Interbio v.2 n.2 2008 - ISSN 1981-3775 4 DA AMAMENTAÇÃO AOS AFETOS DA VIDA ADULTA OF THE BREAST-FEEDING TO THE AFFECTIONS OF THE ADULT LIFE SILVA, Luciana Codognoto da1; DAUBER, Lia2 Resumo O presente trabalho objetiva evidenciar o processo de amamentação como fator estruturante dos vínculos afetivos humanos. Sigmund Freud e sucessores da teoria psicanalítica (Bowlby e Klein) sempre foram unânimes em reconhecer a importância das primeiras relações objetais como base para o desenvolvimento emocional e afetivo da criança. Sob esse prisma, o presente trabalho traz considerações referentes ao desenvolvimento infantil, contrapondo os pontos mais importantes na teoria das relações objetais, bem como aponta o processo histórico-cultural da amamentação, através do estudo bibliográfico. Por conseguinte, as primeiras relações da criança com o mundo externo, estabelecidas através da oralidade, contribuirão para o seu desenvolvimento emocional, possibilitando-lhe firmar os alicerces de sua vida afetiva adulta, culminado no estabelecimento, manutenção, ou ainda, no rompimento de seus vínculos amorosos e interpessoais. Logo, os sentimentos ambivalentes de amor e ódio tornar-se-ão partes de um mesmo processo, sendo dirigidos, apenas, aos objetos de grande significado para a vida humana. Palavras-Chave: Amamentação, Afeto, Relações de Objeto, Psicanálise. Abstract The present work aims at to evidence the breast-feeding process as factor estruturante of the human affectionate bonds. Sigmund Freud and successors of the theory psychoanalysis (Bowlby and Klein) they were always unanimous in recognizing the importance of the first relationships object as base for the child's emotional and affectionate development. Under that prism, the present work brings considerations regarding the infantile development, opposing the most important points in the theory of the relationships objects, as well as it points the historical-cultural process of the breast-feeding, through the bibliographical study. Consequently, the child's first relationships with the external world, established through the oral, they will contribute to his emotional development, making possible to firm him the foundations of his adult affectionate life, culminated in the establishment, maintenance, or still, in the breaking of their loving bonds and interpessoais. Therefore, the ambivalent feelings of love and hate will become leave of a same process, being driven, just, to the objects of great meaning for the human life. Key-Words: Breast-feeding, Affection, Relationships of Object, Psychoanalysis. 1 Graduada em Psicologia pela UNIGRAN-Dourados (MS) e Pós-Graduanda em Metodologia do Ensino Superior pela UNIGRAN. Dedica-se ao estudo das questões infantis, mediante a compreensão da teoria psicanalítica e da teoria sócio-histórica. Endereço eletrônico: lucodognoto@ hotmail.com. Telefones: (67) 3-4431017 e (67) 8127-8114. 2 Mestre em Psicologia da Saúde e Comportamento Social pela Universidade Católica Dom Bosco – UCDB, Campo Grande – MS, especialista no Método de Rorschach e Professora de Técnicas de Exame Psicológico e Psicologia da Personalidade, no curso de Psicologia do Centro Universitário da Grande Dourados – UNIGRAN, Dourados - MS. SILVA, Luciana Codognoto da; DAUBER, Lia Interbio v.2 n.2 2008 - ISSN 1981-3775 Introdução Nos últimos anos, são freqüentes as discussões a respeito da alimentação da criança no primeiro semestre de vida. Relevantes são os destaques apontando os benefícios proporcionados pela amamentação, não apenas por suas propriedades alimentícias e imunológicas, mas principalmente pelos reflexos que esse envolvimento gerará no emocional da criança, possibilitando o estabelecimento e a manutenção dos vínculos afetivos da idade adulta. Na Antigüidade, havia uma grande preocupação quanto à alimentação do infante. As mães egípcias e assírias priorizavam a prática da amamentação como fator indispensável para o desenvolvimento saudável do filho. Contudo, nesse período, ainda eram desconhecidos os efeitos psicológicos decorrentes do contato maternofilial (ORNELLAS, 2003). Na Idade Média, utilizando-se da filosofia e dos ideais de “Liberdade e Igualdade” propostos pela corrente iluminista do século XVIII, o filósofo Jean Jacques Rousseau (1712-1778) acreditava na importância da amamentação como via de construção das bases afetivas humanas. Com o advento da psicanálise, Freud (1915) e sucessores confirmam e difundem a teoria das relações objetais estabelecidas pela criança nos primeiros momentos de vida, através da oralidade, como fator primordial para o desenvolvimento da afetividade adulta. Em vista disso, muitos trabalhos têm sido realizados pela área médica e pelos profissionais da saúde, visando propagar os benefícios incontestáveis do aleitamento materno. A psicologia, por sua vez, destacase pela ênfase que dá a esse processo, situando-o como elemento de promoção da saúde mental humana e, conseqüentemente, como caminho para o progresso das relações objetais, culminando no estabelecimento das emoções e sentimentos do ser humano. Com os primeiros trabalhos descritos por Freud, muitos psicanalistas e 5 pesquisadores ampliaram a teoria psicanalítica, concordando, ou ainda, divergindo de alguns de seus pontos, contribuindo para o surgimento de novas teorias e pesquisas acerca das relações objetais. Nesse sentido, destacamos os trabalhos de pesquisadores psicanalíticos contemporâneos, representado pela compreensão de Lejarraga (2003) sobre a noção de ternura, mediante o entendimento da teoria de Winnicott e Klein, na tentativa de refletir sobre a construção das relações amorosas; as palavras de Campos (2004) acerca dos prejuízos ocorridos pela ambigüidade dos afetos, mediante a análise dos conceitos teóricos presentes nas obras de Sigmund Freud; e os estudos de Pantoja e Goens (2000) sobre a importância da relação materno-filial no estabelecimento e curso das emoções e sentimentos, por meio do estudo das narrativas aplicado a dados longitudinais acerca do vínculo mãe-bebê. Assim, ao realizarmos um estudo bibliográfico acerca da psicodinâmica da amamentação, sintetizaremos a relevância do contexto materno-filial na fase inicial da vida, considerando o carinho e os cuidados maternos como elementos insubstituíveis para o desenvolvimento emocional, sobretudo afetivo da criança. Para tanto, este trabalho objetiva evidenciar a perspectiva histórico-cultural da amamentação, bem como abordará as relações de objeto infantis estabelecidas através da oralidade, utilizando-se da compreensão psicanalítica freudiana e sucessores (BOWLBY e KLEIN) e autores contemporâneos que fazem referência à amamentação e a formação dos vínculos amorosos e interpessoais da vida adulta. Por fim, a compreensão de qualquer conteúdo psicanalítico requer pesquisa aprofundada. O estudo dos afetos, na visão psicanalítica, se justifica não somente por sua relevância e complexidade, como também por sua ligação íntima com outros conceitos propostos pela psicologia e por áreas afins. Por conta disso, trabalhos acadêmicos sobre esse assunto são SILVA, Luciana Codognoto da; DAUBER, Lia Interbio v.2 n.2 2008 - ISSN 1981-3775 fundamentais para auxiliar a compreensão da psicanálise genuína, sobretudo no que diz respeito à primeira infância, simbolizada pela interação mãe-bebê, que será sempre relevante. Amamentação: cultural um resgate histórico- Ao longo do tempo e em diferentes contextos, o aleitamento materno tem sido enfatizado como importante fator para o desenvolvimento físico, sobretudo emocional da criança. Em cada período, as concepções acerca do papel desempenhado pela figura materna sofreram transformações em decorrência do modelo vigente de sociedade (PANTOJA; GOENS, 2000). A alimentação do recém-nascido, no Antigo Egito, era considerada um importante fator a ser desempenhado pelas mães, em especial, o aleitamento dos filhos varões. Durante a fase Ptolomaica, o aleitamento materno prolongava-se até o terceiro ano de vida, inexistindo, nas ruínas da época, utensílios que pudessem servir de mamadeira. Entretanto, com a difusão da cultura Helênica, surgiram alternativas que visavam proporcionar às mães egípcias formas mais sofisticadas de alimentar seus filhos, com o estabelecimento das primeiras mamadeiras da Antigüidade (ORNELLAS, 2003). Na cultura hindu, o leite e seus derivados possuíam grande valor para a alimentação infantil. As classes aristocráticas utilizavam amas-de-leite cuidadosamente selecionadas em relação à idade, casta, cor, caráter e formatos dos seios e mamilos (BOSI