CENTRO UNIVERSITÁRIO FLUMINENSE - UNIFLU FACULDADE DE DIREITO DE CAMPOS PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO FERNANDO LAÉRCIO ALVES DA SILVA MÉTODO APAC: MODELO DE JUSTIÇA RESTAURATIVA APLICADA À PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE Campos dos Goytacazes - RJ 2007 FERNANDO LAÉRCIO ALVES DA SILVA MÉTODO APAC: MODELO DE JUSTIÇA RESTAURATIVA APLICADA À PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE Dissertação apresentada à banca examinadora da Faculdade de Direito de Campos como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. João Ricardo Wanderley Dornelles. Campos dos Goytacazes - RJ 2007 Silva, Fernando Laércio Alves da. S586m Método APAC: modelo de justiça restaurativa aplicada à pena privativa de liberdade / Fernando Laércio Alves da Silva; orientador João Ricardo Wanderley Dornelles. – Campos (RJ) : Faculdade de Direito de Campos, 2007. 185 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Direito de Campos. 1. Processo penal – Brasil. 2. Execução (Processo penal) – Brasil. 3. Pena – Brasil. 4. Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) – Brasil. 5. Regime penitenciário - Brasil. 6. Preso – Comportamento – Brasil. I. Dornelles, João Ricardo Wanderley, or. II. Título. CDD 345.05 FERNANDO LAÉRCIO ALVES DA SILVA MÉTODO APAC: MODELO DE JUSTIÇA RESTAURATIVA APLICADA À PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE COMISSÃO EXAMINADORA ____________________________ Prof. Dr. João Ricardo Wanderley Dornelles ____________________________ Profa. Dra. Ester Kosovski ____________________________ Prof. Dr. Rogério Dultra dos Santos Campos dos Goytacazes, 22 de março de 2007. “Dedico esse trabalho a Silvia, Clarice e meus pais, Laércio e Ângela, bem como a todos aqueles que acreditam no perdão e na recuperação do homem”. “Muitos são aqueles que merecem ser lembrados nesse momento que, de uma forma ou de outra, direta ou indiretamente, contribuíram para este trabalho. Em primeiro lugar, é preciso agradecer a Deus. Não a um Deus intangível e distante, mas um Deus próximo, amigo, fonte de inspiração e sustentáculo de todo o trabalho apaqueano. Hão de ser lembrados também todos os professores do Curso de Mestrado da Faculdade de Direito de Campos com quem tive a graça de conviver e muito aprendi ao longo desses dois anos, em especial os professores João Ricardo Dornelles e Ester Kosovski. Não poderia ainda deixar de agradecer aos Doutores Mário Ottoboni e Valdeci Ferreira, sempre atenciosos às questões levantadas, ao Sérgio Cristiano e demais recuperandos e voluntários da APAC de Itaúna e da APAC de Viçosa, afinal, este trabalho existe também graças a vocês. Por fim gostaria de agradecer aos colegas professores e alunos da Faculdade de Direito da UNIPAC – Campus de Ubá, já que, sem o apoio e a paciência de vocês, não conseguiria, ao Edenilson, que me recebeu com tanta atenção em Campos dos Goytacazes e à Amélia, que com paciência e zelo realizou a revisão deste trabalho. Sem o apoio de cada um de vocês este projeto jamais se tornaria realidade”. “É hora de despertar, acordar pra realidade, construir nessa cidade a Civilização do Amor. Apresentar Jesus ao mundo, mostrar a face do Senhor. Dizer que Ele é puro amor e tudo pode renovar. Então, no rosto sofrido felicidade haverá. Haverá comunhão de todos no mesmo Espírito e a paz acontecerá. Civilização do Amor! Civilização do Amor! Andaremos sem nos cansar nas veredas do Criador. Os caminhos do Senhor, Ele mesmo nos mostrará. E cada lar será um templo brilhando a luz salvação, cada palavra uma oração e cada canto um louvor. Então, no rosto sofrido felicidade haverá. Haverá comunhão de todos no mesmo Espírito e a paz acontecerá. Civilização do Amor! Civilização do Amor! Primeiro devemos tratar o deserto do nosso coração, buscar a nossa conversão, fertilidade interior. Pessoas novas pelas ruas, mudadas pelo Espírito, cidades sem conflitos. E tudo em nome de Jesus. Então, no rosto sofrido felicidade haverá. Haverá comunhão de todos no mesmo Espírito e a paz acontecerá. Civilização do Amor! Civilização do Amor!” Eros Biondini AUTOR: Fernando Laércio Alves da Silva RESUMO A crise do sistema carcerário tem se mostrado um dos mais complexos dilemas na sociedade contemporânea, tanto nos países desenvolvidos como nos em desenvolvimento e subdesenvolvidos. Tanto é assim que muitos pensadores chegam a pregar a total extinção do sistema como única forma de solução do problema. Outros, porém, seguem outro caminho, propondo alterações não apenas legislativas ou materiais, mas na própria filosofia que sustenta o sistema penal, servindo de exemplo dessa filosofia a proposta de aplicação da pena privativa de liberdade sob a égide do Método APAC (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado). O presente trabalho destina-se, exatamente à discussão dessa temática. Para tanto, analisa, de um lado, toda a estrutura do sistema carcerário, com enfoque nas condições de cumprimento de pena no Brasil e, de outro lado, o mecanismo de funcionamento da filosofia apaqueana, averiguando-se a validade ou não do discurso doutrinário que sugere tal técnica como alternativa para solução do problema carcerário. Palavras-Chave: Direito Penal. Execução Penal. Pena Privativa de Liberdade. Justiça Restaurativa. Método APAC. AUTHOR: Fernando Laércio Alves da Silva ABSTRACT The crisis of the prison system has been shown as one of the most complex dilemmas in the contemporary society, as much in the developed countries as in the ones in development and underdeveloped. So, many thinkers have been announced the total extinguishing of the system as the only solution for the problem. Others, however, not only follow another way, considering legislative or material alterations, but in the proper philosophy that supports the system criminal, serving of example of this philosophy the proposal of the privative sentence of freedom application under the APAC Method (Association of Protection and Assistance to the Convict). The present work is destined, accurately to the discussion of this thematic. So, it analyzes, by a side, all the structure of the prison system, with approach in the conditions of sentence fulfillment in Brazil and, on the other, the mechanism of functioning of the apaqueana philosophy, inquiring the validity or not of the doctrinal speech that suggests this technique as the alternative for solving the prison problem. Key-words: Criminal law. Criminal execution. sentence . Restorative justice. APAC Method. Freedom deprivation SUMÁRIO LISTA DE TABELAS ................................................................................... 11 LISTA DE FIGURAS.................................................................................... 12 LISTA DE GRÁFICOS ................................................................................. 14 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS...................................................... 15 INTRODUÇÃO............................................................................................. 17 1 OBJETIVOS E MODALIDADES DE SANÇÃO PENAL NA HISTÓRIA DA SOCIEDADE OCIDENTAL: UMA LEITURA A PARTIR DAS CONDIÇÕES SÓCIO-ECONÔMICAS................................................................................ 21 1.1 A PENA NA IDADE MÉDIA: OS ASPECTOS DA PENA CORPORAL E A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO ........................................................................ 23 1.1.1 Clero, nobres e plebe: estratos e penas na alta idade média ....... 23 1.1.2 O corpo humano como destinatário das penas na baixa idade média........................................................................................................... 25 1.1.3 Um ponto essencial: a influência da religião no sistema punitivo e no surgimento da pena de prisão............................................................. 29 1.2 A SANÇÃO PENAL NA REALIDADE DA IDADE MODERNA................ 32 1.2.1 Mercantilismo e industrialização: a nova estrutura européia na idade moderna............................................................................................ 32 1.2.2 A lógica protestante e as casas de correção................................. 34 1.3 O ILUMINISMO E A BUSCA DE UMA JUSTIFICAÇÃO RACIONAL PARA A SANÇÃO PENAL ........................................................................... 37 1.3.1 As funções da pena segundo os iluministas ................................ 41 1.3.2 O panóptico de Bentham ................................................................ 44 1.4 ASPECTOS CONCRETOS DA POLÍTICA CARCERÁRIA NO PÓSILUMINISMO E NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA .............................. 47 1.5 A TEORIA ECLÉTICA DA PENA: DA IDÉIA DE MERKEL ÀS CRÍTICAS SOBRE O GARANTISMO PENAL ............................................................... 49 2 SISTEMA PUNITIVO BRASILEIRO: DO CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO À LEI DE EXECUÇÃO PENAL ................................................... 53 2.1 BREVE HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO CARCERÁRIA BRASILEIRA.. 53 2.1.1 A realidade nacional e seus efeitos no sistema punitivo brasileiro: da colônia ao império .............................................................. 53 2.1.2 O sistema penitenciário no brasil contemporâneo....................... 56 2.2 PARADIGMAS DA REFORMA DO CÓDIGO PENAL DE 1984 E DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL .............................................................................. 58 2.2.1 A exposição de motivos da Lei nº 7.209/84................................... 58 2.2.2 A exposição de motivos da Lei nº 7.210/84................................... 60 2.2.3 A função da pena na LEP e no Código Penal ............................... 62 2.2.4 Os mecanismos para a execução da pena privativa de liberdade: direito ou recompensa............................................................................... 64 2.3 BREVE DIAGNÓSTICO DO CÁRCERE NO BRASIL............................ 69 2.3.1 A capacidade carcerária brasileira ................................................ 69 2.3.2 O perfil do preso no Brasil.............................................................. 73 2.3.3 Os resultados da política carcerária brasileira ............................. 77 3 A DESVITIMIZAÇÃO DO CÁRCERE: DAS CRÍTICAS TRADICIONAIS À JUSTIÇA PENAL RESTAURATIVA ............................................................. 83 3.1 O SISTEMA PUNITIVO E SUA AÇÃO CRIMINÓGENA À LUZ DA ABORDAGEM SOCIOLÓGICA DE BAUMAN E DO ABOLICIONISMO PENAL...........................................................................................................83 3.1.1 Diagnóstico do sistema carcerário ................................................ 83 3.1.2 Cárcere e estrutural social: críticas ao papel assumido pelo sistema penal na sociedade de consumo.................................................84 3.2 JUSTIÇA RESTAURATIVA: OBJETIVOS E MÉTODOS DE UMA NOVA COSMOVISÃO DA JUSTIÇA PENAL .......................................................... 91 3.2.1 Fundamentos da justiça restaurativa ............................................ 91 3.2.2 Justiça restaurativa: nova técnica ou nova filosofia penal? ....... 95 3.3 PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE E JUSTIÇA RESTAURATIVA ...... 98 3.3.1 Conceitos antagônicos? ................................................................. 98 3.3.2 A humanização do cárcere pelos fundamentos da justiça restaurativa............................................................................................... 101 4 BREVE TRAÇADO DO MÉTODO APAC E DA METODOLOGIA DE TRABALHO NA APAC DE ITAÚNA...........................................................105 4.1 BREVE HISTÓRICO: DO PRESÍDIO HUMAITÁ AO PROJETO NOVOS RUMOS DA EXECUÇÃO PENAL .............................................................. 105 4.1.1 De pastoral carcerária a órgão auxiliar da justiça na Comarca de São José dos Campos ............................................................................. 105 4.1.2 A eleição como modelo de execução penal e a expansão do Método APAC ........................................................................................... 109 4.2 A FILOSOFIA APAQUEANA E OS ELEMENTOS DO MÉTODO APAC NA PROPOSTA DE EXECUÇÃO PENAL ................................................. 110 4.2.1 Valorização humana e senso de responsabilidade: as bases do Método APAC ........................................................................................... 111 4.2.2 Os 12 elementos do Método APAC de cumprimento de pena....113 4.3 ITAÚNA: A HISTÓRIA DA APAC “MODELO”...................................... 122 4.3.1 O desafio dos primeiros anos ...................................................... 122 4.3.2 A gestão carcerária em Itaúna: da cadeia pública ao novo CRS124 4.4 FUNCIONAMENTO E NÚMEROS DA APAC DE ITAÚNA: 1997-2006126 4.4.1 A capacidade carcerária e o perfil do preso de Itaúna............... 127 4.4.2 Estrutura administrativa da APAC de Itaúna .............................. 133 4.4.3 Metodologia de trabalho na APAC de Itaúna .............................. 136 4.4.4 Resultados alcançados pela APAC de Itaúna............................. 146 CONCLUSÃO ............................................................................................ 148 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................153 ANEXOS .................................................................................................... 157 LISTA DE TABELAS TABELA 1: Estabelecimentos prisionais no Brasil TABELA 2: Classificação dos presos por sexo TABELA 3: Classificação dos presos por escolaridade TABELA 4: Classificação dos presos por cor de pele/etnia Tabela 5: Classificação por modalidade delitiva TABELA 6: Capacidade carcerária da APAC de Itaúna TABELA 7: Classificação dos recuperandos da APAC de Itaúna por modalidade delitiva TABELA 8: Fugas, evasões e abandonos na APAC de Itaúna (2000-2005) LISTA DE FIGURAS FIGURA 1: Missa na Cadeia de Itaúna FIGURA 2: Estrutura física da Cadeia de Itaúna em 1986 FIGURA 3: Cadeia Pública de Itaúna FIGURA 4: Cadeia Pública de Itaúna após rebelião de 1995 FIGURA 5: Construção do Atual CRS FIGURA 6: Vista da entrada do atual CRS FIGURA 7: Entrada da APAC de Itaúna FIGURA 8: Acesso interno da APAC de Itaúna FIGURA 9: Dormitório FIGURA 10: Corredor de acesso às celas do regime fechado FIGURA 11: Quadra do regime semi-aberto FIGURA 12: Quadra do regime fechado FIGURA 13: Auditório do regime semi-aberto FIGURA 14: Refeitório do regime fechado FIGURA 15: Jardim do regime semi-aberto FIGURA 16: Gruta regime semi-aberto FIGURA 17: Logomarca da APAC FIGURA 18: Artesanato no regime fechado FIGURA 19: Oficina de perfuração de pedras semipreciosas FIGURA 10: Oficina de marcenaria FIGURA 21: Oficina de marcenaria FIGURA 22: Horta LISTA DE GRÁFICOS GRÁFICO 1: População Carcerária Brasileira - biênio 2004-2005 GRÁFICO 2: Organograma da estrutura administrativa da APAC de Itaúna GRÁFICO 3: Porcentagem do envolvimento dos recuperandos dos regimes fechado e semi-aberto da APAC de Itaúna nas atividades de educação GRÁFICO 4: Relação do trabalho prisional no Regime Semi-aberto LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS APAC: Associação de Proteção e Assistência ao Condenado CIC: Catecismo da Igreja Católica CF: Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 CF/88: Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 CP: Código Penal Brasileiro CPP: Código de Processo Penal Brasileiro CRS: Centro de Reintegração Social CSS: Conselho de Sinceridade e Solidariedade DEPEN: Departamento Penitenciário Nacional FBAC: Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados INFOPEN: Sistema de Integrado de Informação Penitenciária JSTJ: Revista de Julgados do Superior Tribunal de Justiça JTAERGS: Revista de Julgados do Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul LEP: Lei de Execução Penal – Lei nº 7.210/84 MG: Estado de Minas Gerais ONG: Organização Não Governamental PFI: Prison Fellowship International RT: Revista dos Tribunais SP: Estado de São Paulo SSP: Secretaria de Segurança Pública STJ: Superior Tribunal de Justiça TARS: Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul TJMG: Tribunal de Justiça de Minas Gerais TJ PA: Tribunal de Justiça da Paraíba TJSP: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo INTRODUÇÃO Seguindo a tradição dos países que adotam o sistema jurídico continental ou romano-germânico, no Brasil toda a estrutura jurídica sustenta-se sobre o ordenamento legislativo, inclusive e especialmente o ordenamento de natureza penal. A partir da Constituição Federal de 1988 e passando pelas normas legais ordinárias, encontram-se todos os institutos e estruturas jurídicas do sistema punitivo pátrio. Assim, no artigo 5º, inciso XLVI verifica-se que a Carta Constitucional de 1988 regulou de maneira taxativa o rol de penas passíveis de aplicação por crimes cometidos no Brasil. Verifica-se, ainda, que todas elas primam pela ofensividade mínima, cerceando o patrimônio, os direitos disponíveis e o direito de ir e vir, fazer ou não fazer. Em momento algum, porém, a norma constitucional atenta contra a integridade física do indivíduo, no que é seguida pelos ordenamentos infraconstitucionais que tratam da questão penal, dentre os quais o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal. Isso se dá não por acaso, mas porque, ao menos esse é o discurso oficial, acredita-se que a pena tem o duplo papel de punir e ressocializar o indivíduo autor de delitos, razão pela qual deveria pautar-se por uma metodologia de trabalho que atingisse esse duplo objetivo. Segundo dados da Prision Fellowship Internacional (PFI), contudo, o sistema tradicional de cumprimento de pena, no Brasil, apresenta índice de reincidência em torno de 85%1, constantes rebeliões, fugas, etc. Ou seja, o sistema aparentemente mostra-se ineficiente em relação aos objetivos estabelecidos pela norma legal. Por mais que se destinem verbas para a construção de unidades prisionais, equipação dos órgãos jurisdicionais, elevação do rol de tipos penais, e 1 OTTOBONI, Mário. Ninguém é irrecuperável: APAC: a revolução do sistema endurecimento das penas, a criminalidade na sociedade brasileira, tal como na mundial, não apresenta índices consideráveis de redução. Aliás, segundo observações de BAUMAN2, as políticas tradicionais de combate ao crime só fazem aumentar o temor social, a estigmatização e a violência contra grupos minoritários “suspeitos”, renovando o ciclo de criminalidade e exclusão social. Uma encruzilhada, então, coloca-se: o discurso estatal de punição e ressocialização não passa de uma falácia, um equívoco construído e repetido ao longo dos últimos séculos? Ou, por outro lado, será que o problema estaria na fundamentação teórica e na metodologia de trabalho desenvolvida? Diante dessa questão, propõe-se, no presente trabalho, uma detalhada discussão em torno da questão carcerária brasileira, suas origens históricas, fundamentos teóricos e condições atuais de funcionamento e, a partir dessa análise, o debate em torno das principais correntes doutrinárias de oposição ao sistema posto, quais sejam o abolicionismo penal e a justiça restaurativa. Propõe-se, ainda, uma análise da experiência do chamado Método APAC (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado) de execução penal, experiência essa iniciada na cidade paulista de São José dos Campos e que se expande para vários pontos do país, mas especialmente para cidade mineira de Itaúna que, por seus resultados, destoa completamente da regra geral. Acreditamos que, tomando por base esses três pontos: análise da evolução do sistema punitivo das condições de cumprimento de pena privativa de liberdade no Brasil, abordagem dos principais problemas e das críticas formuladas pelas propostas abolicionistas e de justiça restaurativa e estudo da realidade do cumprimento de pena sob os moldes da APAC seria penitenciário , 2 ed.,.1997; São Paulo : Cidade Nova, 2001.: 23. 2 BAUMAN, Zigmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. 276 p. possível não apenas diagnosticar as falhas do sistema punitivo tradicional, como também alcançar-se uma proposta alternativa que possa solucionar ou pelo menos amenizar as mazelas tão comuns ao sistema tradicional de aplicação de pena. Nesse sentido, o presente trabalho é desenvolvido e esquematizado em quatro capítulos, nos quais detalhadamente trabalha-se cada um dos pontos acima citados. Assim, no primeiro capítulo, desenvolve-se uma análise do sistema penal tradicional ocidental a partir de uma contextualização sócio-econômica ao longo da história, a qual, acreditamos, permitirá uma melhor compreensão dos problemas atualmente enfrentados pela gestão estatal do poder de punir. Já no segundo capítulo, propõe-se, de um lado, uma profunda análise do ordenamento jurídico penal brasileiro e seus efeitos práticos positivos e negativos, a partir da leitura dos dados carcerários levantados junto ao Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN, abrangendo os cinco primeiros anos do Século XXI, a dizer, os anos de 2001 a 2005 e, em alguns casos, parcialmente o ano de 2006. Diante das informações apresentadas nos dois primeiros capítulos, o terceiro é dedicado à análise do efeito vitimizador do cárcere e das propostas abolicionistas e de justiça restaurativa no sentido de eliminar esse fator, seja pela completa eliminação do sistema penal, seja pela mudança de paradigma. Por fim, no quarto capítulo, desenvolve-se uma análise do Método APAC de cumprimento de pena desde sua origem em São José dos Campos no ano de 1972 até o atual modelo desenvolvido em Itaúna – MG, considerado modelo de execução penal. Para que se alcançasse uma mais profunda abordagem, a coleta de informações que deram origem a esse capítulo deu-se com especial cautela, através do trabalho direto com o idealizador do Método APAC, Dr. Mário Ottoboni, do manejo de documentos oficiais da APAC de Itaúna e de obras doutrinárias sobre o Método APAC. Além disso, duas visitas técnicas foram realizadas à APAC de Itaúna, períodos nos quais foi possível a observação in loco do funcionamento deste Método e a entrevista direta a diretores, voluntários, funcionários e apenados daquela instituição. A meta é que, ao final dos próximos quatro capítulos compreenda-se em profundidade a real situação da questão carcerária no Brasil e se consiga responder com propriedade se o Método APAC e sua fundamentação teórica pautada pelos princípios da justiça restaurativa verdadeiramente apresentase como alternativa viável ao atual sistema penal. 1 OBJETIVOS E MODALIDADES DE SANÇÃO PENAL NA HISTÓRIA DA SOCIEDADE OCIDENTAL: UMA LEITURA A PARTIR DAS CONDIÇÕES SÓCIO-ECONÔMICAS Já nas primeiras aulas de Introdução ao Estudo do Direito ensinado é aos bacharelandos sobre a existência de dois grandes sistemas jurídicos no Ocidente, o sistema anglo-americano, ou common law, e o sistema continental, ou romano-germânico. E, a partir de uma breve noção sobre as diferenças dos sistemas, transmitido é também o ensinamento de que o Brasil filia-se ao segundo deles. Continuando suas lições, o professor de Introdução ao Estudo do Direito narra ainda que toda a base do ordenamento e do pensamento jurídico brasileiro funda-se sobre os princípios jurídicos desenvolvidos na Roma Antiga. Útil, então, recorrer-se ao mesmo sempre que se deparar tanto o graduando quanto o profissional do Direito com algum instituto por ele ainda não conhecido. De fato, em vários ramos do Direito percebe-se a influência romana, sobretudo no Direito Contratual, no Direito de Família, em determinados pontos do Direito Constitucional, e em tantos outros ramos do Direito. No Direito Penal, no entanto, tal influência pouco é notada e isso por uma razão muito simples: se efervescente foi o pensador romano em torno de questões patrimoniais, contratuais, familiares etc., tímido foi ele em matéria de Direito Penal. Aliás, Francesco CARRARA, citado por BITENCOURT, já dizia que os romanos ”foram gigantes no Direito Civil e pigmeus no Direito Penal”3. Não que Roma fosse inteiramente alheia às matérias atinentes ao Direito Penal, ou que a criminalidade não fosse um problema de que comungasse com as sociedades atuais. 3 In: BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: causas e alternativas, 3 Ao contrário, tanto que é possível encontrar na Lei das XII Tábuas algumas abordagens de caráter penal4, bem como vislumbrar no Direito Romano, embriões de institutos como: a tentativa, concurso de agentes, excludentes de ilicitude, menoridade penal, dentre outros5. Entretanto, diferentemente do que ocorreu com o Direito Privado, o Direito Penal Romano foi estruturado de forma eminentemente casuística, sem que houvesse preocupação com uma melhor sistematização das normas e seus fundamentos. Definiu-se uma gama de delitos, excludentes e sanções aplicáveis, sem, porém, um estudo mais aprofundado desses institutos que lhes desse maior fundamentação6. Em especial para o tema a ser abordado no presente trabalho dissertativo, a dizer, a pena privativa de liberdade na sociedade contemporânea, pouco útil mostra-se o Direito Romano. Isso porque, se na sociedade ocidental do Séc. XXI discute-se a eficácia da pena de prisão, que apesar das críticas, ainda é a regra dentre as várias sanções aplicáveis aos autores de delitos, em Roma não passava a prisão de um instituto de natureza processual, voltado à custódia dos indivíduos enquanto esperava-se a aplicação do castigo definido7. Assim, todo o questionamento e estruturação do sistema punitivo tal como vigente nos dias atuais pouco se liga à antiguidade romana. Por isso, o corte histórico precisa ser iniciado em momento posterior à história ocidental, mais exatamente, no período da Idade Média, quando percebe-se, de um lado, ed.,. São Paulo : Saraiva, 2004: 06. 4 As Tábua VIII e IX da Lei das XII Tábuas romana tratava de temas de Direito Penal, como a aplicação da pena capital, da pena de talião no caso de lesão corporal, crimes de dano, furto, legítima defesa, patrocínio infiel, falso testemunho, dentre outras questões. 5 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, 5 ed., vol. 1. São Paulo : RT, 2005.: 71. 6 PRADO. Op. Cit.: 71. 7 O Digesto de Ulpiano já prescrevia que “carcer enin ad continendos homines, non ad puniendos”, ou seja, a prisão serve não para o castigo dos homens, mas para a sua custódia. uma mais clara ligação entre as modalidades de castigos aplicados e a estrutura social vigente e, de outro, a influência do Direito Canônico, que ainda hoje impulsiona, ainda que parcialmente, o pensamento penalpunitivo. 1.1 A PENA NA IDADE MÉDIA: OS ASPECTOS DA PENA CORPORAL E A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO RUSCHE e KIRCHHEIMER, em seu Punição e Estrutura Social8, procuram estabelecer um paralelo entre o sistema punitivo estatal e as diversas fases e estruturas sócio-econômicas desenvolvidas ao longo do tempo, semelhante ao que também faz FOUCAULT9, idéias essas que serão de ímpar utilidade no presente trabalho. Afinal, especialmente em sociedades como a brasileira, que adotam a teoria do bem jurídico como fundamento da criminalização de condutas e eleição de sanções penais adequadas, impossível esquivar-se do fato de que a definição dos interesses tuteláveis se dá de acordo com tal pensamento social. Seguindo essa linha de raciocínio, tal como fizeram RUSCHE e KIRCHHEIMER, já na Idade Média, perceptível mostrava-se a influência da cultura e do pensamento social na definição de crimes e castigos. 1.1.1 Clero, nobres e plebe: estratos e penas na Alta Idade Média Tanto na Alta quanto na Baixa Idade Média, como costumam os historiadores dividir os dois ciclos que marcaram o corte temporal entre a queda do Império Romano do Ocidente e do Império Romano do Oriente, estanque era a divisão social européia, falando-se basicamente em três categorias: nobreza, clero e povo. 8 RUSCHE, Georg e KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social, Gizlene Neder, 2 ed.,. Rio de Janeiro : Revan, 2004. 9 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão, Raquel Ramalhete, 29 A primeira, detentora dos bens de produção, produtos e, de certa forma, até mesmo dos indivíduos (povo) e responsável pela “segurança coletiva”; o segundo, guardião das normas éticas e religiosas da sociedade; e, por fim, o terceiro, grande maioria da população, responsável pelo trabalho braçal que sustentava as duas categorias anteriores. É bem verdade que a organização social feudal era um pouco mais complexa que isso, com divisões hierárquicas tanto no clero como na nobreza, mas para nossa análise, a simples diferenciação entre clero, nobres e povo já é suficiente. Suficiente, porque tal estrutura social mostrou-se estanque ao longo de todo o período medieval, percebendo-se quase impermeáveis as categorias. E impermeáveis não apenas quanto à possibilidade de mobilidade social, mas também em relação às normas legais aplicáveis em relação a cada um desses estratos, havendo, por vezes, sanções diferentes para uma mesma conduta conforme a origem de seu autor. Primeiramente há que se dizer que o clero, categoria totalmente independente das “estruturas terrenas” submetia-se, salvo exceções, exclusivamente às normas e sanções da Igreja, e não às ordens dos senhores feudais. Em segundo plano, na ausência de um Estado central forte, a organização das relações sociais competia a cada senhor feudal dentro de seus domínios. Na Alta Idade Média, conforme os ensinamentos de RUSCHE e KIRCHHEIMER, grande preocupação havia por parte dos senhores feudais em conduzir os relacionamentos dentro de seus feudos da forma mais suave possível, naquilo que chamam “relação tradicional”10, facilmente perceptível nas categorias de punição mais comuns nos primeiros séculos do período. ed.,.1987; Petrópolis : Vozes, 2004. 10 RUSCHE e KIRCHHEIMER. Op. Cit.: 24. Assim, diante da prática de crime por algum vassalo, seja ele senhor feudal de menor título ou mesmo simples servo, se lhe aplicava a punição de fiança ou de penance, cujo valor variava conforme o status social do agressor e da vítima11. O problema era que, numa sociedade em que a moeda era instrumento de poucos, a maioria dos infratores, oriundos das classes mais baixas, raramente conseguia levantar recursos financeiros para o pagamento de suas penas. E, a fim de que não fosse isso encarado como uma escusa ao descumprimento de ordem, sua punição passou a ser convertida em castigo corporal, no princípio, casuisticamente, mas a posteriori, os próprios ordenamentos passaram a fixar tal regra. Nesse momento é que a diferença entre nobres e plebeus passou a mostrarse mais gritante. Por mais que tecnicamente as normas de caráter punitivo fossem elaboradas com caráter geral, na prática o fosso social implicava em discrepantes punições conforme o criminoso se tratasse de um nobre ou um servo. Repise-se, porém, que a regra ainda era, até então, a fiança. 