. 92 SIQUEIRA Jr., Paulo Hamilton. OLIVEIRA, Miguel Augusto Machado de. Direitos humanos e cidadania. 3.ed. Rev. E atual. São paulo: Editora Revista Dos Tribunais, 2010. P.201. 93 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7.ed. Rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista Dos Tribunais, 2010. P. 57. 94 DIAS, Maria Berenice. Op. Cit., p. 58. 54 Logo, entende-se que não podem o Estado e a sociedade cercearem os direitos civis dos casais homoafetivos, tendo em vista que confrontam os princípios constitucionais. Os principais princípios violados pelo não reconhecimento da união homoafetiva, já citados no tópico anterior, serão demonstrados a seguir. 3.7.1 Princípio da Igualdade e da proibição à discriminação O princípio da igualdade consiste na garantia de direitos iguais a todos os indivíduos pertencentes ao Estado. É resguardado pelo artigo 5º, caput, da Constituição Federal, que versa: Art. 5o todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo‑se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança 95 e à propriedade, nos termos seguintes: [...] Segundo a doutrina, “A expressão ‘todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza’ enuncia um dever ético-jurídico de respeito ao outro”96 (grifo nosso). Logo, infere-se no referido artigo que ninguém pode sofrer qualquer tipo de discriminação relacionado à cor, religião ou orientação sexual. O inciso IV, do artigo 3º, também do texto constitucional, prevê a proibição quanto a discriminação: Art. 3o constituem objetivos fundamentais da república federativa do brasil: Iv – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, 97 sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 95 BRASIL. Constituição (1988), artigo 5º, caput. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, Senado Federal, 1988. 96 MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. 3. Ed. São paulo: atlas, 2011. P.81. 97 BRASIL. Constituição (1988), artigo 3º, inciso iv. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, Senado Federal, 1988. 55 Infere-se, portanto, que toda e qualquer discriminação é proibida dentro do ordenamento jurídico brasileiro, incluindo a discriminação devido a orientação sexual, mesmo que não prevista expressamente. Logo, o Estado não pode dispensar tratamentos diferentes entre os cidadãos, para que não haja a violação do respeito mútuo, imposto pelo princípio da igualdade e o da proibição a discriminação. Devendo-se, portanto, observar a peculiaridade de cada situação, já que segundo Alexandre de Moraes, [...], O que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio 98 conceito de justiça. Ou seja, as desigualdades precisam ser observadas para que não haja injustiça, como complementa o autor infra citado: A desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento especifico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com os critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeito da medida considerada, devendo estra presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente 99 protegidos. (grifo nosso). George Marmelstein classifica as possibilidades de aplicação desta desigualdade para os desiguais, ou seja, classifica a discriminação em negativa e positiva, da seguinte forma. A discriminação negativa é aquela que desrespeita o outro, que prejudica por preconceito; já a discriminação positiva é aquela que ajuda o próximo, tratando-o desigualmente para gerar oportunidades.100 No que se refere a aplicação destes princípios, aos homossexuais, a Constituição não prevê qualquer restrição, ou seja, o fato de reconhecer a união estável entre homem e mulher não quer dizer que proíba a união homoafetiva. 98 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 20. Ed. São Paulo: Atlas, 2006. p.32. MORAES, Alexandre de. Loc. cit. 100 MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. 3. Ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 84. 99 56 Desse modo, não é possível afirmar que haja uma discriminação negativa em relação aos homoafetivos, pelo texto constitucional, devendo estes receber o mesmo respeito e reconhecimento das uniões heterossexuais. Nesse raciocínio, muitos defensores contra o suporte legal aos homoafetivos relacionam algumas justificativas, pelos quais não seria legal a possibilidade de constituir uma família a partir de um casal homoafetivo. A petição inicial da ADI 4277101 (disposta no tópico anterior),elenca algumas dessas justificativas, quais sejam: o argumento presente no artigo 226, § 3º, da CF; seriam estas uniões “pecaminosas”, contrariando a lei divina e o direito natural; que a união entre pessoas do mesmo sexo estimulariam comportamentos sexuais desviantes, e não daria ensejo à procriação; assim como não estaria de acordo com os valores predominantes nas sociedades. Todavia, conforme dita a Procuradoria Geral da República, nenhum dos argumentos acima vigora e deve ser considerado. Não é possível afirmar que a união homoafetiva tem cunho pecaminoso, haja vista que o Estado é laico não podendo basear-se em convicções religiosa para estabelecer o limite dos direitos dos cidadãos. [...] As religiões que se opõem à legalização da união entre pessoas do mesmo sexo têm todo o direito de não abençoarem estes laços afetivos. O estado, contudo, não pode basear-se no discurso religioso para o exercício do seu poder temporal, sob pena de grave afronta à 102 constituição. O reconhecimento da união homoafetiva não provocaria a conversão das pessoas em homossexuais, estaria proporcionando tão somente a efetivação dos direitos dos homoafetivos, e não provocando comportamentos sexuais 101 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição inicial do julgamento da ADI 4277 e ADPF 132. 