e MACHADO, 2005). Na Idade Média, o filósofo iluminista, Jean Jacques Rousseau (1712-1778) denunciou a maneira como as crianças eram tratadas, com a prática das mães em entregar os filhos às amas-de-leite. A partir de suas idéias sobre a infância, expressas na obra Emílio de 1762, o autor propõe uma mudança radical no tratamento que as instituições do Antigo Regime Francês dispensavam a este período de vida. Logo, o 6 primeiro índice de uma mudança de comportamento materno foi o desejo de amamentar o filho. As mães, aos poucos, aceitavam a idéia de que os cuidados e o carinho materno eram fatores insubstituíveis para a sobrevivência e o conforto da criança (ROUSSEAU, 1979). No Brasil, a amamentação passou a ser ressaltada, com maior ênfase, com o desenvolvimento da medicina higienista do século XIX, sendo concebida como relevante aspecto biológico-social, demarcando um importante momento na história da Saúde Pública Brasileira. Em decorrência do aumento expressivo da participação da mulher no mercado de trabalho, a mamadeira constituiu um recurso favorável para a alimentação da criança do século XX. Além disso, a comercialização de leites industrializados apresentava-se como alternativa segura tanto para a mulher inserida no mercado de trabalho, quanto para o infante. Em contraposição às idéias dominantes acerca do desmame e da alimentação artificial, a década de 80 foi marcada pela mobilização social em favor do aleitamento materno, com o estabelecimento de normas de funcionamento de bancos de leite no país e a criação da licença-maternidade, bem como a concessão de direitos para presidiárias de permanecerem os primeiros meses com os filhos (ALMEIDA, 1999). Atualmente, a política de saúde infantil no Brasil tem priorizado ações de promoção, proteção e apoio ao aleitamento materno, como estratégia fundamental para a melhor qualidade de vida das crianças brasileiras. Por conseguinte, o aleitamento materno é de suma importância, pois garante as condições necessárias para o desenvolvimento adequado, contribuindo para o estabelecimento e manutenção da saúde física e mental da criança. A Visão Psicanalítica Acerca Oralidade: em foco Freud e Klein da Uma das descobertas mais importantes da história da humanidade é a constatação, SILVA, Luciana Codognoto da; DAUBER, Lia Interbio v.2 n.2 2008 - ISSN 1981-3775 por Sigmund Freud, em 1915, de que existe uma parte da mente humana que se desenvolve na mais tenra idade. Os sentimentos e as fantasias deixam suas marcas no núcleo inconsciente da mente, permanecendo ativas e exercendo uma influência contínua sobre a vida emocional do homem. A Psicanálise sustenta a existência de uma vida mental inconsciente, propondo-se, então, estudá-la através de seu método investigativo, dando relevo à formação dos vínculos afetivos, estabelecidos por meio da oralidade, como fator preponderante para a aquisição da identidade humana. Sendo assim, Freud, precursor da psicanálise, ressaltou pela primeira vez o termo auto-erotismo em uma carta dirigida a Fliess, em 1899. Segundo ele “o autoerotismo designa o extrato sexual mais primitivo, agindo com independência de qualquer fim psicossexual e exigindo somente sensações locais de satisfação” (FREUD, 1996, p. 377). Em sua obra “Os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”, escrita em 1905, o autor retoma o termo auto-erotismo, caracterizando-o como um estado original da sexualidade infantil anterior ao narcisismo, no qual a pulsão sexual, ligada a um órgão ou à excitação de uma zona erógena, encontra satisfação sem recorrer a um objeto externo. Deste modo, a fase oral será a primeira etapa de evolução sexual pré-genital, estando o prazer ligado à ingestão de alimentos e a excitação da mucosa dos lábios e da cavidade bucal. Para Freud (1996) as organizações prégenitais são organizações da vida sexual, nas quais as zonas genitais não assumiram o papel preponderante, isto é, a busca do prazer não está dominada pela função reprodutora. Em 1915, com a obra “Os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” é que a noção de organização pré-genital infantil assume um papel mais amplo na teoria freudiana, abarcando a organização oral, 7 anal-sádica e posteriormente a fálica, introduzida em 1923. Destarte, o conceito de fase, na