1.1.2 O corpo humano como destinatário das penas na Baixa Idade Média Se na Alta Idade Média a razoável manutenção da estabilidade social resultava num tratamento de certa forma paternalista por parte dos senhores feudais em relação a seus servos no que tange à política criminal, primando 11 “As relações entre o guerreiro senhor feudal e seus servos tinham um caráter tradicional, correspondente a uma determinada relação legal. Estas condições tendiam a prevenir tensões sociais e prover a coesão, características deste período. O direito criminal desempenhava um papel importante neste processo como forma de preservação da hierarquia social. (...) Se no calor do momento ou num estado alterado alguém cometia uma ofensa contra a decência, a moral vigente ou a religião, ou injuriasse ou matasse seu vizinho – violação de direitos de propriedade na contava muito nessa sociedade de senhores de terra –, uma reunião solene de homens livres era montada para proceder ao julgamento e fazer o culpado pagar Wergeld ou expiar a culpa, de modo que a vingança das partes injuriadas não evoluísse para o sangue ou a anarquia” (RUSCHE e KIRCHHEIMER. Op. Cit.: 24). pela solução acordada dos conflitos e primazia da pena de fiança, o período que ficou conhecido historicamente como Baixa Idade Média espelhou em matéria criminal uma realidade completamente diferente. Inúmeros fatores ocorridos nessa fase resultaram num endurecimento das políticas penais, de um lado pelo aumento da perseguição dos autores de delitos, especialmente os de ordem patrimonial e, de outro, a ampliação do rol de penas aplicáveis. A propósito, FOUCAULT cita a ordenação francesa de 1670 que, espelhando já a um século da Revolução de 1789 as modalidades de castigo penal, dentre as quais “a morte, a questão com reserva de provas, as galeras, o açoite, a confissão pública, o banimento”12. Importante deixar claro, porém, que tal ordenamento não inovou o sistema de penas europeu, mas apenas serve de exemplo para uma realidade da época. Duas coisas, porém, devem ficar claras: os fatores determinantes dessa mudança comportamental e os destinatários principais das novas modalidades de pena. Sobre o primeiro ponto, poderiam ser citados como circunstâncias que, em conjunto, levaram à mudança tanto nos tipos de delitos como no tratamento destinado aos mesmos, dentre os quais o esgotamento do solo, com conseqüente decréscimo da colheita, apesar das novas técnicas de cultivo, o crescimento populacional e êxodo rural e a peste negra. O resultado é de fácil dedução: desemprego, miséria, fome, ausência de políticas sociais etc, gerando um exército de desocupados e vagabundos, muitos dos quais encontraram na criminalidade e no banditismo o meio de suprir suas necessidades. Em relação a esses, passou-se a prestar maior atenção, não com medidas restaurativas, mas pelo incremento das punições, tanto que, se na Alta Idade Média pequeno era o interesse no processamento e severidade de punição dos atentados ao patrimônio, agora esses estão entre os crimes mais comuns. Por sua vez, no que tange ao segundo ponto, ou seja, o incremento das penas, em especial das penas corporais, alguns fatores também devem ser levados em consideração. Nesse ponto, forte está ainda o aspecto financeiro. Ora, se a maior parte dos infratores encontra-se nas classes mais baixas da população, as quais encontram-se, por conseqüência, sem condições de arcar com as penas pecuniárias, alternativa não lhes resta que não a de sofrer no próprio corpo o castigo da ação perpetrada. Lado outro, mesmo naquela época, o bom senso já permitia perceber que nem todas as condutas tinham a mesma conseqüência e, portanto, nem todos os crimes mereciam a mesma dosagem de castigo. Tanto que, apesar de ainda não se perceber um critério técnico de aferição de pena, preocupou-se em estabelecer variadas sanções corporais, desde as mais pesadas, como a pena de morte e as galeras, passando pelos açoites e banimentos, até as mais brandas como a confissão. Em todas elas, porém, a mesma marca: a necessidade de expor a figura do apenado publicamente e fazê-lo experimentar o sofrimento físico e mental, prolongando-se pelo máximo de tempo possível a duração do castigo, chegando FOUCAULT a comentar que: “... o suplício faz parte de um ritual. É um elemento na liturgia punitiva, e que obedece a duas exigências. Em relação à vítima, ele deve ser marcante: destinase, ou pela cicatriz que deixa no corpo, ou pela ostentação de que se acompanha, a tornar infame aquele que é sua vítima; o suplício, mesmo se tem como função ‘purgar’ o crime, não reconcilia; traça em torno, ou melhor, sobre o próprio corpo do condenado, sinais que não devem se apagar; a memória dos homens, em todo caso, guardará a lembrança da exposição, da roda, da tortura ou do sofrimento devidamente constatados. E pelo lado da justiça que o impõe, o suplício deve se 12 FOUCAULT. Op. Cit.: 30. ostentoso, deve ser constatado por todos, um pouco como seu triunfo. O próprio excesso das violências cometidas é uma das peças de sua glória: o fato de o culpado gemer ou gritar com os golpes não constitui algo de acessório e vergonhoso, mas é o próprio cerimonial da justiça que se manifesta em sua 13 força” . De onde viria, porém, a necessidade de penas tão duras e desumanas, ao menos aos olhos da sociedade contemporânea? Dissertando sobre o tema, FOUCAULT, em quem buscamos a resposta a essa pergunta, elenca, basicamente três fundamentos: a força da religiosidade, a vingança do rei e a dispensabilidade do indivíduo. Sendo a sociedade medieval marcada pela força da religiosidade e da Igreja, a pena era vista como mecanismo de expiação da culpa pelo crime cometido e purificação da alma e, ainda que isso implicasse em destruição do corpo, “cabe ao condenado levar à luz do dia de sua condenação e a verdade do crime que cometeu”14. Exemplo dessa mentalidade seria também a frenética busca pela confissão do acusado, não só como meio de prova ao longo do processo acusatório, como também e sobretudo no momento da execução da sentença, de um lado para mais uma vez justificar os limites da pena imposta e, de outro, para que permita a remissão dos pecados e a salvação eterna do indivíduo. Disfarçada, porém não imperceptível, é a segunda função da pena: a vingança do rei ou senhor feudal contra aquele que, pelo delito, descumpre uma ordem sua e afronta sua autoridade, o que bem percebe-se tanto pela publicidade que sempre se dava-se à execução da pena, independente de sua modalidade ou intensidade, como, mais uma vez, pela substituição da pena corporal pela fiança em caso de prática delituosa por parte de nobre15. 13 Op. Cit.: 31. Op. Cit.: 38. 15 Nesse sentido FOUCAULT ainda comenta que “A intervenção do soberano não é portanto uma arbitragem entre dois adversários; é mesmo muito mais que uma ação para fazer respeitar os direitos de cada um; é uma réplica direta àquele que a ofendeu”. Op. Cit.: 41. 14 De tudo isso, algo mais também se percebe: não havia muita preocupação com os efeitos futuros da pena corporal aplicada para o condenado, mesmo porque a experiência da dor, da morte e do excesso de mão-de-obra anestesiavam qualquer sensibilidade nesse sentido. Ora, o que esperar em uma sociedade em que a incomparável maioria da população morria de fome, frio ou peste, sem qualquer expectativa de progressão social ante os limites de sua casta? Estando a morte e a tragédia tão próximas dos indivíduos – experiências punitivas que hoje deixariam estarrecido o mais insensível dos homens – à época não passavam de um corriqueiro evento da vida comum, um espetáculo que precisava ser levado a público, de certa forma comparável com a cobertura que se dá pela imprensa na sociedade contemporânea a certos julgamentos16. 1.1.3 Um ponto essencial: a influência da Religião no sistema punitivo e no surgimento da pena de prisão Por mais antagônico que possa parecer, se de um lado os princípios religiosos de expiação dos pecados e desapego ao corpo em atenção à salvação ou danação eterna influenciaram as medidas punitivas na Baixa Idade Média, em especial as penas corporais, de outro, teve também a religião papel fundamental na mudança da mentalidade punitiva e nos castigos infligidos aos criminosos pós-Idade Média, em especial a pena privativa de liberdade. Aliás, o próprio verbete “pena” tem sua origem estreitamente ligada ao Direito Canônico. Seu significado original muito se aproximava de penitência, 16 ”É certo também que o ‘desprezo’ pelo corpo se refere a uma atitude geral em relação à morte; e nessa atitude, poder-se-ia tanto os valores próprios ao cristianismo quanto uma situação demográfica e de certo modo biológica: as devastações da doença e da fome , os morticínios periódicos das epidemias, a enorme mortalidade infantil, a precariedade dos equilíbrios bioeconômicos – tudo isso tornava a morte familiar e provocava em torno dela rituais para integrá-la, torna-la aceitável e dar sentido à sua agressão permanente” (FOUCAULT. Op. Cit.: 46). sacrifício imposto para a expiação dos pecados. Eis aí o sentido com que a Igreja trabalha inclusive até os dias atuais o sacramento da penitência. “É pelo sacramento da Penitência que o batizado pode ser reconciliado com Deus e com a Igreja: Os Padres da Igreja chamavam com razão a Penitencia ‘um batismo laborioso’. O sacramento da Penitência é necessário para a salvação 17 daqueles que caíram depois do Batismo” . Lição essa que, segundo BITENCOURT, já à época era ministrada por Santo Agostinho: “Santo Agostinho, em sua obra mais importante, A cidade de Deus, afirmava que o castigo não deve orientar-se à destruição do culpado, mas ao seu melhoramento. Essas noções de arrependimento, meditação, aceitação íntima da própria culpa, são idéias que encontram intimamente vinculadas ao direito canônico ou a 18 conceitos que provieram do Antigo e do Novo Testamento” . E, sendo função da penitência permitir ao indivíduo meditar e arrepender-se de seus erros, não poderia limitar-se ela a um espetáculo de cruel e agressivo castigo que ataca e martiriza o corpo. Deveria ela pautar-se por mecanismos de atuação que garantissem ao indivíduo o contato isolado com a própria consciência e com Deus, para que, pela oração, leitura da Palavra e pequenos sacrifícios corporais, como o jejum, reencontrasse a Verdade e a paz interior, livrando-se da culpa do pecado19. Visando atingir a esses objetivos – isolamento, meditação e arrependimento 17 BITENCOURT. Op. Cit.:13. BITENCOURT. Op. Cit.:13 . 19 ”A confissão dos pecados (Acusação), mesmo do ponto de vista simplesmente humano, liberta-nos e facilita nossa reconciliação com os outros. Pela acusação, o homem encara de frente os pecados dos quais se tornou culpado: assume a responsabilidade deles e, assim, abre-se de novo a Deus e à comunhão da Igreja, a fim de tornar possível um futuro novo” (CIC, § 1455). “A penitência imposta pelo confessor deve levar em conta a situação pessoal do penitente e procurar seu bem espiritual. Deve corresponder, na medida do possível, à gravidade e á natureza dos pecados cometidos. Pode consistir na oração, numa oferta, em obras de misericórdia, no serviço do próximo, em privações voluntárias, sacrifícios e principalmente na aceitação paciente da cruz que temos de carregar. Essas penitências nos ajudam a configurar-nos com Cristo que, sozinho, expiou nossos pecados uma vez por todas” (CIC, § 1460). 18 para expiação dos pecados – no seio da Igreja surge o gérmen daquilo que hoje chamamos pena privativa de liberdade. Não que até então não se falasse em prisões. Ao contrário, desde Roma elas existiam. Aliás, somente para não fugir dos exemplos eclesiásticos, dois dos maiores nomes da Igreja Primitiva, os apóstolos Pedro e Paulo, passaram pelo cárcere romano antes de sofrerem sua pena capital. A diferença, porém, é que, salvo raras exceções, até então, a privação de liberdade não era vista como uma modalidade punitiva em si, mas apenas como um meio de custódia do criminoso até o momento da execução de sua pena pecuniária ou corporal20. Distinta, por sua vez, é a prisão eclesiástica, na qual o sistema de clausura e isolamento visava não apenas os clérigos por assim dizer, em pecado, mas à totalidade da ordem, que à noite recolhia-se para orações e meditações pessoais, de forma a “fortalecer a alma”. O diferencial era que, se para a coletividade o recolhimento era apenas noturno, os membros em pecado ou desobediência permaneciam em suas celas diuturnamente pelo tempo necessário ao arrependimento. Aos poucos, em fins da Idade Média e início da Moderna, tal metodologia de execução penal passou a chamar a atenção, reduzindo-se cada vez mais as sanções corporais e investindo-se na chamada pena privativa de liberdade, conforme se abordará em seguida. Em síntese, nas palavras de BITENCOURT: “De toda a Idade Média, caracterizada por um sistema punitivo desumano e ineficaz, só poderia destacar-se a influência penitencial canônica, que deixou como seqüela positiva o isolamento celular, o arrependimento e a correção do delinqüente, assim como outras idéias voltadas à procura da reabilitação do recluso. Ainda que essas noções não tenham sido incorporadas ao direito secular, 20 O termo “pena corporal” aqui é utilizado para representar todas as modalidades acima já expostas de pena que não a de fiança, abrangendo tanto os suplícios corporais como 21 constituem um antecedente indiscutível da prisão moderna” . 1.2 A SANÇÃO PENAL NA REALIDADE DA IDADE MODERNA Tal como ao longo da Idade Média, durante a Idade Moderna ainda não há que se falar em um processo racional de definição das medidas penais que se guiasse por alguma construção jurídica tendente a dar à punição alguma finalidade ou justificação específica, fato que só começa a ser notado a partir do Iluminismo. Ao contrário, a política criminal do período simplesmente reflete suas realidades e necessidades sócio-econômicas. Dessa forma, para melhor compreender-se a mudança na perspectiva penalpunitiva iniciada na Idade Moderna, é preciso ter em vista não a palavra de pensadores da época, mas sim, o conjunto de transformações sociais por que passava a Europa. 1.2.1 Mercantilismo e industrialização: a nova estrutura européia na Idade Moderna Peste, fome, guerras, ruralismo: estes e outros termos bem representam o cenário social da Idade Média e grande reflexo tiveram na política criminal do período, como comentado linhas acima. Ao longo dos Séculos da Idade Moderna, porém, a realidade social sofreu profundas mudanças que muito afastaram a Europa de seu passado próximo. Primeiramente, não se poderia esquecer a derrocada do poder político dos senhores feudais e da Igreja para os reis, processo que resultou na organização dos primeiros Estados, como Portugal, Espanha e Inglaterra. também as galés, a confissão etc. 21 Op. Cit.: 12. Aliado a isso, a crise no campo abriu caminho às atividades comerciais e o ressurgimento das cidades, transferindo paulatinamente o poder econômico também antes concentrado nos feudos para a burguesia urbana. Em terceiro plano, as navegações e suas descobertas de terra além-mar, bem como de rotas alternativas para o Oriente ampliaram o horizonte das atividades comerciais e culturais européias. Em quarto lugar, a Reforma Protestante e a Contra-Reforma Católica transformaram o modo de pensar na sociedade, abrindo caminho para as mudanças supra comentadas e outras que até os dias atuais ainda se fazem incidir. Em especial, três dos quatro pontos mencionados chamam a atenção por sua influência ao sistema penal sancionatório: as navegações, o fortalecimento do comércio e surgimento da indústria e a transformação religiosa. Navegações e burguesia, impossível desconectar uma da outra, tratando-se, em verdade, de um ciclo que se retro alimentava. De um lado, a burguesia, necessitando ampliar suas atividades, investia na atividade naval e, de outro, as navegações resultavam em lucros cada vez maiores a seus financiadores. Uma dificuldade operacional, contudo, passou a ser detectada e mostravase, a princípio, insuperável: para que se expandisse a atividade comercial na medida do exigido, era necessária uma transformação profunda do sistema produtivo, o que resultou no surgimento da indústria. Entretanto, com o aumento crescente dos mercados, era preciso ampliar a própria atividade industrial, o que significava mais homens disponíveis para o trabalho. Ocorre que os Séculos anteriores, especialmente os dois últimos, foram períodos marcados pela fome, pela peste e pela guerra, conjunto de fatores que dizimou a população européia e limitou a mão-de-obra disponível para a atividade industrial. Aliado a isso, o êxodo rural e a acumulação de capital nas mãos da burguesia geraram ao longo dos Séculos XIV e XV uma massa de desocupados que se voltava cada vez à prática criminal como meio de vida e fez aumentar nesses séculos o rigor punitivo estatal, tornando-se cada vez mais freqüente o uso de penas de morte e mutilação grave22. Posto estava o dilema: a pouca mão-de-obra disponível compunha-se de criminosos e miseráveis. Os primeiros, “danificados” pela ação punitiva estatal não podiam ser utilizados, os segundos, em virtude das políticas assistencialistas da Igreja recusavam-se ao trabalho por ser mais fácil viver da mendicância. Como, então, resolver o problema da crescente atividade industrial? A solução encontrada foi simples: criar métodos para que tais indivíduos pudessem ser “aproveitados” pelo sistema produtivo, fato possível pela conjugação de dois fatores: a propagação da lógica econômica protestante e a criação das chamadas casas de correção, iniciativa através da qual se inseriu com maior profundidade a privação de liberdade entre as sanções penais cabíveis pela prática delitiva. 1.2.2 A lógica protestante e as casas de correção A nova ordem religiosa implantada a partir da Reforma teve grande impacto na mudança comportamental da Idade Moderna. Em especial, as idéias de Calvino e Lutero acerca da salvação e dos sinais da benção divina sobre os indivíduos, exatamente opostas à antes dominante ideologia católica, serviram de estímulo e justificativa às atividades comerciais e industriais da burguesia. “A prosperidade perdeu seu sentido pecaminoso, esvaziou-se a idéia de generosidade voluntária para com a pobreza como absolvição dos pecados imputados pelo fato de ser próspero. A burguesia justificava sua vida não para fazer o bem através da caridade, mas para ter uma boa conduta cotidiana. Sua 22 RUSCHE e KIRCHHEIMER. Op. Cit.: 37. existência, seu comportamento e seu sucesso neste mundo eram sua própria 23 justificativa” . Valendo-se da mesma linha de raciocínio, se o enriquecimento pelo trabalho passou a ser visto como Graça Divina, o que dizer em relação à mendicância? De meio de justificação da nobreza passou à categoria de conduta pecaminosa. Afinal, aqueles que voluntariamente tornavam-se pedintes, ao viver não pelo trabalho, mas às expensas alheias, atrapalhavam o outro a alcançar seu sucesso24. Em especial num período em que tanto se necessitava de sua mão-de-obra. Passou-se, então, a condenar a mendicância e a estimular a busca pelo trabalho e capacitação dos indivíduos, tarefa que se mostrou possível graças à criação das casas de correção. Não bastava condenar e punir “exemplarmente” os miseráveis, mesmo aqueles que não se limitavam à mendicância, mas se davam à prática de crimes, era preciso tirá-los desse estilo de vida e torná-los aptos ao trabalho. Especialmente porque essa era a maior necessidade social, braços para o trabalho. A partir dessa situação, as tradicionais medidas punitivas mostravam-se inúteis e, de certa forma, até mesmo antieconômicas: inútil mostrava-se a aplicação da pena de fiança, afinal, não tinham os pobres com que pagá-las; e antieconômica sua conversão em castigo corporal ou pena de morte, afinal, representava um desperdício de mão-de-obra. Era preciso uma nova modalidade punitiva, necessidade satisfeita pelo surgimento das chamadas casas de correção ou workhouses. 23 RUSCHE e KIRCHHEIMER. Op. Cit.: 61. RUSCHE e KIRCHHEIMER tratam do tema com a seguinte observação: “Evidentemente, essa filosofia não podia aceitar a mendicância e opunha-se à prática católica de caridade indiscriminada. O princípio religioso que sustentava a ajuda a mendigos aptos para o trabalho parecia ser tão estúpido à sobriedade calvinista quanto a idéia de varrê-los da face da Terra” (Op. Cit.: 63). 24 Ainda nas lições de RUSCHE e KIRCHHEIMER, as casas de correção combinariam os aspectos de casas de assistência, ao garantir o mínimo necessário à sobrevivência, oficinas de trabalho, já que o indivíduo deveria submeter-se ao regime de trabalho imposto, e instituições penais, vez que o cerceamento de liberdade passou a ser visto como meio de punição pela prática de crimes25. Como a base de toda a estrutura era o trabalho interno e o objetivo era a formação de mão-de-obra para o mercado, poucos não eram os investimentos nas casas de correção por parte da burguesia. Aliás, muitas vezes, chegava a montar sua estrutura industrial dentro das workhouses, o que se mostrou até mesmo vantajoso, já que seu custo de produção tornava-se mais baixo em relação ao trabalho livre. E o sucesso alcançado pelas primeiras casas de correção inglesas e holandesas espalhou-se de tal forma pela Europa que, em pouco tempo, a pena de prisão em instituições similares tornou-se a principal modalidade punitiva, falando-se cada vez menos em penas corporais. Deve ficar esclarecido, porém, que nesse período ainda não se percebe qualquer debate mais profundo acerca dos objetivos da pena criminal, seus efeitos na redução da criminalidade ou o impacto recuperatório do apenado. O debate filosófico acerca dos objetivos da pena somente é percebido a partir do iluminismo, definindo-se, até então, os castigos a partir apenas de necessidades pragmáticas, exatamente como também se procedia-se na antiguidade clássica e na Idade Média. A mudança de foco de penas corporais para a privação de liberdade baseouse apenas nas necessidades e na mentalidade social em cada um desses três períodos26. 25 RUSCHE e KIRCHHEIMER. Op. Cit.: 69. “Os modelos punitivos não se diversificam por um propósito idealista ou pelo afã de melhorar as condições da prisão, mas com o fim de evitar que se desperdice a mão-de-obra e ao mesmo tempo poder controlá-la, regulando a sua utilização de acordo com as necessidades de valoração do capital” (BITENCOURT: 22). 26 Tanto isso é verdade, que sanado o problema de mão-de-obra pelas workhouses, em momento algum da Idade Moderna chega-se a questionar acerca das condições de cumprimento da pena dentro de tais instituições. Por melhores que fossem em relação às antigas prisões-custódias, no que tange à estrutura física, as condições de cumprimento da pena longe se encontravam do necessário para qualquer alteração na personalidade do criminoso. Ao contrário, as condições de alimentação, acomodação e o excesso de trabalho que lhes era exigido, sempre em silêncio absoluto, se alterava de alguma forma a personalidade dos delinqüentes, geralmente o fazia para pior. Aliás, resumindo isso, RADBRUCH, um dos grandes críticos dessa estrutura chegou a afirmar, segundo BITENCOURT, que “os condenados, ao serem liberados das casas de trabalho (ou de correção), não se haviam corrigido, mas sim domados” 27. Tal problema, porém, como mencionado, não fora enfrentado nem no plano teórico e nem no prático, vez que jamais se havia analisado o problema punitivo com critérios de cientificidade, o que se inicia apenas com KANT, BECCARIA, HOWARD e outros nomes do Iluminismo. Diante disso, inclusive, FOUCAULT28 chega a dizer que em momento algum a alteração do sistema de penas corporais para o das penas privativas de liberdade ou a mudança da justificativa para a sanção penal teve por fim humanizar a pena. Longe disso, simplesmente se transferiu a justificativa do castigo como a retaliação pela ofensa ao Soberano para a necessidade de atendimento às necessidades fabris. A agressividade e a violência das penas, contudo, permanecia. Senão fisica, ao menos psicologicamente. 1.3 27 O ILUMINISMO E A BUSCA DE UMA JUSTIFICAÇÃO RACIONAL In: BITENCOURT. Op. Cit: 18. PARA A SANÇÃO PENAL Estruturas social e jurídico-punitiva sempre estiveram diretamente ligadas, a primeira definindo os parâmetros da segunda e esta, por sua vez, justificando a primeira ou determinando as transformações que lhe fossem necessárias, observação essa bem ensinada por REALE em sua Teoria Tridimensional da Norma29. Isso ocorreu na Antiguidade Clássica, na Idade Média, Moderna etc., e é observado ainda nos dias atuais, tanto que, em capítulo oportuno, debatida será a situação carcerária brasileira no século XXI. Contudo, somente a partir do Iluminismo é que se percebe um movimento intelectual no sentido de procurar compreender as nuances da relação sociedade-punição. O Século XVIII, poderíamos dizer, representa o rompimento definitivo com a herança feudal ante o surgimento dos debates em torno dos princípios e garantias básicas do individuo, os quais, inclusive inspiraram grandes eventos históricos, como as Revoluções Americana e Francesa. Os mesmos princípios que levaram à revisão sobre a posição do indivíduo e o papel do Estado deram origem a severas críticas ao sistema punitivo em vigor, definido como excessivamente penoso, cruel e vazio de qualquer critério de cientificidade na aplicação e execução das penas30. Importante ressaltar, antes de passarmos a uma breve análise da contribuição de cada um desses pensadores, que perfeita vinculação encontram com o contexto social europeu do século XVIII. Se antes a necessidade de mão-de-obra para a atividade burguesa motivou o Estado a modificar o sistema punitivo, passando-se ao aproveitamento de delinqüentes e ex-servos nas workhouses, agora a reversão da curva demográfica e o avanço na tecnologia fabril, tornando cada vez menor a 28 Vigiar e Punir. Op. Cit. REALE, Miguel. Filosofia do Direito, 19 ed.,. São Paulo : Saraiva, 1999. 30 BITENCOURT. Op. Cit: 32. 29 necessidade de homens no período da Revolução Industrial, geraram conseqüências para o sistema punitivo. Isso porque, com o excesso de mão-de-obra no mercado, tornava-se cada vez menos interessante aos industriais o investimento nas casas de correção. Afinal de contas, o custo de um operário livre era mais baixo que o de um condenado31. Assim, o amparo dado à infra-estrutura carcerária foi reduzindo-se a ponto de aproximarem-se muito as prisões européias do Século XVIII, da estrutura carcerária brasileira contemporânea, ao menos no que tange à péssima condição habitacional oferecida aos apenados32. Tal situação, entretanto, de forma gritante destoava das idéias humanistas que inspiraram a movimentação político-social do período, não deixando, por isso, de chamar a atenção de importantes nomes do pensamento, mas também determinaram uma fundamentação racional à sanção penal e as formas de adequar-se o sistema punitivo a tais objetivos. O primeiro a tratar do tema criteriosamente foi César BECCARIA em Dos Delitos e Das Penas, a ele se seguindo vários outros, como John HOWARD, Jeremy BENTHAM e Emmanuel KANT. Sem entrar em minúcias sobre a colaboração de cada um desses nomes e tantos outros, o que por si só exigiria um trabalho específico, o fato é que todos trouxeram importantes contribuições para o pensamento jurídico. Em primeiro plano, e mais óbvio, a inquietação frente a um sistema punitivo injusto e ineficaz, quase sempre afligindo seus “clientes” além do tolerável, 31 RUSCHE e KIRCHHEIMER. Op. Cit.: 123 e ss. RUSCHE e KIRCHHEIMER tecem a seguinte observação sobre isso: “... no início do século XVIII, as casas de correção aceitavam condenados, vadios, órfãos, velhos e loucos sem distinção. Fazia-se pouca diferenciação entre eles. Onde o encarceramento foi introduzido, os que detinham o poder utilizaram-no para afastar os ‘indesejáveis’. Frequentemente, não se estabelecia nenhum procedimento definido. Prisões e galés foram povoadas com desafortunados que descobriam os crimes de que eram acusados somente após terem sido aprisionados, ou então os descobriam através da pena que lhes era infligida” (Op. Cit.:109). 32 situação criticada por BECCARIA: “Os gritos de um infeliz arrancariam as ações já consumadas, através do tempo, que não retrocede?”33. O segundo ponto em comum é o fato de todos eles, contratualistas, como próprio dos pensadores iluministas, fundamentarem a sanção penal a partir da necessidade de se criar instrumentos práticos capazes de impedir que particulares viessem a atentar contra o pacto coletivo de não prejuízo ao interesse alheio. De formas variadas cada um deles trata desse tema. Seja KANT com seu imperativo categórico, que fundamentaria a teoria retributiva da pena, BECCARIA batendo-se para que a pena não ultrapassasse o limite do dano causado pelo crime34, HOWARD e BENTHAM com suas idéias que embasaram a tese da função preventiva da pena, bem como sobre a forma devida para aplicação da pena privativa de liberdade35. Em terceiro lugar, em comum possuem também a busca pela humanização das sanções penais, criticando de forma absoluta a existência de penas corporais, especialmente a de morte, e a forma como vinha sendo aplicada a pena de prisão, em total desobediência às condições mínimas exigidas para a sobrevivência humana. Sobre a pena de morte, BECCARIA chegou a dizer que: “Se me oferecerem o exemplo de quase todos os séculos e quase todas as nações que estabeleceram a pena de morte para alguns crimes, responderei que isso se anula ante a verdade contra a qual não há prescrição: a história dos homens dá-nos a idéia de um imenso pélago de erros, entre os quais flutuam poucas e confusas verdades, separadas entre si por grandes intervalos. Os sacrifícios humanos foram comuns a quase todas as nações; e quem ousará 36 desculpá-los por isso?” . 33 BECCARIA, Cesare Bonesana, Marchesi di. Dos delitos e das penas, Vicente Sabino Júnior,. São Paulo : CID, 2001: 59 34 Diz BECCARIA que ”para que uma pena realize o seu fim basta que o seu mal ultrapasse o que o bem nascido do crime produziu. Tudo o mais é supérfluo e, portanto, tirânico” (Op. Cit.: 59) 35 In BITENCOURT. Op. Cit. 36 Op. Cit.: 69. E, por sua vez, sobre a precariedade nas prisões, BENTHAM comenta que: “Com suas condições inadequadas e seu ambiente de ociosidade, as prisões despojam os réus de sua honra e de hábitos laboriosos, os quais saem dali para serem impelidos outra vez ao crime pelo sofrimento da miséria, submetidos ao despotismo subalterno de alguns homens geralmente depravados pelo espetáculo do delito e o uso da tirania. Esses desgraçados podem ser sujeitos a mil penas desconhecidas que os irritam contra a sociedade, que os endurece e os faz insensíveis às sanções. Em relação à moral, uma prisão é uma escola onde se ensina a maldade por meios mais eficazes que os que nunca poderiam empregarse para ensinar a virtude: o tédio, a vingança e a necessidade presidem essa 37 educação de perversidade” . 1.3.1 As funções da pena segundo os iluministas Entre os iluministas, basicamente é possível encontrar duas opiniões acerca da função ou objetivo da pena: de um lado KANT e HEGEL, entendendo possuir a pena uma função eminentemente punitiva e, de outro, BECCARIA e BENTHAM, para quem teria a pena, a função de prevenir a prática de crimes. 1.3.1.1 Teóricos da função retributiva da pena Apesar de defensores do mesmo fim para pena, qual seja punir o infrator da norma penal, KANT e HEGEL partem de distintas premissas para fundamentar seus raciocínios. O primeiro sustenta toda a atividade estatal punitiva por meio de uma construção de ordem ética. Na visão kantiana todo o ordenamento jurídico irradiaria de princípios éticos compartilhados por toda a coletividade como instrumentos necessários a que o contrato social fosse respeitado, aos quais chamou “imperativos categóricos”. 37 BENTHAM, Jeremy. El panóptico; el ojo del poder,. Madri : La Piqueta, 1979: 56 (tradução livre). A partir disso, mais importante que o simples respeito à norma legal, imprescindível seria que o indivíduo sempre se pautasse de acordo com a norma ética, de forma que sua conduta mais do que não causar dano a ninguém, caracterizasse um exemplo a ser seguido38. Lado outro, aquele que não se portasse tal como a norma ética exigia, de certa forma perdia parte de seu status de cidadão, devendo ser castigado impiedosamente pelo soberano. Tal linha de argumentação, porém, cria um problema: segundo KANT, a punição aplicada ao criminoso deveria ser proporcional à infração provocada, exatamente nos parâmetros do direito talional e, como o criminoso não mais era visto como um cidadão, o discurso em torno da humanização da pena acabaria soando contraditório, não havendo como defender a humanização de penas para autores de crimes bárbaros. Por sua vez, HEGEL baseia sua análise não sobre perspectivas éticas, mas exclusivamente a partir da ótica jurídica, justificando, então, a pena não como punição àquele que frustra as perspectivas coletivas sobre sua conduta, mas como mecanismo de “negação da negação do Direito”39. Na visão contratualista de Hegel, seria a vontade racional coletiva, e não normas éticas superiores e inatas, quem ditaria as normas jurídicas como forma de garantir o progresso e a segurança social, necessidades da organização humana. A partir disso, ao infringir a norma legal estaria o criminoso violentando a vontade coletiva e o próprio “contrato social” de tal forma que criaria uma alteração na ordem jurídica, restaurável somente através da negação por parte da coletividade à conduta do criminoso. Não é, porém, uma simples medida de vingança por parte da coletividade frente ao indivíduo autor do delito, mas sim o instrumento por meio do qual 38 39 In PRADO. Op. Cit.: 553 In BITENCOURT. Op. Cit.:112 se revalidaria a verdade da norma legal ante o desafio do criminoso40. O problema em relação à teoria retributiva da pena, tanto em KANT como em HEGEL, é que se sustenta ela na mesma premissa dos demais teóricos do contratualismo: partem suas análises de uma situação hipotética que na prática dificilmente se consegue comprovar. A conseqüência disso é que, diante do caso concreto, os olhos leigos não percebem outra finalidade da pena que não a de vingança, o que dificulta qualquer vinculação na aplicação da pena aos princípios humanistas. 