05 maio 2012.p.14. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/geral/verpdfpaginado.asp?Id=400547&tipo=tp&descricao=adi%2f427 7>. Acesso em: 20 out 2012. 102 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição inicial do julgamento da ADI 4277 e ADPF 132. 05 maio 2012.p.15. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/geral/verpdfpaginado.asp?Id=400547&tipo=tp&descricao=adi%2f427 7>. Acesso em: 20 out 2012. 57 desviantes; nesse raciocínio, afirmou o Deputado Fernando Gabeira que, “ninguém vira homossexual lendo o Diário Oficial”103 No que tange a não procriação, deve-se observar que o objetivo da tutela jurisdicional referente a união estável não é a garantia de procriação, tendo que muitos casais constituem união estável sem filhos. 3.7.2 Princípio da dignidade da pessoa humana Há correntes doutrinárias que defendem tal princípio como o mais importante do ordenamento jurídico constitucional. É ele a base de todos os outros princípios, e de todas as regras que regulam a sociedade e seus direitos. Seria esse o motivo de tal princípio estar previsto somente após o princípio da soberania, no texto constitucional, isto é, está positivado no artigo 1º, inciso III, da CF, conforme abaixo: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui‑se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; 104 III – a dignidade da pessoa humana; A dignidade “é absoluta, plena, não pode sofrer arranhões nem ser vítima de argumentos que a coloquem num relativismo105”, é característica nata à pessoa. O princípio da dignidade da pessoa humana consiste na proteção e reconhecimento de todos os projetos pessoais e coletivos que envolvam o indivíduo. Nesse entendimento preceitua Rizzato Nunes: Mas acontece que nenhum indivíduo é isolado. Ele nasce, cresce e vive no meio social. E aí, nesse contexto, sua dignidade ganha [...] um 103 DIAS, Maria Berenice. União homossexual. Aspectos sociais e jurídicos. Disponível em: <http://www.mariaberenice.com.br/uploads/5_-_uni%e3o_homossexual__aspectos_sociais_e_jur%eddicos.pdf>. Acesso em: 8 out 2012. P. 2. 104 BRASIL. Constituição (1988), artigo 1º, inciso III. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, Senado Federal, 1988. 105 NUNES, Rizzato. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência. 3.ed. Rev. Ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. P. 60-63. 58 acréscimo de dignidade. Ele nasce com integridade física e psíquica, mas chega um momento de seu desenvolvimento em que seu pensamento tem de ser respeitado, suas ações e seu comportamento – isto é, sua liberdade – sua imagem, sua intimidade, sua consciência [...], etc., tudo compõe sua 106 dignidade . Tendo isto, conclui-se que o casal homossexual é detentor de tal direito tanto quanto do casal heterossexual, ou seja, levando-se em consideração que toda pessoa tem sua dignidade, os homoafetivos não podem ser discriminados pela sua conduta social ou orientação sexual diversa. Logo, se o Estado resiste em reconhecer a união homoafetiva, e consequentemente todos seus respectivos direitos, instiga e “apoia” a sociedade quanto aos atos discriminatórios em relação a esta minoria. Ou seja, a sociedade com base no não reconhecimento pelo Estado sente-se respaldada para todo e qualquer ato discriminatório negativo direcionado aos homoafetivos, e atentatório ao princípio da dignidade da pessoa humana. [...] se a orientação sexual é atributo inato e imutável da personalidade de um indivíduo, não pode haver discriminação e vedação de direitos fundada nestas bases, sob pena de estar se deferindo tratamento 107 injustificável à pessoa natural. Tendo em vista que os homoafetivos são detentores do direito fundamental a dignidade da pessoa humana, assim como qualquer outro cidadão, a jurisprudência tem concordado com o presente entendimento. APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE. É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre duas mulheres de forma pública e ininterrupta pelo período de 16 anos. A homossexualidade é um fato social que se perpetua através dos séculos, não mais podendo o Judiciário se olvidar de emprestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de sexos. É o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações homoafetivas constitui afronta aos direitos humanos por ser forma de privação do direito à vida, violando 108 os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. 106 NUNES, Rizzato. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência. 3.ed. Rev. Ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 63. 107 VARGAS, Fábio de Oliveira. União homoafetiva: direito sucessório e novos direitos. 2. Ed. Curitiba: Juruá, 2011. P. 90. 108 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº 70012836755; 7ª Câmara Cível; Relator (a) Desa. Maria Berenice Dias. Porto Alegre, 21 de dezembro de 2005. Disponível em: <http://www.mariaberenice.com.br/pt/jurisprudencia-relacoes-homoafetivas.dept>. Acesso em: 15 out 2012. 