visão psicanalítica, implica não somente a mudança de uma zona erógena, mas também certo modo de relação do indivíduo com o seu meio. Na fase oral, esta relação é caracterizada pelo “comer e ser comido”, proveniente do contato da criança com o seio materno (FENICHEL, 2004). Faz-se necessário ressaltar que, a princípio, o mundo do bebê estará centralizado em torno da oralidade, pois os primeiros desconfortos manifestos serão tensões provocadas pela fome e pela sede. O leite satisfaz o estado de necessidade orgânica advindo com a fome, entretanto, ao mesmo tempo, ocorrerá um processo paralelo de natureza sexual caracterizado pela excitação dos lábios e da língua pelo seio, produzindo uma satisfação que não se reduz ao processo de saciedade, apesar de encontrar nela o seu apoio. Enfim, o objeto do instinto é o alimento, enquanto o da pulsão sexual é o seio materno (KLEIN, 1973). Nos estágios iniciais de vida, não existe uma diferenciação entre o id e o ego do bebê. Os dedos e a boca são fontes importantes de autogratificação para a criança, consistindo em um estado de libido autodirigida denominada por Freud de Narcisismo. A atitude da criança perante os objetos do mundo externo será exclusivamente egocêntrica, pois, nesta fase, seu interesse estará voltado somente para o objeto realizador de suas necessidades. Gradativamente, porém, interessar-se-á pelos objetos de seu meio, persistindo mesmo quando não procura a sua satisfação. Segundo Brenner (1987) o termo Objeto designa pessoas ou seres inanimados do ambiente externo que são psicologicamente significativas para a vida psíquica do indivíduo. Assim, o termo Relações de Objeto refere-se ao comportamento do indivíduo perante estes objetos. Nesse sentido, as relações objetais têm início com o amor que a criança dirige ao SILVA, Luciana Codognoto da; DAUBER, Lia Interbio v.2 n.2 2008 - ISSN 1981-3775 seio materno, posteriormente, esta reconhecerá a mãe e o mundo externo, dirigindo aos objetos o seu amor, conseqüentemente, desenvolverá as bases para a sua vida afetiva na idade adulta. Os primeiros objetos são percebidos pela criança de maneira parcial e ocasional. Após o primeiro ano de vida, desenvolve-se a relação contínua de objeto, isto é, a fusão da noção de seio bom e seio mau como provenientes de uma mesma pessoa, a mãe (SEGAL, 1975). De acordo com a teoria kleiniana, a noção de seio bom é caracterizada pelas experiências gratificantes de amor e de saciedade recebidas da mãe, ao passo que a noção de seio mau refere-se às experiências reais de privação e sofrimento, as quais são sentidas pelo bebê como forma de perseguição, expressa na fantasia pelo medo de ser aniquilado. Nesse contexto, surge o que Klein (1973) denominou de ansiedade persecutória, na qual os impulsos são sentidos de maneira interna, pelo medo do aniquilamento e externa, pelo desconforto real da fome. Essa posição recebe o nome de Esquizoparanóide, cuja ansiedade predominante é a persecutória, na qual o bebê agride, na fantasia, o seio mau e frustrador através dos impulsos agressivos orais, coincidindo com o período de dentição e com os impulsos uretrais e anais por meio da urina e das fezes. Para que a posição Esquizoparanóide ceda lugar gradualmente à posição Depressiva, a precondição necessária será a predominância das experiências boas sobre as más. Quando isso acontece, o ego do bebê adquire crença na prevalência do objeto ideal sobre os persecutórios, ocasionando maior força e capacidade para enfrentar as ansiedades sem recorrer a mecanismos de defesa violentos. O medo dos perseguidores e a cisão dos objetos diminuem, havendo uma diferenciação do ego em relação ao mundo externo (KLEIN, 1973). Durante o segundo trimestre de vida, a relação do bebê com as partes do corpo da mãe, antes centralizada no seio, mudará gradualmente para uma relação enquanto 8 pessoa completa. A criança começa a perceber que suas experiências de satisfação e frustração não procedem de um seio, ou ainda, de uma mãe boa ou má, mas da mesma mãe que é igualmente fonte do que é bom e mau. Então, o bebê descobrirá o seu desamparo e sua dependência em relação à mãe, conseqüentemente, sentir-se-á culpado pela ambivalência de amar e odiar a mesma pessoa, dando início à Posição Depressiva, na qual a ansiedade