1.3.1.2 A pena como instrumento de prevenção do delito Tratando da mensuração das penas, BECCARIA disserta o seguinte: “O fim, portanto, é impedir que o réu faça novos danos a seus concidadãos, e impedir que os demais cometam outros iguais. Devem ser, portanto, escolhidas aquelas penas e aqueles métodos de aplicá-las que, guardada a proporção, exerçam impressão mais eficaz e duradoura sobre os ânimos dos homens, e 41 menos tormentosa sobre o corpo do réu” . Da mesma forma, BENTHAM traça o seguinte raciocínio: “o negócio passado não afeta mais que a um indivíduo, mas os delitos futuros podem afetar a todos. Em muitos casos, é impossível remediar o mal cometido, mas sempre se pode tirar a vontade de fazer o mal, porque por maior que seja o 42 proveito de um delito sempre pode ser maior o mal da pena” . Pela leitura de ambos percebe-se a vinculação da pena a objetivos bem distintos em relação ao fundamento da pena em KANT e HEGEL. Daí porque serem chamados de teóricos do utilitarismo da pena. Ou seja, segundo eles, a fundamentação das penas jamais poderia ser a 40 “Aceitando que a pena venha a restabelecer a ordem jurídica violada pelo delinqüente, igualmente se deve aceitar que a pena não é somente um mal, porque seria – como afirma o próprio Hegel – ‘irracional querer um prejuízo simplesmente porque já existia um prejuízo anterior’. A imposição da pena implica, pois, o restabelecimento da ordem jurídica quebrada” (Bitencourt. Op. Cit.:113). 41 BITENCOURT, Op. Cit.: 46. simples resposta à ofensa a normas de caráter ético ou jurídico. Ao contrário, deveria pautar-se por uma meta mais profunda, qual seja a de servir com mecanismo de freio e intimidação da prática delitiva. Punir o criminoso sem essa vinculação seria simplesmente transferir do particular para o Estado a ação vingativa, em nada solucionando o problema da criminalidade. Mais que isso, a definição de tipos penais e conseqüentes penas no ordenamento jurídico, segundo os utilitaristas, teriam um só fundamento: prevenir a prática de crimes. Nesse sentido, BENTHAM inicia o uso de dois termos para melhor trabalhar a função preventiva da pena, as chamadas preventiva geral e preventiva especial. A primeira destinada a intimidar a coletividade a, pelo temor da punição, não cometer crimes, enquanto a segunda, pela aplicação da pena sobre o indivíduo autor de crimes, seria meio de intimidá-lo a não mais delinqüir. Tal linha de pensamento foi fundamental à concretização da pena privativa de liberdade como principal modalidade de sanção, especialmente a partir das idéias de BENTHAM sobre o panóptico. Isso por um raciocínio ao mesmo tempo simples e lógico, afinal, dentre as penas então existentes, somente ela permitiria o alcance desse objetivo, já que, de um lado, a pena de multa beneficiava somente os mais abastados e, de outro, as penas corpóreas e de exílio apenas aniquilavam o indivíduo, física ou civilmente, sem qualquer efeito recuperativo. 1.3.2 O panóptico de Bentham Descrevendo o que viria a ser o panóptico, BENTHAM diz o seguinte: “Uma casa de Penitência. Segundo o plano que lhes proponho, deveria ser um 42 Op. Cit.: 87. edifício circular, ou melhor dizendo, dois edifícios encaixados um no outro. Os quartos dos presos formariam o edifício da circunferência com seis andares, e podemos imaginar esses quartos com umas pequenas celas abertas pela parte interna, porque uma grade de ferro bastante larga os deixa ligeiramente à vista. Uma galeria em cada andar serve para a comunicação e cada pequena cela tem uma porta que se abre para a galeria. Uma torre ocupa o centro, que é o lugar dos inspetores: mas a torre não está dividida em mais do que três andares, porque está disposta de forma que cada um domine plenamente dois andares de celas. A torre de inspeção está também rodeada de uma galeria coberta com uma gelosia transparente que permite ao inspetor registrar todas as celas sem ser visto. Com uma simples olhada vê um terço dos presos e movimentando-se em um pequeno espaço pode ver todos em um minuto. Embora ausente a sensação de sua presença é tão eficaz como se estivesse presente. (...) Todo o edifício é como uma colméia, cujas pequenas cavidades podem ser vistas todas de um ponto 43 central. O inspetor invisível reina como um espírito” . A partir dessa detalhada descrição do panóptico, facilmente se percebe a primeira preocupação de BENTHAM: segurança e disciplina, tão pouco comuns às estruturas carcerárias antigas. A estrutura panóptica garantiria, segundo BENTHAM, ao contrário de tais estruturas, o pleno controle das atividades do preso dentro de sua cela, sem que para isso se dispense elevado número de agentes carcerários ou mesmo se coloque em risco sua segurança. E isso se daria de forma especial porque, sem conseguir enxergar o inspetor, estaria o preso em constante estado de alerta à espera de estar sendo vigiado, como analisa FOUCAULT. “Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento do 44 poder” . Além da segurança para o próprio preso e para os agentes dentro da prisão, a constante sensação de visibilidade permitiria, como mencionado, o disciplinamento do preso contra os maus hábitos, posto ciente de que 43 44 BENTHAN. 0p. Cit.: 40. 0p. Cit.: 166 sempre poderia ser flagrado e corrigido por seu inspetor. A nova estrutura oferecimento das prisional sugerida condições mínimas por BENTHAM primaria de salubridade, pelo conforto e alimentação, que entendia imprescindível a que pudesse ser a pena trabalhada em seu efeito reabilitador. Não poderia, contudo, ultrapassar as condições de vida extramuros do indivíduo, para não ocasionar efeito contrário em relação aos mais fracos e preguiçosos, chegando BENTHAN a dizer que: “um preso que sofre essa pena por delito quase sempre praticados por indivíduos de classe mais pobre, não deve gozar de uma condição melhor que a dos 45 indivíduos da mesma classe que vivem em estado de inocência e de liberdade” . De certa forma é bastante compreensível a preocupação de BENTHAM, especialmente diante da crise econômica européia no final do Século XVIII. Entretanto, a ela cabem pesadas críticas. Imagine-se uma sociedade em que a classe baixa, maior cliente do sistema carcerário, como reconhecido pelo próprio BENTHAN, enfrenta condições subumanas de sobrevivência. Deverá o administrador carcerário repetir tais condições para não contrariar a população “externa”? Tal situação contrariaria os fins de reabilitação do apenado. Por outro lado, se oferecidas são condições melhores que à população inocente, isso poderia estimulá-los à prática de crimes. BENTHAN, porém, não enfrenta esse problema. O terceiro objetivo de BENTHAN quando da idealização do panóptico era a instrumentalização de um mecanismo de correção e reabilitação do criminoso. Para tanto, o preso ficaria isolado em sua cela somente no período noturno, dedicando-se diuturnamente ao trabalho coletivo em pequenos grupos, 45 Op. Cit.: 47. sempre, porém, mantendo o silêncio para não comprometer a disciplina interna. O problema, porém, é que, ao menos tal como pensada por BENTHAN, a estrutura do panóptico inviabilizava o desenvolvimento do trabalho reabilitador. Ao contrário, o controle e a disciplina tão exacerbados, segundo FOUCAULT, no máximo “domesticava” os indivíduos através de uma relação de dominação46. A proposta do panoptismo acaba por simplesmente refletir e reproduzir a estrutura social excludente, criando, não apenas na carceragem, mas também fora a sensação de vigilância. E isso não de forma positiva, gerando a emenda dos indivíduos, como teorizou BENTHAM, mas como um mecanismo de controle social e político, domesticando as classes mais baixas e evitando, assim, qualquer possibilidade de transformação efetiva. Não obstante as tentativas de BENTHAN colocar em prática seu projeto terem fracassado, grande foi a herança deixada para as estruturas carcerárias contemporâneas, especialmente em relação aos mecanismos de disciplina e vigilância prisional, encarnados nos sistemas de câmera interna, escuta etc. 1.4 ASPECTOS CONCRETOS DA POLÍTICA CARCERÁRIA NO PÓSILUMINISMO E NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA Nilo BATISTA diz que “o direito penal vem ao mundo (ou seja, é legislado) para cumprir funções concretas dentro de e para uma sociedade que concretamente se organizou de determinada maneira”47. De fato, esse também era o pensamento dos iluministas, desvendar qual o 46 “A utilidade do trabalho penal? Não é um lucro; nem mesmo a formação de uma habilidade útil; mas a constituição de uma relação de poder, de uma forma econômica vazia, de um esquema da submissão individual e de ajustamento a um aparelho de produção” (Op. Cit.:204). 47 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, 8 ed.,. Rio de Janeiro : Revan, 2002: 19. fundamento e objetivo do ordenamento penal, a fim de que fossem tomadas as medidas necessárias a que cumprisse tal papel. Assim, BECCARIA traça as bases da teoria utilitarista da pena. Assim também BENTHAN idealiza seu modelo carcerário. Assim, ainda, outros que sucederam a esses iluministas ao longo dos Séculos XVIII, XIX e XX procuraram de alguma forma dar uma roupagem ao sistema punitivo que o tornasse útil e justificado até os dias contemporâneos. A prática criminal adotada desde o Século das Luzes até o atual Século XXI, porém, muito se afasta das idéias desses pensadores. A Europa pós-Revolução Industrial experimentou um aumento sem precedentes das taxas de desemprego e pobreza. Por conseqüência, aumentava também a taxa da criminalidade, especialmente a prática dos crimes contra o patrimônio. Diante dessa situação ENGELS chega, inclusive a comentar que: “A necessidade deixa ao trabalhador a escolha entre morrer de fome lentamente, matar a si próprio rapidamente, ou tomar o que ele precisa onde encontrar – em bom inglês – roubar. E não é motivo para surpresa que muitos dentre eles 48 prefiram o roubo à inanição ou ao suicídio” . E, à medida que os tempos passavam, mais se tornava complexa a prática delituosa. Se nos Séculos XVIII e XIX a grande incidência vista era a prática de crimes contra o patrimônio, como sugerem RUSCHE e KIRCHHEIMER em seu estudo49, ao longo do Século XX percebe-se uma multiplicação de crimes. De um lado, pela atividade legislativa que tipifica novas condutas e, de outro, pelo incremento mesmo da conduta criminal, especialmente no que tange à questão das drogas proibidas, crimes de morte ligados à droga e crimes 48 RUSCHE e KIRCHHEIMER. Op.. Cit.: 137 Op.. Cit. 49 contra a integridade física50. O fato é que, desde o Século XIX, mas especialmente ao longo do Século XX e início do Século XXI, o mundo se vê diante de um crescente aumento da criminalidade. Em contrapartida, o sistema penal punitivo não se tem mostrado capaz de cumprir o papel que lhe fora traçado pela união das duas linhas teóricas da pena: punir e prevenir a prática delituosa. Segundo OTTOBONI51, o sistema carcerário mundial faz com que, após cumprir sua pena, 75% dos egressos do cárcere voltem a delinqüir. Sem entrar ainda no mérito do discurso estatal, o que se fará em momento oportuno do presente trabalho, o fato é que, ao menos em relação ao objetivo traçado e repetido para o sistema penal punitivo, em especial pela aplicação da pena de prisão, não se tem alcançado nem de longe os ideais de prevenção do crime. Longe disso, a sociedade encontra-se diante de um círculo vicioso de expansão da criminalidade - aumento do temor social, fator que orientou em meados do Século XX o movimento de “Lei e Ordem”, causador do endurecimento estatal para com os autores de delito, seja pela ampliação exaustiva do rol de condutas tipificadas, elevação do quantum das penas, construção de unidades prisionais, etc. 1.5 A TEORIA ECLÉTICA DA PENA: DA IDÉIA DE MERKEL ÀS CRÍTICAS SOBRE O GARANTISMO PENAL Ainda trabalhando sobre os objetivos da pena, ao longo do Século XX 50 Nesse sentido, encontra-se interessante estudo de caso realizado por WACQUANT com base na realidade estadunidense do Século XX. (WACQUANT. Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos, Eliana Aguiar, 2 ed.,. Rio de janeiro : Revan, 2003) 51 OTTOBONI, Mário. Ninguém é irrecuperável: APAC: a revolução do sistema penitenciário , 2 ed.,.1997; São Paulo : Cidade Nova, 2001.: 23. passa-se a questionar a dicotomia instaurada pelos iluministas, surgindo com MERKEL52 a idéia de que, em verdade, não se poderia limitar à pena uma única função, punição ou prevenção. Ao contrário, para que restasse satisfatória, deveria reunir a sanção penal esses dois elementos, falando-se, a partir de então, em uma função mista da pena: punição do delito cometido e prevenção de novos crimes. E dentro da função preventiva da pena fala-se tanto em prevenção como mecanismo de intimidação da sociedade para que não cometa crimes, como instrumento de ressocialização do apenado, de forma a que deixe para traz sua personalidade criminógena, e também como meio de limitação do poder punitivo estatal, para que não extrapole além dos limites delimitados pela norma. A esse último objetivo da pena muito se dedicou Luigi FERRAJOLI, para quem: “Acima de qualquer argumento utilitário, o valor da pessoa humana impõe uma limitação fundamental em relação à qualidade e à quantidade da pena. É este o valor sobre o qual se funda, irredutivelmente, o rechaço da pena de morte, das penas corporais, das penas infames e, por outro lado, da prisão perpétua e das penas privativas de liberdade excessivamente extensas. Devo acrescentar que este argumento tem um caráter político, além de moral: serve para fundar a legitimidade do Estado unicamente nas funções de tutela da vida e os demais direitos fundamentais; de sorte que, a partir daí, um Estado que mata, que tortura, que humilha um cidadão não só perde qualquer legitimidade, senão que contradiz 53 sua razão de ser, colocando-se no nível dos mesmos delinqüentes” . Não se pode negar que FERRAJOLI, com seu Garantismo Penal, foi responsável por grandes mudanças na estruturação das normas penais, especialmente pela organização de regras ou princípios mínimos que deveriam ser observados pela entidade estatal quando da criação e 52 In: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, 9 ed., vol. 1. São Paulo : Saraiva , 2004: 88. 53 In: GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio,. Niterói: Impetus, 2005: 125. aplicação de uma norma penal54. Por outro lado, a teoria garantista, indiretamente, abriu caminho para um processo de criminalização cada vez maior de condutas e elevação de punições que, em tempos passados, seriam vistas como carecedoras de uma intervenção reparadora estatal, e não de punição, gerando-se cada vez mais a sensação de que o Direito Penal teria a resposta para os grandes problemas da sociedade ocidental: a teoria eclética da pena no Século XX. “O mito do Estado Mínimo é sublinhado, debilitando o Estado Social e glorificando o ‘Estado Penal’. É a constituição de um novo sentido comum penal que aponta para a criminalização da miséria como um mecanismo perverso de controle social para, através deste caminho, conseguir regular o trabalho assalariado precário em 55 sociedades capitalistas neoliberais” . Explicamos: a necessidade de prévia determinação legal para o surgimento no caso concreto do jus puniendi foi pensada como uma garantia do indivíduo contra o excesso e a violência estatal. Entretanto, o discurso garantista não se mostrou eficiente em evitar tal situação, vez que bastaria a legalização da sanção a uma determinada conduta para que a ação punitiva estatal adquirisse legitimidade. Daí uma das grandes falhas do discurso garantistas: na prática, acabou por tornar-se legitimador da estrutura punitiva vigente. A diferença é tão-só que agora contaria ela com o respaldo legal. Não obstante a crítica que se faz ao modelo garantista do Direito Penal, 54 Segundo Paulo QUEIROZ, “Esse sistema assim mínimo de garantias do cidadão frente ao poder punitivo do estado é representado pela adoção (ou manutenção ou aperfeiçoamento) de dez garantias – garantias clássicas – penais fundamentais. Ei-las: princípio da retributividade ou da sucessividade da pena frente ao delito; princípio da legalidade; princípio da necessidade ou de economia do direito penal; princípio da lesividade ou da ofensividade do ato; princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; princípio da culpabilidade ou de responsabilidade pessoal; princípio da jurisdição; princípio acusatório; princípio de verificação; princípio do contraditório ou da ampla defesa” ("A justificação do Direito de Punir na obra de Luigi Ferrajoli." Introdução crítica ao estudo do sistema penal: elementos para a compreensão da atividade repressiva do Estado, Rogério Dultra dos Santos,. Florianópolis : Diploma Legal, 1999: 121). 55 DORNELLES, João Ricardo Wanderley. Conflito e Segurança (Entre Pombos e Falcões),. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2003: 54. ainda encontram-se vários adeptos no campo doutrinário e no legislativo, sendo, inclusive, a base teórica sobre a qual se ergueu, como à frente se comentará mais detalhadamente, o ordenamento penal brasileiro após a Reforma do Código Penal e a elaboração da lei de Execução Penal, ambas com entrada em vigor no ano de 1984. Em síntese, aquilo que foi exposto por FERRAJOLI como o esquema de solução dos problemas do sistema punitivo, na prática, alcança efeito inverso, legitimando políticas punitivas que cada vez mais afastam -se da humanização suscitada pelos iluministas. 2 SISTEMA PUNITIVO BRASILEIRO: DO CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO À LEI DE EXECUÇÃO PENAL 2.1 BREVE HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO CARCERÁRIA BRASILEIRA 2.1.1 A realidade nacional e seus efeitos no sistema punitivo brasileiro: da Colônia ao Império Interessante iniciar o presente capítulo com uma observação de Rodrigo ROIG que, analisando o sistema punitivo brasileiro desde o período colonial até a primeira metade do século XIX, diz: “Vigorava no Brasil, até aquele momento, um sistema penal eminentemente privatístico e corporal, marcado pelas punições públicas de senhores sobre seus escravos (açoites) e pela subsistência das penas de morte na forca, galés, desterro, degredo e imposição de trabalhos públicos forçados. Neste quadro punitivo de fins do período colonial e início do Império, destaca-se também a utilização, como prisões, de instalações precariamente adaptadas, tais como fortalezas, ilhas, quartéis e até mesmo navios, subsistindo ainda as prisões 56 eclesiásticas, estabelecidas especialmente em conventos.” . Essas observações, feitas pelo citado autor a partir de documentos históricos e do revogado Código Criminal do Império, à luz dos comentários já feitos em capítulo anterior do presente trabalho, conduzem indubitavelmente a uma conclusão. O Brasil-Colônia dos Séculos XVI a XVIII e o Brasil-Império da primeira metade do Século XIX, em nada podia ser comparado, no que tange a critérios punitivos, à Europa dos mesmos períodos. Longe disso, mais se aproximam dos castigos penais impostos àqueles cominados na Europa durante a Idade Média: o desprezo pela pessoa do condenado, a necessidade de publicidade das penas, os castigos 56 ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Direito e prática histórica da execução penal no Brasil,. Rio de Janeiro : Revan, 2005: 28. eminentemente corporais etc57. Tal situação, contudo, é perfeitamente compreensível. Afinal, ao contrário da Europa, que ao longo dos Séculos XVIII e XIX experimentou a efervescência do Iluminismo e a gestação e crescimento do Capitalismo, o Brasil do mesmo período ainda se organizava sócio-economicamente, feitas as devidas ressalvas, nos moldes feudais. Senhores de Engenho com poder quase total sobre seus escravos e mesmo sobre seus empregados livres; monopólio comercial com Portugal que impedia o desenvolvimento de qualquer atividade industrial ou mesmo manufatureira ao longo de boa parte desse período; poder religioso absoluto da Igreja, representada pelos jesuítas; etc. Enfim, um cenário comparável à Europa Feudal. Nada mais lógico, então, que a estrutura dos castigos brasileira estivesse mais próxima dos castigos corporais que das discussões sociológicas e jurídicas européias. Somente após a Independência, proclamada em 1822, é que se inicia o ensaio de mudanças na realidade punitiva brasileira. Isso, porém, não se deu ainda nessa fase por influência das idéias iluministas, mas basicamente por pressões políticas. Aliás, as mesmas pressões que, em 1888, levaram o Império a abolir a escravatura negra no Brasil. Em relação a Portugal, alcançara o Brasil por D. Pedro I sua independência. Contudo era preciso o reconhecimento por parte dos demais Estados de que se tratava de uma “nação civilizada”. Para tanto, era preciso abandonar todas as práticas que se afastavam desse conceito58. E abandonar as práticas bárbaras, em matéria penal, significava abandonar as penas até então em vigor e passar a adotar o mesmo sistema punitivo 57 O Código Criminal do Império, por exemplo, em seus artigos 44 a 52 tipificava algumas das penas corporais, tais como a galés, o degredo e o desterro. 58 ROIG. Op. Cit.: 38 que ganhava espaço na Europa, a dizer, a prisão como medida punitiva, e não apenas cautelar. Entretanto, por não se tratar essa mudança punitiva de uma construção histórico-evolutiva, mas sim de uma imposição externa, sua execução mostrou-se tão desastrosa aos princípios humanistas do iluminismo quanto o seria a manutenção das penas corporais. Mesmo porque, sua função, no Brasil, não se pautava pelas idéias de punição equivalente ao delito praticado ou de prevenção de crimes, não passando de mecanismo para subjugar escravos rebeldes, vadios e ladrões 59 . Nesse sentido, MORAES apresenta trecho do Relatório da Comissão Inspetora da Prisão de Aljube no ano de 1828: “Foi com grande difficuldade que a Commissão poude vencer a repugnancia que deve sentir todo o coração humano, ao penetrar nessa sentina de todos os vícios, neste antro infernal, onde tudo se acha confundido, o maior fascinora com uma simples accusada, o assassino o mais inhumano com um miserável, victima da calumnia ou da mais deploravel administração da justiça. O aspecto dos presos nos faz tremer de horror; mal cobertos de trapos imundos, elles nos cercam por todos os lados, e clamam contra quem os enviou para semelhante supplicio, sem 60 os ter convencido de crime ou delicto algum (sic)” . Não obstante ser essa a realidade prisional brasileira no período, o discurso legislativo seguia rigorosamente os padrões exigidos no contexto internacional: buscar a aplicação de medidas voltadas à correção dos indivíduos socialmente desviados61. 59 Importante ressaltar nesse ponto que, em momento algum se percebe de forma expressa no ordenamento legal do período seu aspecto excludente em relação às classes mais baixas e escravos. No entanto, toda a estrutura de aplicação da pena tornava isso realidade factível socialmente. Nota-se, então, um distanciamento entre o discurso normativo e a prática da execução penal, não passando o sistema punitivo do período de um mecanismo de controle social na sociedade brasileira em transição, tal como apontado em relação à Europa por FOUCAULT (Vigiar e Punir . Op. Cit.). 60 In: MORAES, Evaristo de . Prisões instituições penitenciárias no Brazil,. Rio de Janeiro : Livraria Editora Conselheiro Candido de Oliveira, 1923: 08. 61 Nesse sentido, ROIG cita um trecho do Jornal O homem e a América, datado de 14 de janeiro de 1832 que, ao falar da Casa de Correção da Corte, comenta: “É um projeto 2.1.2 O sistema penitenciário no Brasil contemporâneo A transformação política ocorrida no Brasil no fim do Século XIX, pondo termo ao regime monárquico e iniciando a república teve conseqüências na estrutura penal punitiva nacional. Mostrava-se necessário um novo sistema jurídico que refletisse a nova ordem brasileira. Com esse ideal, no ano de 1890 entrou em vigor o primeiro Código Penal da República, trazendo profundas alterações em relação ao sistema punitivo, eliminando de vez por todas as penas degradantes, substituídas pela pena privativa de liberdade62. Uma falha, contudo, impediu que os princípios motivadores do Código de 1890 lograssem êxito, qual seja, a inexistência de um ordenamento jurídico que estabelecesse de forma clara como se daria a aplicação das sanções penais impostas. Aliás, tal situação criou uma série de problemas. De um lado a necessidade de regras de execução fez com que cada Casa de Correção possuísse seu próprio ordenamento, geralmente por via de Decretos, e, quase sempre, contraditórios entre si. E, de outro, o ordenamento jurídico não superou a rígida estratificação da sociedade, acabando por tornar-se novamente instrumento de legitimação da ordem vigente e exclusão dos “indesejáveis”. “O sistema penitenciário parece então ter se desviado profundamente de suas intenções iniciais. Longe de reintegrar, ele expulsa, evacua, suprime os irrecuperáveis. Mas ao mesmo tempo revela talvez sua finalidade oculta e verdadeira: defender a sociedade industrial burguesa fundada sobre a propriedade eminentemente moral o converter homens perdidos na ociosidade e no deboche em cidadãos industriosos, de bons costumes, e por conseqüência, úteis à pátria” (Op. Cit.: 38). 62 “A abundância e a natureza das sanções previstas no Código Criminal de 1830 passaram a ser duramente combatidas no final do século XIX, notadamente a partir do Relatório da Comissão Inspetora da Casa de Correção de 1874, tornando-se imperiosa uma reestruturação normativa no sentido de adequar o sistema pena pátrio às exigências da nova ordem sociopolítica republicana. Edifica-se, nessa conjuntura, o Código Penal de 1890, que buscou romper com certas práticas punitivas do império, tidas como arcaicas e degradantes. Com isso, são extirpadas as penas de morte, de galés, de açoite e perpétua, subsistindo para quase todos os delitos a pena de prisão celular com trabalho obrigatório...” (ROIG. Op. Cit.: 78) . 63 e o trabalho. A prisão é a ilusória válvula de segurança dessa sociedade” . A única solução então vislumbrada para tais problemas passava pela detalhada sistematização da atividade de execução das sanções penais definidas nas sentenças condenatórias. Ocorre que até a aprovação da Lei nº 7.210/84, chamada Lei de Execução Penal, atualmente em vigor, várias foram as tentativas e ensaios normativos. Ao todo, um projeto, três anteprojetos e duas leis, respectivamente, o Projeto de Código Penitenciário de 1933, de autoria de Cândido Mendes, Lemos Brito e Heitor Carrilho; o Anteprojeto de Código Penitenciário de 1957, de Oscar Stevenson; o Anteprojeto de 1963, aos cuidados de Roberto Lyra; o Anteprojeto de 1970, conduzido por Benjamin Moraes Filho; e, as Leis nº 3.274, de 02 de outubro de 1957, e nº 6.416, de 24 de maio de 1977, ordenamento este que determinou as alterações que mais influenciaram e que antecedeu imediatamente a Lei nº 7.210/84. Não será objeto do presente trabalho uma análise detalhista de cada um desses textos, de um lado porque demandaria, pela riqueza, um trabalho específico, e, de outro, para não desnaturar o objetivo central do presente capítulo, qual seja a análise atual do sistema penitenciário brasileiro. Entretanto, cabe dizer que, não obstante basearem-se cada um desses projetos e textos normativos em diferentes Escolas Criminais, importância tiveram cada um deles no processo de amadurecimento do legislador, até a promulgação das Leis nº 7.209 e 7.210, ambas do ano de 1984, a dizer, respectivamente, a lei que reformou a parte geral do Código Penal Brasileiro e a Lei de Execução Penal. Especialmente a segunda, grande importância teve por unificar o sistema punitivo e por definir minuciosamente o funcionamento de cada uma das estruturas necessárias à aplicação das penas, não só a privativa de 63 PERROT, Michele. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros, Denise Bottman, 3 ed.,. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 2001: 265. liberdade, mas também a restritiva de direitos e a de multa. Até a aprovação desses dois ordenamentos, contudo, a atividade de execução penal se manteve sustentada sobre ordenamentos esparsos, dentre os quais o Código Penal e o Código de Processo Penal. 2.2 PARADIGMAS DA REFORMA DO CÓDIGO PENAL DE 1984 E DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL 2.2.1 A exposição de motivos da Lei nº 7.209/84 Atitude salutar é, antes de analisarmos o teor de determinada norma legal, dedicarmos-nos, ainda que rapidamente, à leitura da exposição de motivos da proposta legislativa que a ela deu origem. Isso porque, dessa forma, adentramos na mens legislatoris e, por conseqüência, mais fácil se torna a tarefa de interpretar a norma e dar-lhe uma mais eficaz aplicação concreta. A pergunta é: o que tal observação tem com o presente tópico? A resposta é simples: para melhor compreender-se os institutos normativos previstos pelas duas leis que sustentam o sistema carcerário brasileiro, o Código Penal (reformado em sua Parte Geral pela Lei nº 7.209/84) e a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) é preciso que analisemos o contexto de sua elaboração e a motivação do legislador que as votou. Segundo Rodrigo ROIG, a Lei de Execução Penal teria sido idealizada como um instrumento capaz de sanar as falhas do sistema carcerário brasileiro na década de 80, comentário esse que bem pode ser estendido ao Código Penal, reformado pela Lei nº 7.209/84: “A Lei de Execução penal foi concebida como o instrumento normativo capaz de conferir humanidade e racionalidade ao tortuoso processo de injunção da pena 64 privativa de liberdade ao individuo” . E, retomando a abordagem acerca das Exposições de Motivos das Leis nº 7.209/84 e 7.210/84, o que se verifica é a total consonância em relação ao que diz Rodrigo ROIG. A Exposição de Motivos da Lei nº 7.209/84, tratando das sanções penais demonstra a preocupação do legislador de 1984 em relação às principais críticas feitas à pena privativa de liberdade, já nessa época percebida como instrumento falho no combate da criminalidade. Tanto é assim, que se propôs a buscar caminhos outros para a sanção dos criminosos que não passem pela pena de prisão, como, por exemplo, as penas restritivas de direito, o que bem se vê no tópico 26 de tal Exposição de Motivos: “26. Uma política criminal orientada no sentido de proteger a sociedade terá de restringir a pena privativa de liberdade aos casos de reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir a ação criminógena cada vez maior do cárcere. Esta filosofia importa obviamente na busca de sanções outras para delinqüentes sem periculosidade ou crimes menos graves. 27. As críticas que em todos os países se tem feito à pena privativa de liberdade fundamentam-se em fatos de crescente importância social, tais como o tipo de tratamento freqüentemente inadequado e quase sempre pernicioso, a inutilidade dos métodos até agora empregados no tratamento de delinqüentes habituais e multirreincidentes, os elevados custos da construção e manutenção dos estabelecimentos penais, as conseqüências maléficas para os infratores primários ocasionais ou responsáveis por delitos de pequena significação, sujeitos, na intimidade do cárcere,a sevícias, corrupção e perda paulatina da aptidão para o 65 trabalho” . E, mesmo em relação aos crimes considerados mais graves, para os quais mantida ficou a pena privativa de liberdade, procurou o legislador criar mecanismos que a tornassem mais humana, estabelecendo de forma 64 ROIG. Op. Cit.: 138. Exposição de Motivos da Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984. 