59 3.7.3 Princípio do direito à liberdade É considerado um dos princípios basilares do ordenamento jurídico brasileiro. Está elencado no artigo 5º, caput, da Carta Magna, juntamente com outros principais princípios, assim dita o dispositivo: Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo‑se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à 109 segurança e à propriedade, nos termos seguintes [...]. Consiste na possibilidade do indivíduo determinar os atos que direcionarão sua existência, desde que não restrinja direitos de terceiros. Todos os projetos protegidos pelo princípio da dignidade da pessoa humana poderão realizar-se, haja vista a liberdade da pessoa para tal. Deste mesmo modo, o indivíduo tem a plena autonomia e liberdade de escolher a pessoa com quem deseja constituir uma família, independente de cor, raça ou sexo. Tal direito deve ser garantido a todos os cidadãos, todavia é negado aos homoafetivos quando estes decidem constituir uma família por pessoas do mesmo sexo. O Estado, por sua vez, ao negar tal liberdade aos casais homossexuais, provoca o cerceamento dos direitos que lhe são devidos. Assim concorda a doutrina de Fábio Oliveira Vargas, quanto ao dever legal de proteger e garantir a liberdade à pessoa: É tarefa inafastável da lei conferir direitos às pessoas independentemente de sua orientação sexual, pois tal se configura uma prerrogativa inerente à liberdade de todo ser humano, que não merece ser 110 discriminado por sua característica pessoal fora de seu controle. 109 110 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Artigo 5º. Senado Federal, Brasília, DF, 1988. VARGAS, Fábio de Oliveira. União homoafetiva: direito sucessório e novos direitos. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 91. 60 Logo, é visto que o Estado não pode cercear o direito à liberdade do indivíduo, garantido na Constituição Federal, tendo em vista que o Estado não pode determinar à pessoa como e com quem esta construirá sua felicidade. 3.7.4 Princípio da proteção à segurança jurídica O referido princípio está consagrado na Constituição, em seu artigo 5º, inciso XXXVI. In verbis: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo‑se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; Tem como objetivo proteger a estabilidade e devido gozo dos direitos do indivíduo, ou seja, visa assegurar aos cidadãos que os atos por estes praticados terão efeitos e respaldos jurídicos, quando originados de um direito legítimo. Como demonstra o dispositivo, o Estado assegura esta proteção por meio da garantia do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada. E, como bem demonstra os autores Paulo Hamilton e Miguel Augusto: O direito adquirido é aquele que já se incorporou ao nosso patrimônio ou personalidade. O ato jurídico perfeito é aquele que já se consumou segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou (art. 6º, § 1º, LICC). A coisa julgada é a decisão judicial de que não cabe mais recurso 111 (art. 6º, § 3º, LICC c/c art. 467 do CPC) Nesse raciocínio, J.J. Canotilho preceitua “[...] considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica – garantia da estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – [...]112”, isto é, a todos é garantida a devida estabilidade jurídica dos atos praticados. 111 SIQUEIRA JR., Paulo Hamilton; OLIVEIRA, Miguel Augusto Machado de. Direitos humanos e cidadania. 3.ed. Rev. E atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p.228 112 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 7ª ed., 9ª reimp. Coimbra, Portugal: Editora Edições Almedinas, 2011. p. 257. 61 Desse modo, os homoafetivos não podem ficar a margem desta proteção estatal, haja vista que são cidadãos como qualquer outro e detém os mesmo direitos, não podendo ter negado a aplicação dos princípios constitucionais. O fato de não haver legislação específica, não os determina pessoas sem direito a igualdade, a segurança jurídica e a dignidade da pessoa humana. 3.8 ENTENDIMENTOS ATUAIS Após a decisão do Supremo Tribunal Federal, a jurisprudência em sua maioria tem reconhecido as uniões homoafetiva e garantido grande parte de seus direitos. Todavia, quanto ao entendimento doutrinário, persistem correntes divergentes no que tange a união entre pessoas do mesmo sexo. Em um primeiro momento, alguns doutrinadores ainda resistem em entender possíveis os direitos decorrentes da união homoafetiva. A omissão legislativa ainda impera de forma que, para alguns doutrinadores, o entendimento ainda é de sociedade de fato. Desta forma, os direitos decorrentes da união homoafetiva restam prejudicados, principalmente o sucessório. Todavia, a segunda parte da doutrina, liderada por Maria Berenice Dias, defende a igualdade de uniões, seja formada por pessoas hetero ou homossexuais. Devendo estas uniões ser regidas pelo Direito de Família, assim como ter assegurado seus direitos sucessórios, alimentares, dentre outros benefícios, com base na analogia. O reconhecimento pelo STF gerou grande repercussão social quanto ao assunto, de modo que entendimentos arcaicos quanto a nova realidade presente em todas as sociedades, fossem desaparecendo. Assim entendeu a Des. Carmelita Brasil, que concordou ser a Vara de Família competente para julgar conflitos envolvendo casais homoafetivos. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. VARA CÍVEL. VARA DE FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE UNIÃO HOMOAFETIVA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE FAMÍLIA. 62 Conquanto a Constituição Federal mencione expressamente como união estável aquela formada por homem e mulher, a jurisprudência pátria evoluiu no sentido de que a proteção estatal deve albergar também as uniões formadas por indivíduos do mesmo sexo. A observância dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, liberdade, proteção das minorias e não-discriminação impõe que seja considerada como entidade familiar a união homoafetiva. Tendo em vista que, segundo o art. 27 da Lei de Organização Judiciária, compete ao Juiz da Vara de Família processar e julgar as ações de estado e aquelas decorrentes do art. 226 da Constituição Federal, a ação de reconhecimento de união homoafetiva deve ser julgada pelo Juízo de 113 Família. Um terceiro entendimento, pouco difundido, defende a garantia dos direitos dos homoafetivos baseados tão somente nos princípios constitucionais e civis, de modo que excluem a analogia e configuração de sociedade de fato. Fábio Oliveira Vargas opina que esta corrente, [...] Afasta a sociedade de fato e a analogia com a união estável como soluções para a tutela dos direito oriundos da união homossexual, e constrói a família homossexual com base em subsídios puramente civis e 114 constitucionais. Apesar de a jurisprudência ter demonstrado que está mudando seu posicionamento e adotando a recente decisão, a união estável entre duas pessoas do mesmo sexo, ainda exige legislação específica que regulamente tal instituto como um todo. O principal projeto relacionado às uniões homossexuais, que deu origem a essa discussão no Congresso Nacional, é o Projeto nº 1.151/1995115, apresentado pela Deputada Marta Suplicy, que tem por objetivo disciplinar a união civil entre pessoas do mesmo sexo. A Deputada acompanhada, também, dos Deputados Fernando Gabeira, Telma de Souza e José Fortunati são os parlamentares que assumiram publicamente o compromisso em defender os direitos da minoria homossexual. 113 BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Acórdão n. 563747, 20110020215214CCP, da 2ª Câmara Cível. Relator(a) CARMELITA BRASIL, julgado em 23/01/2012, p. 49. Disponível em: <http://tjdf19.tjdft.jus.br/cgibin/tjcgi1?DOCNUM=1&PGATU=1&l=20&ID=62764,83243,15823&MGWLPN=SERVIDOR1&NXT PGM=jrhtm03&OPT=&ORIGEM=INTER&pq1=uni%E3o%20homoafetiva>, Acesso em: 17 out 2012. 114 VARGAS, Fábio de Oliveira. União homoafetiva: direito sucessório e novos direitos. 2.ed. Curitiba: Juruá, 2011., p. 93 115 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto De Lei n. 1.151/1995. Disciplina a união civil entre pessoas do mesmo sexo e dá outras providências. p.5828. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD21NOV1995.pdf#page=41>. Acesso em: 18 out 2012. 63 Traziam como argumento ao projeto apresentado: “’legalizar o que já existe’ e ‘amparar os homossexuais que perdem seus parceiros’, principalmente em função da Aids116.” Os Deputados tinham plena consciência da resistência que tal projeto enfrentaria frente às bancadas mais religiosas do Congresso Nacional. O doutrinador Luiz Mello concorda ao expor, Frente a essas resistências potenciais, qualquer alusão à autorização de adoção de crianças por casais homossexuais já estava afastada em principio, como explicitado em entrevista pela deputada marta suplicy, ainda antes de tomar posse na câmara dos deputados: “isso na cabeça do brasileiro ainda levará muito tempo e também não saberia dizer como a criança criada por duas pessoas o mesmo sexo seria recebida pela sociedade daqui, é preciso ir passo a passo”. Assim, o reconhecimento jurídico das uniões entre pessoas do mesmo sexo teria como objetivo assegurar aos homossexuais apenas o direito à inclusão de seus parceiros como dependentes no âmbito da previdência social e dos planos de saúde privados bem como à herança, de forma a facilitar o tratamento do cônjuge 117 doente e a sobrevivência do viúvo. Desta forma, em seu texto, o Projeto não se refere ao casamento ou à adoção, e tem o intuito tão somente de permitir que casais que mantenham uma convivência duradoura possam registrar sua união civil. A Deputada justifica o texto de seu Projeto, de forma atual (apesar de o projeto datar o ano de 1995), isto é, há muito se intenta regularizar os direitos dos homossexuais. Realidade e direitos Esse projeto pretende fazer valer o direito à orientação sexual, hetero, bi ou homossexual, enquanto expressão dos direitos inerentes à pessoa humana. Se os indivíduos têm direito à busca da felicidade, por uma norma imposta pelo direito natural a todas as civilizações, não há porque continuar negando ou querendo desconhecer que muitas pessoas só são felizes se ligadas a outras do mesmo sexo. Longe de escândalos ou anomalias , é forçoso reconhecer que essas pessoas só buscam o respeito às suas uniões enquanto parceiros, respeito e consideração que lhes é devida pela 118 sociedade e pelo estado . 116 MELLO, Luiz. Novas famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. P. 53- 54. 117 MELLO, Luiz. Novas Famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. P, 54. 118 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto De Lei n. 1.151/1995. Disciplina a união civil entre pessoas do mesmo sexo e dá outras providências. p.5828. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD21NOV1995.pdf#page=41>. Acesso em: 18 out 2012. 64 O projeto tinha o condão de verificar a diferença de tratamento entre uniões hetero e homossexuais, e desta forma permitir que os mesmos direitos sucessórios garantidos aos heterossexuais fossem, também, garantidos aos homoafetivos. Luciana de Paula Assis Ferriani observa que, se aprovado o Projeto de Lei nº 1.151/95, os companheiros homoafetivos teriam maiores vantagens no que tange aos direitos sucessórios, em comparação aos companheiros heterossexuais. 119 Conforme artigo 13 do referido Projeto: Art. 13. São garantidos aos contraentes de parceria civil registrada com pessoa do mesmo sexo, desde a data de sua constituição, os direitos à sucessão nas seguintes condições: I – o parceiro sobrevivente terá direitos, desde que não firme novo contrato de parceria civil registrada, ao usufruto da quarta parte dos bens do de cujus, se não houver filhos deste; Ii – o parceiro sobrevivente terá direito, enquanto não contratar nova parceria registrada, ao usufruto de metade dos bens do de cujus, se não houver filhos, embora sobrevivam descendentes; Iii – na falta de descendentes e ascendentes, o parceiro terá direito à totalidade da herança; Iv – se os bens deixados pelo autor da herança resultarem de atividade em que haja colaboração do parceiro, terá o sobrevivente direito à 120 metade dos bens. Contudo, tal observação resta somente como curiosidade, visto que tal Projeto não possui sequer previsão de votação no Congresso Nacional. No mesmo ano, de 1995, e em 2001 (Projeto 5.252), o Deputado Roberto Jefferson também apresentou dois projetos em substituição ao pioneiro, que tinha como o objetivo garantir os direitos a sucessão dos companheiros. O primeiro foi apresentado como substitutivo, e tratou da sucessão em si e forma pormenorizada e de abordagem diversa, já o segundo não trouxe muitas inovações no que se refere a sucessão do companheiro. Em abril do ano de 2006, a deputada Laura Carneiro propôs o projeto de lei nº 6.874, que abrange a herança e sucessão na célula familiar homossexual, isto é, o projeto tem o objetivo de alterar o Código Civil. Vejamos: Tal projeto de lei tem por escopo alterar o código civil, inserindo em seu texto dispositivos que legalizem o contrato de união estável entre casais homossexuais, fazendo referencia expressa aos direitos sucessórios 119 FERRIANI, Luciana de Paula Assis. Sucessão do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p.142. 120 Ibid, p.141. 65 concedidos por essa lei, em seu art. 1.790, para união entre homem e 121 mulher. A deputada Laura Carneiro quando da apresentação de seu projeto, argumentou de forma clara e objetiva, demonstrando o preconceito social e a resistência parlamentar, desde o primeiro projeto apresentado: No caso dos homossexuais, a sociedade brasileira, com suas enormes contradições, apenas faz que aceita. Todavia, em assomos freqüentes de falso moralismo, recusa-se a assimilar com naturalidade comportamentos que fujam a seus estereótipos, sem compreender que nas diferenças – no caso, essas diferenças não são apenas comportamentais, mas, conforme já demonstra a ciência, também de cunho biológico – nas diferenças, repito, encontra-se a riqueza, da tolerância em relação a alguns decorre o crescimento do todo. (...) Essa, senhoras e senhores deputados, constitui uma luta antiga. Outros parlamentares já a encamparam e, até aqui, não tiveram êxito. Sob a pressão de segmentos conservadores, o assunto dormita em várias comissões desta casa. Entendo porém que, por maiores que sejam as forças em contrário, não é o momento de nos acovardarmos e desistir, 122 frustrando a expectativa de milhões de brasileiros. Caso esta lei viesse a ser aprovada pelo Congresso Nacional, e efetivamente entrasse em vigor, os contratos de união estável registrados poderiam conferir direitos sucessórios entre os companheiros, haja vista que esta regulamentação teria devido respaldo legal. Situação contrária da que muito ocorre atualmente, tendo que os companheiros não podem ter seus direitos hereditários assegurados devido a falta de positivação, como já demonstrado. 3.9 O DIREITO SUCESSÓRIO NA UNIÃO HOMOAFETIVA A união homoafetiva apesar de ser reconhecida como entidade familiar, tendo que ser tratada com tal e ter seus direitos devidamente garantidos por lei, ainda encontra grandes dificuldades no que se refere aos direitos sucessórios. 121 VARGAS, Fábio de Oliveira. União homoafetiva: direito sucessório e novos direitos. 2. Ed. Curitiba: Juruá, 2011. P. 147. 122 BRASIL. Câmara dos Deputados. Discurso de Apresentação do Projeto de Lei 6.874/06, pela Deputada Laura Carneiro. p. 2-4. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/394353.pdf>. Acesso em 28 out 2012. 66 Ocorre que a omissão legislativa ocasiona a confusão de muitos doutrinadores e magistrados quando da apreciação da possibilidade ou não da concessão dos direitos sucessórios aos homoafetivos. Diante disso, a solução de entendimento pacífico seria usar a analogia com a união estável entre heterossexuais, para definir os respectivos direitos. [...], mesmo entendendo a união homossexual como um tipo próprio de grupamento familiar, a devolução da herança em seu âmbito deverá seguir um modelo já legislado, e tudo aponta no sentido de que a união 123 estável, em virtude de sua natureza de fato jurídico [...]