predominante é a de que os impulsos destrutivos tenham destruído não apenas a pessoa que ele ama e depende, mas também o seu próprio ego, por meio do processo introjetivo, mobilizando na criança o desejo de compensar os danos cometidos aos objetos em sua fantasia onipotente, pois acredita que seus ataques destrutivos tenham sido os responsáveis pela destruição do objeto amado e, conseqüentemente, com o seu amor, acredita que poderá desfazer os efeitos de sua agressividade. Logo, o conflito predominante na posição Depressiva será a luta constante entre a destrutividade, o amor e a ação dos impulsos reparadores do bebê em relação ao seio materno (KLEIN, 1973). Portanto, conforme a teoria kleiniana, a relação com o seio amado e odiado será a primeira relação de objeto do bebê com o mundo externo. Nesse sentido, a amamentação possui um papel fundamental para a construção da afetividade humana, sendo o seu início estabelecido nas relações da criança com a sua mãe, ou ainda, com o primeiro representante do mundo externo que lhe ofereça o carinho e a segurança necessária, sendo obtido por meio da sobrevivência da figura materna na fantasia infantil. Da Amamentação aos Afetos O termo afetividade é denominado por Ferreira (2001) como um sentimento de apego sincero a alguém, expresso na amizade e no amor. Para Bock e colaboradores (2002) o afeto é caracterizado pela tonalidade SILVA, Luciana Codognoto da; DAUBER, Lia Interbio v.2 n.2 2008 - ISSN 1981-3775 emocional dirigida a um acontecimento externo. Bowlby (1987) define o vínculo afetivo a partir de uma atração dirigida ao objeto, inexistindo, por conseguinte, vida desprovida de tonalidade afetiva. Assim sendo, a vida humana será regida por dois afetos básicos: o amor e o ódio. Eles se encontram presentes na vida psíquica, nos pensamentos e comportamentos emitidos pelo homem. As emoções caracterizam-se por serem expressões afetivas acompanhadas de reações orgânicas intensas, em resposta a um acontecimento externo inesperado. Logo, a paixão, uma das manifestações mais intensas da emoção, caracteriza-se por ser um estado extremo de amar, isto é, há um investimento libidinal excessivo depositado no objeto de desejo, ficando o ego empobrecido, a ponto de seguir e fazer tudo o que o Outro desejar. Faz-se necessário, portanto, o estabelecimento de mecanismos de defesa do ego, a fim de haver um investimento da libido em si próprio. Assim, haverá um amadurecimento do estado emotivo da paixão para a manifestação do sentimento de amor, ou seja, uma transformação de entrega total para um investimento libidinal com enriquecimento do próprio ego. Logo, as emoções serão momentos de tensão em um organismo, ao passo que as reações orgânicas serão descargas emocionais emitidas pelo homem, visando atingir a homeostase de seu estado físico e psicológico (BOCK, FURTADO e TEIXEIRA, 2002). Os estados sentimentais diferem das emoções por serem mais duradouros, havendo uma atenuação das reações orgânicas. A princípio, o ser humano dirige seus sentimentos mais profundos de amor e ódio a sua mãe, representada pelo seio. Posteriormente, com o amadurecimento físico e o desenvolvimento das relações afetivas com a figura materna, a criança passará a investir o seu amor e o seu ódio às pessoas mais próximas: pai, irmãos e pessoas de seu convívio, dando início aos sentimentos de amizade e de carinho 9 dirigidos aos novos objetos do mundo externo (KLEIN, 1973). Para isso, será necessário que o bebê saiba lidar de forma satisfatória com os sentimentos conflitantes de amor, ódio e culpa em relação à pessoa amada. Se a criança consegue estabelecer internamente a mãe boa e prestativa, esta exercerá influência benéfica para o seu desenvolvimento, contribuindo para a formação de futuros vínculos amorosos; se os conflitos, porém, tornam-se insuportáveis, com a internalização do objeto mau e frustrador, os futuros vínculos estarão prejudicados, pois as primeiras relações com a figura materna foram insatisfatórias. Nesse sentido, os conflitos não solucionados da primeira infância desempenham importante papel na ruptura dos relacionamentos afetivos. Situações primitivas de desejos insatisfeitos, de voracidade e ciúmes poderão estar presentes nos relacionamentos desarmoniosos, culminando em sentimentos