65 rigorosa não apenas os passos para a cominação da pena, como também as regras de seu cumprimento. “30. Estabeleceram-se com precisão os regimes de cumprimento da pena privativa de liberdade: o fechado, consistente na execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média; o semi-aberto, em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar; e finalmente o aberto, que consagra a prisão-albergue, cuja execução deverá processar-se em casa de albergado ou instituição 66 adequada” . Ocorre ainda que, como à frente melhor se comentará não se limitou o legislador a intenções, preocupando-se em estabelecer no art. 59 do Código Penal as regras a serem seguidas pelo magistrado no momento da fixação da pena em concreto e, nos artigos 34 a 37 do mesmo ordenamento, as regras de funcionamento de cada um dos três regimes de pena privativa de liberdade. 2.2.2 A exposição de motivos da Lei nº 7.210/84 A preocupação em se dar maior cientificidade à questão carcerária foi tanto que, paralelamente à reforma do Código Penal em 1984, trabalhou-se na elaboração de uma norma legal específica para a execução da pena criminal, a Lei nº 7.210/84. Pautou-se, assim, a LEP pelos mesmos princípios que nortearam a reforma do CP, quais sejam, a clara opção por uma determinada finalidade da pena criminal, em especial a de natureza privativa de liberdade e, a partir daí, uma sistemática discriminação entre os regimes de pena a serem aplicados e uma descrição detalhista dos direitos e obrigações do Estado, da Sociedade e do Apenado para que a pena alcance seu objetivo. É o que percebemos por uma rápida leitura da Exposição de Motivos da LEP: “14. Sem questionar profundamente a grande temática das finalidades da pena, curva-se o Projeto, na esteira das concepções menos sujeitas à polêmica doutrinária, ao princípio de que as penas e medidas de segurança devem realizar 67 a proteção dos bens jurídicos e a reincorporação do autor à Comunidade” . Segundo MIRABETE, essa motivação de disponibilizar um texto normativo de Execução Penal voltado, de um lado, à proteção de bens jurídicos e, de outro, à reincorporação social do apenado se coaduna às idéias da chamada Escola da Nova Defesa Social, unindo métodos de outras disciplinas às penais, processo a partir do qual se alcançaria a redução dos alarmantes problemas de criminalidade. “O combate às causas e às condições determinantes da crise do chamado ‘sistema penal global’ tem sido estudado e desenvolvido com meios e métodos que, embora relacionados mais ou menos intimamente com as ciências penais, são autônomos e oriundos de outras disciplinas e técnicas de atuação humana, com medidas de informação, dissuasão e proteção, destinadas a atenuar o sentimento de insegurança social e, de outro lado, a preparação do preso para a vida social, seu acesso ao mundo do trabalho etc. Com fundamento nas idéias da Nova Defesa Social e tendo como base as medidas de assistência ao condenado 68 é que se elaborou a Lei de Execução Penal” . Exatamente conduzida por essa moção é que a LEP traz toda uma estrutura, à frente analisada de forma sucinta, que, aos olhos do legislador das décadas de 70 e 80 seriam capazes de solucionar o problema da criminalidade e da reincidência. Entretanto, uma análise mais crítica de tais instrumentos deixa evidente um vício elementar, vez que ambos partem de um pseudocientificismo jurídico, nos moldes do pensamento de FERRI, segundo o qual o crime seria sempre uma patologia social e, o criminoso, um doente a necessitar de tratamento 69. 66 Exposição de Motivos da Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984. Exposição de Motivos da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. 68 MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal, 11 ed.,. São Paulo : Atlas, 2004: 27 69 A partir do tópico 2.2.4 passa-se a perceber claramente as conseqüências dessa opção legislativa na prática de execução penal brasileira. 67 2.2.3 A função da pena na LEP e no Código Penal Ao longo dos tempos muito debateu-se acerca do conceito de crime e, por conseguinte, da finalidade da sanção penal. Como, porém, não é objetivo do presente trabalho uma análise detalhada sobre as teorias da pena, limitarse-á ao breve comentário de algumas das mais conhecidas Escolas da Pena. Houve quem considerasse a pena simplesmente como instrumento de resposta à altura contra os indivíduos que venham a descumprir as normas éticas mínimas, como KANT, ou o mecanismo de equilíbrio e expiação da culpabilidade do autor pelo crime cometido, como ROXIN, ambos adeptos das chamadas teorias retributivas da pena70. Diametralmente opostos estão os adeptos das teorias utilitaristas da pena, BENTHAM, SCHOPENHAUER e outros, para os quais a pena somente cumpre seu papel quando mina a vontade delituosa, seja em relação ao delinqüente, que punido não mais voltará a delinqüir, seja em relação à sociedade, intimidada ao ver a pena aplicada in concreto71. E, em terceiro lugar, há ainda a chamada teoria mista, para a qual a pena somente cumpre seu papel quando une os dois objetivos anteriores, isto é, pune, evita a prática de crimes e ressocializa o apenado. Dentre essas três Escolas, a análise promovida em nosso tópico anterior já deixa pistas de qual fora a seguida por nosso legislador, tanto na reforma do Código Penal quanto na elaboração da LEP, qual seja, a Escola Mista da Pena. Aliás, não apenas as respectivas exposições de motivos, mas ambos os ordenamentos legais deixam claro um discurso de adoção de sanções penais que visem de um lado a punição e, de outro, a ressocialização do apenado. 70 71 BITENCOURT. Tratado de Direito Penal. BITENCOURT, Op Cit. É o que se vê, respectivamente, pela leitura dos artigos 59 do Código Penal e 1º da Lei de Execução Penal: “Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I- as penas aplicáveis dentre as cominadas; II- a quantidade da pena aplicável, dentre os limites previstos; III- o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV- a substituição da pena privativa de liberdade aplicada, por outra espécie de 72 pena, se cabível” . “Art. 1º. A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do 73 condenado e do internado” . Punir e ressocializar, dois objetivos aparentemente contraditórios, mas que, segundo opção legislativa deveriam ser buscados conjuntamente pelo Estado no momento em que fixa e aplica a sanção penal, inclusive a de natureza privativa de liberdade. Nesse sentido, MIRABETE comenta que “a pena, por sua natureza, é retributiva, tem seu aspecto moral, mas sua finalidade não é simplesmente prevenção, mas um misto de educação e correção”74. Exatamente no intuito de alcançar esses objetivos aparentemente contraditórios foi que o legislador pátrio traçou sistematicamente como deveria funcionar o mecanismo de aplicação e execução da pena criminal, especialmente a privativa de liberdade. Dessa forma, em um primeiro momento, a Lei de Execução Penal 72 Código Penal Brasileiro. Lei de Execução Penal. 74 MIRABETE, Op. Cit.: 25. 73 estabelece o tipo de política a ser implementada pelo Estado em relação ao preso, o que faz por meio de seu Capítulo II do Título II, intitulado “Da assistência”, no qual traça como exigível do Estado a assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa ao individuo privado de sua liberdade. Em um segundo momento, dispõe acerca dos órgãos competentes de fazer cumprir tal assistência nas esferas federal, estadual e municipal do Poder Público. E, por fim, em terceiro momento, trata dos estabelecimentos penais e das condições de cumprimento das penas privativas de liberdade, benefícios cabíveis aos apenados e do cumprimento das penas não privativas de liberdade. 2.2.4 Os mecanismos para a execução da pena privativa de liberdade: direito ou recompensa Um misto de educação e correção. Como citado, com essa expressão, MIRABETE define o objetivo perseguido pelo Estado quando da aplicação da pena, seja ela privativa de liberdade, restritiva de direito ou de multa. E, por sua particularidade, para a boa aplicação da pena privativa de liberdade, estabelece a LEP minuciosamente os órgãos encarregados e a tarefa determinada a cada um deles. 2.2.4.1 Sujeito de direito ou objeto da execução? Antes, porém, de passarmos à análise desses órgãos, importante é lembrar mais uma vez que a execução penal brasileira sustenta-se sobre a teoria mista da pena, ou seja, de que seu objetivo é punir e ressocializar o condenado. E, diante desse paradigma, especial atenção é preciso dar exatamente à função ressocializadora da pena. Parte o ordenamento jurídico da idéia de que o condenado somente se teria dado à prática criminal em virtude de alguma anomalia física, psíquica ou mesmo social, sendo dever do Estado tratá-lo com eficiência, a fim de que tal anomalia seja sanada. Nesse sentido, MIRABETE disserta que: “Modernamente, vem tomando relevo, como matéria de primeiro interesse no campo do direito penal, o problema da personalidade do criminoso e, por isso, ao lado dos tipos de delitos, tem-se dado atenção à importância do conhecimento a respeito dos tipos de delinqüentes, que formam a tipologia criminal. Ressalte-se, assim, a importância da Biotipologia Criminal para o estabelecimento de classificações ‘nas quais certos indivíduos podem ser agrupados, por serem portadores de anomalias orgânicas ou funcionais características, que comprovadamente estão presentes na gênese de condutas agressivas’. A Biotipologia Criminal, associada a outras ciências, pode dar a exata dimensão, o retrato de corpo inteiro, do homem delinqüente, isto é, o homem em sua totalidade psicoambiental. Uma classificação fundada na Biotipologia, aliada a outros conhecimentos científicos (psicologia, psiquiatria, sociologia etc.) pode fornecer subsídios à classificação dos condenados e à individualização do tratamento penal 75 adequado” . Como conseqüência disso, não considera a LEP o apenado como um sujeito titular de direitos e obrigações ativas e passivas, mas apenas como o destinatário das medidas salvadoras. Nessa circunstância, questionamento algum por ele pode ser levantado em relação ao mérito das medidas, afinal o “doente” não tem conhecimento sobre as fórmulas tratativas de sua doença. Mesmo as garantias asseguradas ao apenado no artigo 11 da LEP são postas não como direitos fundamentais corolários ao artigo 5º da CF/88. Longe disso, estabelecidas foram como instrumentos da atividade ressocializadora76. Não que a estipulação de garantias e direitos ao apenado não represente um avanço em relação à anterior estrutura penitenciária. Não é isso que se 75 MIRABETE. Op. Cit.: 50. MESQUITA Junior, Sidio Rosa de. Execução Penal: teoria e prática: doutrina, 76 pretende afirmar. O problema é que, ao trabalhar o apenado como objeto e não sujeito durante a execução penal, perde-se o foco de sua personalidade humana e, ao invés da pretendida ressocialização, limitam-se os resultados, quando muito, ao adestramento do apenado. 2.2.4.2 O adestramento da recompensa O Código Penal e a LEP estabelecem três regimes prisionais, a dizer, regimes fechado, semi-aberto e aberto. O primeiro a ser cumprido em penitenciária de segurança máxima ou média, o segundo em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar e o terceiro e casa do albergado. Em cada uma dessas instituições submeter-se deve o apenado a regras específicas de comportamento e de trabalho, sendo recompensado pelo Estado executor da pena à medida que demonstra pleno cumprimento das normas que lhe são impostas. “Art. 55. As recompensas têm em vista o bom comportamento reconhecido em favor do condenado, de sua colaboração com a disciplina e de sua dedicação ao trabalho. Art. 56. São recompensas: I- o elogio; II- a concessão de regalias. Parágrafo único. A legislação local e os regulamentos estabelecerão a natureza e 77 a forma de concessão de regalias” . Além dessas regalias, poderiam ser citadas também como recompensas a autorização para o trabalho externo nos regimes fechado e semi-aberto, a saída autorizada nos regimes semi-aberto e aberto, a remição de pena, jurisprudência, modelos, 4 ed.,. São Paulo : Atlas, 2005: 136. dentre outros. Não se limita, ainda, o sistema de recompensas a funcionar dentro do regime estabelecido, mas também na progressão entre regimes e na concessão de livramento condicional. Em todos esses institutos, estabelece a LEP a necessidade de se observar elementos de caráter objetivo: tempo de condenação, parecer de órgãos da execução penal, a dizer, o Ministério Público, reparação de dano à vítima e/ou outros, além de elementos de caráter subjetivo, qual seja, o bom comportamento do apenado. Trabalhando acerca da progressão de regime, MESQUITA Junior lembra que “nenhuma progressão de regime prescinde do requisito subjetivo que é o mérito. Este inclui o comportamento do condenado” 78 . E essa regra serve para todos os outros benefícios carcerários. Uma primeira pergunta a se fazer é: o que vem a ser, ou melhor, como se comprovar o chamado “bom comportamento” do apenado? Segundo FOUCAULT, a prisão teria sido imaginada como: “um instrumento de transformação dos indivíduos (...).desde o começo, a prisão devia ser um instrumento tão aperfeiçoado quando a escola, a caserna ou o 79 hospital e agir com precisão sobre os indivíduos” . A partir daí, o bom comportamento do apenado seria a averiguação de que o mesmo estaria de fato, sendo transformado e perdendo sua personalidade criminógena graças à técnica de execução de pena. É o que se vê nos entendimentos jurisprudenciais brasileiros: “REGIME PRISIONAL – PROGRESSÃO – Sentenciado que preenche o requisito temporal e tem referência de boa conduta carcerária – Circunstâncias insuficientes 77 Lei de Execução Penal. Op. Cit.: 238. 79 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, Roberto Machado, 19 ed.,. Rio de Janeiro: Graal, 2004: 131. 78 para a concessão da benesse se inexistente a indicação de outros elementos convincentes acerca da readaptação social do requerente – Inteligência do art. 112 da Lei 7.210/84 (...). Não obstante preenchidos os requisitos objetivos, previstos no art. 112 da Lei de Execução Penal, revelando-se o apenado inapto para retornar ao convívio social, aquele não faz jus à progressão de regime, porquanto a aferição da oportunidade é conferida ao magistrado competente, não sendo suficiente para o deferimento da benesse o atendimento ao requisito temporal e a simples referência de boa conduta carcerária, sendo necessária a indicação de outros elementos convincentes acerca da readaptação social do requerente” 80 . “EXECUÇÃO CRIMINAL – RECURSO DE AGRAVO – PROGRESSÃO DE REGIME (art.12 da LEP) – Para progressão de regime o apenado deve preencher dois requisitos: temporal (objetivo) e ter méritos para se ajustar ao novo regime (subjetivo). Caso não tenha méritos, atestado por parecer fundamentado da Comissão Técnica de Classificação, o qual não vincula o magistrado, deve ser, pois, indeferida a postulada progressão. Negaram provimento à unanimidade” 81 . Na prática executória, porém, bastaria a não detecção de faltas disciplinares para que fosse considerado o apenado como dotado de bom 82 comportamento . Afinal, as averiguações são feitas com base apenas no comportamento aparente do apenado, ou seja, sua aparente disciplina e atenção às atividades rotineiras da pena imposta. Por essa práxis, a única coisa que se consegue, na maioria das vezes, é o adestramento do apenado que, para alcançar a liberdade mais rapidamente, acata as regras de funcionamento do estabelecimento prisional, sem, porém, que se dê a transformação interior almejada na LEP. Indício desse fato é o elevado índice de reincidência carcerária brasileiro, em torno de 85%83. Se verdadeiramente, as medidas pugnassem pela transformação e não apenas pelo adestramento do apenado, possivelmente os índices de reincidência carcerária seriam mais baixos. 80 TJ PA. In: RT 799/671. TARS. In: JTAERGS 87/155. 82 OTTOBONI. Op. Cit. 83 Segundo dados levantados por OTTOBONI. Op. Cit. 81 2.3 BREVE DIAGNÓSTICO DO CÁRCERE NO BRASIL Necessário, porém, para que não se limite o presente trabalho ao debate no plano das idéias, que se promova uma análise detalhada da situação carcerária brasileira. Mesmo porque, sabido é, e isso popularmente, que as condições da carceragem brasileira pouco ou nada se aproximam da previsão legal, o que, per si talvez pudesse ser argumentado como causa de ineficiência do sistema. Os dados a seguir demonstrados e comentados foram obtidos diretamente junto ao Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN, por meio do sistema de dados INFOPEN entre os meses de maio e setembro de 200684. Importante mencionar, ainda, que, conforme percebeu-se ao analisar os dados disponíveis no INFOPEN, muitos estados brasileiros não têm encaminhado os dados de seus sistemas penitenciários, razão pela qual o levantamento mantém-se a partir de dados já defasados. A partir daí, chega-se à conclusão de que a situação real do sistema carcerário brasileiro é ainda mais complexa do que os índices oficiais. Entretanto, ainda assim se faz a análise do sistema a partir dos dados oficiais. De um lado, por que seria impossível o levantamento real sem a colaboração dos órgãos estatais e, de outro, porque a defasagem dos dados não coloca em risco o resultado da análise. 2.3.1 A capacidade carcerária brasileira Segundo informações do DEPEN, em dezembro de 2004, o Brasil possuía, oficialmente 336.358 presos, distribuídos entre o sistema penitenciário e as secretarias estaduais de segurança pública, o sistema penitenciário comportando 262.710 detentos e as secretarias de segurança pública 84 Todas as informações e dados levantados junto ao INFOPEN encontram-se disponíveis 73.648. Por sua vez, em dezembro de 2005, o sistema carcerário brasileiro comportava o total de 361.402 presidiários, dos quais 296.919 aprisionados no sistema penitenciário e 64.483 nas secretarias de segurança pública. Por outro lado, o sistema penitenciário contava com apenas 206.347 vagas. 85 Gráfico 1 Percebe-se que, só no intervalo de 2004 para 2005, a população carcerária brasileira cresceu 7,45%, enquanto o número de vagas apenas 2,96%. Ou seja, no final do ano de 2005, o Brasil estava com um déficit de cerca de 90.572 vagas, considerando-se que as secretarias de segurança pública estivessem operando sem superlotação, dado que não é informado pelo DEPEN, mas que, provavelmente, não ocorre. Cabe lembrar que, em razão de adotar a LEP o sistema de progressão de regimes, deveria o sistema penitenciário compor-se, proporcionalmente à demanda, de instituições destinadas a atender a demanda de cada um dos três regimes de cumprimento de pena. A composição oficial encontra-se descrita na tabela abaixo. Estabelecimentos prisionais no Brasil no site do Departamento Penitenciário Nacional. 85 Segundo dados oficiais do Departamento Penitenciário Nacional. Estados Penitenciária Presídio Cadeia Pública Casa do Colônia Agríc. Albergado Ind. ou Similar AC 6 0 0 0 0 AL 5 0 0 0 1 AM 2 9 2 1 1 AP 1 0 0 0 0 BA 4 8 0 1 1 CE 4 2 156 1 2 DF 5 0 0 0 1 ES 14 0 0 0 0 GO 2 5 8 1 0 MA 4 2 4 1 0 MG 31 13 0 4 0 MS 19 4 0 11 1 MT 3 0 48 1 1 PA 17 3 5 1 2 PB 9 5 57 0 1 PE 6 8 69 0 1 PI 10 0 0 2 1 PR 12 0 0 0 3 RJ 18 4 9 1 1 RN 4 1 3 0 1 RO 20 0 7 2 1 RR 1 0 2 1 0 RS 11 66 0 10 3 SC 5 28 0 1 0 SE 5 0 1 0 0 SP 122 0 20 0 2 TO 0 0 18 0 1 TOTAL 340 158 409 39 25 86 Tabela 1 Por ela se percebe que, ao longo dos anos, o maior investimento estatal destinou-se à construção de instituições voltadas ao cumprimento da pena no regime fechado, a dizer, presídios e penitenciárias, bem como destinadas à guarda provisória de presos, as chamadas cadeias públicas que, como visto na Figura 1, recebem também presos condenados. No total, seriam, no final do ano de 2005, 907 estabelecimentos prisionais. Lado outro, os regimes semi-aberto e aberto contariam com apenas 64 estabelecimentos, ou seja, não mais que 6,58% do total de estabelecimentos prisionais. Tal fato cria um problema de considerável monta ao longo da execução da pena. Afinal, se após o cumprimento de 1/6 da pena, desde que a avaliação subjetiva seja favorável, pode o apenado migrar para um regime menos grave, a dizer, semi-aberto ou aberto, mas faltam vagas nos poucos estabelecimentos dessa natureza existentes no Brasil, para onde seriam encaminhados os presos do regime fechado que se encontram em condição de migrar para o semi-aberto? Na ausência de locais adequados, diverge a doutrina e a jurisprudência nacional. Para uns, tomando-se por base o princípio da individualização da pena que impediria a imposição de regime mais grave do que aquele a que faria jus o apenado, deveria ser ele encaminhado diretamente ao regime aberto. E, sendo poucas também as casas do albergado, deveria destinar-se celas especiais nos estabelecimentos prisionais existentes para o recebimento desses apenados. Outros, porém, entendem não ser possível a progressão direta do regime fechado para o aberto, razão pela qual, na ausência de estabelecimentos, deveria o preso permanecer no primeiro regime87. Nesse sentido, invocam-se sempre entendimentos do STJ e do TJSP: “A evolução do regime prisional fechado há que ser, obrigatoriamente para o semi88 aberto, conforme gradação estabelecida no art. 33, § 1º do Código Penal” . “A progressão do regime prisional fechado só pode ser para o semi-aberto. Natura non facti saltus, de sorte que o regime prisional não pode também dar saltos, 89 devendo atender à graduação estabelecida na lei” . As duas correntes mostram-se, a partir da pedagogia adotada na LEP, falhas. A primeira por colocar em parcial liberdade o indivíduo que ainda não 86 Segundo dados oficiais do Departamento Penitenciário Nacional. MIRABETE. Op. Cit.: 389. 88 STJ. In: JSTJ 3/183. 89 TJSP. In: RT 610/338. 87 tenha passado pela metodologia do regime semi-aberto, o que seria perigoso à sociedade e, a segunda, por vedar o progresso daquele que já lhe faria jus, o que pode tornar-se fator negativo à sua ressocialização, causando-lhe graves prejuízos. Ademais, uma hora ou outra ele deverá passar ao regime aberto, e sem que tenha passado pelo regime intermediário. Os investimentos públicos, entretanto, mantêm-se voltados somente à construção de estabelecimentos prisionais do regime fechado, o que permite concluir que o problema aqui suscitado não possui solução a curto ou médio prazo90. 2.3.2 O perfil do preso no Brasil Dissertando acerca do processo de vitimização e processo de “etiquetamento” das classes marginalizadas através do sistema punitivo, Lola Aniyar de CASTRO comenta que, na sociedade contemporânea: “o criminoso estereotipado, quer dizer, tal como o define o estereótipo, provém geralmente do proletariado ou do subproletariado: cresce em condições econômicas e afetivas precárias que o determinam a ser um adulto instável, 91 agressivo, incapaz de incorporar-se com êxito ao sistema de produção” . Não é objetivo da citada autora, e nem nosso, dizer que somente indivíduos de tais categorias se voltem à prática delituosa, mesmo porque isso equivaleria à retomada de um pensamento criminológico lombrosiano, exatamente o oposto do pretendido. O que se quer, longe disso, é simplesmente demonstrar que, ainda na sociedade contemporânea, as críticas formuladas por FOUCAULT e pela própria Lola Aniyar de CASTRO encontram guarida. À realidade brasileira, por exemplo, como uma luva, se encaixa a 90 Segundo dados do Orçamento do Fundo Penitenciário Nacional, disponível no site do DEPEN. 91 CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da reação social, Ester Kosovski,. Rio de Janeiro “tipificação” do criminoso contemporâneo, ao menos aquela que cai nas malhas do sistema punitivo, feita pela autora latino-americana. Homens negros ou pardos, oriundos das classes menos abastadas e pouco escolarizados. Este é o padrão do condenado brasileiro, segundo dados do INFOPEN abaixo reproduzidos. Classificação dos presos por sexo Masculino Feminino Total Fechado 141.798 7.431 149.229 Semi-aberto 32.901 955 33.856 Aberto 7.417 456 7.873 Medida de Segurança 1.447 98 1.545 2.209 91 2.300 98.222 3.894 102.116 (Internação) Med. de Seg. (Trat. Ambulatorial) Provisórios SSP 57.144 7.339 64.483 Total 341.138 (94,39%) 20.264 (5,61%) 361.402 (100%) 92 Tabela 2 Independente de qual o regime de pena e, por conseqüência, o tempo de condenação, ou mesmo se ainda se tratar de presos provisórios, a maciça “clientela” do sistema carcerário brasileiro, mais de 94%, pertence ao sexo masculino, contra apenas 5,61% de mulheres, número destoante com o censo brasileiro, que aponta a composição da população brasileira em sua maioria por mulheres93. Tal fator pode ser explicado pela estrutura estigmatizante das políticas públicas, seja de caráter penal ou não, em sociedades patriarcais como a brasileira, em que o homem é, ao mesmo tempo, visto como o pater famílias, tutor das necessidades de seu grupo familiar e como o alienígena perigoso quando os métodos utilizados na busca de tais satisfações fogem dos “padrões” da sociedade contemporânea94. : Forense, 1983, 126 p.. 92 Segundo dados oficiais do Departamento Penitenciário Nacional. 93 www.ibge.gov.br/censo/revista.shtm - acesso em 16 de outubro de 2006. 94 BAUMAN, Zygmunt . "Os estranhos da era do consumo: do estado de bem estar à prisão." O mal-estar da pós-modernidade, Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama,. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1998: 49-61. Por sua vez, permanecendo muitas das vezes “do outro lado”, a mulher ainda é pouco vista como envolvida em práticas criminosas, mesmo porque, fora do “perfil temido”, ainda não é vista como uma ameaça a ser combatida. Classificação dos presos por escolaridade (em %) Grau de escolaridade Masculino Feminino Total Analfabeto 5,849 4,802 5,802 Alfabetizado 28,045 22,555 27,798 Fundamental incompleto 40,868 43,721 40,996 Fundamental completo 11,613 11,701 11,617 Médio incompleto 7,727 7,692 7,726 Médio completo 5,016 6,627 5,089 Superior incompleto 0,474 2,194 0,551 Superior completo 0,399 0,706 0,414 Acima do Superior 0,057 0 0,007 100 100 100 completo Total 95 Tabela 3 E, seguindo a metodologia analítica de BAUMAN, profunda é a ligação que se pode fazer entre encarceramento e exclusão social, fator que se percebe facilmente pela análise dos dados constantes nas Tabelas 3 e 4. A primeira traz a classificação dos encarcerados brasileiros por grau de escolaridade, enquanto a segunda, a classificação por etnia ou cor de pele. Interessante que cerca de 74,6% dos encarcerados tenham conseguido, no máximo, concluir o ensino fundamental e quase 60% estejam relacionados entre indivíduos negros ou pardos. Lado outro, menos de 0,5% são os portadores de diploma de curso superior e menos de 40% possam ser classificados como brancos. Classificação dos presos por cor de pele/etnia (em %) 95 Cor de pele/etnia Índice Branca 39,81 Negra 18,92 Parda 40,29 Amarela 0,66 Indígena 0,18 Outras 0,89 Segundo dados oficiais do Departamento Penitenciário Nacional. Total 100 96 Tabela 4 Nas palavras de BAUMAN: “Dada a natureza do jogo agora disputado, as agruras e tormentos dos que dele são excluídos, outrora encarados como um malogro coletivamente causado e que precisava ser tratado como meios coletivos, só podem ser redefinidos como um crime individual. As ‘classes perigosas’ são assim redefinidas como classes de criminosos. E, desse modo, as prisões agora, completa e verdadeiramente, fazem 97 as vezes das definhantes instituições do bem-estar” . Exatamente o retrato da realidade social brasileira que, desde os tempos de Colônia conserva a mesma estrutura que exclui do jogo do mercado negros e pobres. “Certamente, a estrutura colonial brasileira, que teve por base a grande propriedade e a mão-de-obra escrava, moldou permanências sociais e políticas que erigiram um ideário jurídico-penal responsável pela moldura arquétipica do 98 controle penal da atualidade no Brasil” . Classificação por modalidade delitiva Tipo delitivo Valores objetivos Porcentagem Crimes sexuais 4.323 1,905% Crimes contra a Adm. Pública 1.330 0,586% Crimes da Lei de Armas 10.124 4,462% Extorsão (simples e qualificada) 1.256 0,553% Falsificação de documento e/ou uso 1.621 0,714% Furto (simples e qualificado) 29.545 13,022% Homicídio qualificado 16.926 7,460% Homicídio simples 9.321 4,108% de documento falso 96 Latrocínio 7.821 3,447% Quadrilha ou bando 3.107 1,369% Receptação 5.456 2,404% Roubo (simples e qualificado) 70.896 31,248% Seqüestro 584 0,257% Tortura 153 0,067% Tráfico de Entorpecentes 31.520 13,892% Tráfico Internacional de . 1.360 0,599% Segundo dados oficiais do Departamento Penitenciário Nacional. BAUMAN. Op. Cit.: 57. 98 COSTA, Yasmin Maria Rodrigues da . O significado ideológico do sistema punitivo brasileiro,. Rio de Janeiro : Revan, 2005: 39. 97 Entorpecentes Outros 31.537 13,901% Total 226.880 100% 99 Tabela 5 E só faz confirmar o raciocínio acima traçado, a leitura dos crimes mais processados e punidos no Brasil. Como se vê pela Tabela 5, metade dos presos brasileiros encontram-se encarcerados pela prática de crimes diretamente ligados à questão econômica. Ou seja, cerca de 50,6% dos presos cometeram algum tipo de crime contra o patrimônio (furto, roubo, latrocínio, extorsão ou receptação). Por sua vez, outros 13,89% encontram-se presos pela prática de delitos indiretamente ligados a problema econômico, a dizer, os crimes de tráfico nacional de tóxicos, na grande maioria dos casos tratando-se de pequenos traficantes. Lado outro, os delitos mais elaborados, como crimes contra a administração pública, falsificação ou uso de documento falso e tráfico internacional de entorpecentes são responsáveis por não mais que 1,9% da prisões. 2.3.3 Os resultados da política carcerária brasileira Levando em conta os dados acima expostos, o resultado, tal como comentado por nomes da Criminologia e do Direito Penal pátrios, não poderia ser diferente, tendo, inclusive servido de título às obras de BITENCOURT e SÁ100, a dizer, respectivamente, “Falência da Pena de Prisão: causas e alternativas” e “A prisão dos excluídos: origens e reflexões sobre a pena privativa de liberdade”. É fala constante, não só no ambiente acadêmico como também no meio comum, a de que a pena privativa de liberdade não cumpre sua função, seja de punir, seja de prevenir a prática de crimes. 99 Segundo dados oficiais do Departamento Penitenciário Nacional. SÁ, Geraldo Ribeiro de. A prisão dos excluídos: origens e reflexões sobre a pena 100 A fonte mais gritante dessa conclusão é o elevado índice de reincidência criminal, apontado por OTTOBONI101 em torno de 85%102. A primeira causa de tão elevado índice já se revelou, nas entrelinhas dos tópicos anteriores, como tendo por fundamento a repetição da realidade excludente da “sociedade livre”, a superlotação das instituições, com déficit de mais de 90.000 vagas, e a desproporção entre o número de estabelecimentos para cada um dos três regimes, o que per si impede que a pedagogia da LEP seja aplicada eficientemente. Além disso, outros fundamentos podem ser apontados como elementos que elevam o fator criminógeno do cárcere, como a repressão do instinto sexual, a violência dentro do cárcere, a ociosidade, as deficiências estruturais das instituições penais brasileiras, dentre outros. 2.3.3.1 A repressão sexual A abstinência sexual é apontada por alguns103 como um dos mais graves problemas penitenciários. Em primeiro lugar, a abstinência em si eleva o estado de tensão entre os prisioneiros. “Na vida em liberdade é mais fácil encontrar mecanismos de autocontrole. Na prisão, contudo, isso é praticamente impossível, pelo que a frustração provoca inevitavelmente algum desequilíbrio psíquico” 104. Em segundo plano, porque cria situações em que se desenvolve, voluntária ou, geralmente, forçada, a prática do homossexualismo dentro da prisão, privativa de liberdade,. Rio de Janeiro : EDUFJF e Diadorim , 1996. 101 Op. Cit. 102 Não obstante os índices de reincidência brasileiros estarem entre os mais elevados do mundo ocidental, não se trata de um problema exclusivo. Nesse sentido, BITENCOURT comenta: “As estatísticas de diferentes países são pouco animadoras, tal como refletem as seguintes; nos Estados Unidos as cifras de reincidência oscilam entre 40 e 80%. Glaser cita um índice de reincidência da década de 60 que vai de 60 a 70%, nos Estados Unidos. Na Espanha, o percentual médio de reincidência, entre 1957 e 1973, foi de 60,3%. Na Costa Rica, mais recentemente, foi encontrado o percentual de 48% de reincidência” (Op. Cit.: 161) . 