. O reconhecimento da união entre homoafetivos, pelo STF, confirmou a garantia dos direitos sucessórios pela analogia com a união estável entre heterossexuais. Todavia o direito a sucessão entre companheiros homoafetivos, como já dito, não possui legislação especifica, de forma que este mesmo direito fica regulado pelo controverso, artigo 1.790, do CC/02. Fábio Oliveira Vargas entende que o testamento é a forma mais segura de garantir a sucessão do companheiro. Entretanto, como a sucessão ex lege da união estável é prevista pelo controverso art. 1.790 do Código Civil, os casais homoafetivos que desejarem maior segurança quanto a direitos hereditários ainda podem utilizar-se, com níveis satisfatórios de garantia, das três espécies ordinárias 124 de testamento disponibilizadas pela lei brasileira. Resta por concluir o entendimento ao afirmar que o testamento é: ato de realização relativamente simples, o testamento certamente evitaria anos de batalhas judiciais travadas nos inventários em que é necessário discutir a existência de união estável homossexual entre o de 125 cujus e o companheiro supérstite Todavia, são poucas as pessoas que atualmente resguardam seus direitos e patrimônio por meio testamento. O brasileiro tem uma cultura que pouco fala da morte, de modo que a maioria da população não deixa testamento. 123 VARGAS, Fábio de Oliveira. União homoafetiva: direito sucessório e novos direitos. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2011. P. 94. 124 VARGAS, Fábio de Oliveira. União homoafetiva: direito sucessório e novos direitos. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2011. P.133. 125 VARGAS, Fábio de Oliveira. Loc. Cit. 67 Nesta ocasião, entretanto, a sucessão se dá pelo art. 1.788, do Código Civil, que prevê a transmissão do patrimônio aos herdeiros legítimos quando na ausência de testamento. Ocorre que, o companheiro sobrevivente não está no rol de herdeiros necessário, ou seja, por mais que tenha passado anos em convivência e esforço mútuo, será chamado a suceder tão somente após os herdeiros necessários, os quais em muitas ocasiões se negaram a participar da vida do casal por mero preconceito. Assim preceitua Fábio Oliveira Vargas: Por força de lei, o companheiro sobrevivente geralmente vê-se alijado do patrimônio que ajudou a construir em favor dos herdeiros legítimos do morto, pessoas que, não raro, jamais tomaram conhecimento daquela união, ou se tomara, ignoraram-na, expondo seu preconceito e 126 rejeição quanto à orientação sexual homossexual daquele familiar. Contudo, deve-se ressaltar que, apesar do testamento ser uma forma segura de garantir o direito à sucessão do companheiro supérstite, só é válido quando realizado se respeitados os limites impostos pela lei. O testamentário não pode dispor de todo seu patrimônio, quando houver herdeiros necessários. Tendo isto, pode determinar toda e qualquer destinação ao patrimônio testado. E, como já afirmado nesse trabalho, as regras dos testamentos se darão de acordo com a legislação em vigor, isto é, se a morte ocorreu antes de 2002, o testamento e todo direito sucessório será regulado pelo Código Civil de 1916. Afastar os herdeiros necessários não é possível, exceto pelas hipóteses previstas no art. 1.814127, CC/02, qual seja as possibilidades de exclusão por deserdação. O presente rol é taxativo quanto as possibilidades ou não do afastamento do herdeiro. 126 VARGAS, Fábio de Oliveira. União homoafetiva: direito sucessório e novos direitos. 2. Ed. Curitiba: Juruá, 2011. P.134. 127 BRASIL. Novo Código Civil. Art. 1.814, texto original: “São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários: I - que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente; II - que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro; III - que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.” Brasília, DF, Senado Federal, 2002. 68 Vale ressaltar que mesmo que um herdeiro seja deserdado por qualquer das hipóteses do artigo anterior, o sucessor deste, por sua vez receberá o quinhão referente ao ascendente deserdado. Entretanto, caso o testador só possua herdeiros legítimos, como os colaterais, poderá dispor de todo seu patrimônio, seja destinando todo ele ao companheiro ou a quem lhe convier. O contrato de união estável, por sua vez, não cria o instituto em si, apenas regula e demonstra sua existência no intuito de facilitar sua comprovação em sede judicial. Ou seja, tal contrato tem validade no Direito Contratual, desde que preenchidos todos os requisitos, podendo regulamentar o patrimônio e a sua meação, em caso de dissolução da união; o que não quer dizer que regula direitos sucessórios do casal. O contrato de união estável, mesmo que registrado, não possui lei, a qual possa se referir e legitimá-lo no direito positivo. Dessa forma, não é possível que haja cláusula reguladora de sucessão, tendo em vista a proibição presente no art. 426128, do Código Civil. Caso contrário, seria caracterizado “pacto sucessório” ou “pacta corvina”, os quais regulam a sucessão de herança de pessoa viva, o que não é permitido pela legislação. Como dito, dificilmente o casal se “previne” e deixa seu patrimônio disposto por meio de testamento, de modo a garantir, pelo menos, parte dele ao outro companheiro. Nos casos em geral, o companheiro supérstite enfrenta longos e difíceis processos judiciais no intuito de ter reconhecida a união, e garantidos os direitos a sucessão; muitas vezes, tais direitos eram concedidos parcialmente. Ocorre que, em alguns casos, o companheiro resta sem nenhuma parte do patrimônio, já que não integra o rol de herdeiros necessários, e parentes colaterais, muitas vezes que não tinham convivência com o de cujus, restam por suceder seu patrimônio. Entretanto, em alguns casos é possível que o juiz aplique as leis 8.971/1994 e 9.278/1996, haja vista que o Código Civil é omisso em alguns assuntos, p. ex., 128 BRASIL. Novo Código Civil. Art. 426, texto original: “Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.” Brasília, DF, Senado Federal, 2002. 