de possessividade e exigência extrema para com os objetos. Bowlby (1987) salienta que alguns indivíduos apresentam uma ligação ansiosa, seja para com o seu cônjuge, seja em uma troca interpessoal. Estas pessoas realizam constantes exigências de amor e atenção, apresentando uma solicitude compulsiva para com o objeto, por meio de ressentimentos latentes de não serem apreciadas e amadas pelas pessoas, caracterizando modelos inconscientes de compensação a antigas privações infantis. A idealização, por sua vez, será a precursora das boas relações de objeto. Assim, a crença na bondade dos objetos do mundo externo, somado à própria confiança, proporcionada pela internalização do objeto bom, serão as precondições para a formação de ideais sociais e políticos, bem como permitirá ao homem estabelecer vínculos amorosos com os novos objetos de sua vida, influenciando positivamente nos relacionamentos atuais (BOWLBY, 1987). Enfim, as manifestações inconscientes advindas da primeira infância determinarão o SILVA, Luciana Codognoto da; DAUBER, Lia Interbio v.2 n.2 2008 - ISSN 1981-3775 curso da afetividade, atuando no estabelecimento, manutenção, ou ainda, no rompimento dos vínculos amorosos e interpessoais da idade adulta. Considerações Finais Realizamos partir das idéias fundamentadas pela literatura psicanalítica das relações objetais, uma reflexão acerca do processo de amamentação como fator estruturante dos vínculos afetivos humanos. A perspectiva histórico-cultural foi abordada através da retomada de aspectos que contribuíram ou impediram a prática da amamentação, bem como refletimos sobre as diversas estratégias utilizadas em diferentes épocas e contextos sociais e suas repercussões na decisão das mulheres em oferecer o leite materno como alimento para seus filhos. Sob esse prisma, constatamos que a formação, manutenção e o rompimento dos vínculos afetivos decorrem dos acontecimentos da primeira infância. Assim, o ciúme, a voracidade e a agressividade, antes dirigidos ao seio materno, se estenderão para os relacionamentos interpessoais da idade adulta, culminando nos sentimentos de possessividade e exigência extrema, caracterizados por serem elementos perturbadores dos relacionamentos afetivos, no qual se realizará constantes exigências de amor e atenção ao objeto de desejo atual na tentativa de suprir antigas privações infantis. Podemos perceber, ao longo da pesquisa, que os sentimentos ambivalentes de amor e ódio, antes dirigidos ao seio materno e, posteriormente expressos nos relacionamentos amorosos e interpessoais, farão parte de um mesmo processo, a medida em que o ódio será destinado ao objeto amado e até então, investido pela libido. Além disso, quando mencionamos a palavra Mãe, nos referimos não somente à figura biológica, mas, sobretudo à pessoa que oferecerá à criança o carinho e os cuidados necessários para a sua sobrevivência. Logo, o mais importante na 10 estruturação da saúde mental humana e principalmente da afetividade será não o mundo que objetivamente falamos ou observamos, mas o mundo que subjetivamente apreendemos. Neste caso, será determinado principalmente pelas primeiras relações que a criança estabelece com o seu representante materno. Por outro lado, a amamentação em nosso olhar, não designa somente o aleitamento materno exclusivo, mas a forma pela qual será oferecido o alimento e o carinho necessário à sobrevivência da criança, visto que o essencial para o bebê será a qualidade da relação estabelecida na fase inicial da sua vida com os representantes do mundo externo, tornando-se a base para a estruturação da sua vida afetiva adulta. Por fim, Alberoni (1988) salienta que não se pode odiar aquilo que não se tem valor e nem importância. Deste modo, o ódio será destinado aos objetos mais significativos da vida humana e àqueles que, de alguma forma, serão depositários dos sentimentos de amor pelo ser humano. Logo, amamos e odiamos aquilo que nos é importante, sendo iniciado na primeira infância, a partir das frustrações ocorridas durante o processo de amamentação. Referências Bibliográficas ALBERONI, F. Enamoramento e Amor. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. ALMEIDA, J.G. Amamentação: um híbrido da natureza-cultura. 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