103 Nesse sentido BITENCOURT. Op. Cit.:202 104 BITENCOURT. Op. Cit.:204 desnaturando a auto-imagem e a identidade do encarcerado105. Aponta-se, porém, como fonte de solução desse problema a possibilidade da ”visita íntima”, teoricamente prevista no art. 41, X da LEP. Entretanto, ao invés de solucionar o problema, tal prática maximiza ainda mais a humilhação e exclusão do apenado. Se, de um lado, serve de mecanismo para evitar o homossexualismo e a tensão carcerária, em contrapartida acaba por criar embaraços aos cônjuges e/ou companheiros, bem como por pulverizar o relacionamento afetivo do preso com sua família, ante a conotação exclusivamente sexual que a visita toma. “Em algumas pesquisas realizadas, os próprios internos manifestaram objeções à visita conjugal. Realizou-se uma pesquisa sobre o assunto na prisão de Carabanchel, e os jovens questionados expressaram o seguinte: os solteiros inclinavam-se pela utilização da visita íntima, desde que ocorresse com um mínimo de dignidade. A maioria, contudo não a aceitava com suas namoradas ou esposas, pela humilhação que representava para elas ir à prisão não para ficar um momento com seus maridos ou companheiros, mas unicamente para manter relação sexual com eles, como se o sexo fosse somente a satisfação mecânica de um impulso físico, desprovido do indispensável conteúdo afetivo” 106 . 2.3.3.2 A violência Outro grave problema carcerário é a violência sofrida pelos presos, seja por parte de outros presos, seja por parte da vigilância. Em seu trabalho, RAMALHO demonstra como dentro de uma instituição penitenciária é criado107 um código próprio de condutas, tendo por “autoridade a ser obedecida” o condenado de maior pena ou pertencente a uma dada facção criminosa, punindo-se a desobediência, geralmente, de forma física. 105 Nesse sentido RAMALHO, José Ricardo. Mundo do Crime: a ordem pelo avesso,. Rio de Janeiro : Graal, 1979. 106 BITENCOURT. Op. Cit.:218 Não sendo esse o caso, tem-se ainda a influência dos agentes carcerários, muitas vezes atuando como senhores da vida de seus custodiados108. Enfim, tudo isso acaba por elevar também o clima de tensão dentro da carceragem e estimula reações cada vez mais violentas por parte dos aprisionados, fator que cria barreiras às vezes insuperáveis a qualquer trabalho de transformação de sua personalidade. 2.3.3.3 A ociosidade e a deficitária estrutura das instituições carcerárias Outros problemas apontados à carceragem são a ociosidade imprimida aos presos e a falta de estrutura adequada, fatores esses interligados de forma direta. Quando se fala em estrutura carcerária, pensa-se imediatamente em número de vagas em razão dos ditames da LEP para a estrutura celular nas instituições para o regime fechado e a existência de estabelecimentos para os regimes semi-aberto e aberto, o que, como bem se demonstrou no tópico anterior, inexiste. O problema, contudo, vai mais além. Não se trata apenas de um problema de superlotação das instituições existentes. Além da falta de vagas, a estrutura física e pessoal do serviço carcerário impedem que as garantias legais de assistência ao preso sejam efetivadas, fazendo com que haja oferta de trabalho prisional. A LEP preleciona uma série de garantias, dentre as quais especial atenção merecem em relação ao presente tópico, a assistência material, à saúde, educacional e jurídica, além do trabalho prisional de acordo com suas aptidões e voltado ao aspecto lúdico. No entanto, a ausência de material e funcionários capacitados para a oferta de tais modalidades de assistência leva a um deplorável estado das 107 Op. Cit. Nesse sentido OTTOBONI. Op. Cit. 108 condições físicas dos encarcerados. Por sua vez, a falta do trabalho prisional, não com a estrutura fabril das extintas workhouses, mas sim baseados no fim lúdico da capacitação profissional e educacional, leva a um estado de ociosidade que contribui de forma considerável ao fortalecimento da personalidade criminógena do encarcerado. “Se a tendência da população prisional foi de deixar uma ocupação no momento de sua captura, a mesma tendência inverte-se no curso da vida carcerária. Ao sair da prisão, o detento estará convertido num desocupado, porque viveu ociosamente todo o tempo passado no cárcere. Por mais contraditório que pareça, se a construção da identidade do criminoso, no entendimento policial e dos demais órgãos de repressão do Estado, passa pela preguiça, vadiagem e falta de renda, a prisão, ambiente de recuperação do infrator e do delinqüente, através das condições de vida nela existentes, elegeu a ociosidade como um de seus valores supremos. Ao ser constituída como valor, a ociosidade se impõe como modelo de vida” 109 . 2.3.3.4 A conclusão inevitável O somatório de todos esses fatores que envolvem a situação carcerária brasileira, compartilhada por vários outros Estados, seja desenvolvidos, em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, leva a transtornos psicológicos, emocionais e até mesmo físicos de tal monta que impedem de forma quase absoluta que se alcance a tão perseguida pelo legislador função ressocializadora da pena. Ou, citando ainda uma última vez nesse capítulo a fala de BITENCOURT: “A prisão impõe condições de vida tão anormais e patológicas que precisamente os que melhor se adaptam ao seu regime são, geralmente, os indivíduos que podem ser classificados dentro do tipo esquizóide. (...) Todos os transtornos psicológicos, também chamados reações carcerárias, ocasionados pela prisão são inevitáveis. Se a prisão produz tais perturbações, é paradoxal falar em reabilitação do delinqüente em um meio tão traumático como o cárcere. Essa séria limitação é uma das causas que evidenciam a falência da prisão tradicional” 110 . Os resultados são, primeiramente, prisões superlotadas, nas quais não encontra o preso qualquer garantia de atenção aos direitos humanos mínimos e, por conseqüência, a manutenção do apenado na criminalidade, cada vez mais temido e excluído da sociedade, criando-se um círculo vicioso, reproduzindo o mesmo cenário excludente que se vê no Brasil desde o período colonial, não obstante os avanços legislativos voltados à quebra desse padrão. Retrato vivo desse dilema é a manchete publicada no jornal O Globo do dia 04 de setembro de 2005 denunciando que na carceragem fluminense os presos da POLINTER viam-se obrigados a assinar termo de declaração de responsabilidade por sua segurança pessoal enquanto estivessem dividindo cela com presos da facção criminosa “Comando Vermelho”: “ Apesar de leis que obrigam o estado a zelar pela proteção do detento, presos são obrigados a assinar uma declaração na qual assumem total responsabilidade por sua integridade física na carceragem da Polinter, no Centro do Rio. A denúncia formal, que ainda inclui ‘tratamento cruel, desumano e degradante’, foi apresentada semana passada à Organização das Nações Unidas (ONU) por quatro entidades: Justiça Global, Laboratório de Análise da Violência da Uerj, Grupo Tortura Nunca Mais e Associação Pela Reforma Prisional (ARP) do Rio. O documento – um dossiê de oito páginas, com fotos das condições em que os presos estão vivendo na Polinter – foi enviado a Genebra, na Suíça, para Manfred Noward, relator especial sobre tortura e outros tratamentos cruéis do Centro de Direitos Humanos da ONU. São descritas minuciosamente as condições desumanas e degradantes em que 1.600 presos estão confinados em 21 celas, cada uma delas com cerca de 12 metros quadrados. Dentro das celas a luz do dia não chega, o espaço é extremamente apertado e a temperatura ambiente na 111 semana passada ultrapassou os 40 graus” 109 . SÁ. Op. Cit.:177. Op. Cit.:199. 111 WERNECK, Antonio e GOULART, Gustavo, "Culpados caso sejam vítimas: presos são obrigados a assinar declaração responsabilizando-se por sua integridade física," O Globo 110 3 A DESVITIMIZAÇÃO DO CÁRCERE: DAS CRÍTICAS TRADICIONAIS À JUSTIÇA PENAL RESTAURATIVA 3.1 O SISTEMA PUNITIVO E SUA AÇÃO CRIMINÓGENA À LUZ DA ABORDAGEM SOCIOLÓGICA DE BAUMAN E DO ABOLICIONISMO PENAL 3.1.1 Diagnóstico do sistema carcerário Em nosso capítulo anterior procuramos realizar uma radiografia do sistema penal punitivo a partir do discurso legal estatal e dos dados estatísticos do sistema carcerário brasileiro fornecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional. Ainda que não se leve em conta a defasagem dos dados fornecidos112, impossível não se concluir da análise dos mesmos que o sistema penal punitivo longe se encontra dos objetivos traçados pela LEP e pelo Código Penal Brasileiro. Ao contrário, os índices de lotação, ociosidade e reincidência demonstram um total abandono estatal em relação à situação dos encarcerados. Aliado a isso, o fato da imensa maioria dos condenados advirem das classes mais baixas da população faz com que o aprisionamento nada mais alcance que a perpetuação da violenta marginalização e exclusão social desses indivíduos. E, como resultado, a prisão transforma-se em um dos mais fortes fatores criminógenos contemporâneos, empurrando cada vez mais sua clientela à criminalidade, num círculo vicioso de exclusão e ocultação. Tal realidade, entretanto, não é exclusiva do Brasil ou mesmo de países 04 de setembro de 2005, 26.326 ed.,: 17. 112 Ao longo da leitura dos dados fornecidos pelo DEPEN, notou-se que muitos Estados Federados tem deixado de encaminhar àquele órgão federal suas informações carcerárias, o que nos leva a imaginar que a real situação é ainda mais problemática que a já aberrante crise carcerária percebida pelos números oficiais. subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Longe disso, estudos como os desenvolvidos por WACQUANT113, demonstram que a questão carcerária, em razão dessa conjectura, tem sido discutida em diversos outros países, inclusive nos chamados “de ponta”, como os Estados Unidos e a Inglaterra. 3.1.2 Cárcere e estrutural social: críticas ao papel assumido pelo sistema penal na sociedade de consumo Segundo o discurso legal, a pena e, em especial, a privativa de liberdade, que ainda é considerada o padrão entre as sanções penais, deveria alcançar dois objetivos: retribuição do crime e reeducação do criminoso. No plano prático, entretanto, somente o primeiro desses objetivos se vê alcançado. Aliás, a maior preocupação dos órgãos governamentais em matéria criminal tem se voltado à criminalização de condutas e ao incremento das penas privativas de liberdade, sem se levar em conta a estrutura carcerária ou mesmo os objetivos ressocializadores da pena eleitos na norma. A pergunta que surge é: trata-se isso de uma falha, uma dissonância a ser sanada entre o objetivo traçado e as práticas concretas ou, na verdade, o discurso legal é que não representa efetivamente o fim das penas e do próprio sistema penal? 3.1.2.1 A visão de BAUMAN: a prisão a serviço do mercado Em seu Mal-estar da Pós-Modernidade114, BAUMAN procura responder a tal questionamento a partir de uma relação direta entre o sistema carcerário e a estrutura social contemporânea, tal como RUSCHE e KIRCHHEIMER115 procederam em relação aos anteriores períodos históricos. Segundo ele, se no período imediatamente anterior a prisão fora concebida 113 Op. Cit. Op. Cit. 115 Op. Cit. 114 como um instrumento de capacitação da mão-de-obra, necessária à fase de industrialização, o último quarto do Século XX e os primeiros anos do Século XXI têm visto um movimento em sentido oposto. A “sociedade de consumo”, como chama a sociedade contemporânea, seria marcada pela busca frenética pela satisfação pessoal. Entretanto, como o desemprego e a exclusão social são reais, nem todos os indivíduos atingidos pela mensagem de consumo se mostrariam aptos a ela. A partir daí, a fim de evitar que esses inaptos comprometessem as regras do jogo, a prisão teria se mostrado mecanismo eficaz para seu afastamento dos demais jogadores. “As classes perigosas são assim redefinidas como classes de criminosos. E, desse modo, as prisões agora, completa e verdadeiramente, fazem as vezes das definhantes instituições de bem-estar” 116 . Partindo desse prisma, ou seja, de que o único objetivo do sistema penitenciário seria separar e afastar os “jogadores inaptos”, não se poderia falar em qualquer falha sistêmica. Ao contrário disso, estaria o sistema penal cumprindo fielmente o seu papel, vez que, de fato, a maior parcela dos indivíduos encarcerados, como demonstrado em capítulo anterior, seriam pertencentes às classes mais baixas e dotados de menor formação educacional, geralmente autores de delitos contra o patrimônio. “Os jogadores incapazes e indolentes devem ser mantidos fora do jogo. Eles são o refugo do jogo, mas um produto que o jogo não pode parar de sedimentar sem emperrar. Além disso, há uma outra razão porque o jogo não se beneficiaria em deter a produção de refugo: é necessário mostrar aos que permanecem no jogo as horripilantes cenas (como se lhes diz) da outra única alternativa – a fim de que estejam aptos e dispostos a suportar as agruras e tensões geradas pela vida vivida como jogo” 116 BAUMAN. Op. Cit.: 57. BAUMAN. Op. Cit.: 57. 117 117 . O papel vitimizador desempenhado pelo cárcere, segundo esse ponto de vista, não seria algo passível de causar preocupação, mesmo porque, entendendo-se o crime como uma opção pessoal do delinqüente inapto para o mercado, não se mantém na aplicação da pena qualquer objetivo tratativo, mas tão-somente o fim punitivo e o seu afastamento da sociedade “sadia”. O problema é que tal discurso não traz qualquer perspectiva na busca pela solução ou ao menos a diminuição da criminalidade e, além disso, afasta-se em plenitude de qualquer referencial teórico justificador e norteador do sistema penal. Não se discute que essa seja uma realidade factível na sociedade contemporânea. O que questionamos, e a resposta a essa dúvida BAUMAN não aponta, é até quando tal realidade se sustentará, posto que os índices de criminalidade alcançam números cada vez mais preocupantes e a situação carcerária mostra-se um problema que não mais pode ser varrido para baixo do tapete. Chegará o momento em que a simples propaganda do consumo e do medo não conseguirá fundamentar o discurso repressivo, visto que os índices de criminalidade e a brutalidade e sofisticação com que são praticados os crimes já comprometem o próprio discurso e a estabilidade social. 3.1.2.2 Algumas críticas abolicionistas e a busca pela libertação do sistema Outra forma de se observar a questão carcerária, não menos crítica em relação à falibilidade do sistema, é apresentada pelo movimento conhecido por abolicionismo penal, iniciado por HULSMAN e que serve de ponto de partida para várias correntes criminológicas e de teoria penal atuais, inclusive a teoria restaurativa, a ser analisada à frente. a) O sistema a ser abolido Nas palavras de Louk HULSMAN e Jacqueline de CELIS: “... o condenado à prisão penetra num universo alienante, onde todas as relações são deformadas. A prisão representa muito mais do que a privação da liberdade com todas as suas seqüelas. Ela não é apenas a retirada do mundo normal da atividade e do afeto; a prisão é, também e principalmente, a entrada num universo artificial onde tudo é negativo. Eis o que faz da prisão um mal social específico: ela é um sofrimento estéril” 118 . Não obstante partirem do mesmo ponto, ou seja, de que o sistema penal, especialmente por meio da carceragem exclui, aliena e vitimiza o indivíduo, afastando-se em profundidade dos fins almejados pela teoria mista da pena, a teoria abolicionista não vê isso como uma “conspiração estatal e mercadológica contra os menos abastados”, mas como uma falha inerente à estrutura do próprio sistema penal. Partem HULSMAN e CELIS da tese de que o sistema penal punitivo simplesmente apresenta falhas em sua estrutura. O problema é que tais falhas comprometeriam o sistema em sua essência, acabando por torná-lo instrumento de despersonalização e dessocialização dos apenados, ao invés de alcançar a tão falada ressocialização. Segundo HULSMAN e CELIS, ao se preocupar tão-somente com a ação culpável praticada, sem perquerir dos reais interesses do acusado e da vítima, que, inclusive, quase nada interfere na atividade probatória e nada na cominação da sanção penal, chega o Estado a punições que fogem de qualquer utilidade concreta que não a simples punição da conduta. Com isso, o principal interessado na resposta estatal, a vítima, se vê excluído, à margem do processo. “A intervenção estereotipada do sistema penal age tanto sobre a vítima, como sobre o ‘delinquente’. Todos são tratados da mesma maneira. Supõe-se que todas as vítimas têm as mesmas reações, as mesmas necessidades. O sistema não leva em conta as pessoas em sua singularidade. Operando em abstrato, causa danos 118 HULSMAN, Louk e CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas: O sistema penal em questão, Maria Lúcia Karam,. Niterói : Luam, 1993: 62. inclusive àqueles que diz querer proteger” 119 . Da mesma forma, o criminoso é submetido a um castigo que, justo ou não, não consegue compreender ou assimilar, uma vez ter sido imposto de fora pra dentro. “Gostaríamos que quem causou o dano ou prejuízo sentisse remorsos, pesar, compaixão por aquele a quem fez mal. Mas, como esperar que tais sentimentos possam nascer no coração de um homem esmagado por um castigo desmedido, que não compreende, que não aceita e não pode assimilar? Como este homem incompreendido, desprezado, massacrado,poderá refletir sobre as conseqüências de seu ato na vida da pessoa que atingiu? Aliás, que meios teria para reparar ou atenuar o mal que causou, se, preso, sem trabalho ou recebendo um ínfimo salário, à medida que o tempo passa, vai se tornando mais e mais insolvente?” 120 . E, como não consegue assimilar a pena imposta, qualquer pedagogia tratativa acaba por se mostrar infrutífera, na melhor das hipóteses não minimizando a personalidade criminógena do apenado121. Diante disso, poderia se concluir que o sistema penal, definido como mecanismo de proteção dos “bens mais importantes e necessários” ao indivíduo e à vida em sociedade, na verdade, em nada reflete os interesses desse indivíduo e dessa sociedade, aparentando mais um poder externo que realiza ingerências nas vidas e liberdades particulares. Não obstante essa dissonância, o sistema penal perpetua sua existência e domínio, bem como a pena privativa de liberdade estritamente retributiva como modalidade tradicional de sanção penal. A razão disso, apontam os abolicionistas, estaria no fato de manter o sistema penal seu discurso fundado no temor e no misticismo em torno do crime e do Estado como único capaz de combatê-lo. “A dramatização e a demonização já se expressam naquela própria idéia generalizada de crime, cuja funcionalidade política é manifesta. A carga emocional 119 HULSMAN e CELIS. Op. Cit.: 83. HULSMAN e CELIS. Op. Cit.: 71. 120 permite uma simplista identificação das idéias de violência e insegurança à criminalidade. Esta identificação, entre outras coisas, acaba por ocultar o caráter produtor de violência e insegurança de outros fatos não criminalizados, não criminalizáveis, quantitativa e qualitativamente mais danosos. (...) Mas o discurso dramatizador e demonizador vai mais além, criando e consolidando palavras ocas, de significado desvirtuado ou indefinido, que contém uma carga emocional ainda mais elevada. A idéia de crime passa a ser assim associada a algo misterioso, poderoso e incontrolável por meios regulares, propiciando a aceitação do emprego de quaisquer meios para enfrentar os perigos anunciados” 122 . A real e única solução para o problema da criminalidade, diante disso, passaria longe do sistema penal. Aliás, a essência do pensamento abolicionista está exatamente na proposição da libertação social do sistema penal, falho em sua origem e, portanto, inapto para o objetivo a que se propõe. b) O substitutivo do sistema penal Segundo HULSMAN e CELIS, não trata a proposta abolicionista simplesmente da abolição do sistema de penas privativas de liberdade ou sua humanização. Em sua visão, a solução estaria em se “derrubar todo o sistema” 123. Isso significa que todo o discurso, teórico e prático, do sistema penal deveria ser revisto, a começar pela própria linguagem e verbetes usados no discurso, como crime, criminalidade, punição etc. A partir daí, buscar-se-ia a mudança da própria ótica sob a qual se enxergam os comportamentos então ditos criminosos, o contexto em que se realizam, os objetivos e danos efetivamente causados e seus interlocutores ativos e passivos, mantendo todos esses pontos presentes quando da busca da solução ao problema ocorrido, com especial atenção à vítima e à visão da mesma acerca do dano sofrido e os meios pelos quais poderia ele ser 121 HULSMAN e CELIS. Op. Cit.: 72. KARAM, Maria Lúcia. "Pela abolição do sistema penal." Curso livre de abolicionismo penal, Edson Passeti,. Rio de Janeiro : Revan, 2004: 75. 123 Op. Cit.: 94. 122 reparado. Isso se justificaria na teoria abolicionista porque, nas palavras de HULSMAN e CELIS “o que querem essas vítimas é obter reparação e reencontrar a paz, assim como encontrar alguém que as escute com paciência e simpatia”124, mais até do que voltar-se contra a pessoa de seu agressor com qualquer atitude vingativa. Por sua vez, a sanção penal de natureza retributiva seria substituída por medidas reais de superação do problema criado pela infração cometida, medidas essas alcançadas de acordo com as necessidades do caso concreto e, sempre que possível, por meio do debate entre as partes e terceiros que atuem como interlocutores e conciliadores. E, somente quando a solução não fosse alcançada por meio do debate é que se acionaria o sistema jurídico para que cominasse a medida reparativa necessária. Interessante na análise abolicionista é que mesmo nesses casos, nos quais a imputação forçada da obrigação de reparar o dano indiretamente apresenta-se como uma punição, não guarda semelhança com a estigmatizante punição retributiva do sistema penal, vez que não perderia de vista o objetivo primário de solução do problema criado pela ação ilícita 125. Esse conjunto de medidas deveria ser capaz de trazer de volta a seu verdadeiro local e tamanho o ilícito praticado e também seu autor. Como conseqüência, o processo de vitimização que marca o apenado, o sujeito passivo do delito e a própria comunidade no sistema penal ver-se-iam superados. Há que se tomar cautela para não confundir esse processo de abolicionismo com a simples descriminalização de condutas, comum na sociedade atual. A proposta de HULSMAN não seria uma simples adequação sistêmica à 124 Op. Cit.: 119. HULSMAN e CELIS. Op. Cit.: 131-132. 125 realidade temporal, mas a própria determinação de mudança de paradigmas para o sistema a fim de que a realidade temporal seja trabalhada em plenitude. 3.2 JUSTIÇA RESTAURATIVA: OBJETIVOS E MÉTODOS DE UMA NOVA COSMOVISÃO DA JUSTIÇA PENAL 3.2.1 Fundamentos da Justiça Restaurativa As idéias abolicionistas jamais se converteram em sistema normativo, perseverando o sistema penal tradicional como mecanismo padrão de estrutura estatal no tratamento da criminalidade, inclusive com todas as falhas apontadas por HULSMAN. Entretanto, suas análises têm servido de ponto de base para outros ensaios e propostas de alteração da filosofia estatal de combate ao delito, dentre as quais, a chamada teoria da justiça restaurativa126. 3.2.1.1 O conceito Nas palavras de Damásio Evangelista de JESUS, “a justiça restaurativa é um processo colaborativo que envolve aqueles afetados mais diretamente por um crime, chamados de ‘partes interessadas principais’, para determinar a melhor forma de reparar o dano causado pela agressão” 127. Ou ainda, segundo Antonio Beristain IPIÑA: “Se propugna que el proceso penal de hoy vaya adquiriendo ciertos rasgos nuevos e inovadores, de acuerdo com las coordenadas vicitimológicas. Éstas introducen cuñas radicales que convierten, o desean convertir, el proceso em um diálogo y una negociación normativa (pero, com abertura a la casuístia), em unas ‘buenas relaciones’ que no buscan combatir, ni vencer, ni causar daños, sino restaurar las 126 LARRAURI, Elena, "Tendencias actuales de la justicia restauradora". Revista Brasileira de Ciências Criminais 2004: 69. 127 JESUS, Damásio Evangelista de, "Justiça Restaurativa no Brasil". Revista Síntese de Direito e Processo Penal dez-jan/2006: 05. lesiones del bien jurídico-social; no es uma confrontación del Estado frente al delincuente sino um encuentro del victimario com sus víctimas (y solo em tercer y último lugar com la sociedad o la autoridad estatal); pretende responsabilizar, no castigar, al delincuente; se denuncian los daños causados, en el contexto moral, social, econômico, de las victimas y del victimario; se deja la puerta abierta a um perdón controlado” 128 . Essa metodologia de trabalho ficou conhecida por apontar uma terceira via para o sistema penal. Não chega ao ponto da teoria abolicionista de pregar a total eliminação do sistema penal e todos os seus conceitos, mas vislumbra um novo objetivo que muito se aproxima dos estudos de HULSMAN. Consoante observado em nosso primeiro capítulo, o pensamento penal surgiu com simples objetivo retributivo da sanção penal, antes ilimitado e, depois, restringido equitativamente pela gravidade do dano causado (regime talional). Em um segundo momento, vislumbra-se como objetivo da pena, a busca pela ressocialização do condenado, perdendo as sanções corporais a preferência nos ordenamentos para a pena privativa de liberdade e, mais recentemente, também pelas penas restritivas de direito. Nenhuma dessas duas primeiras propostas (punitiva e ressocializadora), entretanto, alcançou a solução do problema criminal e, como se não bastasse isso, levaram à maior vitimização do mais interessado no exercício da justiça, a vítima do dano que, como bem demonstrou HULSMAN, fora completamente afastada da atividade jurisdicional. A proposta restaurativa, como deixa claro pela nomenclatura, procura exatamente atuar sobre esse abismo criado entre autor, delito e vítima, preocupando-se mais com a reparação do dano causado à vítima do que com qualquer castigo ao autor do crime. 128 IPIÑA, Antonio Beristain. "Nuevo processo penal desde las víctimas." La administracion de la justicia en los albores del tercer milenio, Ana Messuti e Julio Anchés Sampeoho Arrubla,. Buenos Aires : Editorial Universidad, 2001: 17. Ao contrário do tradicional sistema penal retributivo que vê delito como a infração da norma penal do Estado e o castigo sua conseqüência natural e única forma de reprovação e prevenção geral de novos delitos, para o modelo restaurativo, o delito se mostraria simplesmente como aquilo que de fato é, ou seja, a ação que causa dano a outra pessoa, servindo o direito não para reprovar a causação do dano, mas sua devida reparação. 3.2.1.2 A metodologia de trabalho A idéia seria a eliminação das técnicas penais meramente estigmatizantes sobre o delinqüente e a adoção de uma metodologia que dirija “seus passos, principalmente para a análise dos danos que a criminalidade causa no sujeito passivo dos delitos (a vítima) para outorgar-lhes sua justa reparação”129. No modelo restaurativo, a atividade probatória e a definição de culpa pelo ilícito praticado deixam de ser o ponto central da atividade judiciária para assumir um papel acessório. Explicamos. No modelo retributivo o papel do Estado se restringia à aplicação de pena quando fosse apurada a culpa do réu, o que torna a atividade probatória ponto central. No modelo restaurativo, por outro lado, o objetivo central passa a ser a restauração do dano causado pelo autor à vítima. Diante disso, não se encerrando a atividade processual cognitiva na aplicação da pena, mas apenas no momento em que a satisfação se vê alcançada, a apuração do crime e da culpa assumem um papel secundário, sobre o qual se inicia a tarefa mais importante: a composição das partes na solução dos danos e restauração dos traumas criados pelo delito130. 129 BERISTAIN, Antonio. Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimologia, Cláudio Furtado Maia Neto,. Brasília : UNB, 2000: 171. 130 PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da Justiça Restaurativa no Brasil: o impacto no sistema de justiça criminal. Disponível vem < http://www.direitonet.com.br/textos/x/16/38/1638/DN_a_construcao_da_justica_restaurativa_ no_Brasil.doc> Acesso em 28 de outubro de 2006. Necessária, então, além da preocupação em se recolocar a vítima em posição essencial do processo, e não apenas como mais um meio de prova, é a criação de uma nova fase, na qual o órgão judiciário possa conduzir as partes, autor e vítima, à conciliação, ao reconhecimento de uma para com a outra como partes de uma mesma relação jurídica. Nessa fase, as experiências de vida, as possibilidades pessoais, “os sentimentos e emoções vivenciados serão utilizados na construção de um acordo restaurativo que contemple a restauração das relações sociais e dos danos causados” 131. Algumas breves experiências dessa metodologia têm sido desenvolvidas pelo mundo e, inclusive, no Brasil. Em nosso ordenamento penal podem ser citados como exemplos a Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei nº 9.099/95, alterada pela Lei nº 10.251/01) e a Lei nº 9.714/97. A primeira delas busca a aplicação de medidas alternativas à pena privativa de liberdade e, dentre elas, preferencialmente aquelas que levem à reparação do dano causado e que se estabeleçam consensualmente entre as partes132. Criaram-se, inclusive, institutos jurídicos que permitam o encerramento do processo sem condenação criminal, a dizer, a transação penal, a composição civil de danos e a suspensão condicional do processo. Por sua vez, a Lei nº 9.714/97 ampliou o rol das penas restritivas de direito e as possibilidades concretas para sua aplicação, com especial ênfase para as penas de prestação pecuniária, perda de bens e valores e prestação de serviços à comunidade. Interessante é que, nesses ordenamentos, a sanção penal caracterizada pela pena privativa de liberdade, conforme o caso, ou é definitivamente afastada ou permanece como possibilidade em caso de descumprimento da 131 PINTO. Op. Cit. JESUS. Op. Cit.:12. 132 medida restaurativa imposta, realizando um papel meramente intimidatório e coercitivo. 3.2.2 Justiça Restaurativa: nova técnica ou nova filosofia penal? Importante ressaltar que, pelo que se apurou, não se trata a teoria da Justiça Restaurativa apenas de uma nova técnica de trabalho, passível de ser facilmente aplicada ao sistema penal tradicional. Não é apenas uma possibilidade de variação das sanções penais impostas, mas sim uma nova filosofia, o fundamento de um novo sistema cuja implantação requer profundas transformações no sistema tradicional, sob pena de desnaturação e ineficiência133. “Além de abrir o mosteiro do Direito à interdisciplinariedade, e mais do que isso, à transdisciplinariedade, o operador jurídico, tanto nos papéis de autoridade (delegado, promotor, juiz) ou como advogado (inclusive eventualmente atuando como mediador ou facilitador), terá que conciliar, ao trabalhar com justiça restaurativa, a tradicional perspectiva dogmático-jurídica, que traz de sua formação de bacharel em Direito, com uma nova atitude, aberta ao pluralismo jurídico, reconhecendo a legitimidade do senso jurídico comum das pessoas direta ou indiretamente envolvidas no conflito criminal e que participarão do diálogo e da construção da solução restaurativa, que trazem dos costumes do cotidiano da vida na comunidade – o direito achado na rua” 134 . Para tanto, um nova estrutura precisa nascer. Os magistrados e membros do Ministério Público, acostumados à simples tarefa sancionadora e investigativa precisam também “descer” ao nível das partes e assumir um papel de mediação que muitas vezes se distancia do endurecimento inerente à função ocupada no sistema tradicional. Além disso, interessante é a formação de mediadores e conciliadores leigos, o envolvimento de psicólogos e assistentes sociais, etc. Enfim, indivíduos capacitados para penetrar na realidade das partes e, a partir daí, bem conduzi-las na atividade conciliadora. 