69 segundo a lei 9.278/96 o companheiro tem direito ao direito real de habitação do imóvel da família129. Tendo isto, percebe-se que os direitos sucessórios ainda são os direitos mais controvertidos no que se refere às uniões homoafetivas. Este direito de suma importância não é resolvido pela analogia, haja vista que não possui lei reguladora de direito específico. Luciana de Paula Assis Ferriani, nesse mesmo entendimento, conclui acerca do testamento, “enquanto não houver aprovação do Projeto de Lei n. 1.151/95 ou mesmo a criação de outra norma, entendemos que essa seja a forma mais segura de proteger os interesses sucessórios do parceiro homossexual”130. Contudo, por analogia, com base na decisão do STF e princípios constitucionais os magistrados têm concedido outros direitos decorrentes da morte do companheiro homoafetivo. O direito a adoção por casais homoafetivos, ainda, é bastante repudiado, já que muitos doutrinadores questionam a aceitação social da criança, sem relevar as opiniões das bancadas religiosas quanto ao instituto. Apesar, desse repúdio social, o referido instituto já foi permitido em alguns jurados, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul principalmente. Em contrapartida do direito a sucessão, o direito de inserção do nome do companheiro no plano de saúde já é matéria de entendimento pacífico, conforme demonstra julgado do Superior Tribunal de Justiça. PROCESSO CIVIL E CIVIL - PREQUESTIONAMENTO AUSÊNCIA - SÚMULA 282/STF - UNIÃO HOMOAFETIVA - INSCRIÇÃO DE PARCEIRO EM PLANO DE ASSISTÊNCIA MÉDICA - POSSIBILIDADE DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO-CONFIGURADA. - Se o dispositivo legal supostamente violado não foi discutido na formação do acórdão, não se conhece do recurso especial, à míngua de prequestionamento. - A relação homoafetiva gera direitos e, analogicamente à união estável, permite a inclusão do companheiro dependente em plano de assistência médica. - O homossexual não é cidadão de segunda categoria. A opção ou condição sexual não diminui direitos e, muito menos, a dignidade da pessoa humana. 129 CRUZ, Luciana Bastos. MATOS, Raimundo Giovanni Franca. Efeitos patrimoniais na união homoafetiva. Ideias & Inovação, Aracaju, V. 01, N.01, p. 59-67, out. 2012. 130 FERRIANI, Luciana de Paula Assis. Sucessão do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p.145. 70 - Para configuração da divergência jurisprudencial é necessário confronto analítico, para evidenciar semelhança e simetria entre os arestos 131 confrontados. Simples transcrição de ementas não basta. Nesse mesmo caminho, segue o direito de pensão por morte ao companheiro supérstite. DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA. UNIÃO HOMOAFETIVA. PAGAMENTO DE PENSÃO POR MORTE. CUSTAS PROCESSUAIS. FAZENDA PÚBLICA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. FIXAÇÃO EQUITATIVA. 1 - Sendo reconhecido que a autora vivia em união estável com sua falecida companheira há mais 28 de anos, vínculo esse que só se rompeu com o óbito da segurada, merece acolhimento o pedido inaugural de pagamento pensão por morte, cujo marco inicial é contado a partir da data do óbito. 2 - A Fazenda Pública é isenta do pagamento das custas e despesas processuais devendo, porém, quando vencida, reembolsar a parte vencedora na quantia paga a este título. 3 - Vencida a Fazenda Pública, os honorários advocatícios devem ser fixados consoante apreciação equitativa do julgador, de acordo com o que determina o art. 20, § 4°, do CPC, atendidas as normas das alíneas “a”, “b” e “c” do § 3° do mesmo artigo. Remessa obrigatória e apelação conhecidas 132 e parcialmente providas. Por fim, tem-se que os direitos sucessórios aos casais homoafetivos ainda são alvos de diferentes entendimentos, e vítima da omissão legislativa tornando a árdua busca pelos seus direitos, por parte dos homoafetivos. Entretanto, a jurisprudência em geral caminha para o entendimento pacífico, com base na decisão do STF pelo reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar. 131 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 238.715/RS, da Terceira Turma. Relator Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, em 07 de março de 2006, p. 263. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?Tipo_visualizacao=null&livre=%28%28compan heiro%29+E+%28%22HUMBERTO+GOMES+DE+BARROS%22%29.min.%29+E+%28%22Tercei ra+Turma%22%29.org.&b=ACOR#DOC1>. Acesso em 25 out 2012. 132 BRASIL. Tribunal de Justiça de Goiás. Apelação Cível n. 200991337085, da 3ª CAMARA CIVEL. Relator (a) DR(A). SANDRA REGINA TEODORO REIS, em 13 de março de 2012. Disponível em: <http://www.tjgo.jus.br/index.php?sec=consultas&item=decisoes&subitem=jusrisprudencia&acao=c onsultar>. Acesso em: 25 out 2012. 