133 PINTO. Op. Cit. É claro que nessa nova ótica, perde o sistema penal um pouco da característica que sempre o marcou e diferenciou de outros ramos jurídicos, especialmente do direito privado, qual seja, seu poder coercitivo. Afinal, impossível pensar-se em uma composição forçada e não dialogada entre as partes envolvidas135. Cabe ressaltar que não se trata essa filosofia, ao contrário do que aparenta uma rápida leitura, por exemplo, dos textos normativos brasileiros que trabalham sobre o prisma da Justiça Restaurativa, de uma simples reparação material ou financeira de danos. Mesmo porque, se assim fosse, haveria a barreira invencível da capacidade financeira. Mais que isso, ao se intentar a conciliação das partes, objetiva-se a plena conciliação: material, psíquica e emocional, alcançada de forma perfeita pelo perdão concedido pela vítima e aceito pelo autor do delito. “El derecho fundamental del Estado debe construirse contemplando la responsabilidad que lê compete cuando ha sido incapaz de evitar la victimización, y no solo debe responder ante la sociedad, sino en particular ante la víctima de acuerdo con la dimensión compleja del dano padecido. El derecho penal tradicional ya no responde a las demandas de la situación presente; su modelo se agotó em la busqueda exclusiva de la sanción, olvido la condición esencial de su tarea: hacer justicia. Um derecho reparador, tanto para el delincuente como para sus víctimas, que permita un acercamiento que genere el florecimiento de los sentimientos humanos más profundos, como el reconocimiento, la culpa, el perdón, el arrepentimiento y la comprensión, debe ser la tarea más urgente y el reto más importante de nuestra época” 136 . Aplicada de forma plena a atividade de composição, que repise-se não se limita à composição civil de danos, mas também moral e afetiva; ouvindo-se as partes e demonstrando-se uma efetiva preocupação e envolvimento com o trauma causado pelo dano, alcança-se de forma eficaz a restauração da 134 PINTO. Op. Cit. MAIER, Julio B. J. "¿Es la reparación una tercera vía del derecho penal?". Revista Brasileira de Ciências Criminais. 2004: 42. 136 COLORADO, Fernando Diaz. "La justicia: de la venganza a la compensación". La administracion de la justicia en los albores del tercer milênio. Op. Cit.: 84. 135 vítima. E o mais importante, ela, a vítima, não se vê como uma simples receptora da ação ou mesmo da benevolência estatal, mas ativamente participante do processo judicial, o que, inclusive, dá maior legitimidade à decisão alcançada137. Percebe-se, a partir disso, que verdadeiramente se trata de uma nova filosofia para o sistema penal, baseada não no objetivo discriminador e punitivo, mas voltada à superação do crime e suas conseqüências. Ora, superar o delito significa exatamente aplicar a sanção a partir do dano praticado, mas não por causa do dano e sim para saná-lo, para restaurar o rasgo social que provocou. Interessante destacar ainda que por essa metodologia, não apenas a vítima se vê valorizada e ouvida, mas também o criminoso. Uma vez que a medida aplicada como conseqüência do delito não mais é imposta unilateralmente, mas discutida entre ele e a vítima e mediada por terceiros, acaba por compreendê-la justa e devida. Com isso evita-se todo o processo vitimizador que não apenas a sanção penal tradicional ocasiona, mas que o próprio processo penal apuratório provoca. O papel do criminoso não é mais apenas o de tentar defender-se a todo custo da “pesada mão estatal”. Longe disso, comprovada a autoria e a culpa pelo ilícito, é chamado a deparar-se com o mal que fez e buscar os meios de desculpar-se com a vítima e a própria comunidade. A atividade processual penal, antes fria e impessoal, se humaniza e solidariza com as reais necessidades das partes envolvidas. Não obstante a isso, imprescindível que se mantenha claro que a composição dialogal das partes, embora às vezes não aparente por exigir a voluntariedade de ambos os envolvidos, mantém o caráter de sanção138. 137 LAURRARI, nesse sentido, disserta que “se cree que es beneficioso para la víctima ya esta puede expresar directamente al infractor sus sentimientos de ira, miedo o angustia y contribuir de este modo a superar el impacto del delito” (Op. Cit.: 74). 138 LAURRARI. Op. Cit.: 82). 3.3 PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE E JUSTIÇA RESTAURATIVA 3.3.1 Conceitos antagônicos? A metodologia dialogal de restauração dos danos causados pelo delito se propõe como uma alternativa ao sistema penal retributivo, cuja base é exatamente a pena privativa de liberdade. As experiências práticas, entretanto, de conciliação das partes não se destinam, mesmo nos países em que o método se aplica de forma mais incisiva que no Brasil139, à generalidade de crimes, mas apenas a determinados grupos de delitos, conforme a gravidade ou o quantum de pena. E mesmo que diferente fosse, problemas surgem quando a tentativa de conciliação das partes em substituição da tradicional pena privativa de liberdade imposta se mostra infrutífera, no caso de descumprimento do acordo ou mesmo se o criminoso volta a delinqüir. Não se discute que a medida seja mais interessante que o simples encarceramento em todo e qualquer delito, mesmo porque não se pode questionar que a pena privativa de liberdade per si agride de forma dura um dos mais fundamentais direitos do indivíduo, o de ir e vir. Mas o que fazer em caso de problemas como os acima apontados? Complicada, a nosso ver, é a resposta, já que, de um lado, a manutenção do discurso redundaria na ineficácia da medida e, de outro, o simples retorno ao sistema carcerário não se mostraria viável, já que isso implicaria em voltar para um sistema que fora anteriormente negado sob argumento de ineficiência. De fato, se os sistemas retributivo e restaurativo forem pensados como 139 No sistema penal brasileiro a aplicação de penas alternativas e demais técnicas de composição das partes se dá apenas para os chamados “delitos de menor potencial ofensivo”. antagônicos, impossível se chegar à solução do problema posto. Essa, inclusive, a grande dificuldade do pensamento abolicionista: apontar o sistema punitivo como falido em sua gênese sem trazer à baila outro que pudesse substituí-lo integralmente. Não seriam, contudo, conceitos antagônicos, mas institutos complementares e assim deveriam ser utilizados na busca de um mais completo objetivo do sistema jurídico penal. Não se limitar à escolha entre punir o crime, ressocializar o criminoso ou restaurar a vítima, mas unir esses três objetivos como partes de um mesmo sistema, esse, a nosso ver, o desafio do sistema penal contemporâneo. “No es tan interesante afirmar o conocer si la reparación se puede constituir em uma tercera vía del derecho penal. Basta sostener que ella resulta uma alternativa racional para la solución de conflictos sociales y que puede rendir frutos tanto em derecho penal como em el derecho procesal penal. Entre esos frutos, ella se cuenta como alternativa de reemplazo de la reacción penal estatal, esto es, ya no como tercera vía, sino, antes bien, como ‘cambio de vía’, para sustituir la pena o resolver el conflicto com ahorro de esfuerzo estatal em la persecición penal. Si así no funciona em el caso concreto, la reparatión puede, todavía, rendir frutos al medir la pena, puesto que, dentro de la pena merecida según la medida de la culpabilidad del autor, su acción voluntária en favor de la víctima verifica una menor necesidad preventiva de la pena” 140 . Daí porque alguns entendem que a estrutura jurídica baseada na composição dos danos não poderia existir como única via para o sistema penal, mas deveria se manter como uma das possibilidades de solução do conflito, mantendo-se, porém, outras medidas sancionatórias para o caso de não alcançar aquela o objetivo almejado. Partindo dessa idéia, mesmo o sistema punitivo baseado na pena privativa de liberdade poderia ser mantido. Tratando desse tema, Antonio BERISTAIN propõe exatamente a junção das duas teorias em uma terceira abordagem, por ele chamada “justiça 140 MAIER. Op. Cit.: 56. recriativa”. “Da perspectiva da justiça recriativa, essas duas descrições (justiça retributiva e justiça restaurativa) contém alguns elementos que devem ser mantidos e outros não. Ambas as descrições carecem de importantes aspectos que merecem ser acrescentados. Por isso, optamos por uma (relativamente) nova formulação do 141 delito, mais de acordo com as realidades sociais de hoje” . Apesar de compreender a idéia de BERISTAIN e concordar com sua crítica acerca das omissões e falhas tanto da teoria retributiva como da teoria restaurativa do sistema penal, discordamos de que o ideal seria a busca por uma outra teoria de justiça criminal. Ao que nos parece, e esse será exatamente o tema abordado no próximo tópico, não se trata da necessidade de rechaçar os conceitos anteriores e se idealizar um novo sistema, mas sim de se aproveitar os pontos positivos das duas teorias, restaurativa e retributiva. As falhas e contrariedades do sistema penal retributivo apontadas tanto por HULSMAN como por BAUMAN, em verdade, não se limitam a simples apontamentos materiais ou de infra-estrutura. Mais que isso, aos olhos desses pensadores, a gênese de toda a problemática do sistema penal estaria em sua fundamentação teórica; nos paradigmas sociais que sustentam o sistema e não apenas no sistema em si. Que a privação de liberdade ofende certos direitos individuais não se discute. A questão a ser posta é se a vitimização decorrente da privação de liberdade se dá pela privação em si da liberdade e dos direitos individuais obrigatoriamente cerceados por ela ou porque a forma como se estrutura afeta, injustificadamente, direitos outros, atuando em sentido oposto ao objetivo ressocializador proposto. Por sua vez, as falhas que se apontam à teoria restaurativa giram no fato de se limitarem seus incentivadores a propô-la em atividades de composição autor-vítima, não encontrando resposta para o caso de impossibilidade de tal composição e, além disso, de dedicarem-se muito à meta de restaurar a condição pessoal da vítima e pouco à condição do réu. Além disso, da forma como fora posta tal teoria, difícil não é incorrer-se no equívoco de se pensar a ação delituosa como uma opção individual livre e voluntária do agressor, limitando-se a restauração do autor no reconhecimento de seu crime e assunção das conseqüências do mesmo. Pelo menos no caso brasileiro, a conclusão alcançada em nosso capítulo segundo é diversa. A grande maioria dos crimes, consoante se apurou, tratase de crimes de natureza patrimonial, assim como a imensa maioria dos condenados em cumprimento de pena privativa de liberdade, de indivíduos oriundos das classes mais baixas, com os piores índices de escolaridade e emprego. Enfim, os excluídos da sociedade de consumo apontados por BAUMAN142. Difícil imaginar-se, diante disso, que são indivíduos livres que simplesmente optaram voluntariamente pelo crime. É claro que nem todos os criminosos são vítimas da estrutura social excludente da sociedade contemporânea, mas não se pode fechar os olhos ao fato de que tal estrutura guarda profunda ligação com a maioria dos ilícitos penais. 3.3.2 A humanização do cárcere pelos fundamentos da Justiça Restaurativa O sistema ideal, a nosso ver, seria um sistema híbrido que interligasse os princípios da justiça restaurativa e da justiça retributiva. Um sistema que, materialmente, se manifestasse pela oferta, conforme o caso concreto, das duas estradas. Que buscasse estabelecer o diálogo entre autor e vítima ao longo de todo o processo apuratório e pós-apuratório da 141 BERISTAIN. Op. Cit.: 176. infração no sentido da composição de danos e busca da restauração material, psíquica e emotiva de ambos. Entretanto, caso a resposta à primeira tentativa não prosperasse, que aplicasse medidas sancionatórias outras, restritivas de direito ou mesmo privativas de liberdade, porém sob o prisma não da simples punição ou retribuição do crime, mas da teoria restaurativa. Toda sanção penal, ainda que alcançada com o consenso do condenado guarda, e isso não se pode negar, um certo teor de retribuição pelo delito praticado. A obrigação jurídica, independente de ser uma obrigação de dar, fazer ou não fazer tem origem no acordo de vontade das partes, na lei ou no ilícito praticado. O importante é fazer com que, além desse efeito, a mesma sanção mantenha um fim restaurativo, que muito se diferencia do simples fim ressocializador, idealizado pela corrente funcionalista da pena. Mais do que se pensar em mudanças na estrutura material da carceragem, como é diuturnamente repetido, necessário se faz, para que o objetivo acima comentado seja alcançado, que se reestruture a fundamentação teórica do sistema punitivo. A começar pela forma de se enxergar o apenado. Consoante comentado em nosso segundo capítulo, a estrutura punitiva atual coloca o apenado em uma situação de passividade em relação à pena imposta. Seu único papel é o de receber e obedecer as medidas que lhe são impostas, sem discutir ou mesmo influir na qualidade ou na metodologia de trabalho. Ora, se não consegue assimilar o objetivo pretendido pelas sanções impostas, difícil imaginar-se que elas consigam surtir o efeito pretendido. A mudança, então, passaria pelo reconhecimento do apenado como sujeito 142 Op. Cit. de direitos e obrigações ao longo da execução penal143. A partir daí, reconhecendo-se que tem também ele interesse no bom cumprimento da pena, embora muitas vezes no início da execução penal não o compreenda, deve ser chamado a participar de forma ativa da execução penal. Dessa forma, consegue-se eliminar o estigma vitimizante da carceragem, inserindo-se o apenado em um processo completo de valorização, humanização e reconhecimento dos valores pessoais e coletivos. Além disso, participando ativamente do processo, mais concreta se torna a possibilidade da efetiva individualização da pena, iniciada na sentença condenatória, mas que se estende ao longo da execução penal. Importante, entretanto, ressaltar que não se trata simplesmente do resguardo dos direitos humanos na execução penal. Isso já se busca, ao menos é esse o discurso, no sistema tradicional. A proposta restaurativa aplicada ao sistema carcerário iria mais além, colocando a valorização humana como base e ideal do sistema não só em relação ao apenado, mas também à vítima e aos encarregados da execução penal, antes, durante e após o encerramento da atividade de aplicação da pena. Com isso, a pena não seria a resposta estatal ao delito, mas apenas uma das faces do processo de tratamento do crime. Não se conhece ordenamento jurídico que já tenha se adequado a essa proposta. O máximo que se vê, seja no Direito pátrio, seja no alienígena, como já comentado, é a possibilidade de alternância entre os dois sistemas conforme o delito em julgamento. O silêncio legislativo, porém, não implica na conclusão de que a idéia não vem sendo testada. Simplesmente as iniciativas e ensaios têm se 143 RODRIGUES, Anabela Miranda. A Posição Jurídica do Recluso na Execução da Pena Privativa de Liberdade,. São Paulo : IBCCRIM, 2000. desenvolvido à margem do legislador, mesmo porque, tratando-se de um processo em andamento, seria temeroso que uma precoce legislação o engessasse antes de seu pleno desenvolvimento. A partir dessa perspectiva, no capítulo seguinte se promoverá a análise do Método APAC (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado), desenvolvido por Mário OTTOBONI originariamente no Presídio Humaitá, na cidade paulista de São José dos Campos e que tem sido considerado modelo de eficiência da pena privativa de liberdade à luz dos princípios da justiça restaurativa. 4 BREVE TRAÇADO DO MÉTODO APAC E DA METODOLOGIA DE TRABALHO NA APAC DE ITAÚNA 4.1 BREVE HISTÓRICO: DO PRESÍDIO HUMAITÁ AO PROJETO NOVOS RUMOS DA EXECUÇÃO PENAL 4.1.1 De Pastoral Carcerária a Órgão Auxiliar da Justiça na Comarca de São José dos Campos “Em 1972, na cidade de São José dos Campos (SP), algo inteiramente novo, inusitado e revolucionário iniciou-se, no sistema prisional. Um grupo de voluntários cristãos, sob a liderança do advogado dr. Mário Ottoboni, passou a freqüentar o Presídio Humaitá, situado no centro da cidade, para evangelizar e dar apoio moral aos presos. Tudo era empírico e objetivava tão-somente resolver o problema da comarca, cuja população vivia sobressaltada com as constantes fugas, rebeliões e violências verificadas naquele estabelecimento prisional. O grupo não tinha parâmetros nem modelos a serem seguidos. Muito menos experiência com o mundo do crime, das drogas e das prisões. Mesmo assim, pacientemente, foram sendo vencidas as barreiras que surgiram no caminho” 144 . Com esse sucinto comentário, Mário OTTOBONI, fundador do Método APAC e Valdeci FERREIRA, fundador da APAC de Itaúna expõem a realidade do Método APAC quando de seu surgimento em São José dos Campos. Pelo que se apurou nos trabalhos de pesquisa, a dizer, pela leitura das obras que compõem a bibliografia básica do Método APAC, pelas entrevistas realizadas com o fundador da APAC de Itaúna, Valdeci FERREIRA, pelos documentos do Projeto Novos Rumos na Execução Penal, do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais e tantas outras fontes, instantânea foi a percepção de que, quando do início dos trabalhos que levaram ao desenvolvimento do Método APAC, jamais se pensou na proporção que ele tomaria. 144 OTTOBONI, Mário e FERREIRA, Valdeci Antonio. Parceiros na ressurreição: jornada de libertação com Cristo e curso intensivo de conhecimento e aperfeiçoamento do Método APAC, especialmente para presos,. São Paulo : Paulinas, 2004: 17. Longe disso, a experiência surgiu de um grupo de voluntários integrantes da Pastoral Carcerária, entidade integrante da Igreja Católica, em São José dos Campos, Estado de São Paulo, cujo objetivo era, nos moldes da filosofia de trabalho pastoral, amenizar o sofrimento dos indivíduos recolhidos ao Presídio Humaitá. Já nessa época o grupo liderado por OTTOBONI valia-se da sigla APAC para definir seu trabalho, porém com um significado diferente, eminentemente poético e atrelado à origem da Pastoral Carcerária, qual seja “Amando o Próximo, Amarás a Cristo”145. No ano de 1974 um salto é dado pelo grupo que, sob orientação do juiz de Execução Penal da Comarca, decidiu pela criação de uma associação civil destinada ao serviço de órgão auxiliar da Justiça, atuando especificamente em tarefas de Execução Penal, nascendo, então a Associação de Proteção e Assistência ao Condenado – APAC. A partir de então, nas palavras de OTTOBONI e FERREIRA tornou-se mais fácil o trabalho já que “como pastoral juridicamente organizada, o preso teria resguardado seu direito de ser assistido, pois, sempre que necessário, a APAC poderia aplicar o remédio jurídico conveniente para cada caso”146. Nesse mesmo ano de 1974, a recém fundada APAC de São José dos Campos inicia um trabalho experimental com cem presos no Presídio Humaitá e os membros da Associação e da Pastoral Carcerária. Em relação aos presos, foram estimuladas as seguintes práticas: envolvimento em atos religiosos, palestras de valorização humana, estímulo à presença na biblioteca do presídio e melhoria dos recursos disponíveis neste ambiente, a participação em concursos de higiene e limpeza de celas, estimulando a organização pessoal e celular, concursos de composições e poesias, a eleição de representantes de cela e de um grupo de 145 MONTEIRO, Igor de Matos. Disponível em: <http://www.apacitauna.com.br/download/apac_e_cidadania.pdf> Acesso em 21 de outubro de 2006. representantes dos presos a funcionar perante a direção do presídio, o que posteriormente viria a se tornar o chamado CSS147, bem como a prestação de trabalho nas alas, nas delegacias, etc148. Além disso, o experimento envolveu três outras frentes: os voluntários da Associação, as famílias dos presos e a direção composta de órgãos técnicos. Os voluntários foram organizados em grupos de padrinhos responsáveis pelo acompanhamento de cada preso, seja para a solução de problemas no mundo externo, seja para a conversa e a orientação pessoal; as famílias dos presos estimuladas a manter com eles contato freqüente, evitando-se, assim, a perda da unidade familiar; e, por fim, a direção dedicou-se ainda à pesquisa social sobre as causas dos delitos praticados, o que permitiria atacar o problema em sua raiz, e não apenas paliativamente149. Há que ser lembrado que no ano de 1974, ainda vigorava a primeira versão dos Códigos Penal e Processo Penal, nos quais ainda não havia previsão da triplicidade de regimes e progressão de pena entre eles, razão pela qual todos os cem presos envolvidos na primeira experiência apaqueana no Presídio Humaitá estavam encarcerados em tempo integral, o que corresponderia, nos dias de hoje, ao regime fechado. Conforme conta OTTOBONI, a experiência do Regime Semi-Aberto teria sido fruto do acaso: “O Segundo Estágio, hoje consagrado como regime semi-aberto, surgiu por obra do acaso, pois, com a existência de uma área disponível contígua à Cadeia Pública, hoje Centro de Reintegração Social, em 1974, construímos ali um 146 OTTOBONI e FERREIRA. Op. Cit.: 17. O CSS - Conselho de Sinceridade e Solidariedade, peça chave no Método APAC será analisado no tópico 4.2. 148 OTTOBONI. Ninguém é irrecuperável: APAC, a revolução do sistema penitenciário: 27. 149 Somente no ano de 1977 foi editada a Lei nº 6.416, que criou os regimes fechado, semiaberto e aberto. Segundo OTTOBONI, porém, desde 1974 a APAC de São José dos Campos trabalhava nos moldes do que, três anos depois, ficaria conhecido como tripartição de regimes (Ninguém é irrecuperável: APAC, a revolução do sistema penitenciário: 28). 147 alojamento para os presos albergados, já que essa experiência começava a despontar na Comarca. Os presos que construíram esse alojamento eram do Primeiro Estágio, em regime fechado e, ao término da obra, pleiteamos, e o doutor 150 Sílvio Marques Neto autorizou, que aqueles presos ali permanecessem para a manutenção e melhoria do prédio. Percebemos que a experiência dera certo e criamos, então, o regime semi-aberto, com presos ajudando nos serviços burocráticos da própria APAC, que instalou no local a sua Secretaria Administrativa. Essa colaboração se estendeu à Delegacia de Polícia, ao Fórum e ao próprio presídio” 151 . Ainda segundo relatado por OTTOBONI, no ano de 1975 o juiz de Execução Penal baixou o Provimento nº 01/75, regulamentando as atividades da APAC como órgão auxiliar da justiça, responsável oficialmente desde então, pelos trabalhos que já realizava junto aos presos do regime fechado, do então criado regime semi-aberto, da escolta de presos, dentre outros. Com advento da Lei nº 6.416 em 24 de maio, entretanto, alcançou a APAC joseense e o próprio juízo de Execução da Comarca maior legitimidade para seus trabalhos, vez que passavam a estar adequados ao ordenamento legal152. Ao longo de dez anos, contados de seu surgimento como associação assistencial, a APAC de São José dos Campos auxiliou os órgãos estatais nos trabalhos de execução penal, período no qual, por meio de progressos e derrotas, a metodologia empírica do método de trabalho desenvolvido se solidificou. Entretanto, um problema ainda era detectado pelo fundador do Método a ponto de comprometer todo o trabalho: de um lado, os voluntários da APAC desenvolviam toda uma metodologia baseada na valorização humana do 150 À época juiz de Execução Penal de São José dos Campos e atualmente desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 151 OTTOBONI. Op. Cit.: 28. 152 Há que se ressaltar a importância de tal norma para a evolução do Método, uma vez que o Brasil ainda enfrentava, nesse período, o Regime Militar e, por conseqüência, qualquer manifestação que pudesse indicar o mínimo de questionamento à ordem vigente não era vista com bons olhos. presidiário, de modo a estimular-lhe a mudança comportamental, de sua família, a ponto de maximizar-lhes as chances de melhoria de vida, etc; lado outro, porém, a presença dos órgãos policiais dentro do presídio, muitas vezes despreparados e mal-formados, atuava em sentido contrário, relembrando ao preso sua condição de marginalizado. No ano de 1984, a solução para esse problema chega à APAC quando, em 10 de agosto, a administração do Presídio Humaitá passa a ser feita exclusivamente pela APAC, sem a presença de policiais ou armas153. Desde então, raros foram os casos de fuga e zero o número de motins, rebeliões e mesmo discussões ou brigas graves entre os presos daquela instituição. 4.1.2 A eleição como modelo de execução penal e a expansão do Método APAC Nesse meio tempo, a filosofia apaqueana já havia se expandido para outras Comarcas dentro do Estado de São Paulo, tornando necessária a criação de uma entidade superior que zelasse pela unidade entre todas as entidades do método a fim de que não se distanciassem do ideal joseense, bem como que garantisse-lhes o suporte técnico e humano, criando-se no ano de 1981 a FBAC (Fraternidade Brasileira das Assistência aos Condenados)154. E, dois anos depois de receber com exclusividade a gestão do Presídio Humaitá, e já expandida a metodologia de trabalho da APAC para outras Comarcas paulistas, em 1986 a FBAC passou a integrar a Prison Fellowship International (PFI), organização não governamental de personalidade de Direito Internacional que atua como órgão consultivo da Organização das Nações Unidas em temática penitenciária155. Graças aos elevados índices de sucesso, opostos aos do sistema prisional 153 OTTOBONI. Op. Cit.: 63. OTTOBONI. Op. Cit.: 36. 155 APAC: recuperando o homem e a dignidade, DVD, Tribunal de Justiça do Estado de 154 comum, o Método APAC, especialmente após a filiação da FBAC à PFI, tornou-se conhecido mundialmente, e percebeu-se sua expansão para além das fronteiras do Estado de São Paulo, despertando o interesse de outros estados federados e mesmo outros países. Assim, segundo levantamento realizado pela FBAC, no ano de 2006 o Método APAC já havia sido adotado ou se encontrava em vias de implantação em mais de 20 países e, no Brasil, mais de 100 unidades prisionais já se guiavam pelo Método APAC de execução de pena156. Especial atenção se tem dado ao Método APAC no Estado de Minas Gerais, que teve a primeira unidade instalada na Comarca de Itaúna, no ano de 1986 e desde o ano de 2001 a expansão do método para outras Comarcas do Estado tem sido incentivada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais através do Projeto Novos Rumos na Execução Penal157. 4.2 A FILOSOFIA APAQUEANA E OS ELEMENTOS DO MÉTODO APAC NA PROPOSTA DE EXECUÇÃO PENAL Nas palavras de OTTOBONI, idealizador do Método APAC e FERREIRA, cofundador e presidente da APAC de Itaúna, “A APAC tem como filosofia a morte do criminoso e a salvação do homem. Nada, pois de querer matar o homem a título de matar o criminoso”158. O significado disso é que, através da metodologia de trabalho desenvolvida, a execução penal deveria se mostrar capaz de eliminar os fatores criminógenos na personalidade e modus vivendi do apenado, permitindo que a sanção penal alcançasse seu objetivo de expiar o crime e reformar o criminoso. Minas Gerais, 2006 ( 20 min.). 156 APAC: recuperando o homem e a dignidade. Op. Cit. 157 O Projeto Novos Rumos na Execução Penal, lançado no ano de 2001, foi regulamentado pelo Provimento nº433/2004 do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, de 10 de maio de 2004, tendo como responsáveis os Desembargadores Joaquim Alves de Andrade, Sérgio Resende e Bady Curi e os Juizes de Direito Paulo Antônio de Carvalho e Juarez Morais de Azevedo. Parte-se, contudo, na APAC da idéia de que a prática delituosa não é uma opção pessoal totalmente livre do condenado, mas resultante de fatores internos e externos; de desvios de conduta e personalidade, mas ao mesmo tempo de influências e necessidades do meio em que vive. Por essa razão, a tarefa punitivo-ressocializadora deveria atacar o tripé sobre o qual se sustentaria o crime: a personalidade individual do condenado, a estrutura familiar e comunitária em que vive e a marginalização econômico-social que sofre. 4.2.1 Valorização humana e senso de responsabilidade: as bases do Método APAC Ainda nas palavras de OTTOBONI, em sua obra “Ninguém é irrecuperável: APAC: a revolução do sistema penitenciário”: “A valorização humana é fundamental na proposta da APAC: evitar a ociosidade a todo custo; dar atribuições ao recuperando de acordo com sua aptidão – caso ele não saiba fazer nada, ensinar-lhe trabalhos artesanais –; ajudá-lo a reciclar os próprios valores e a melhorar a auto-imagem; promover o encontro do recuperando consigo mesmo para que ocorra a grande descoberta de todo seu potencial disponível para que ele supere as naturais vicissitudes da vida, especialmente no momento difícil enfrentado com o confinamento” 159 . Apesar da aparente semelhança estrutural entre o método de trabalho apaqueano a seguir exposta e o disposto na LEP, grande é a dissociação entre elas. Isso porque a LEP fora construída sob o paradigma científico segundo o qual o apenado, paciente a ser “curado”, é submetido a diversas medidas assistencialistas que, quando muito, o disciplinam e domam, exatamente como já criticado à época do Iluminismo160. Mesmo porque, da forma como se firmou a estrutura penal punitiva 158 Op. Cit.: 177. Op. Cit.: 33. 159 brasileira, o condenado acaba não sendo encarado como um sujeito titular de direitos e obrigações perante o Estado e a sociedade, mas apenas o objeto sobre o qual se aplicam as medidas tratativas estatais. Ora, não sendo considerado, ao longo da execução, dotado dos elementos intrínsecos à personalidade jurídica, a dizer, a titularidade de direitos e deveres, como exigir-se do indivíduo que assimile tais valores? Essa talvez a principal inovação na metodologia apaqueana de trabalho, o reconhecimento de que o preso é um indivíduo que goza voz e valor, bem como que, se um dos fatores que o levaram ao crime foi a negativa do Estado e da sociedade em reconhecer esses direitos161, o resgate do homem teria início exatamente na prática inversa, isto é, em sua valorização como ser humano. “Sob essa ótica – segundo o princípio de o preso ajudar preso –, o sentimento de responsabilidade individual ganha relevo especial. Esse salutar princípio devolvelhe o sentimento de autoconfiança, desperta nele a vontade de ser útil, promove-o como ser humano pelo seu próprio esforço” 162 . Toda a metodologia de trabalho das APACs se sustenta sobre esses dois princípios. Vazia restaria, segundo OTTOBONI163, qualquer tentativa de aplicação do Método sem essa motivação subjetiva, que apenas sob o aspecto objetivo em muito se assemelha à filosofia orientadora da LEP. Para o desempenho de sua função, encontrou a APAC em suas origens como Pastoral Carcerária o instrumental ideal para a valorização da pessoa do preso e fomento de seu senso de responsabilidade. Nesse sentido, o exercício da religiosidade, independente do credo professado pelo condenado, é essencial sustentáculo da APAC, vez que, segundo OTTOBONI: 160 Nesse sentido comentários já foram tecidos no Capítulo 1 do presente trabalho. BAUMAN. Op. Cit. 162 OTTOBONI. Ninguém é irrecuperável: APAC: a revolução do sistema penitenciário. Op. Cit.: 33 163 Vamos matar o criminoso: Método APAC. Op. Cit. 161 “É muito difícil confiar em alguém que não confia em Deus. A religião estimula a prática do conhecimento, do estudo, da virtude, e faz caminhar por uma estrada estreita, disciplinada, difícil, porque exige combate ao próprio egoísmo, ao 164 desamor, à aspiração imoderada e à cobiça” . 4.2.2 Os 12 elementos do Método APAC de cumprimento de pena A aplicação do Método APAC se pauta sobre 12 elementos essenciais: participação da comunidade, recuperando ajudando recuperando, trabalho, a religião, assistência jurídica, assistência à saúde, valorização humana, envolvimento familiar, voluntariado, Centro de Reintegração Social, mérito do recuperando e a Jornada de Libertação com Cristo. O presente tópico será dedicado exatamente a uma breve explanação acerca desses elementos, sem a qual dificilmente será possível a compreensão do trabalho apaqueano. 4.2.2.1 Participação da comunidade e voluntariado A Lei de Execução Penal, em seu artigo 4º dispõe: “Art.4º. O Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança”. Mais do que simplesmente ser auxiliado pela comunidade como sua cooperadora, no Método APAC é a própria comunidade quem se encarrega da execução penal. Os órgãos oficiais de administração carcerária, policiais e agentes carcerários, são substituídos por membros da sociedade civil que exercem diferentes papéis, desde a ocupação de cargos de direção da unidade prisional apaqueana, passando pelo serviço voluntário nas mais diversas áreas, até a simples colaboração financeira. Segundo OTTOBONI, boa parcela da causa do aumento da criminalidade 164 OTTOBONI. Ninguém é irrecuperável: APAC: a revolução do sistema penitenciário. encontra-se exatamente no abandono dos presos por parte da sociedade. Da mesma forma, atuando de forma contrária, ou seja, participando ativamente do processo de execução penal, possível é mostrar a ele a sua importância individual. Em razão disso, todo o trabalho apaqueano deve ser desenvolvido diretamente por voluntários, conforme sua aptidão e disponibilidade pessoal, os quais passam, antes de iniciar suas tarefas, por cursos de formação organizados pela própria APAC e, de tempos em tempos, por cursos de aperfeiçoamento e reciclagem. Fato interessante é que aos voluntários é vedado questionar ao preso acerca de seu passado criminoso ou mesmo o delito praticado. Isso se justifica porque, segundo FERREIRA165, o importante é a demonstração de preocupação com a pessoa do preso, e não com o delito por ele praticado, já que, segundo as bases do Método, o crime é “esquecido” a partir do momento em que o recuperando passa pelas portas da APAC. Além disso, o contato direto entre presos e voluntários estreita os laços afetivos, os sentimentos de perdão e, sobretudo, o respeito humano166. 