71 CONCLUSÃO No presente trabalho de conclusão de curso, foi abordado o tema acerca do reconhecimento da união homoafetiva no que tange aos direitos sucessórios. Trata-se de um tema atual, que possui divergentes opiniões, tendo em vista a recente decisão do Supremo Tribunal Federal. A referida decisão consiste no reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar assim como união estável heterossexual e a outra modalidade de família (família monoparental), o que significa afirmar que as uniões homossexuais tem todo o direito de receber os mesmos direitos dispensados a união expressamente prevista na Constituição Federal, qual seja a união estável entre homem e mulher. O STF restou por assim decidir após longo período de divergências doutrinárias e jurisprudenciais, que não tinham entendimento consolidado haja vista a falta de previsão legal. Desta forma, muitos casais homoafetivos tinham seus direitos cerceados gerando grande insegurança jurídica. A união estável é instituto presente na sociedade desde seus primórdios, todavia foi devidamente regulamentada quando da promulgação da Constituição Federal, em 1988. Desde então, os direitos decorrentes desta união foram regulados por leis específicas, as quais foram complementadas pelo Código Civil de 2002. Entre esses direitos encontra-se o direito à sucessão dos companheiros. Ocorre que, o novo Código Civil restou por regular o direito sucessório de forma simplificada e pouco clara. Desta forma, restringiu os direitos direcionados aos companheiros, em relação às leis anteriores específicas. Com base nos direitos da união estável (entre homem e mulher), os casais homossexuais passaram a reivindicar os mesmos direitos, visto que sempre foram deixados à margem da lei e da sociedade. As primeiras manifestações homossexuais na sociedade se deram na Roma e Grécia Antiga, onde tal comportamento era comum, mas não externalizado. Este comportamento se manteve até a ascensão da Igreja, na Idade Média. Com o advento da Igreja, toda e qualquer manifestação homossexual era (e, ainda é) condenada, com base em diversos princípios religiosos; assim a sociedade 72 passou a considerar a homossexualidade como doença, sendo sua conduta altamente reprovável, passível de exclusão pela Igreja. Contudo, com o evoluir da sociedade e o surgimento de novas constituições de família, a homossexualidade foi desclassificada do rol de doenças, e passou a ser entendida como característica inerente a determinada pessoa, ou seja, característica acima da vontade da pessoa. Ocorre que, apesar do surgimento de diversos casais homoafetivos requerendo seus direitos, a sociedade ainda mantinha os valores religiosos e o preconceito. Estes casais, então, dependiam do entendimento do magistrado para ter ou não concedidos seus direitos. No que tange ao direito comparado, a união homoafetiva já foi reconhecida em vários países, e em alguns o casamento homossexual também foi permitido. Na América somente o Canadá, alguns estados dos Estados Unidos, a Argentina, e agora o Brasil permitiram o registro da união civil. No ordenamento jurídico brasileiro nunca houve qualquer norma que regulamentasse as uniões homoafetivas, para que seus direitos fossem devidamente garantidos. Projetos de lei já foram apresentados no Congresso Nacional, todavia a bancada religiosa é a responsável por gerar grandes impasses para a aprovação destes projetos. O Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277, que foi distribuída por dependência da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, em 2011, demostrou a clara violação dos princípios constitucionais, como o princípio da legalidade, da proibição à discriminação, da liberdade e da segurança jurídica. Por fim, a Corte decidiu pelo reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, devendo o artigo 226, § 3º, da Constituição Federal ser interpretado nesse entendimento. A referida decisão foi um marco histórico na sociedade brasileira, haja vista que tal decisão deu embasamento para que muitos magistrados passassem a entender possível a concessão de vários direitos civis aos homoafetivos. Todavia, o direito sucessório em si ainda é discutido e dificilmente completamente concedido. Apesar, da decisão da Corte Suprema, alguns magistrados não concedem a sucessão ao companheiro homoafetivo pela falta de legislação específica, fato esse que impede a completa regulação deste direito. 73 Quanto ao contrato de convivência, possível para uniões homoafetivas, este não legitima o direito a sucessão, tendo que não é possível dispor sobre bens de pessoa viva. Tendo esse histórico evolutivo desde as primeiras manifestações até o merecido reconhecimento, as uniões homoafetivas prosseguem na luta por seus direitos, principalmente o sucessório. Este, por sua vez, depende tão somente dos membros do Congresso Nacional, para que seja possível garantir aos casais entre pessoas de mesmo sexo a garantia de seus devidos direitos e a devida aplicação dos princípios constitucionais a todos os cidadãos. 74 REFERÊNCIAS AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato: de acordo com o atual Código Civil, Lei nº 10.406, de 10-01-2002. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011. 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