4.2.2.2 Recuperando ajudando recuperando Dentro da meta ainda de trabalhar a valorização humana e o senso de responsabilidade, os presos da APAC, chamados recuperandos são estimulados a viver em comunidade dentro do cárcere, um ajudando o outro em suas necessidades. Diferente do que ocorre na prisão tradicional, onde o preso conta somente consigo e vigora a lei do mais forte, o Método APAC estimula atividades de aproximação afetiva entre os apenados de forma indireta, o que se dá por meio de técnicas de atividade em grupo, e mesmo direta, por meio dos Op. Cit.: 34 165 Informação coletada de Valdeci FERREIRA, presidente da APAC de Itaúna. 166 OTTOBONI. Op. Cit.: 66. representantes de cela e do Conselho de Sinceridade e Solidariedade (CSS). “A representação de cela tem a finalidade de manter a disciplina e a harmonia entre os recuperandos, a limpeza e disciplina pessoal e da cela, o treinamento de líderes, acentuando o rompimento do ‘código de honra’ existente entre a 167 população prisional, em que os mais fortes subjulgam os mais fracos” . Essa representação se dá por meio de eleição direta dos presos da própria cela, vedada a reeleição, o que impede que o “mais forte” se mantenha, e o papel do representante eleito é o de servir de interlocutor junto ao CSS. Por sua vez, o Conselho de Sinceridade e Solidariedade, exigível em cada um dos regimes de pena tem o papel de auxiliar a Direção na administração da APAC. Compõe-se de 04 ou 05 membros, todos recuperandos do regime, sendo o presidente de livre escolha da diretoria e os demais escolhidos pelo próprio presidente do CSS. Não possui poder decisório, mas é importante órgão consultivo, podendo opinar em todas as atividades desempenhadas na Instituição, muitas vezes oferecendo soluções simples e rápidas para os problemas que surgem. Trata-se também de órgão extremamente interessante no sentido de ensinar aos recuperandos a importância de contar uns com os outros e a respeitar as normas de convívio social criadas. 4.2.2.3 Trabalho prisional Tal como no sistema comum, o Método APAC prevê como instrumento de busca da transformação do apenado a oferta do trabalho prisional conforme sua aptidão. No sistema comum, entretanto, dois objetivos são traçados para o trabalho: 167 OTTOBONI. Op. Cit.: 68. educação e produção, consoante disposto no artigo 28 da LEP. Na prática, contudo, raros são os estabelecimentos prisionais que permitem o acesso ao trabalho prisional e, quando o fazem, geralmente se limitam a tarefas rotineiras que pouco contribuem na formação humana ou profissional do condenado. Em razão disso, o Método APAC prima pela diversificação das atividades laborativas de acordo com o regime de pena em que se encontra o recuperando. No regime fechado, encarado como momento de quebra da personalidade criminógena e da sensibilização do apenado, recomenda-se a execução de trabalhos laborterápicos, ou seja, capazes de despertar a capacidade inventiva do recuperando e a desvinculação entre trabalho e dinheiro. “É necessário, pois, evitar a todo custo que o trabalho massificante, padronizado, industrializado faça parte do contexto da proposta apaqueana nessa fase do cumprimento da pena (...). O trabalho não deixa de ser importantíssimo em qualquer proposta socializadora. Entretanto, nunca isoladamente, como muitos pensam. Adotar essa estratégia enganosa de instituir, no regime fechado, serviços autônomos de produção em série, que proporcionem ganhos financeiros, especialmente por produção, será o mesmo que tomar o leito do rio cujas águas vão, inevitavelmente, desembocar no mar do sistema penitenciário. Somente pensamos ter mudado, nada mais” 168 . Por essa razão, no regime fechado cumprido sob a égide do Método APAC, deve ser oferecido trabalho nas áreas de artesanato, tapeçaria, pintura, trabalhos em madeira, além de aulas de música, monitor de alfabetização, dentre outras. Já no regime semi-aberto a atenção se volta exatamente no sentido contrário, isto é, na oferta de trabalho e cursos profissionalizantes, capazes de garantir ao recuperando a possibilidade de, tão-logo retomada a liberdade, manter sua subsistência longe do crime. 168 OTTOBONI. Op. Cit.: 75. A princípio seria possível criticar esse objetivo porque acaba por vincular a criminalidade à questão econômico-social. Contudo, como a grande maioria dos delitos praticados, segundo dados do DEPEN, é de natureza patrimonial, a crítica não aparenta pertinência. Orienta-se, então, a oferta de trabalho nas áreas de formação profissional mais promissoras da comunidade e, se possível, com criação de oficinas de trabalho dentro do próprio estabelecimento. Por fim, no regime aberto, como o trabalho é feito sempre extramuros, a única orientação que se faz é no sentido de ser autorizada a saída apenas quando o trabalho pretendido se mostrar compatível com as aptidões do condenado e ele demonstre mérito no benefício169. 4.2.2.4 Assistência jurídica Não obstante prevista pela LEP como direito do preso, a assistência jurídica efetiva muitas vezes lhe é negada, não sendo poucos os casos de indivíduos que permanecem presos mesmo após o término de sua pena ou do tempo necessário para a progressão de regime. MIRABETE170, inclusive, aponta como causa disso o fato de não se elencar a Defensoria Pública como órgão integrante do sistema penal, ao contrário do que faz com a Magistratura e o Ministério Público. Nossa opinião é de que o problema é mais complexo do que isso. Sabido é que a Defensoria Pública encontra-se mal-estruturada na maior parte dos Estados Federados, não dando conta sequer dos assistidos que diuturnamente batem a suas portas. Difícil, então exigir que seus membros acompanhem diretamente os processos de execução penal e prestando informações aos apenados. Não que não se o faça, porém numa escala infinitamente menor que o 169 170 OTTOBONI. Op. Cit.: 76 Execução Penal. Op. Cit. necessário. Por essa razão, a criação de um órgão específico para zelar pelo acompanhamento processual da execução de pena de cada recuperando, até mesmo para se garantir a tranqüilidade acerca do tempo e da forma de cumprimento da mesma se mostrou imprescindível ao Método APAC. A assistência jurídica171 da APAC, prestada por advogados voluntários e estagiários em Direito, destina-se ao acompanhamento constante da situação carcerária de cada recuperando que não possuir advogado contratado, bem como consultas nas áreas afins ao Direito Penitenciário, como, por exemplo, a orientação acerca dos requisitos para obtenção de benefícios como o auxílio-reclusão por parte dos dependentes do apenado. Importante salientar ainda que, em atenção ao Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, as informações carcerárias de cada recuperando devem permanecer em sigilo na Assessoria Jurídica da APAC. 4.2.2.5 Assistência à Saúde Segundo narra OTTOBONI, “o condenado é, com exceções, um doente, com implicações de saúde mental ou orgânica e, às vezes, ambas”172. Isso porque o próprio cárcere seria responsável por uma série de males físicos, psíquicos ou emocionais, sofridos pelos apenados, como, por exemplo, resfriados constantes, enxaqueca, úlcera nervosa, sinusite, gastrite, angústia, desvalorização da própria vida e da vida alheia etc. Tudo isso demonstra o caminho oposto que trilha o cárcere em relação à proposta de valorização humana e, além disso, torna-se empecilho ao tão comentado “objetivo ressocializador da pena”. Dessa forma a atenção à saúde do apenado, em suas três esferas (física, 171 Nos termos do Estatuto padrão de uma APAC um advogado sempre deve integrar o corpo de diretores da Instituição, ficando responsável pela Assessoria Jurídica. 172 Ninguém é irrecuperável: APAC: a revolução do sistema penitenciário.Op. Cit.: 65. psíquica e emocional) deve ser buscada pelo executor da pena, em especial pela APAC. Por isso, presente no método a necessidade de se buscar junto ao voluntariado especialistas nas áreas de medicina, odontologia e psicologia que possam clinicar os recuperandos quando necessário. Além disso, prima o método pela medicina preventiva, ou seja, pelo uso de medidas profiláticas, como a alimentação, a higienização do presídio, tratamento de água etc173. 4.2.2.6 Valorização humana, religião e a Jornada de Libertação com Cristo Consoante já mencionado, a valorização humana do apenado, de sua família e da vítima é a base central do Método APAC. Além disso, é traçada por OTTOBONI como um dos elementos a serem seguidos pelos voluntários, primando sempre por atividades que estimulem no recuperando o auto-conhecimento e o amor próprio e pelo próximo, bem como que se sintam acolhidos pelos voluntários e, através deles, pela sociedade que antes os excluíra. “Os voluntários, especialmente treinados para esse fim, irão ajudá-lo a retirar as máscaras que o impedem de ver a realidade tal como é, a despojar-se da lama da mentira, dos vícios, dos preconceitos até em relação ao amor, das grades interiores, da mesquinhez do mundo do crime, para que, ao final, purificado de tudo isso, possa perceber-se como filho de Deus, como alguém que pode ser feliz, 174 que não é pior que ninguém, de forma alguma” . Para tanto, a religião, outro elemento também já comentado, se mostra, para OTTOBONI, arma essencial, tanto que exigível é que os recuperandos, em algum momento de sua pena, preferencialmente enquanto ainda se encontrem no regime fechado, participem de uma Jornada de Libertação com Cristo, um encontro religioso ecumênico com intenção de apresentar173 OTTOBONI. Vamos matar o criminoso?: método APAC.Op. Cit.: 83. OTTOBONI. Vamos matar o criminoso?: método APAC.Op. Cit.: 85. 174 lhes os valores do cristianismo, base de organização da sociedade ocidental. 4.2.2.7 Envolvimento familiar No munus de alcançar a reestruturação do apenado, entende-se, segundo o Método APAC, ser imprescindível o envolvimento de sua família. Não se trata apenas da garantia ao direito do preso a receber a visita de seus familiares e visita íntima de sua esposa ou companheira. Mais que isso, fomenta-se o envolvimento direto da família no processo de execução penal, por meio de cursos de formação de voluntários, de valorização humana e, sendo necessário, mediante assistência material. “Quando a família se envolve e participa da metodologia, é a primeira a colaborar para que não haja rebeliões, fugas etc., ajudando a proteger a própria entidade e, como conseqüência, a população prisional” 175 . Parte-se da idéia de que de nada adiantaria trabalhar o recuperando se, ao sair do cárcere e retornar a sua casa, encontra a mesma estrutura criminógena ou vitimizada de antes, sob pena de não frutificarem as sementes lançadas sobre ele. Importante, para tanto, que a execução da pena se dê o mais próximo possível do local de origem do recuperando, sob pena de restar frustrada qualquer tentativa de aproximação de sua família176. 4.2.2.8 Centro de Reintegração Social Outra inovação apaqueana em relação ao sistema comum de cumprimento de pena, e que é considerado primordial para o bom termo dos trabalhos, é a construção de um Centro de Reintegração Social – CRS único para os três regimes de pena. Com isso, evitar-se-ia o deslocamento do recuperando de 175 OTTOBONI. Vamos matar o criminoso?: método APAC.Op. Cit.: 87. Por esse motivo, salvo em raras exceções, somente recuperandos que tenham origem na Comarca, que tenham seus familiares lá residindo ou nela tenham cometido seus crimes podem cumprir sua pena na APAC da Comarca almejada. 176 um lugar para outro, às vezes comprometendo a própria participação de sua família na execução da pena. Para tanto, necessário é o prévio planejamento, de forma que se mantenha uma estrutura que atenda ás determinações legais acerca da separação dos regimes entre si e das especificidades de cada um. 4.2.2.9 Mérito do recuperando A Lei de Execução Penal determina que os benefícios carcerários, como progressão de regime, saída temporária, trabalho externo, livramento condicional e outros mais somente são garantidos ao preso que tenha mérito. Contudo, não estabelece mecanismos de definição do instituto e nem de sua aferição. Com isso a aferição do mérito se limita ao simples fato de ser o preso obediente às normas internas, impostas sempre coercitivamente177. O Método APAC procura tratar o assunto de forma diferenciada, estabelecendo critérios para aferição do instituto, considerado a manifestação da ressocialização do recuperando. Como o preso, na APAC, participa ativamente da execução penal, diuturnamente encontra-se em avaliação o seu mérito. Não no sentido da panóptica, na qual o executor teria controle total sobre ele, mas sim no sentido de permitir-lhe agir livre e voluntariamente. Já que o próprio ingresso na APAC se dá somente se o recuperando quiser, sem oferecer barreiras, à medida que vai se transformando o recuperando, sensivelmente o fato é percebido pelos demais recuperandos de sua cela, do CSS e, por conseqüência, pela Direção, o que permite um diagnóstico mais correto acerca de seu mérito. Tudo o que faz de notável, positiva e negativamente, é incluído em seu 177 OTTOBONI. Vamos matar o criminoso?: Método APAC. Op. Cit.: 97. prontuário e “é ali que se buscarão os elementos necessários para avaliar seu mérito, e não apenas sua conduta”178. 4.2.3 Sucesso e queda do Método APAC Ainda em sua obra Vamos matar o criminoso?: Método APAC, considerada livro de cabeceira para os que se interessam pela aplicação do Método, OTTOBONI observa que somente pela perfeita harmonização entre os 12 elementos aqui expostos se consegue alcançar o sucesso na execução da pena, o que se manifesta externamente pela redução dos índices de reincidência e criminalidade. Lado outro, em nossas visitas à APAC de Itaúna, oportunidade tivemos de, em conversa com motivadores do Método e membros da própria Instituição, conhecer histórias de locais em que se tentou implantar o Método APAC e que, exatamente pela desatenção em relação a algum ou vários de seus elementos, a experiência restou frustrada179. 4.3 ITAÚNA: A HISTÓRIA DA APAC “MODELO” 4.3.1 O desafio dos primeiros anos A história apaqueana em Minas Gerais, e especialmente em Itaúna, muito se aproxima da história da APAC joseense. Cerca de 11 anos depois das primeiras incursões no Presídio Humaitá por parte dos membros da Pastoral Carcerária de São José dos Campos, em 1983 são os itaunenes que se sentem motivados a visitar e prestar apoio aos presos da cadeia pública local, inconformados com os alarmantes 178 OTTOBONI. Vamos matar o criminoso?: Método APAC. Op. Cit.: 97. A própria APAC de São José dos Campos recentemente fora envolvida em escândalos de suspeita de venda de vagas, tráfico de drogas e outras irregularidades que ainda trazem conseqüências negativas, como por exemplo, a maior dificuldade na aceitação do Método em outras Comarcas do Estado de São Paulo, não obstante terem sido tomadas todas as providências para sanar o problema. 179 índices de reincidência e violência naquela cidade de Itaúna180. Ainda nesse período, tal como na São José dos Campos de 1972, não se fala ainda em organização formal, mas apenas no trabalho realizado através da Pastoral Carcerária. E, tendo tomado conhecimento acerca da experiência da APAC paulista, passou-se a realizar em Itaúna uma série de encontros de formação ministrados pelos pioneiros, inclusive o idealizador do método, Mário OTTOBONI a partir do ano de 1985181. No ano de 1986, já sob a égide da LEP, Lei nº 7.210/84, o grupo de voluntários, seguindo orientação de OTTOBONI decide pela criação também em Itaúna de uma APAC nos moldes de São José dos Campos, ou seja, uma associação civil sem fins lucrativos que pudesse funcionar estatutariamente como órgão auxiliar na justiça na tarefa de execução penal. Ainda espelhando a similar de São José dos Campos, nos primeiros anos os trabalhos se limitavam à assistência religiosa e material aos presos da cadeia pública local, nos moldes do serviço já prestado pela Pastoral Carcerária, e à tentativa de implantação do Método APAC junto aos mesmos, seus familiares e à comunidade itaunense, conforme fotografias do trabalho a seguir (figuras 1 e 2). 180 “Na primavera de 1984, um grupo de cristãos itaunenses resolveu abraçar a causa dos presos. Reunidos no quintal da antiga casa paroquial de Sant’Ana, alguns homens e mulheres de forte personalidade e ideal cristão, fundaram a Pastoral Penitenciária de Itaúna. Pe. José Ferreira Neto, Pe. Luis Carlos Amorim, Odília, Daisy Melo, Dr. Inácio Campos, Marco Elísio, Valdeci, Valéria, Márcia Custódia... e tantos e tantas que, através da doação de suas vidas, tornaram possível a concretização do preceito evangélico: ‘Eu estava preso e você me visitou’. (Mt. 25, 36)” (Histórico da APAC - Itaúna. In: <http://www.apacitauna.com.br/pages/historico.htm> Acesso em 22 de outubro de 2006. 181 Segundo arquivos da APAC de Itaúna, no primeiro encontro estiveram presentes cerca de 30 voluntários da Pastoral Carcerária, além do juiz responsável pela Execução Penal da Comarca, que teria se mostrado incrédulo em relação aos resultados anunciados por OTTOBONI. Figura 1: Missa na Cadeia de Itaúna Figura 2: Estrutura física da Cadeia de Itaúna em 1986 4.3.2 A gestão carcerária em Itaúna: da Cadeia Pública ao novo CRS Desde o dia em que os voluntários de Itaúna tiveram contado com a APAC de São José dos Campos, se falou em seguir o exemplo paulista por completo, ou seja, instalar-se também em Itaúna a execução penal diretamente pela APAC, sem interferência estatal. Assim, iniciou-se a construção do primeiro Centro de Reintegração Social de Itaúna, destinado ao recebimento de recuperandos do regime aberto e à fiscalização dos livramento condicional na Comarca, o “Centro de Reintegração Social Dr. Franz de Castro Holzwarth”182, inaugurado no ano de 1991, funcionando dessa forma até o ano de 1995183. Nesse ano de 1995, uma rebelião destruiu a Cadeia Pública de Itaúna, tornando necessária a transferência dos presos dos regimes fechado e semiaberto, bem como os presos provisórios para outro local, até que se concluíssem as obras de restauração. Mesmo porque os danos ocorridos deixaram a cadeia pública de Itaúna sem o mínimo de segurança para a guarda de presos, conforme se vê em fotografia da época (figura 4). 182 MONTEIRO. Op. Cit. Atualmente, o prédio, apelidado de “Apaquinha” abriga o primeiro Centro de Reintegração Social – CRS feminino sob gestão direta do Método APAC. 183 Figura 3: Cadeia Pública de Itaúna Figura 4: Cadeia Pública de Itaúna após rebelião de 1995 Inicialmente tentou-se a transferência dos presos para presídios ou cadeias públicas próximas, mas a falta de vagas levou o juiz da Vara Criminal de Itaúna a transferir 70 desses presos, todos condenados dos regimes fechado e semi-aberto, para o CRS da APAC de Itaúna. Entretanto, o primeiro CRS de Itaúna fora planejado apenas para recuperandos do regime aberto, surgindo, para que o Método não fosse desvirtuado, a necessidade de se adequar a estrutura física ao padrão desenvolvido em São José dos Campos. Assim, em caráter emergencial, realizaram-se obras para adaptação da unidade às necessidades dos regimes fechado e semi-aberto. Ocorre que, mesmo com as adaptações, o estabelecimento não comportava o elevado número de recuperandos encaminhados à APAC. Além disso, qualquer tentativa de se promover a ampliação do prédio mostrava-se inviável. A única solução para o problema passava pela construção de um novo Centro de Recuperação Social que atendesse aos requisitos da LEP e do Método APAC. No mesmo ano de 1995 a sociedade itaunense se organizou sob orientação do juiz da execução penal e, por meio do projeto “SOS Cidadania”, conseguiu-se levantar a verba necessária à construção do atual Centro de Reintegração Social, com capacidade para cerca de 150 recuperandos dos três regimes de pena, inaugurado em julho de 1997184. Figura 5: Construção do atual CRS Figura 6: Vista da entrada do atual CRS Figura 7: Entrada da APAC de Itaúna Figura 8: Acesso interno da APAC de Itaúna Desde então a APAC assumiu integralmente a execução da pena privativa de liberdade na Comarca de Itaúna, permanecendo na cadeia pública somente os presos processuais e os condenados que negam a se submeter ao Método, aguardando vaga em penitenciárias do estado e os que aguardam vaga na própria APAC, período que não se estende por mais de dois meses185. 4.4 FUNCIONAMENTO E NÚMEROS DA APAC DE ITAÚNA: 1997-2006186 Por meio da abordagem do presente tópico pretende-se confrontar os dados carcerários da APAC de Itaúna, considerada modelo do método APAC, e os dados carcerários nacionais já apresentados no capítulo segundo, única 184 Histórico da APAC de Itaúna. Op. Cit. Segundo informações levantadas em visita à APAC de Itaúna em julho de 2006. 186 Segundo informações levantadas em visita à APAC de Itaúna em janeiro e julho de 2006, tanto por meio de entrevistas com o presidente e responsáveis por cada setor da APAC de 185 forma de aferirmos se a filosofia de trabalho formulada por OTTOBONI, ligada à teoria da justiça restaurativa de fato apresenta algum diferencial em relação ao tradicional sistema de cumprimento de pena privativa de liberdade. Para tanto, trabalha-se com dados levantados no período compreendido entre os anos 1997 e 2006, posto ser 1997, como já mencionado, o ano em que a APAC de Itaúna passou a contar com uma estrutura física que permitisse a aplicação da pena privativa de liberdade em seus três regimes. 4.4.1 A capacidade carcerária e o perfil do preso de Itaúna 4.4.1.1 Estrutura física da APAC de Itaúna Ao contrário do sistema tradicional, no qual são construídos estabelecimentos prisionais específicos para cada um dos três regimes de pena, o método APAC prima pela centralização da execução penal em um mesmo local, resguardando a proximidade do preso com sua comunidade e familiares. Por essa razão, o Centro de Reintegração Social Franz de Castro Holzwarth foi construído de forma a abrigar separadamente os três regimes de pena. E, não obstante permanecerem no mesmo estabelecimento prisional, os presos de diferentes regimes não mantém contato entre si, a não ser em ocasiões especiais, como nas Jornadas de Libertação com Cristo, palestras sobre o Método, viagens de formação e outras ocasiões restritas. Atualmente o CRS de Itaúna, segundo dados oficiais possui capacidade para abrigar 150 recuperandos, sendo 60 vagas para o regime fechado, 45 vagas no semi-aberto e 45 no aberto. Dessas vagas, quando da última visita a Itaúna, realizada em julho de 2006, constatou-se que, ao contrário do sistema comum, no qual conforme Itaúna, como dados constantes no sítios eletrônicos da APAC de Itaúna, FBAC e PFI. demonstrou-se a superlotação carcerária é comum, a APAC possuía apenas 119 vagas preenchidas, restando, portanto, um superávit de 31 vagas, conforme Tabela 6. Capacidade carcerária da APAC de Itaúna Regime de pena Vagas existentes Vagas preenchidas Vagas remanescentes Fechado 60 53 7 Semi-aberto 45 38 7 Aberto 45 28 17 Total 150 119 31 187 Tabela 6 Interessante nesse ponto foi a resposta dada quando questionada a direção da APAC de Itaúna acerca dos motivos pelos quais à época encontrava-se o estabelecimento longe de alcançar seu limite de capacidade. O argumento levantado foi que a APAC de Itaúna, por ser modelo para as demais unidades do método, sempre recebe presos de outras localidades, que lá permanecem por dois a três meses em treinamento, retornando para suas comarcas formados no método e, portanto, prontos para auxiliar suas respectivas diretorias. Em razão disso, seria imprudente preencher todas as vagas do estabelecimento, sob pena de não haver local para o alojamento desses recuperandos-estagiários. Além disso, esclarecido foi também que, conforme a gravidade da falta cometida pelo recuperando, a sanção aplicada pela direção poderia ser a permanência por alguns dias na cela, sem poder sair para as atividades rotineiras, sendo necessária a manutenção de vagas no regime fechado para que o recuperando não sofra punição além do necessário, como o seria caso não houvesse local para dormir e guardar seus objetos pessoais, o que destoa do método por ferir a dignidade do recuperando. 187 Segundo dados oficiais da APAC de Itaúna O tamanho e a capacidade das celas varia conforme o regime de pena, todas contando com cama e armário de alvenaria, e banheiro com aparelho sanitário pia e chuveiro elétrico. No regime fechado os recuperandos são alojados em celas com capacidade para 04 ou 06 pessoas, no semi-aberto em celas com capacidade para 08 pessoas e no aberto, para 15 pessoas, atendendo-se à determinação da LEP acerca da salubridade do ambiente. Figura 9: Dormitório Figura 10: Corredor de acesso às celas do Regime Fechado Além disso, os regimes fechado e semi-aberto contam, cada um, com auditório para reuniões, palestras e celebrações religiosas, quadra poliesportiva, oficinas de atividades e refeitório próprios, havendo ainda uma sala especialmente equipada para servir de gabinete médico-odontológico, contando com os instrumentos básicos para tal atendimento e uma farmácia própria. Importante tal observação ante a necessidade de se garantir dentro da própria APAC o atendimento médico-odontológico básico, tal como determina a LEP. Ademais, a existência de um setor específico para a guarda de medicamentos, que permanece fechado integralmente, com acesso somente para recuperandos autorizados e médicos voluntários, o que garante o uso de medicamentos apenas para fins tratativos e não como meio drogas por parte dos recuperandos. Figura 11: Quadra do Regime Semi-aberto Figura 13: Auditório do Regime Semi-aberto Figura 12: Quadra do Regime Fechado Figura 14: fechado Refeitório do Regime Há que se ressaltar ainda que, como mencionado, os recuperandos de regimes diferentes não mantém contato entre si, razão pela qual o portão de acesso para o regime aberto é separado dos demais e os recuperandos do regime fechado participam do “banho de sol” somente em sua quadra poliesportiva, sem qualquer meio de acesso ou visão do mundo externo. Por outro lado, atendendo-se à idéia de “estabelecimento de segurança mínima, com aparência de mundo externo”, o regime semi-aberto muito se assemelha à descrição legal das colônias agrícolas e industriais. É um ambiente mais amplo que os demais, com áreas de jardim, oficina e acesso aos setores burocráticos da APAC. Figura 15: Jardim do Regime Semi-aberto Figura 16: Gruta Regime Semi-aberto 4.4.1.2 O perfil do preso da APAC de Itaúna Segundo narrativa de OTTOBONI, o Método APAC de execução penal pode ser aplicável sobre qualquer apenado em qualquer presídio do Brasil ou do mundo188. Trata-se de uma afirmativa muito séria e incisiva, merecedora de uma análise mais cuidadosa a fim de se aferir sua veracidade. A melhor forma de verificar isso foi o confronto estatístico entre os presos em cumprimento de pena no sistema tradicional e os recuperandos da APAC, tomando-se por base a modalidade delituosa praticada. Afinal, o senso comum facilmente conduz à conclusão de que o tratamento dispensado pela APAC somente se mostra eficaz porque aplicado sobre indivíduos menos perigosos, autores de delitos mais brandos e, portanto, mais facilmente “recuperáveis”. Entretanto, não foi isso que se constatou. Ao contrário grande proximidade se percebeu no que tange à estatística das modalidades delituosas que levaram à condenação os presos do sistema comum e os da APAC de Itaúna. Classificação dos recuperandos da APAC de Itaúna por modalidade delitiva Tipo penal Furto (simples e qualificado) APAC 28% Sist. Comum 13,022% Roubo (simples e qualificado) 25% 31,248% Tráfico de Entorpecentes 14% 13,892% Homicídio (simples e qualificado) 11% 11,568% Porte de entorpecentes para uso 6% Não informado Crimes sexuais 10% 1,905% Latrocínio 4% 3,447% Homicídio tentado 2% Não informado Outras modalidades 0% 24,918% Total 100% 100% 189 Tabela 7 Naturalmente, sendo a Comarca de Itaúna uma comarca de interior, não se 188 Vamos matar o criminoso?: método APAC,. São Paulo : Paulinas, 2001. Segundo dados oficiais da APAC de Itaúna e do Departamento Penitenciário Nacional. 189 percebe um rol tão amplo de delitos como ocorre em âmbito nacional. Entretanto, comparando-se os índices dos delitos lá processados e punidos sob o Método APAC e os mesmos delitos em grau nacional, mínima se mostra a variação. Exemplificando, segundo dados da APAC, 53% dos recuperandos que lá cumprem ou cumpriram pena, foram condenados pela prática de crimes de furto ou roubo. Em escala nacional, os índices dos mesmos delitos é de 44,27% dos condenados. Da mesma forma, se na APAC, 11% dos condenados cumprem pela prática do crime de homicídio, em âmbito nacional, tal crime é responsável por 11,568% das condenações. Além disso, 10% dos recuperandos da APAC cometeram crimes sexuais, enquanto em escala nacional apenas 1,905% dos encarcerados estão presos por essa razão190. Com isso, conclui-se que mínima é a diferença, ao menos no que tange à personalidade criminógena, entre os presos do sistema comum e os da APAC de Itaúna. Aliás, conforme demonstrado, em determinados crimes considerados hediondos, como os de natureza sexual, a APAC de Itaúna recebe mais condenados que o sistema comum, o que permite a conclusão de que considerável parcela dos indivíduos que lá iniciam o cumprimento de pena, seriam até mais “perigosos” que a mesma parcela do sistema comum. Não obstante tal semelhança, desde o ano de 1991, quando iniciaram-se os trabalhos de execução penal pela própria APAC, ainda no primeiro Centro de Reintegração Social (Apaquinha), nunca se registrou uma rebelião prisional. Além disso, mesmo não havendo guarda ou armas na vigilância dos recuperandos, mínimo é o número de fugas, abandonos ou evasões, registrando-se, entre 1997 e 2000, 97 ocorrências, das quais em 59 os recuperandos retornaram voluntariamente à APAC para dar continuidade ao 190 Os números da APAC de Itaúna compreendem o total de 820 recuperandos que cumpriram ou se encontram em cumprimento de pena do CRS entre os anos de 1997 e cumprimento da pena. E, a partir de 2000, quando a estrutura do novo CRS já se encontrava consolidada e mais experiência haviam adquirido os voluntários da APAC, especialmente no trato com os recuperandos dos regimes fechado e semiaberto, o número de fugas, evasões e abandonos caiu consideravelmente. Fugas, evasões e abandonos na APAC de Itaúna (2000-2005) Ano Fugas Evasões Abandonos 2000 5 ----- 10 2001 7 4 7 2002 1 2 12 2003 1 3 12 2004 ----- ----- 7 2005 2 ----- 6 Total 16 09 54 Tabela 8 E isso dentro de uma realidade inimaginável no sistema comum de execução penal, no qual a guarda da portaria e as chaves do estabelecimento prisional permanecem sob controle dos próprios recuperandos, havendo apenas 02 funcionários plantonistas à noite e 01 durante o dia, conforme mais a frente se comentará, trabalhando desarmados. 4.4.2 Estrutura administrativa da APAC de Itaúna 4.4.2.1 Recursos humanos Em 25 de julho de 2006, data de encerramento da última visita à APAC de Itaúna, o estabelecimento contava com 19 funcionários contratados, dos quais 02 para a APAC Feminina191, sendo uma secretária e uma plantonista para o período noturno, e 17 funcionários para a APAC Masculina. Pela complexidade e o maior número de recuperandos da APAC Masculina, esses 17 funcionários desempenham um número maior de atividades, sendo 2005. 191 Em funcionamento no antigo CRS (Apaquinha). 04 plantonistas para a vigilância interna; 01 inspetor de vigilância para a escolta extramuros dos recuperandos, viagens etc; 01 encarregado e um 01 auxiliar jurídico; 01 secretária e 01 auxiliar administrativo; 01 tesoureiro e 01 auxiliar de tesouraria; 01 encarregado e 02 auxiliares de manutenção; 01 assistente religiosa; 01 assistente administrativo e de disciplina e 01 motorista. Todas as demais atividades são realizadas pelos próprios recuperandos, diretores e voluntários da instituição192. Importante ressaltar que os atendimentos médico, odontológico e psicológico, vigilância diária da unidade, revistas em dias de visita bem como a maioria das aulas do ensino fundamental são ministrados por voluntários193. ORGANOGRAMA APAC PRESIDÊNCIA Assessoria Voluntários Vice Presidente APAC Feminina Diretora Administrativa Secretária Diretora Disciplina Encarregado Patrimônio Encarregado de Obras e Oficinas Psicólogo Médico Odontológico Ambulatorial Gerente Administrativo Conselho Disciplinar C.S.S . Controle Veículo Diretor RP e Relações Internacionais RP Internacional Assessor de Imprensa Plantonista s Diretor de Patrimônio Encarregado Manutenção Plantonistas Departamento Saúde Diretor Jurídico Encarregado Execução Penal Diretor Administrativo Diretor Financeiro Contador Estagiário s Auxiliar Controle Remição Monitores de Oficinas Controle Telefone Tesoureiro Secretaria Administrativa Auxiliar Secretaria Secretaria Interna Controle Escolta Diretor Espiritual Diretor de Formação Assistência Católica Supletivo Assistência Evangélica Valorização Humana Outras Formação de Voluntários Cursos de Formação Profissional Versão atualizada em 13/05/06 194 Gráfico 2 192 Segundo apurado, a APAC de Itaúna possuía, em julho de 2006, cerca de 100 voluntários. 193 Segundo informações do sítio eletrônico da APAC de Itaúna, entre 1997 e 2005 foram realizados 932 atendimentos médicos, 3033 atendimentos odontológicos, 1133 atendimentos psicológicos, 3275 atendimentos jurídicos e 436 atendimentos de serviço social. 194 FONTE: Secretaria Administrativa da APAC de Itaúna. 4.4.2.2 Custeio e recursos financeiros Segundo dados oficiais do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais195, o custo médio por recuperando na APAC de Itaúna encontra-se em torno de R$450,00 mensais, enquanto a manutenção dos presos no sistema comum encontra-se na faixa de R$1.200,00 a R$1.600,00 mensais per capita196. Podemos apontar, a partir do que restou apurado no trabalho de pesquisa, que quatro são, resumidamente, os motivos dessa discrepante diferença entre o custo de manutenção da APAC de Itaúna e os estabelecimentos prisionais do sistema comum. Em primeiro plano, há que observar o mais óbvio, a dizer, a ausência de policiais na unidade apaqueana. Boa parte dos gastos estatais com a manutenção do sistema prisional não se destinam diretamente aos presos, mas à segurança do estabelecimento prisional, pelo treinamento, armamento e salário dos agentes carcerários e pela inovação dos mecanismos de segurança. Como, porém, tal preocupação não existe na APAC, já que toda a vigilância é feita por voluntários e pelos próprios recuperandos, não há o que se gastar com segurança. Em segundo lugar, como o Método procura desenvolver nos recuperando o senso de responsabilidade com a manutenção da coisa comum e da própria “casa”, o que é recebido de forma exemplar por eles, todos zelam pela estrutura física do prédio, ao contrário do que ocorre nas prisões comuns, depredadas a cada rebelião ou motim. Em terceiro plano, a gestão da APAC de Itaúna é custeada através de várias fontes financeiras, desde as fontes estatais oficiais até convênios e doações 195 APAC: recuperando o homem e a dignidade. Op. Cit. CRUZ, Maria do Carmo Meirelles Toledo. "Humanização da Pena Privativa de Liberdade." 20 Experiências de Gestão Pública e Cidadania – Ciclo de Premiação 2003, Fernanda Martinez de Oliveira et al.,. São Paulo : Programa Gestão Pública e Cidadania - FGVSP, 2005: 103. 196 feitas pela iniciativa privada e particulares197. Em quarto lugar, e não menos importante, boa parte das atividades como atendimento médico, odontológico, psicológico e jurídico, bem como cursos de formação pessoal e profissional são ministrados gratuitamente pela rede de voluntários da APAC, enquanto no sistema convencional tais atividades ficam a cargo de servidores públicos remunerados. Somente pelos dados até aqui analisados, o Método APAC já alcançaria a solução para um dos mais graves problemas do sistema carcerário brasileiro, qual seja a falta de verba que acaba por comprometer toda a estrutura física e humana dos estabelecimentos prisionais, a APAC de Itaúna conseguiu solucionar, atendendo às determinações legais acerca da estrutura carcerária, o que não ocorre em regra no sistema comum, por um custo infinitamente inferior. Além disso, como o contato direto com os recuperandos é feito geralmente por voluntários previamente formados, ao contrário do sistema tradicional, em que tal se dá por agentes carcerários despreparados e mal remunerados, a chance de corrupção e tráfico de drogas, bebidas, armas, etc na APAC é praticamente nula. 4.4.3 Metodologia de trabalho na APAC de Itaúna A APAC de Itaúna procura, conforme percebido durante as visitas in loco, no desenvolver seus trabalhos segundo idealizado por OTTOBONI (Tópico 4.2) ou seja, pela valorização humana do preso, estimulo ao senso de 197 Segundo levantamento realizado em janeiro de 2006, a APAC de Itaúna mantém convênio com as seguintes Instituições Públicas e Privadas: Secretaria de Estado de Defesa Social – SEDS (custeio da alimentação dos recuperandos), Tribunal de Justiça do Estado de Gerais – TJMG (Projeto Novos Rumos na Execução Penal), Município de Itaúna (isenção das taxas de água e luz, cessão de uma professora de ensino fundamental e subvenção anual para obras), Instituto Marista (doação de R$5.500,00 mensais para custeios diversos), ERGON (montagem remunerada de peças para veículos FIAT pelos recuperandos do Regime Semi-Aberto), FERGUMINAS Siderúrgica LTDA (materiais de construção), SESI e SENAI (cursos profissionalizantes a distância), além de cerca de 800 associados que contribuem mensalmente com a instituição, prestando serviço voluntário ou em dinheiro. responsabilidade, assistência espiritual, trabalho lúdico e profissionalizante, educação, apoio e participação das famílias, da comunidade e da vítima. A fim de se demonstrar de forma mais objetiva a análise realizada sobre o trabalho da APAC de Itaúna abordado será o tema sistematicamente em três óticas: a assistência ao preso, o trabalho prisional, a participação da comunidade e assistência à vítima. 4.4.3.1 Assistência ao preso Figura 17 A assistência dispensada aos presos dos três regimes de pena cumpridos na APAC masculina, bem como às presas da APAC feminina de Itaúna se dividem em assistência espiritual e religiosa, educação, assistência jurídica e à saúde. a) A assistência espiritual e religiosa A assistência espiritual e religiosa, prevista no artigo 11, VI da LEP e considerada essencial ao trabalho ministrado por qualquer APAC, uma vez que suas origens, como já dito, se fundam sobre a pastoral carcerária da Igreja Católica, em Itaúna é oferecida na rotina diária e em eventos especiais, sob orientação de uma freira carmelita, pastores de igrejas protestantes e voluntários leigos. Diariamente os recuperandos se vêem envolvidos em atividades de estímulo à prática religiosa, independente do credo de cada um, como nas meditações e orações pela manhã e antes das refeições, nas experiências de oficina de oração, etc. Além disso, mensalmente são realizadas missas e cultos para os protestantes do regime fechado, enquanto os dos regimes semi-aberto e aberto, desde que tenham cumprido dois meses de pena, se primários, ou três meses, se reincidentes, tem autorização para participar de missas ou cultos, conforme sua religião, fora do estabelecimento prisional, consoante Portaria nº 02/01198 do Juízo da Comarca de Itaúna e uma vez por ano, ainda, todos os recuperandos participam da Jornada de Libertação com Cristo. Como forma de confraternização e reconhecimento dos esforços, ao término de cada missa mensal são comemorados os aniversários do mês e premiados os recuperando modelo e homenageados voluntários que se tenham destacado, premiando-se ainda a cela mais limpa, com a entrega de um troféu, e a mais suja, com um “porquinho”199. Tais práticas tem por objetivo tornar o recuperando mais sensível à manifestação de seus sentimentos, reencontrando sua personalidade, muitas vezes mascarada ao longo de uma vida de exclusão social, crimes e da vivência do cárcere no sistema comum. b) Educação na APAC Comentou-se no tópico 2.3.2 que cerca de 74,59% dos condenados no sistema penal brasileiro possuem no máximo o ensino fundamental incompleto, fato que certamente os impede ou ao menos dificulta a busca por melhores condições de vida longe do crime. Dissertou-se também, no presente capítulo, que um dos instrumentos utilizados no método APAC é a promoção e o incentivo do estudo fundamental, profissionalizante, superior e/ou artístico como mecanismo de quebra do circulo vicioso. Na APAC de Itaúna o acesso à educação, que também se vê previsto no artigo 11 da LEP se dá mais diretamente nos regimes fechado e semiaberto, nos quais são oferecidos o ensino fundamental, suplência e o ensino médio, a cargo de cinco professores, quatro deles voluntários e um custeado 198 199 Anexo. CRUZ. Op. Cit.: 96. pelo município de Itaúna200. Além disso, são oferecidos cursos de artesanato e violão para os recuperandos do regime fechado e de marcenaria, ministrado pelo Senai e informática básica e confeitaria para os do semi-aberto. 20% 27% Música Ensino Fundamental Tele-curso 1º Grau Tele-curso 2º Grau 4% 22% 7% Senai Computação 20% 201 Gráfico 3 Por sua vez, os recuperandos do regime aberto, são estimulados a freqüentar escolas e faculdades no município de Itaúna e região. Ressalta-se, por fim, que o envolvimento com alguma atividade educativa na APAC de Itaúna não simplesmente um direito facultado ao condenado, mas uma exigência do próprio método, sem a qual não poderia alcançar a progressão de regime202. c) Assistência jurídica Ainda em atenção às garantias do artigo 11 da LEP e aos elementos dispostos no Método APAC definido por OTTOBONI, a unidade de Itaúna disponibiliza aos recuperandos que não possuem advogado contratado para o acompanhamento de seus processos de execução penal um serviço de 200 CRUZ. Op. Cit.: 97. MONTEIRO, Igor de Matos. APAC – Associação de Proteção e Assistência ao condenado: paradigma para o sistema prisional. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 2005: 30 201 assistência jurídica. Tal serviço, realizado por uma advogada voluntária, que integra o quadro de diretores da instituição e dois estagiários do Curso de Direito da Faculdade de Direito de Itaúna, concentra-se no acompanhamento de seus incidentes de execução penal e orientação acerca de benefícios carcerários e dos procedimentos para o recebimento de auxílio-reclusão por seus familiares, quando possível. Por uma particularidade da Comarca de Itaúna, que aos poucos vai se expandindo para as demais APACs mineiras, as saídas temporárias e autorizadas, o trabalho externo para os regimes semi-aberto e aberto e o acompanhamento e fiscalização do cumprimento do livramento condicional são feitos diretamente pela APAC e apenas fiscalizados pelo Poder Judiciário203. Conforme detectado, tais particularidades, de um lado permitem uma maior relação de confiança por parte do apenado nos órgãos de execução da pena, vez que encontra-se próximo dos mesmos e, de outro, garante uma mais eficiente fiscalização acerca do cumprimento dos requisitos necessários à concessão de cada benefício penitenciário, vez que os mesmos órgãos conhecem de perto a realidade do preso, bem diferente do sistema comum, no qual juizes e promotores assoberbados de serviço raramente deslocam-se às unidades prisionais ou mantém contato com os presos204. d) Assistência à saúde O quarto e último ponto tocado pela APAC de Itaúna na assistência direta ao preso diz respeito à área saúde. 202 MONTEIRO. Op.Cit: 30. Conforme Portarias nº 01/01 do Juízo da Vara Criminal e de Execução Penal da da Comarca de Itaúna (Anexo). 204 Segundo dados fornecidos pela Diretoria Jurídica da APAC de Itaúna, entre fevereiro de 1997 e julho de 2006 teriam sido realizados 3.275 atendimentos jurídicos, 337 Exames criminológicos e 54 Audiências judiciais dentro da APAC de Itaúna. 203 Como já comentado, parte dos atendimentos médicos, odontológicos e psicológicos são feitos dentro da própria APAC, através de seus voluntários, contando a instituição, inclusive com um setor especialmente preparado para isso. Casos médicos mais complexo, contudo, são encaminhados ao Sistema Único de Saúde (SUS) ou mesmo para os próprios voluntários, que prestam o serviço em seus consultórios. Além disso, contando a APAC de Itaúna com uma farmácia interna, os medicamentos mais comuns podem ser encontrados dentro do próprio estabelecimento205. 4.4.3.2 Trabalho prisional O trabalho prisional na APAC de Itaúna, de acordo com o que se levantou, também se guia pelo modelo de OTTOBONI, ou seja, parte-se da idéia de que em cada um dos três regimes o trabalho prisional ao qual se submete o recuperando deve guardar direta vinculação com o objetivo do regime. Assim, no regime fechado dedicam-se os recuperandos a atividades voltadas ao desenvolvimento de sua capacidade criativa e sensibilidade. Nesse sentido, são desenvolvidos trabalhos com tear manual, madeira, linha, confecção de velas decorativas, cerâmica, furação de pedras semipreciosas para colares, confecção de pinturas e artesanato com papel reciclado. Essa também foi a conclusão alcançada por CRUZ, quando de sua visita à APAC de Itaúna: “No regime fechado, a equipe da Apac desenvolve atividades laborterapêuticas, que possibilitem ao reeducando se encontrar e se valorizar como pessoa. (...) Nessas atividades também se busca o resgate dos vínculos. Os reeducandos são estimulados a produzir para os seus conhecidos, a dar um presente aos seus 205 CRUZ. Op. Cit.: 98. familiares e a utilizar o tempo para a reinserção social” Figura 18: Artesanato no Regime Fechado 206 . Figura 19: Oficina de perfuração de pedras semipreciosas Já no regime semi-aberto, estando a atenção do Método voltada à profissionalização do recuperando, os trabalhos oferecidos se dividem em serviços de pintura de faixas, horta, jardinagem, cozinha, padaria, trabalhos de computação, marcenaria e produção de blocos de cimento para construção civil. Importante ressaltar que toda a produção das diversas atividades desenvolvidas no regime semi-aberto destinam-se, primeiramente, à manutenção da Unidade e depois à comercialização para a comunidade local. Figura 20: Oficina de marcenaria Figura 21: Oficina de marcenaria Interessante ressaltar ainda que a horta e fábrica de blocos fica localizada exatamente atrás do prédio da APAC de Itaúna, inexistindo muros, cercas ou quaisquer outros mecanismos físicos que ofereçam dificuldade para que o recuperando fuja, sendo, contudo, consoante já demonstrado, raríssimos os 206 CRUZ. Op. Cit.: 96. casos em que se tentou escapar207. Figura 22: Horta Gráfico 4: Relação do trabalho prisional 208 no Regime Semi-aberto Por sua vez, as recuperandas a APAC Feminina se dedicam a tarefas de manutenção do prédio em que cumprem sua pena e ao desenvolvimento de trabalhos artesanais. Por fim, os recuperandos do regime aberto saem às 06:00 para trabalhar em empresas do município, retornando à APAC às 19:00, passando a noite e os finais de semana no CRS. A LEP garante aos presos dos regimes fechado e semi-aberto que realizam trabalho prisional dois benefícios, além do tratamento realizado pelo próprio trabalho: a remuneração pelo trabalho realizado e a possibilidade de remir o tempo trabalhado do total da pena a cumprir. Esses dois benefícios são garantidos na APAC de Itaúna, com ainda um diferencial. A gestão do trabalho e organização do trabalho, maquinário e renda é feita pelos próprios recuperandos que criaram duas cooperativas de trabalho com estatuto e personalidade jurídica próprias, uma para os recuperandos do regime fechado e outra para os do semi-aberto. 4.4.3.3 Participação comunitária O trabalho realizado pela APAC de Itaúna, pelo que se percebeu ao longo das visitas e entrevistas realizadas jamais alcançaria a proporção atual sem 207 208 Tabela 8. FONTE: MONTEIRO. Op. Cit.: 30. o efetivo envolvimento da comunidade local. Envolvimento esse que se dá das mais diversas formas de voluntariado, passando desde a simples contribuição financeira dos colaboradores até a atuação direta na gestão da unidade prisional e à prestação de serviços profissionais específicos, como os médicos, dentistas e psicólogos já mencionados. A pergunta que se fez, entretanto, diante da complexidade do trabalho desenvolvido em Itaúna e o elevado grau de envolvimento comunitário foi exatamente acerca de qual a motivação levou a sociedade itaunense a isso. A resposta foi encontrada nos resultados obtidos pela APAC na tarefa de combater a criminalidade local e, por conseqüência, como em sua logomarca, “Proteger a Sociedade”. Segundo dados apontados por CRUZ209, entre os anos de 1996 e 2000 o número de processos criminais na Comarca de Itaúna caiu de 1.582 para 741, ou seja, uma redução em torno de 46%. Além disso, os índices de reincidência giram em torno de 7,77% quando há plena aplicação do Método APAC e 13,51% quando a aplicação é parcial210, enquanto a média nacional de reincidência é de cerca de 85%. 4.4.3.4 Assistência à família do preso e à vítima Outra tarefa desenvolvida pela APAC de Itaúna é o serviço de assistência à família do preso e à vítima ou seus familiares. Os voluntários da APAC se organizam a fim de prestar auxílio à família do recuperando que esteja passando por dificuldades financeiras, o que garante a tranqüilidade do recuperando, facilitando sua concentração na metodologia 209 Op. Cit.: 103. Segundo relatado por Valdeci FERREIRA, presidente da APAC de Itaúna, fala-se em plena aplicação do Método APAC quando o recuperando passa integralmente pela metodologia de trabalho apaqueana nos três regimes de pena e em aplicação parcial quando o recuperando chega à APAC já nos regimes semi-aberto ou aberto. Nesse último caso, o recuperando, ao chegar à APAC passa um breve período de “estágio” no regime fechado, sendo só depois disso encaminhado ao regime legal. 210 de trabalho. Além disso, se mostra mecanismo de transformação do ambiente familiar do recuperando, permitindo que, ao término da pena, geralmente o recuperando encontre uma realidade diferente da existente à época da prática de seu delito e de sua prisão, auxiliando a que se mantenha fora da criminalidade. Mesmo porque, como já observado, o ambiente e a exclusão social são fatores importantes na opção pelo delito. Outra forma de inserção da família do recuperando de Itaúna consiste no estímulo a que participem ativamente da execução penal por meio de visitas ao preso, participação nos cursos de formação e a atuação como voluntários. “A equipe considera fundamental o envolvimento da família para a mudança do condenado. No regime fechado e na primeira etapa do regime semi-aberto, a família é estimulada a visitá-lo todos os domingos. No final da etapa do regime semi-aberto e no regime aberto, o próprio reeducando sai do Centro e visita seus familiares. É permitida a visita íntima ao cônjuge ou companheiro estável a cada 211 15 dias, desde que pré-agendada” . Outra preocupação é com a situação da vítima do delito praticado pelo recuperando, tanto para que seja sanado ou ao menos minimizado o dano causado pelo crime como para auxiliar o processo de recuperação do apenado. Nesse sentido, desde 2003 a APAC de Itaúna mantém um setor especializado em fomentar o contato entre vítimas e recuperandos. “Em 2003, foi iniciado um serviço de atendimento às vítimas dos reeducandos, com uma religiosa e um voluntário. Segundo os coordenadores, em alguns casos o processo de ressocialização requer um contato do reeducando com a vítima ou com seus familiares” 212 . Interessante é que, segundo relatado pela Diretoria da APAC de Itaúna em uma das visitas realizadas, alguns dos voluntários foram, no passado, vítimas de delitos praticados por recuperandos ou ex-recuperandos do 211 CRUZ. Op. Cit.: 99. estabelecimento. 4.4.4 Resultados alcançados pela APAC de Itaúna A metodologia de trabalho baseada na confiança e na valorização humana desenvolvida pelas APACs, e em especial a APAC de Itaúna traz resultados completamente diferentes do sistema carcerário tradicional. Em primeiro lugar, há que ser ressaltado o clima de tranqüilidade dentro da APAC de Itaúna. Ao contrário dos tradicionais estabelecimentos prisionais, na APAC os recuperandos mantém-se em plena harmonia entre si, com os visitantes, funcionários e voluntários, sem a mínima animosidade que tanto vitimiza os presos e funcionários do regime comum. Daí porque os baixíssimos índices de fuga e abandono na APAC de Itaúna apontados em tópico acima: não havendo qualquer risco à segurança, aliás, ao contrário disso, sendo mais bem tratados do que sempre experimentaram em suas vidas, poucos são os presos que desejam fugir de uma APAC, ainda que as chaves da Instituição permaneçam com eles213. Em segundo lugar, a atenção dispensada à saúde física, mental e espiritual dos recuperandos, acompanhamento pelo médico, fornecimento odontológico e de dieta psicológico balanceada, sempre que necessário e mesmo pelas instituições religiosas que trabalham em parceria com a APAC de Itaúna, garantem a qualidade de vida do recuperando, tão importante ao processo de descrimininalização e desvitimização. Além desses, vários outros fatores garantidos pela metodologia de trabalho desenvolvida levam a APAC de Itaúna a alcançar índices de reincidência 212 CRUZ. Op. Cit.: 99. Interessante comentar, ainda nesse ponto, que a APAC de Itaúna possui uma ala dotada de dois alojamentos para visitantes e pesquisadores, permitindo o contato integral com os recuperandos, não tendo sido apontado, até a última visita, realizada em julho de 2006, qualquer problema ou quebra da segurança, disciplina ou tranqüilidade. Ao contrário, segundo relatos dos funcionários da APAC de Itaúna, os recuperandos sempre receberam carinhosamente seus visitantes. 213 inferiores a 10%214, bem distante dos 85% de reincidência no regime comum, bem como a drástica redução da criminalidade na Comarca de Itaúna e à efetiva aceitação e participação comunitária nas atividades desenvolvidas pela APAC. Todos esses resultados fizeram com que a APAC de Itaúna fosse considerada referência do Método e da aplicação da pena privativa de liberdade. Por essa razão, desde o ano de 2001 o Estado de Minas Gerais, por meio do Projeto Novos Rumos na Execução Penal definiu como meta a implantação de uma APAC em cada Comarca do Estado, utilizando como referencial o modelo de Itaúna. Para tanto, criou-se uma comissão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, já mencionada, para conduzir os trabalhos, bem como um grupo de assessoria, sob a direção do presidenta da APAC de Itaúna, Valdeci FERREIRA e composto por membros da FBAC, da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais e presidentes de outras APACs já em funcionamento no Estado. Como resultado disso, segundo dados oficiais do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, 79 Comarca do estado já se possuem APACs em pleno funcionamento, funcionando parcialmente, ou seja em conjunto com a administração carcerária estatal ou em implantação, número considerado bom para o curto espaço de tempo desde o surgimento do projeto. Enfim, ao menos no Estado de Minas Gerais, onde se concentrou o estudo, vez que a idéia era analisar o modelo de APAC desenvolvido em Itaúna, a sua expansão e sucesso aparentam ser o caminho inevitável para a eficaz aplicação da pena privativa de liberdade. 214 www.apacitauna.com.br/pages/principal.htm - acesso em 22 de outubro de 2006. CONCLUSÃO Desde o início dos trabalhos que resultaram no presente trabalho, que se deram a partir de preliminares leituras sobre o sistema penal punitivo e suas origens, passando pelo contato com textos mais profundos e, num segundo momento, com os dados carcerários brasileiros levantados junto ao Departamento Penitenciário Nacional, uma frase sempre pairava no ar: o sistema penal não funciona. Essa, porém, é uma constatação pragmática a que o mais simplório dos estudos levaria. Era preciso, então, ir mais a fundo em nossa busca e mudar o questionamento. A pergunta agora era: por que esse sistema não funciona? Para chegar a uma resposta plausível era preciso conhecer o sistema em plenitude e desde sua gênese, tal como idealizado. Assim foi que dedicamonos à pesquisa doutrinária e documental que deu origem aos dois primeiros capítulos do presente trabalho. Num primeiro momento buscamos reconstruir a história do sistema punitivo a partir do contexto sócio-econômico em que a estrutura foi criada e transformada ao longo dos séculos. Já em um segundo momento, de posse de conhecimento, dedicamo-nos a compreender como o sistema punitivo se estruturou no Brasil e quais as atuais condições de cumprimento de pena nessa sociedade. Algumas constatações se mostraram factíveis já nesse momento em adiantada resposta ao questionamento acerca das causas da falha do sistema punitivo. Primeiramente, fato é que o sistema penal, desde sua origem teve sua justificativa de manutenção questionada. Tanto é assim que, ao longo da história, percebem-se várias metamorfoses no discurso estatal de sustentação do sistema. É fato que, no princípio o objetivo perseguido pelo sistema era o de simples vindita privada ou pública contra o ofensor de interesses alheios. A posteriori, mostrando-se esse um objetivo mesquinho, mudou-se o discurso, passando-se a dizer que a função do sistema penal seria a de punir crimes de forma exemplar, a fim de se evitar que novas práticas ocorressem, seja porque a sociedade se sentiria intimidada, seja porque o próprio apenado, sentindo o castigo, não voltaria a delinqüir. Não obstante a diferença de discurso, o resultado exclusivamente punitivo se manteve. Apenas passou-se de uma punição vingativa para uma punição preventiva, se podemos assim dizer. Pune-se não apenas porque delinqüiu, mas também para evitar que volte a delinqüir. Apesar de toda a ilação doutrinária e as alterações legislativas, como, por exemplo as inovações brasileiras alcançadas pelas Leis nº 7.209 e 7.210 de 1984, o cárcere continua sendo ambiente excludente e vitimizador em relação ao apenado, inábil a qualquer proposta ressocializadora. Prova disso é a constatação dos elevados índices de reincidência, a elevada população prisional, o problema da falta de vagas e tantos outros apontados no presente trabalho. Conforme demonstrado, o problema é que as falhas do sistema não são acidentais ou simplesmente de aplicação. Longe disso, são estruturais, inerentes à própria fundamentação do discurso. Segundo alerta de BAUMAN215, a principal clientela do sistema carcerário em qualquer lugar, mas especialmente nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como é o caso brasileiro, ainda é o refugo da sociedade, considerados estranhos aos “cidadãos de bem”. Submetidos, então, à sanção penal, em relação a ela perdem totalmente sua condição de sujeitos de direitos e obrigações e, não passando de objetos de trabalho do sistema punitivo, acabam tendo desconstruída cada vez mais sua personalidade. Diante disso, então, e essa é a nossa segunda conclusão, a eficácia do sistema penal não poderia jamais se limitar a uma ou outra alteração legislativa ou mesmo o simples incremento nas verbas públicas destinadas à gestão carcerária. Não que não sejam medidas importantes, mas se o problema não é apenas material, mas filosófico, tais medidas somente teriam eficácia à luz de uma verdadeira e profunda mudança comportamental de todos os envolvidos direta ou indiretamente pelo crime e sua conseqüente sanção. Esse o raciocínio trilhado pela filosofia abolicionista e, mais recentemente, pela proposta da Justiça Restaurativa, analisadas em nosso terceiro capítulo. Interessante foi, nesse ponto, a abordagem conjunta efetuada das tuas teorias, afinal, facilmente perceptível o surgimento da segunda exatamente como uma proposta de solução aos vícios do sistema punitivo apontados pela primeira. De fato, as técnicas de composição de danos e chamamento das partes envolvidas pelo delito, vítima e autor, se mostram interessantes tentativas de solução do problema sem que seja necessária uma atuação mais agressiva do poder público sobre o réu, o que, de um lado soa mais satisfatório à vitima, que se vê parte do processo e, de outro, evita o fator vitimizante que o sistema tradicional exerce sobre o condenado. Mais profunda, porém, conforme mostrado, é a contribuição da filosofia da justiça restaurativa que uma simples alternativa à pena tradicional ao réu que aceita sentar-se à mesa com a vítima para compor os danos causados. Mesmo porque, isso equivaleria a uma análise simplória e resumida da proposta. Mais importante que a simples criação de institutos que permitam a composição de danos é o reconhecimento da humanização do sistema jurídico penal como peça-chave para sua eficácia. 215 BAUMAN. Op. Cit.: 57. Trata-se, exatamente, do reconhecimento de que, se o sistema tradicional é falho porque vê o criminoso como um estranho e um objeto de trabalho, sem qualquer direito a voz, a solução do problema passaria pela mudança de olhar, trazendo-o para dentro da discussão e humanizando toda a atividade do sistema. É essa uma proposta polêmica, especialmente se intentada dentro de uma sociedade consumista em que o “eu” e o “hoje” imperam nas relações estabelecidas. Polêmica porque contrária a tudo o que é cotidianamente colocado como valor e fonte de satisfação. Entretanto, é uma proposta que, se trabalhada de forma coerente e responsável, pode levar a uma eficaz atuação do sistema. Essa a nossa final conclusão, alcançada pela analise da metodologia de trabalho desenvolvida e pelos resultados obtidos na APAC de Itaúna. Pelo que se apurou, seja pela pesquisa doutrinária e documental, seja pela análise in loco, o trabalho desenvolvido segundo o Método APAC destoa completamente do sistema tradicional de cumprimento de pena, e isso não apenas no contexto brasileiro. O reconhecimento do apenado como pessoa dotada de qualidades e passível de emenda, o uso do diálogo e da religião nessa tarefa, o chamamento da vítima e da sociedade à tarefa de execução penal e os demais elementos do Método APAC são, ao mesmo tempo, coerentes com os dispositivos legais e antagônicos na maneira de se realizar e nos resultados obtidos. Os recuperandos que passam pela APAC de Itaúna (fato esse que se reproduz também em outras APAC’s), em sua maioria, recuperam a dignidade humana, o auto-respeito e o respeito pelo outro, além de uma motivação para a vida longe da criminalidade e inseridos na sociedade. Complementarmente, o envolvimento social na execução penal leva a comunidade local a sentir motivada a receber o egresso e a garantir-lhe oportunidades longe do crime, fato incomum no sistema tradicional, enquanto o envolvimento da vítima, seja pelo incentivo ao perdão, seja pelo incentivo à reparação do dano levam-lhe a vencer os estigmas vitimizatórios, presentes tão incisivamente no sistema tradicional. Não se trata de querer pintar o Método APAC como uma fórmula mágica capaz de solucionar da noite para o dia o problema da criminalidade e a crise do sistema carcerário. Também pelo que se apurou na APAC de Itaúna e em narrativas de fatos ocorridos em outras APACs, como qualquer estrutura humana falhas lá também existem. Por se tratar de uma entidade estruturada sob a forma de Organização Não Governamental, extremamente dependente é o Método APAC do efetivo envolvimento da sociedade local onde se pretende a instalação de uma unidade apaqueana. Assim, se não houver o preparo prévio do grupo de voluntários envolvido ou se, por um motivo ou outro, ao longo de seu funcionamento, tal grupo vier a desafinar, certamente toda a estrutura ruirá, vez que sua base é exatamente o comprometimento coletivo na busca da humanização da pena. Se aplicado de forma coerente, por outro lado, não só a experiência de Itaúna, mas várias outras APACs em funcionamento por todo o Brasil e mesmo fora demonstram isso, é o Método APAC a resposta tão procurada pelos teóricos da justiça restaurativa para a correta aplicação de pena privativa de liberdade sobre o condenado. 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